Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

20 setembro, 2025

 

Alargamento da OTAN:

O que foi dito a Gorbachev

(Parte II)

(Tradução de Fernando Oliveira [*])

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A PARTE I deste arquivo pode ser lida aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/09/nota-editorial-introdutoria-ao-arquivo.html

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Washington DC. O ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética, Eduard Shevardnadze (sentado à esquerda), e o Secretário de Estado dos EUA, James Baker III (sentado à direita) trocam canetas depois de terem assinado vários Tratados numa cerimónia que teve lugar na Casa Branca em 6-01-1990. O presidente da União Soviética,  Mikhail Gorbachev (em pé, à esquerda) e o presidente dos EUA, George Bush (em pé, à direita), observam o ritual. Foto da UPI. Fotógrafo Cliff Owen.

LEITURA DOS DOCUMENTOS

Documento 01

Telegrama confidencial da Embaixada dos EUA em Bona para o Secretário de Estado sobre o discurso do Ministro dos Negócios Estrangeiros Alemão: Genscher descreve a sua visão de uma Nova Arquitectura Europeia.

1 de Fevereiro de 1990

Fonte

U.S. Department of State. FOIA Reading Room. Case F-2015 10829

Um dos mitos relacionados com as discussões de Janeiro e Fevereiro de 1990 sobre a reunificação alemã é o de que estas conversações ocorreram muito cedo no processo, com o Pacto de Varsóvia ainda presente, que ninguém estava a pensar na possibilidade de os países da Europa Central e Oriental, ainda na altura membros do Pacto de Varsóvia, poderem no futuro tornar-se membros da OTAN.

Pelo contrário, a fórmula de Tutzing do Ministro dos Negócios Estrangeiros da RFA, no discurso proferido a de 31 de Janeiro de 1990 e amplamente divulgado pelos meios de comunicação social na Europa, em Washington e em Moscovo, abordou explicitamente a possibilidade de alargamento da OTAN, bem como da adesão da Europa Central e Oriental à OTAN — e negou essa possibilidade, como parte do seu ramo de oliveira dirigido a Moscovo. Este telegrama da Embaixada dos EUA em Bona, enviado a Washington, descreve em pormenor as duas propostas de Hans-Dietrich Genscher — que a OTAN não se alargaria para Leste e que o antigo território da RDA numa Alemanha reunificada seria tratado de forma diferente dos restantes territórios da OTAN.

Documento 02

Mr. Hurd para Sir C. Mallaby (Bona). Telegrama N. 85: Chamada do Secretário de Estado sobre Herr Genscher: Reunificação alemã.

6 de Fevereiro de 1990

Fonte

Documents on British Policy Overseas, series III, volume VII: German Unification, 1989-1990. (Foreign and Commonwealth Office. Documentos sobre a política externa britânica, editados por Patrick Salmon, Keith Hamilton e Stephen Twigge, Oxford and New York, Routledge 2010). pp. 261-264

A visão posterior do Departamento de Estado dos EUA sobre as negociações de reunificação alemã, expressa num telegrama de 1996 enviado a todos os postos, afirma erradamente que todo o processo de negociação sobre o futuro da Alemanha limitou as discussões relativas ao futuro da OTAN aos acordos específicos sobre o território da antiga RDA. É provável que os diplomatas americanos tenham perdido o diálogo inicial entre britânicos e alemães sobre esta questão, apesar de ambos terem compartilhado os seus pontos de vista com o Secretário de Estado dos EUA.

Como foi publicado na história documental oficial de 2010 do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth da Grã-Bretanha sobre o contributo do Reino Unido para a reunificação alemã, este memorando da conversa entre o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico Douglas Hurd e o Ministro dos Negócios Estrangeiros da RFA Genscher, em 6 de Fevereiro de 1990, contém uma especificidade notável sobre a questão da futura adesão da Europa Central à OTAN. O memorando britânico cita especificamente Genscher como tendo dito

«que quando ele referiu que não pretendia alargar a OTAN isso se aplicava a outros Estados para além da RDA. É preciso dar aos russos alguma garantia de que se, por exemplo, o governo polaco um dia abandonar o Pacto de Varsóvia, não vai aderir à OTAN no dia seguinte».

Genscher e Hurd disseram o mesmo ao seu homólogo soviético Eduard Shevardnadze e a James Baker.[8]

Documento 03

Memorando de Paul H. Nitze para George H. W. Bush sobre a reunião do “Fórum para a Alemanha” em Berlim.

6 de Fevereiro de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush

Esta breve nota dirigida ao Presidente Bush por um dos arquitectos da Guerra Fria, Paul Nitze (baseado na sua homónima Escola de Estudos Internacionais da Universidade John Hopkins), capta o debate sobre o futuro da OTAN no início de 1990. Nitze conta que os governantes da Europa Central e Oriental presentes na conferência Fórum para a Alemanha, em Berlim, defendiam a dissolução dos dois blocos de superpotências, a OTAN e o Pacto de Varsóvia, até que ele (e alguns europeus ocidentais) inverteram essa opinião e, em vez disso, sublinharam a importância da OTAN como base da estabilidade e da presença dos EUA na Europa.

Documento 04

Memorando da conversa entre James Baker e Eduard Shevardnadze em Moscovo.

9 de Fevereiro de 1990

Fonte

U.S. Department of State, FOIA 199504567 (National Security Archive Flashpoints Collection, Box 38)

Apesar de ter sido alvo de uma profunda reescrita em comparação com os relatos soviéticos destas conversas, a versão oficial do Departamento de Estado quanto às garantias dadas pelo Secretário [de Estado dos EUA]  Baker ao Ministro dos Negócios Estrangeiros soviético Shevardnadze, imediatamente antes da reunião formal com Gorbachev em 9 de Fevereiro de 1990, contém uma série de frases reveladoras.

Eduard  Shevardnadze (à esquerda) e James Baker III (à direita), no primeiro de dois dias de conversações em Houston, EUA, em 10 de Dezembro de1990. Foto: AP Laserphoto.

Baker propõe a fórmula “Dois Mais Quatro”, em que os dois são as Alemanhas e os quatro as potências ocupantes do pós-guerra; argumenta contra outras formas de negociar a reunificação; e defende a ancoragem da Alemanha na OTAN. Além disso, Baker diz ao Ministro dos Negócios Estrangeiros soviético:

«Uma Alemanha neutral adquiriria sem dúvida a sua própria capacidade nuclear independente. No entanto, uma Alemanha firmemente ancorada numa OTAN modificada, ou seja, uma OTAN que é muito menos uma organização militar e muito mais uma organização política, não teria necessidade de uma capacidade independente».

Teria, evidentemente, de haver garantias irrefutáveis de que a jurisdição ou as forças da OTAN não se deslocariam para leste. E isto teria de ser feito de uma forma que satisfizesse os vizinhos da Alemanha a leste.

Documento 05

Memorando da conversa entre Mikhail Gorbachev e James Baker em Moscovo.

9 de Fevereiro de 1990

Fonte

U.S. Department of State, FOIA 199504567 (National Security Archive Flashpoints Collection, Box 38)

Mesmo com as sucessivas reescritas (injustificadas) por parte dos responsáveis pela classificação dos EUA, esta transcrição americana da talvez mais famosa garantia dos EUA aos soviéticos sobre o alargamento da OTAN confirma a transcrição soviética da mesma conversa. Repetindo o que Bush dissera na cimeira de Malta em Dezembro de 1989, Baker diz a Gorbachev: «O Presidente e eu deixámos claro que não procuramos qualquer vantagem unilateral neste processo» da inevitável reunificação alemã. Baker prossegue dizendo: «Compreendemos a necessidade de dar garantias aos países de Leste. Se mantivermos uma presença numa Alemanha que faça parte da OTAN, as forças da OTAN não alargarão a sua jurisdição para Leste nem um centímetro».

Mais adiante, na conversa, Baker reitera a mesma posição sob a forma de uma pergunta:

«preferiria uma Alemanha reunificada fora da OTAN, independente e sem forças americanas, ou uma Alemanha reunificada com ligações à OTAN e garantias de que não haveria alargamento da actual jurisdição da Organização para Leste?»

Moscovo, Kremlin, 1990. James Baker III (à esquerda) com Mikhail Gorbachev.
 

Os responsáveis pela desclassificação deste memorando reescreveram a resposta de Gorbachev de que, de facto, um tal alargamento seria “inaceitável” — mas a carta de Baker a Kohl no dia seguinte, publicada em 1998 pelos alemães, apresenta a citação.

Documento 06

Registo da conversa entre Mikhail Gorbachev e James Baker em Moscovo. (Excertos)

9 de Fevereiro de 1990

Fonte

Arquivo da Fundação Gorbachev, Fond 1, Opis 1.

Este registo da Fundação Gorbachev sobre o encontro do governante soviético com James Baker, a 9 de Fevereiro de 1990, é público e está disponível para os investigadores da Fundação desde 1996, embora só tenha sido publicado em inglês em 2010, quando saiu o volume Masterpieces of History dos presentes autores, pela Central European University Press. O documento centra-se na reunificação alemã, mas também inclui uma discussão franca de Gorbachev sobre os problemas económicos e políticos da União Soviética e os “conselhos gratuitos” de Baker («por vezes, desperta o Ministro das Finanças que há em mim») sobre preços, inflação e até sobre a política de venda de apartamentos para absorver os rublos que os cautelosos cidadãos soviéticos guardam debaixo do colchão.

Passando à reunificação alemã, Baker garante a Gorbachev que «nem o Presidente nem eu tencionamos extrair quaisquer vantagens unilaterais dos processos que estão em curso» e que os americanos compreendem a importância para a URSS e para a Europa das garantias de que «nem um centímetro da actual jurisdição militar da OTAN se alargará para Leste». Baker defende as conversações ‘Dois Mais Quatro’ utilizando a mesma garantia: «

Acreditamos que as consultas e discussões no âmbito do mecanismo ‘dois + quatro’ devem garantir que a reunificação da Alemanha não levará a que a organização militar da OTAN se estenda para Leste

Gorbachev responde citando o Presidente polaco Wojciech Jaruzelski: «que a presença de tropas americanas e soviéticas na Europa seja um elemento de estabilidade

A troca de impressões decisiva ocorre quando Baker pergunta se Gorbachev preferiria «uma Alemanha reunificada fora da OTAN, absolutamente independente e sem tropas americanas; ou uma Alemanha reunificada mantendo as suas ligações à OTAN, mas com a garantia de que a jurisdição ou as tropas da OTAN não se alargariam para Leste da actual fronteira

Ou seja, nesta conversa, o Secretário de Estado dos EUA oferece por três vezes garantias de que se a Alemanha reunificada aderisse à OTAN, preservando a presença dos EUA na Europa, então a Organização não se alargaria para Leste. Curiosamente, nem uma única vez utiliza o termo RDA ou Alemanha de Leste, nem sequer menciona a presença de tropas soviéticas na Alemanha de Leste. Para um negociador hábil e um advogado cuidadoso, parece muito improvável que Baker não utilizasse uma terminologia específica se, de facto, se estivesse a referir apenas à Alemanha Oriental.

O governante soviético responde que «vamos reflectir sobre tudo isso. Tencionamos discutir todas estas questões em profundidade ao nível da direcção. Escusado será dizer que um alargamento da zona da OTAN não é aceitável [pelo PCUS] ”. Baker afirma: “Estamos de acordo.”

Documento 07

Memorando da conversa entre Robert Gates e Vladimir Kryuchkov em Moscovo.

9 de Fevereiro de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, NSC Scowcroft Files, Box 91128, Folder “Gorbachev (Dobrynin) Sensitive.”

Esta conversa é especialmente importante porque investigadores posteriores especularam que o Secretário de Estado Baker poderá ter ultrapassado o seu mandato ao afirmar «nem um centímetro para Leste» na sua conversa com Gorbachev. Robert Gates, antigo destacado analista de informações da CIA e especialista na URSS, afirma aqui ao seu homólogo, o chefe do KGB, no seu gabinete no quartel-general do KGB em Lubyanka, exactamente o que Baker disse a Gorbachev nesse dia no Kremlin: nem um centímetro para Leste.

Nessa altura, Gates era o principal adjunto do conselheiro de segurança nacional do Presidente, o general Brent Scowcroft, pelo que este documento refere uma abordagem coordenada do governo dos EUA a Gorbachev. Kryuchkov, que Gorbachev nomeara para substituir Viktor Chebrikov no KGB em Outubro de 1988, surge aqui como surpreendentemente progressista em muitas questões de reforma interna. Fala abertamente das deficiências e dos problemas da Perestroika, da necessidade de abolir o papel de chefia do PCUS, do errado abandono a que as questões étnicas foram votadas pelo governo central, do “atroz” sistema de preços e de outros temas internos.

Quando a discussão passa para a política externa, em particular para a questão alemã, Gates pergunta:

«O que é que Kryuchkov pensa da proposta Kohl/Genscher, segundo a qual uma Alemanha reunificada seria associada à OTAN, mas em que as tropas da OTAN não se deslocariam mais para Leste das posições actuais? Parece-nos ser uma boa proposta

Kryuchkov não dá uma resposta directa, mas refere como a questão da reunificação alemã é sensível para a opinião pública soviético e sugere que os alemães deveriam oferecer algumas garantias à União Soviética. Kohl e Genscher têm ideias interessantes, mas «mesmo os pontos das suas propostas com os quais concordamos teriam de ter garantias. Aprendemos com os americanos, nas negociações de controlo de armamento, a importância da verificação e teríamos de ter certezas

Documento 08

Carta de James Baker para Helmut Kohl

10 de Fevereiro de 1990

Fonte

Deutsche Enheit Sonderedition und den Akten des Budeskanzleramtes 1989/90, eds. Hanns Jurgen Kusters e Daniel Hofmann (Munich: R. Odenbourg Verlag, 1998), pp. 793-794

Este documento fundamental apareceu pela primeira vez na edição académica dos documentos da chancelaria de Helmut Kohl sobre a reunificação alemã, publicada em 1998. Na altura, Kohl estava envolvido numa campanha eleitoral que iria colocar ponto final ao seu mandato de 16 anos como Chanceler e queria recordar aos alemães o seu papel fundamental no triunfo da reunificação.[9] O grande volume (mais de 1000 páginas) incluía textos em alemão dos encontros de Kohl com Gorbachev, Bush, Mitterrand, Thatcher e outros – todos publicados sem qualquer consulta aparente a esses governos, apenas oito anos após os acontecimentos. Alguns dos documentos de Kohl, como este, aparecem em inglês, representando os originais americanos ou britânicos em vez de notas ou traduções alemãs. Aqui, Baker informa Kohl no dia seguinte ao seu encontro de 9 de Fevereiro com Gorbachev. (Está previsto que o Chanceler tenha a sua própria sessão com Gorbachev a 10 de Fevereiro em Moscovo). O americano informa o alemão sobre as “preocupações” soviéticas em relação à reunificação e sintetiza a razão pela qual uma negociação “Dois Mais Quatro” seria a sede mais adequada para as conversações sobre os «aspectos externos da reunificação», dado que os «aspectos internos... eram estritamente um assunto alemão

Baker comenta em especial a resposta não comprometedora de Gorbachev à pergunta sobre uma Alemanha neutra versus uma Alemanha OTAN com compromissos contra o alargamento para Leste, e adverte Kohl de que Gorbachev «pode estar disposto a aceitar uma abordagem sensata que lhe dê alguma cobertura...» Mais tarde nesse mesmo dia, Kohl reforça esta mensagem na sua própria conversa com o dirigente soviético.

Documento 09

Memorando da conversa entre Mikhail Gorbachev e Helmut Kohl

10 de Fevereiro de 1990

Fonte

Mikhail Gorbachev i germanskii vopros, editada por Alexander Galkin e Anatoly Chernyaev, (Moscow: Ves Mir, 2006)

Segundo Kohl, este encontro em Moscovo foi o momento em que ouviu pela primeira vez de Gorbachev que o dirigente soviético via a reunificação alemã como inevitável, que o valor da futura amizade alemã numa “casa comum europeia” superava a rigidez da Guerra Fria, mas que os soviéticos precisariam de tempo (e dinheiro) antes de poderem reconhecer as novas realidades.

Junho de 1989. Helmut Kohl com Mikhail Gorbachev em Bad Godesberg (Foto: Governo da RFA. Fotógrafo: Burkhard Jüttner)

Preparado pela carta de Baker e pela fórmula de Tutzing do seu próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros, Kohl assegura a Gorbachev, logo no início da conversa, que «acreditamos que a OTAN não deve alargar a sua esfera de actividades. Temos de encontrar uma solução razoável. Compreendo perfeitamente os interesses de segurança da União Soviética e sei que o senhor Secretário-geral e os dirigentes soviéticos terão de explicar claramente ao povo soviético o que se está a passar.» Mais tarde, os dois dirigentes discutiram sobre a OTAN e o Pacto de Varsóvia, com Gorbachev a comentar: «Dizem o que é a OTAN sem a RFA. Mas também poderíamos perguntar: o que é a Organização do Pacto de Varsóvia (OPV) sem a RDA?». Quando Kohl discorda, Gorbachev apela simplesmente a «soluções razoáveis que não envenenem a atmosfera das nossas relações» e diz que esta parte da conversa não deve ser tornada pública.

Andrei Grachev, assessor de Gorbachev, escreveu mais tarde que o dirigente soviético compreendeu desde cedo que a Alemanha era a porta para a integração europeia e que «todas as tentativas de negociação [de Gorbachev] sobre a fórmula final para a associação da Alemanha à OTAN eram, portanto, muito mais uma questão de forma do que de conteúdo sério; Gorbachev estava a tentar ganhar o tempo necessário para permitir que a opinião pública interna se adaptasse à nova realidade, ao novo tipo de relações que estavam a tomar forma nas relações da União Soviética com a Alemanha, bem como com o Ocidente em geral. Ao mesmo tempo, esperava obter dos seus parceiros ocidentais uma compensação política, pelo menos parcial, por aquilo que considerava ser a sua principal contribuição para o fim da Guerra Fria.»[10]

Documento 10-1

Notas de Teimuraz Stepanov-Mamaladze na Conferência sobre o Regime de Céu Aberto, Otava, Canadá.

12 de Fevereiro de 1990

Fonte

Hoover Institution Archive, Stepanov-Mamaladze Collection.

O Ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, Shevardnadze, estava particularmente descontente com o ritmo acelerado dos acontecimentos relativos à reunificação alemã, sobretudo quando uma reunião dos Ministros dos Negócios Estrangeiros da OTAN e do Pacto de Varsóvia, previamente agendada para Otava, no Canadá, de 10 a 12 de Fevereiro de 1990, e destinada a discutir o tratado ‘Céu Aberto’, se transformou numa ampla negociação para resolver os pormenores sobre a Alemanha e a instalação do processo ‘Dois Mais Quatro’.

O adjunto de Shevardnadze, Teimuraz Stepanov-Mamaladze, redigiu notas sobre as reuniões de Otava numa série de cadernos de apontamentos e manteve também um diário menos telegráfico, que tem de ser lido em conjunto com os cadernos de apontamentos para um conhecimento mais completo. Arquivados agora na Hoover Institution, estes excertos das notas e do diário de Stepanov-Mamaladze registam a desaprovação de Shevardnadze pela rapidez do processo, mas, mais importante, reforçam a importância das reuniões de 9 e 10 de Fevereiro em Moscovo, onde foram proferidas as garantias ocidentais sobre a segurança soviética e onde o consentimento de Gorbachev, em princípio, para uma eventual reunificação alemã fez parte do acordo.

As notas dos primeiros dias da conferência são muito breves, mas contêm uma linha importante que mostra que Baker ofereceu em Otava a mesma fórmula de garantia que em Moscovo:

«E se a Alemanha [reunificada] ficar na OTAN, devemos ter cuidado para que não haja alargamento da sua jurisdição para Leste

 Shevardnadze não está pronto a discutir as condições para a reunificação alemã; diz que tem de consultar Moscovo antes de aprovar qualquer condição. Em 13 de Fevereiro, segundo as notas, Shevardnadze queixa-se: «Estou numa situação idiota – estamos a discutir o ‘Céu Aberto’, mas os meus colegas falam da reunificação da Alemanha como se fosse um facto.» As notas mostram que Baker foi muito persistente na tentativa de fazer com que Shevardnadze definisse as condições soviéticas para a reunificação alemã na OTAN, enquanto Shevardnadze ainda se sentia desconfortável com o termo “reunificação”, insistindo no termo mais geral “unidade.”

Documento 10-2

Diário de Teimuraz Stepanov-Mamaladze, 12 de Fevereiro de 1990.

12 de Fevereiro de 1990

Fonte

Hoover Institution Archive, Stepanov-Mamaladze Collection.

Esta entrada do diário de 12 de Fevereiro contém uma descrição muito sucinta da visita de Kohl e Genscher a Moscovo, a 10 de Fevereiro, sobre a qual Stepanov-Mamaladze nada tinha escrito anteriormente (uma vez que não estivera presente).

Compartilhando a opinião do seu ministro, Shevardnadze, Stepanov reflecte sobre a natureza apressada e as insuficientes considerações dadas às discussões em Moscovo:

«Antes da nossa visita aqui, Kohl e Genscher fizeram uma visita apressada a Moscovo. E com a mesma pressa – na opinião de E. A. [Shevardnadze] – Gorbachev aceitou o direito dos alemães à unidade e à autodeterminação

 Esta entrada no diário é prova, numa perspectiva crítica, de que os Estados Unidos e a Alemanha Ocidental deram garantias concretas a Moscovo sobre a manutenção da OTAN na dimensão e no âmbito que possuíam na altura. De facto, o diário indica ainda que, pelo menos na opinião de Shevardnadze, essas garantias equivaliam a um acordo — que Gorbachev aceitou, mesmo quando as coisas já se começavam a arrastar.

Documento 10-3

Diário de Teimuraz Stepanov-Mamaladze, 13 de Fevereiro de 1990.

13 de Fevereiro de 1990

Fonte

Hoover Institution Archive, Stepanov-Mamaladze Collection.

No segundo dia da conferência de Otava, Stepanov-Mamaladze descreve as difíceis negociações quanto à formulação exacta da declaração conjunta sobre a Alemanha e o processo ‘Dois Mais Quatro’.

Shevardnadze e Genscher discutiram durante duas horas sobre os termos “unidade” e “reunificação”, numa altura em que Shevardnadze tentava abrandar o ritmo das negociações sobre a Alemanha e fazer com que os outros ministros se concentrassem no ‘Céu Aberto’.

O dia foi bastante intenso: «Ao longo do dia, houve jogos activos entre todos eles. E. A. [Shevardnadze] encontrou-se cinco vezes com Baker, duas vezes com Genscher, falou com Fischer [Ministro dos Negócios Estrangeiros da RDA], Dumas [Ministro dos Negócios Estrangeiros francês] e com os ministros dos países ATS” e, finalmente, o texto do acordo foi estabelecido, utilizando a palavra “unidade”. A declaração final também considerou o acordo sobre as tropas americanas e soviéticas na Europa Central como a principal conquista da conferência. Mas para os delegados soviéticos, «o ‘Céu Aberto’ [estava] ainda fechado pela nuvem de tempestade da Alemanha

Documento 11

Departamento de Estado EUA, “Dois Mais Quatro: Vantagens, Possíveis Preocupações e Pontos Contestados.”

21 de Fevereiro de 1990

Fonte

State Department FOIA release, National Security Archive Flashpoints Collection, Box 38.

Este memorando, provavelmente da autoria de Robert Zoellick, um dos principais assessores de Baker no Departamento de Estado, contém a franca visão americana do processo ‘Dois Mais Quatro’, com as vantagens de «manter o envolvimento americano no debate sobre a reunificação (e mesmo algum controlo sobre ele)

O receio americano era que os alemães ocidentais fizessem o seu próprio acordo com Moscovo para uma rápida reunificação, abdicando de algumas das linhas de fundo para os EUA, principalmente a adesão à OTAN. A título de exemplo, Zoellick salienta que Kohl tinha anunciado os seus 10 Pontos sem consultar Washington e após sinais de Moscovo, e que os EUA tinham sabido da ida de Kohl a Moscovo pelos soviéticos e não pelo próprio Kohl.

 O memorando responde antecipadamente às objecções quanto à inclusão dos soviéticos, salientando que estes já se encontravam na Alemanha e que era preciso lidar com eles. O acordo ‘Dois-Mais-Quarto’ inclui os soviéticos, mas impede-os de ter direito de veto (o que um processo de Quatro Potências ou um processo das Nações Unidas poderia permitir), enquanto uma conversa efectiva ‘Um-Mais-Três’ antes de cada reunião permitiria à Alemanha Ocidental e aos EUA, com os britânicos e os franceses, chegar a uma posição comum. Especialmente reveladores são os sublinhados e a caligrafia de Baker nas margens, nomeadamente a sua frase exuberante: «quem não conhece vai poder assistir a uma aquisição com recurso a capitais alheios!»

Documento 12-1

Memorando da conversa entre Vaclav Havel e George Bush em Washington.

20 de Fevereiro de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, Memcons e Telcons (https://bush41library.tamu.edu/)

Estas conversas podem ser chamadas de “a educação de Vaclav Havel,”[10] uma vez que o antigo dissidente que se tornou Presidente da Checoslováquia visitou Washington apenas dois meses depois de a Revolução de Veludo o ter levado da prisão para o Castelo de Praga.

Havel foi aplaudido de pé durante um discurso proferido a 21 de Fevereiro numa sessão conjunta do Congresso e manteve conversações com Bush antes e depois da sua presença nesta sessão. Havel fora já citado pelos jornalistas como tendo apelado à dissolução dos blocos da Guerra Fria, tanto da OTAN como do Pacto de Varsóvia, e à retirada das tropas, pelo que Bush aproveitou a oportunidade para dar um sermão ao governante checo sobre o valor da OTAN e o seu papel essencial como base da presença dos EUA na Europa.

Ainda assim, Havel mencionou duas vezes no seu discurso ao Congresso a esperança de que «os soldados americanos não tenham de ser separados das suas mães» só porque a Europa não conseguiu manter a paz, e apelou a uma «futura Alemanha democrática em vias de se reunificar numa nova estrutura pan-europeia que possa decidir sobre o seu próprio sistema de segurança.» Mas depois, ao falar novamente com Bush, o antigo dissidente tinha claramente percebido a mensagem. Havel disse que talvez tivesse sido mal interpretado, que via certamente o valor do empenhamento dos EUA na Europa. Por seu lado, Bush levantou a possibilidade, assumindo uma maior cooperação da Checoslováquia nesta questão, de investimento e ajuda dos EUA.

Documento 12-2

Memorando da conversa entre Vaclav Havel e George Bush em Washington.

21 de Fevereiro de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, Memcons and Telcons (https://bush41library.tamu.edu/)

Este memorando escrito após o discurso triunfante de Havel ao Congresso contém o pedido de Bush a Havel para que transmita a Gorbachev a mensagem de que os americanos o apoiam pessoalmente e que “não nos comportaremos de forma errada dizendo ‘nós ganhamos, vocês perderam’.” Sublinhando a questão, Bush diz: “diga a Gorbachev que... peço-lhe que diga a Gorbachev que não nos comportaremos em relação à Checoslováquia ou a qualquer outro país de forma a complicar os problemas que ele tão francamente discutiu comigo.”

O dirigente da Checoslováquia acrescenta a sua própria advertência aos americanos sobre a forma de proceder à reunificação da Alemanha e de lidar com as inseguranças soviéticas. Havel diz a Bush: “É uma questão de prestígio. Esta é a razão pela qual falei do novo sistema de segurança europeu sem mencionar a OTAN. Porque, se surgisse a partir da OTAN, teria de ter outro nome, quanto mais não fosse por causa do elemento de prestígio. Se a OTAN tomar conta da Alemanha, parecerá uma derrota, uma superpotência a conquistar outra. Mas se a OTAN se conseguir transformar – talvez em conjunto com o processo de Helsínquia – parecerá um processo pacífico de mudança, não uma derrota.” Bush respondeu de forma positiva: “Suscitou uma boa questão. A nossa opinião é que a OTAN continuaria com um novo papel político e que nos basearíamos no processo da CSCE. Iremos reflectir sobre a forma como podemos proceder.”

Documento 13

Memorando da conversa entre Helmut Kohl e George Bush em Camp David.

4 de Fevereiro de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, Memcons and Telcons (https://bush41library.tamu.edu/)

Em Fevereiro de 1990, a principal preocupação do governo Bush em relação à reunificação alemã, à medida que o processo ia acelerando, era que os alemães ocidentais pudessem fazer o seu próprio acordo bilateral com os soviéticos (ver Documento 11) e pudessem estar dispostos a negociar a adesão à OTAN. O Presidente Bush comentou mais tarde que o objectivo da reunião de Camp David com Kohl era “manter a Alemanha na reserva da OTAN”, e foi isso que determinou a agenda deste conjunto de reuniões.

O Chanceler alemão chega a Camp David sem Genscher porque este último não compartilha inteiramente a posição Bush-Kohl sobre a adesão plena da Alemanha à OTAN e, recentemente, irritara os dois governantes ao falar publicamente sobre a CSCE como o futuro mecanismo de segurança europeu.[12]

No início desta conversa, Kohl agradece o apoio de Bush e de Baker durante as suas conversações com Gorbachev em Moscovo no início de Fevereiro, especialmente a carta de Bush em que este afirmava o forte empenho de Washington na reunificação alemã na OTAN. Ambos os dirigentes expressaram a necessidade de uma cooperação mais estreita entre si para alcançar o resultado desejado.

A prioridade de Bush é manter a presença dos EUA na Europa, em especial a protecção nuclear: «se as forças nucleares americanas forem retiradas da Alemanha, não vejo como poderemos persuadir qualquer outro aliado no continente a manter essas armas.» O Presidente refere sarcasticamente as críticas oriundas do Capitólio: «Temos ideias estranhas no nosso Congresso hoje em dia, ideias como este dividendo de paz. Não podemos fazer isso nestes tempos de incerteza».

Ambos os governantes estão preocupados com a posição que Gorbachev poderá adoptar e concordam com a necessidade de o consultar regularmente. Kohl sugere que os soviéticos precisam de ajuda e que o acordo final sobre a Alemanha pode ser uma “questão de dinheiro”. Prenunciando a sua relutância em contribuir financeiramente, Bush responde: «vocês têm bolsos fundos». A certa altura, Bush parece ver o seu homólogo soviético não como um parceiro, mas como um inimigo derrotado. Referindo-se ao facto de nalguns bairros soviéticos se falar contra a permanência da Alemanha na OTAN, diz: «Que se lixe isso. Nós vencemos e eles não. Não podemos deixar que os soviéticos retirem uma vitória das garras da derrota

Documento 14

Memorando da conversa entre George Bush e Eduard Shevardnadze em Washington.

6 de Abril de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, Memcons and Telcons (https://bush41library.tamu.edu/)

O Ministro dos Negócios Estrangeiros [da União Soviética] Shevardnadze entrega a Bush uma carta de Gorbachev, na qual o Presidente soviético passa em revista as principais questões antes da próxima cimeira. As questões económicas estão no topo da lista para a União Soviética, especificamente o estatuto de ‘Nação Mais Favorecida’ e um acordo comercial com os Estados Unidos.

Shevardnadze manifesta a sua preocupação com a falta de progressos nestas questões e com os esforços dos EUA para impedir o BERD de conceder empréstimos à URSS. Shevardnadze sublinha que a URSS não está a pedir ajuda, «apenas queremos ser tratados como parceiros». Relativamente às tensões na Lituânia, Bush afirma que não quer criar dificuldades a Gorbachev em questões internas, mas salienta que tem de insistir nos direitos dos lituanos porque a sua incorporação na URSS nunca foi reconhecida pelos Estados Unidos. No que se refere ao controlo de armamento, ambas as partes assinalam alguns recuos da outra e manifestam o desejo de finalizar rapidamente o Tratado START. Shevardnadze menciona a próxima cimeira da CSCE e a expectativa soviética de que nela sejam discutidas as novas estruturas de segurança europeias. Bush não contradiz este facto, mas associa-o às questões da presença dos EUA na Europa e da reunificação alemã na OTAN. Declara que quer «contribuir para a estabilidade e para a criação de uma Europa inteira e livre ou, como lhe chamam, uma ‘casa comum europeia’. Uma ideia que está muito próxima da nossa”. Os soviéticos – erradamente – interpretam isto como uma declaração de que o governo dos EUA compartilha a ideia de Gorbachev.

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[*] O tradutor emprega a ortografia em vigor antes do (des)Acordo Ortográfico de 1990.

[A Parte III deste arquivo será publicada oportunamente]

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Notas

[8] Genscher disse a Baker a 2 de Fevereiro de 1990 que, segundo o seu plano, «a OTAN não alargaria a sua cobertura territorial à área da RDA nem a qualquer outra da Europa Oriental.» Secretário de Estado para a Embaixada EUA em Bona, “Baker-Genscher Meeting February 2,” Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, NSC Kanter Files, Box CF00775, Folder “Germany-March 1990.” Citado por Joshua R. Itkowitz Shifrinson, “Deal or No Deal? The End of the Cold War and the U.S. Offer to Limit NATO Expansion,” International Security, Spring 2016, Vol. 40, No. 4, pp. 7-44.

[9] A versão anterior deste texto referia que Kohl foi «apanhado num escândalo de corrupção no financiamento de campanhas que acabaria com a sua carreira política»; contudo, esse escândalo só foi revelado em 1999, depois de Kohl ter perdido o lugar na sequência das eleições de Setembro de 1998. Os autores agradecem ao Prof. Dr. H.H. Jansen pela correcção e pela leitura atenta da publicação.

[10] Ver Andrei Grachev, Gorbachev’s Gamble (Cambridge, UK: Polity Press, 2008), pp. 157-158.

[11] Para ficar a conhecer um relato perspicaz da elevada eficácia dos esforços educativos de Bush junto dos dirigentes da Europa Oriental incluindo Havel – bem como dos aliados – ver Jeffrey A. Engel, When the World Seemed New: George H. W. Bush and the End of the Cold War (Houghton Mifflin Harcourt, 2017), pp. 353-359.

[12] Ver George H. W. Bush e Brent Scowcroft, A World Transformed (New York: Knopf, 1998), pp. 236, 243, 250.

 

06 setembro, 2025

 

Nota editorial introdutória ao arquivo

“Alargamento da OTAN:

O que foi dito a Gorbachev”

[“NATO Expansion: What Gorbachev Heard”]

 (Tradução de Fernando Oliveira)

Mikhail Gorbachev discute a “reunificação” alemã com Hans-Dietrich Genscher e Helmut Kohl na Rússia, 15 de Julho de 1990. Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung.
 

Nem um centímetro em direcção ao leste da Europa 

Uma das causas contribuintes da 2.ª guerra na Ucrânia (a que começou na semana de 15 a 22 de Fevereiro de 2022) foi a expansão da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) – também conhecida por NATO, o seu acrónimo inglês – em 5 ondas sucessivas (1999, 2004, 2009, 2017, 2020) em direcção às fronteiras da Rússia – espezinhando assim as garantias de segurança dadas a Mikhail Gorbachev (presidente da União Soviética) e Eduard Shevardnadze (ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética)  em representação da União Soviética, pelos EUA, Reino Unido e França (as três outras potências ocupantes da Alemanha no fim da 2.ª Guerra Mundial), de que a OTAN não avançaria «nem um centímetro em direcção ao Leste da Europa» (James Baker III, ministro dos Negócios Estrangeiros dos EUA no governo de George H.W. Bush, 1990), em troca da sua anuência à chamada “reunificação” da Alemanha.

Mentiras reiteradas 

Ora, como escrevi no livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo, Julho de 2023): 

«De 1992 em diante tornou-se corriqueiro os governantes americanos, incluindo o próprio James Baker III, mentirem descaradamente, afirmando que essas garantias nunca existiram, ou então (versão hipócrita) que nunca foram dadas por escrito e que, por conseguinte, não têm qualquer valor. Estes dois argumentos são repetidos à exaustão pelos comentadores do sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado”. Alguns vão mesmo ao ponto de afirmar que são uma invenção dos Russos, em particular de Putin! Mas os factos são teimosos.

Actualmente, qualquer pessoa que tenha acesso à Internet e saiba Inglês pode ler essas garantias tal como foram registadas por escrito nos documentos oficiais da época (actas, relatórios e memorandos) que foram, entretanto, desclassificados. Encontram-se no National Security Archive da University of Washington (Washington, D.C.). Cf. “NATO Expansion: What Gorbachev Heard” [https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early]). E existem também disponíveis outros documentos e testemunhos preciosos sobre o mesmo assunto» (op.cit., p.15, nota 10).

O valor jurídico das promessas internacionais

Ninguém pode, pois, impedir que qualquer pessoa verifique, se o desejar e tiver os meios para isso, a existência dessa documentação compilada e depositada, em 2017, no National Security Archive da Universidade de Washington.

Obrigados a abandonar essa primeira trincheira (“os documentos não existem, as promessas foram meramente orais e circunstanciais”), muitos comentadores (incluindo quase todos os que operam nos canais de maior audiência da televisão portuguesa) passaram a ocupar uma segunda trincheira, de onde julgam que não poderão ser desalojados.

Alegam, para tanto, como já foi dito, que, por não terem sido formalizadas em tratados, as garantias dadas a Gorbachev carecem de valor jurídico e força vinculativa segundo o direito internacional público. No entanto, tal posição é juridicamente enganosa e falsa do ponto de vista histórico.

O precedente do Tribunal Internacional de Justiça

Em 1974, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) estabeleceu um precedente ao afirmar que declarações orais feitas por representantes estatais podem ser juridicamente obrigatórias, desde que satisfaçam critérios específicos. Este entendimento decorre do caso Nuclear Tests (Austrália v. França), onde a França fez promessas (que não cumpriu) em relação a testes nucleares no Oceano Pacífico, em que o TIJ [1] concluiu que:

          # Declarações unilaterais sobre situações jurídicas ou factuais podem criar obrigações legais se houver intenção clara do Estado de se vincular.

      # Não importa se a declaração é oral ou escrita; o direito internacional não exige formalismo documental para reconhecer tal valor jurídico

As garantias dadas à União Soviética (e à Rússia) são vinculativas

Este precedente é fundamental para analisar as promessas feitas a Gorbatchev no final da Guerra Fria por James Baker e outros dirigentes ocidentais (François Mitterrand, Margaret Tatcher, John Major) de não expandir a OTAN para Leste caso Moscovo aceitasse a “reunificação” da Alemanha — um eufemismo para a dissolução da RDA (Alemanha oriental) e a anexação do seu território e património pela RFA (Alemanha ocidental).

Embora não tivessem sido formalizadas em tratado, estas promessas foram feitas em contexto diplomático oficial e por representantes autorizados dos seus respectivos Estados — exactamente as condições identificadas pelo TIJ como geradoras de obrigações legais.

O acórdão do TIJ de 1974 também esclareceu que declarações deste tipo não precisam de aceitação formal ou resposta da outra parte para produzirem efeitos. O princípio da boa-fé, pacta sunt servanda [“os pactos devem ser cumpridos”], serve de base à obrigatoriedade dessas promessas.

O papel da confiança internacional

O TIJ realçou ainda que a confiança é um elemento central na cooperação internacional. Ignorar compromissos orais assumidos em negociações relevantes enfraquece esta confiança e põe em causa a ordem normativa que pode manter a paz e as relações pacíficas entre Estados.

Portanto, segundo o acórdão de 1974 do TIJ, promessas unilaterais, mesmo que orais e informais, podem criar obrigações jurídicas. Assim, as garantias ocidentais dadas à URSS ‒ e, por conseguinte, à sua sucessora legal, a Federação Russa ou Rússia ‒ possuem uma forte base jurídica para serem consideradas vinculativas, ainda por cima tendo em conta as graves consequências geopolíticas envolvidas.

Como observou Pascal Lottaz:

«A recusa em reconhecer o significado legal e moral destas promessas teve consequências de longo alcance, incluindo, naturalmente, a quebra completa da confiança entre a Rússia e o Ocidente e, em última análise, a guerra na Ucrânia. Descartar essas garantias como sem sentido ignora tanto o quadro jurídico estabelecido pela jurisprudência internacional quanto as responsabilidades éticas que vêm com o Estado. Como o TIJ reconheceu há mais de 50 anos, a palavra de um Estado – mesmo quando oral – pode vinculá-lo. E quando isso acontece, deve ser honrada» [2].

Entra Fernando Oliveira

Esclarecido tudo isto, que tanta boa gente desconhece, compreender-se-á a importância do que Fernando Oliveira decidiu fazer, em boa hora e por sua alta recreação: traduzir pro bono todos os documentos depositados no National Security Archive da Universidade de Washington sobre as promessas feitas a Gorbachev a respeito da OTAN.

São 65 páginas de informação muito densa que são assim, e pela primeira vez (que eu saiba), postos gratuitamente à disposição do público de língua portuguesa através da Tertúlia Orwelliana — o veículo escolhido por Fernando Oliveira para divulgar o produto do seu precioso trabalho.

Só me resta agradecer-lhe mais esta prova de confiança na Tertúlia Orwelliana e esperar que os leitores apreciem tanto quanto eu a sua competência como tradutor e a sua generosidade, cultura e argúcia como cidadão empenhado.

José Catarino Soares, 5 de Setembro de 2025

N.B. Dada a grande extensão do arquivo, este será publicado em três partes consecutivas ao longo de três semanas. Editei ligeiramente o texto para o adequar às normas tipográficas e estilísticas da Tertúlia Orwelliana

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Notas e referências

[1] O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) é o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas (ONU), estabelecido para resolver disputas legais entre Estados e emitir pareceres consultivos sobre questões jurídicas para a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança da ONU. Sediado no Palácio da Paz em Haia, na Holanda, o tribunal é composto por 15 juízes eleitos por nove anos e não deve ser confundido com o Tribunal Penal Internacional (TPI), que também tem a sua sede em Haia, mas que não pertence à ONU e que julga indivíduos por crimes de guerra ou crimes contra a humanidade.

[2] Pascal Lottaz, «Yes, “Not an Inch to the East” Was Binding Under International Law». Substack, July 11, 2025 [https://substack.com/@ pascallottaz]

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Alargamento da OTAN:

O que foi dito a Gorbachev

(Parte I)

(Tradução de Fernando Oliveira [*])

Documentos desclassificados revelam garantias de segurança contra o alargamento da OTAN dadas aos governantes soviéticos por Baker, Bush, Genscher, Kohl, Gates, Mitterrand, Thatcher, Hurd, Major e Woerner.

Painel de Estudos Eslavos aborda “Quem Prometeu o Quê a Quem sobre o Alargamento da OTAN?”

Publicação: 12 Dez. 2017

Briefing Book # 613

Svetlana Savranskaya e Tom Blanton

 

Temas                    OTAN

                    Relações URSS-EUA

                     Pacto de Varsóvia

Regiões                  Europa Central/de Leste

                     Rússia e ex-União Soviética

                     Europa Ocidental

Acontecimentos    Fim da Guerra Fria, 1989-1991

Projecto                 OTAN @ 75

                    Programas da Rússia

 

 

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Página das notas de Stepanov-Mamaladze de 12 de Fevereiro de 1990, que reflectem a garantia dada por Baker a Shevardnadze no decurso da Conferência sobre o Regime de Céu Aberto de Otava: “E se a A[lemanha] U[nificada] ficar na OTAN, devemos ter o cuidado de não alargar a sua jurisdição para Leste.”


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 Eduard A. Shevardnadze (à direita) cumprimenta Hans-Dietrich Genscher (à esquerda) e Helmut Kohl (no centro) à chegada a Moscovo a 10 de Fevereiro de 1990, para conversações sobre a reunificação alemã. Fotografia: AP Photo / Victor Yurchenko. 


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O acordo para dar início às conversações “Dois Mais Quatro” é apresentado à imprensa pelos seis Ministros dos Negócios Estrangeiros na Conferência “Céu Aberto” em Otava, a 13 de Fevereiro de 1990. Da esquerda para a direita: Eduard Shevardnadze (URSS), James A. Baker (EUA), Hans-Dietrich Genscher (RFA), Roland Dumas (França), Douglas Hurd (Grã-Bretanha), Oskar Fischer (RDA). Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung
 
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Primeira ronda oficial das negociações “Dois Mais Quatro”, com os seis Ministros dos Negócios Estrangeiros, em Bona, a 5 de Maio de 1990. Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung.


Da direita para a esquerda: Ministro dos Negócios Estrangeiros Hans-Dietrich Genscher (RFA), Ministro Presidente Lothar de Maizière (RDA) e Ministros dos Negócios Estrangeiros Roland Dumas (França), Eduard Shevardnadze (URSS), Douglas Hurd (Grã-Bretanha) e James Baker (EUA) assinam o denominado Acordo “Dois Mais Quatro” (Tratado sobre a Regulamentação Definitiva referente à Alemanha) em Moscovo, a 12 de Setembro de 1990. Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung.

 

As sessões de trabalho em Camp David realizadas na esplanada, ao ar livre, aqui da esquerda para a direita e a partir de cima à esquerda, intérprete Peter Afanasenko, Baker, Bush, Vice-presidente Dan Quayle (o único com gravata), Scowcroft, Shevardnadze, Gorbachev e Akhromeyev (de costas para a câmara), 2 de Junho de 1990. (Fonte: Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, P13412-08).


O Presidente Bush saúda o Presidente Checo Vaclav Havel no exterior da Casa Branca, Washington, D.C., 2 de Fevereiro de 1990. (Fonte: Biblioteca Presidencial e Museu George H. W. Bush)


O Ministro dos Negócios Estrangeiros Genscher oferece ao Presidente Bush um fragmento do Muro de Berlim, Sala Oval da Casa Branca, Washington, D.C., 21 de Novembro de1989. (Fonte: Biblioteca Presidencial e Museu George H. W. Bush)


Os governantes reunidos para uma fotografia de grupo em Camp David. Todos sorriem excepto o marechal soviético, à direita.  A partir da esquerda, Baker, Barbara Bush, Presidente Bush, Raisa Gorbacheva, Presidente Gorbachev, Shevardnadze, Scowcroft, Akhromeyev.  2 de Junho de 1990. (Fonte: Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, P13437-14)


A chegada à cimeira de Washington, em 31 de Maio de 1990, teve uma cerimónia de alto nível no relvado da Casa Branca, aqui com cumprimentos formais do Presidente Bush a Mikhail Gorbachev, agora Presidente da URSS.  (Fonte: Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, P13298-18)

Washington D.C., 12 de Dezembro de 2017 – A famosa garantia do Secretário de Estado norte-americano James Baker “nem um centímetro para Leste” sobre o alargamento da OTAN, na sua reunião com o governante soviético Mikhail Gorbachev, a 9 de Fevereiro de 1990, fez parte de uma cascata de garantias sobre a segurança soviética dadas pelos governantes ocidentais a Gorbachev e a outros responsáveis soviéticos durante o processo de reunificação alemã em 1990 e 1991, de acordo com documentos desclassificados dos norte-americanos, soviéticos, alemães, britânicos e franceses publicados hoje pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington (http://nsarchive.gwu.edu).

Os documentos revelam que vários governantes nacionais ponderaram e rejeitaram a adesão da Europa Central e Oriental à OTAN desde o início de 1990 e durante 1991, que os debates sobre a OTAN no contexto das negociações de reunificação da Alemanha em 1990 não se limitavam de todo ao estatuto do território da Alemanha Oriental e que as queixas soviéticas e russas subsequentes sobre terem sido enganados quanto ao alargamento da OTAN se baseavam em memorandos escritos e registos de teleconferências contemporâneas ao mais alto nível.

Os documentos reforçam as críticas do ex-director da CIA, Robert Gates, à “pressão para o alargamento da OTAN para Leste [nos anos 90], quando Gorbachev e outros foram levados a acreditar que isso não aconteceria.” [1] A expressão-chave, escorada pelos documentos, é “levados a acreditar.”

O Presidente George H. W. Bush assegurou a Gorbachev, na cimeira de Malta, em Dezembro de 1989, que os EUA não tirariam partido (“Não andei aos saltos por causa do Muro de Berlim”) das revoluções na Europa de Leste para prejudicar os interesses soviéticos; mas nem Bush nem Gorbachev nessa altura (nem, aliás, o Chanceler da RFA, Helmut Kohl) esperavam que a derrocada da Alemanha de Leste ou a rapidez da reunificação alemã ocorressem tão cedo. [2]

As primeiras garantias concretas dos governantes ocidentais sobre a OTAN começaram em 31 de Janeiro de 1990, quando o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha Ocidental, Hans-Dietrich Genscher, abriu a agenda com um importante discurso público em Tutzing, na Baviera, sobre a reunificação alemã. A Embaixada dos Estados Unidos em Bona (ver Documento 1) informou Washington de que Genscher deixou claro “que as mudanças na Europa Oriental e o processo de reunificação alemã não devem conduzir a uma “deterioração dos interesses de segurança soviéticos”. Por conseguinte, a OTAN deveria excluir um “alargamento do seu território para Leste, isto é, aproximando-o das fronteiras soviéticas”. O telegrama de Bona também referia a proposta de Genscher de deixar o território da Alemanha Oriental fora da estrutura militar da OTAN, mesmo numa Alemanha reunificada e na OTAN. [3]

Esta última ideia de um estatuto especial para o território da RDA foi codificada no tratado final de reunificação alemã assinado em 12 de Setembro de 1990 pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Dois Mais Quatro (ver Documento 25). A primeira ideia sobre “mais perto das fronteiras soviéticas” não está plasmada em tratados, mas sim em múltiplos memorandos de conversações entre os soviéticos e os interlocutores ocidentais ao mais alto nível (Genscher, Kohl, Baker, Gates, Bush, Mitterrand, Thatcher, Major, Woerner e outros) oferecendo garantias ao longo de 1990 e 1991 sobre a protecção dos interesses de segurança soviéticos e a inclusão da URSS nas novas estruturas de segurança europeias. As duas questões estavam relacionadas, mas não eram a mesma coisa. Análises posteriores, por vezes, confundiram as duas com o argumento de que a discussão não envolvia toda a Europa. Os documentos publicados a seguir mostram claramente que envolvia.

A “fórmula de Tutzing” tornou-se imediatamente o centro de uma série de importantes discussões diplomáticas durante os dez dias seguintes, em 1990, conduzindo ao crucial encontro de 10 de Fevereiro de 1990, em Moscovo, entre Kohl e Gorbachev, em que o dirigente da Alemanha Ocidental obteve o consentimento soviético, em princípio, para a reunificação alemã na OTAN, desde que esta não se expandisse para Leste. Os soviéticos precisariam de muito mais tempo para trabalhar com a sua opinião interna (e com a ajuda financeira dos alemães ocidentais) antes de assinarem formalmente o acordo em Setembro de 1990.

As conversas que antecederam a garantia de Kohl envolveram discussões explícitas sobre o alargamento da OTAN, os países da Europa Central e Oriental e a forma de convencer os soviéticos a aceitarem a reunificação. A título de exemplo, a 6 de Fevereiro de 1990, quando Genscher se reuniu com o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico Douglas Hurd, o registo britânico mostrava Genscher a dizer: “Os russos têm de ter alguma garantia de que se, por exemplo, o governo polaco deixasse o Pacto de Varsóvia num dia, não aderiria à OTAN no dia seguinte” (ver Documento 2).

Tendo reunido com Genscher a caminho das conversações com os soviéticos, Baker repetiu exactamente a formulação de Genscher no seu encontro com o Ministro dos Negócios Estrangeiros Eduard Shevardnadze, em 9 de Fevereiro de 1990 (ver Documento 4); e, mais importante ainda, no frente-a-frente com Gorbachev.

Na reunião com Gorbachev de 9 de Fevereiro de 1990, Baker utilizou a fórmula “nem um centímetro para Leste” não uma, mas três vezes. Concordou com a declaração de Gorbachev em resposta às garantias de que “o alargamento da OTAN é inaceitável”. Baker assegurou a Gorbachev que “nem o Presidente nem eu tencionamos retirar quaisquer vantagens unilaterais dos processos que estão em curso” e que os americanos compreendiam que “não só para a União Soviética, mas também para outros países europeus, é importante ter garantias de que, se os Estados Unidos mantiverem a sua presença na Alemanha no quadro da OTAN, nem um centímetro da actual jurisdição militar da OTAN se estenderá para Leste” (ver Documento 6).

Posteriormente, Baker escreveu a Helmut Kohl, que se iria encontrar com o governante soviético no dia seguinte, com uma linguagem muito semelhante. Baker relatou: “E depois coloquei-lhe [a Gorbachev] a seguinte questão: Preferia ver uma Alemanha reunificada fora da OTAN, independente e sem forças americanas, ou preferia que uma Alemanha reunificada estivesse ligada à OTAN, com garantias de que a jurisdição da OTAN não se deslocaria um centímetro para leste da sua posição actual? Respondeu que a chefia soviética estava a ponderar bem todas essas opções [...] E acrescentou: «Certamente que qualquer alargamento da zona da OTAN seria inaceitável»”. Baker acrescentou entre parênteses, para benefício de Kohl: “Implicitamente, a OTAN na sua zona actual poderia ser aceitável” (ver Documento 8).

Devidamente informado pelo Secretário de Estado americano, o Chanceler da RFA ficou a conhecer a linha de base fulcral dos soviéticos e assegurou a Gorbachev em 10 de Fevereiro de 1990: “Acreditamos que a OTAN não deve expandir a esfera da sua actividade” (ver Documento 9). Depois desta reunião, Kohl mal podia conter o seu entusiasmo com o acordo de princípio de Gorbachev para a reunificação alemã e, como parte da fórmula de Helsínquia de que os Estados escolhiam as suas próprias alianças, a Alemanha podia escolher a OTAN. Kohl escreveu nas suas memórias que andou toda a noite à volta de Moscovo — mas compreendia que ainda havia um preço a pagar.

Todos os Ministros dos Negócios Estrangeiros ocidentais estavam de acordo com Genscher, Kohl e Baker. Seguiu-se o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Douglas Hurd, a 11 de Abril de 1990. Nesta altura, os alemães de leste tinham votado esmagadoramente a favor do marco alemão e da rápida reunificação, nas eleições de 18 de Março, nas quais Kohl surpreendeu quase todos os observadores com uma verdadeira vitória. As análises de Kohl (explicadas pela primeira vez a Bush em 3 de Dezembro de 1989) de que a derrocada da RDA abriria todas as possibilidades, de que tinha de se apressar para chegar à frente do comboio, de que precisava do apoio dos Estados Unidos, de que a reunificação poderia acontecer mais depressa do que se pensava – revelaram-se todas correctas. A união monetária avançaria já em Julho e as garantias de segurança continuavam a chegar. Hurd reforçou a mensagem de Baker-Genscher-Kohl no seu encontro com Gorbachev em Moscovo, a 11 de Abril de 1990, dizendo que a Grã-Bretanha “reconhecia claramente a importância de não fazer nada que prejudicasse os interesses e a dignidade dos soviéticos” (ver Documento 15).

A conversa de Baker com Shevardnadze em 4 de Maio de 1990, tal como Baker a revelou no seu relatório ao Presidente Bush, descreveu de forma muito eloquente o que os dirigentes ocidentais estavam exactamente a dizer a Gorbachev naquele momento: “Utilizei o seu discurso e o nosso reconhecimento da necessidade de adaptar a OTAN, política e militarmente, e de desenvolver a CSCE [Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa (Nota do T)] para tranquilizar Shevardnadze de que o processo não produziria vencedores nem vencidos. Em vez disso, produziria uma nova estrutura europeia legítima – uma estrutura que seria inclusiva e não exclusiva” (ver Documento 17).

Baker voltou a dizê-lo directamente a Gorbachev, em 18 de Maio de 1990, em Moscovo, dando a Gorbachev os seus “nove pontos”, que incluíam a transformação da OTAN, o reforço das estruturas europeias, a manutenção da Alemanha sem armas nucleares e a tomada em consideração dos interesses de segurança soviéticos. Baker começou as suas observações: “Antes de proferir algumas palavras sobre a questão alemã, queria sublinhar que as nossas políticas não têm como objectivo separar a Europa Oriental da União Soviética. Já tivemos essa política antes. Mas hoje estamos interessados em construir uma Europa estável e em fazê-lo em conjunto convosco” (ver Documento 18).

O presidente francês François Mitterrand não estava em sintonia com os americanos, muito pelo contrário, como o demonstra o facto de ter dito a Gorbachev, em Moscovo, a 25 de Maio de 1990, que era “pessoalmente a favor do desmantelamento gradual dos blocos militares”; mas Mitterrand prosseguiu a cascata de garantias dizendo que o Ocidente deve “criar condições de segurança para si, bem como para a segurança europeia no seu conjunto” (ver Documento 19). Mitterrand escreveu de imediato uma carta a Bush sobre a sua conversa com o governante soviético, começando com “Cher George” e referindo que “não nos recusaríamos certamente a pormenorizar as garantias que ele teria o direito de esperar para a segurança do seu país” (ver Documento 20).

Na cimeira de Washington de 31 de Maio de 1990, Bush fez tudo o que estava ao seu alcance para assegurar a Gorbachev que a Alemanha na OTAN nunca seria direccionada contra a URSS: “Acreditem em mim, não estamos a empurrar a Alemanha para a reunificação e não somos nós que definimos o ritmo deste processo. E, claro, não temos qualquer intenção, nem mesmo nos nossos pensamentos, de prejudicar a União Soviética de qualquer forma. É por isso que nos pronunciamos a favor da reunificação alemã na OTAN, sem ignorar o contexto mais vasto da CSCE, tendo em consideração os laços económicos tradicionais entre os dois Estados alemães. Este modelo, na nossa opinião, corresponde também aos interesses soviéticos” (ver Documento 21).

A “Dama de Ferro” também deu o seu contributo, após a cimeira de Washington, no encontro que teve com Gorbachev em Londres, a 8 de Junho de 1990. Thatcher deu uma antevisão das medidas que os americanos (com o seu apoio) tomariam na conferência da OTAN do início de Julho para apoiar Gorbachev com descrições da transformação da Organização numa aliança mais política e menos ameaçadora do ponto de vista militar. Thatcher disse a Gorbachev: “Temos de encontrar formas de dar à União Soviética a confiança de que a sua segurança será garantida... A CSCE poderia ser um guarda-chuva para tudo isso, além de ser o fórum que trouxe a União Soviética para a discussão sobre o futuro da Europa” (ver Documento 22).

A Declaração de Londres da OTAN, de 5 de Julho de 1990, teve um efeito bastante positivo nas deliberações em Moscovo, de acordo com a maior parte dos relatos, dando a Gorbachev munições suficientes para contrariar os partidários da linha dura no Congresso do Partido [Comunista da União Soviética] que decorria naquele momento. Algumas versões desta história afirmam que foi dada uma cópia antecipada aos assessores de Shevardnadze, enquanto outras descrevem apenas um alerta que permitiu a esses assessores utilizar uma cópia da agência noticiosa e produzir uma avaliação positiva soviética antes que os militares ou a linha dura a pudessem designá-la de propaganda.

Como Kohl disse a Gorbachev em Moscovo, a 15 de Julho de 1990, quando elaboraram o acordo final sobre a reunificação alemã: “Nós sabemos o que espera a OTAN no futuro e penso que vocês também já sabem”, referindo-se à Declaração de Londres da OTAN (ver Documento 23).

No telefonema a Gorbachev em 17 de Julho, Bush pretendia reforçar o êxito das conversações Kohl-Gorbachev e a mensagem da Declaração de Londres. Bush explicou: “Portanto, o que tentámos fazer foi ter em conta as suas preocupações que manifestou a mim e a outros, e fizemo-lo das seguintes formas: através da nossa declaração conjunta sobre a não agressão; do nosso convite para aderir à OTAN; do nosso acordo para abrir a OTAN a contactos diplomáticos regulares com o seu governo e os dos países da Europa Oriental; e da nossa oferta de garantias sobre a futura dimensão das forças armadas de uma Alemanha reunificada – uma questão que sei que discutiu com Helmut Kohl. Também alterámos, no fundamental, a nossa abordagem militar relativamente às forças convencionais e nucleares. Transmitimos a ideia de uma CSCE alargada e mais forte, com novas instituições que a URSS possa partilhar e integrar numa nova Europa” (ver Documento 24).

Os documentos mostram que Gorbachev concordou com a reunificação alemã na OTAN em resultado desta sucessão de garantias e com base na sua própria análise de que o futuro da União Soviética dependia da sua integração na Europa, para o que a Alemanha seria o actor decisivo. Ele e a maioria dos seus aliados acreditavam que alguma versão da casa comum europeia continuava a ser possível e que se desenvolveria a par da transformação da OTAN que conduzisse a um espaço europeu mais inclusivo e integrado, que o acordo pós-Guerra Fria teria em conta os interesses de segurança soviéticos. A aliança com a Alemanha permitiria não só ultrapassar a Guerra Fria como também inverter o legado da Grande Guerra Patriótica.

Mas, no seio do governo dos Estados Unidos, prosseguia um debate diferente, um debate sobre as relações entre a OTAN e a Europa Oriental. As opiniões divergiam, mas a sugestão do Departamento de Defesa, a partir de 25 de Outubro de 1990, era deixar “a porta entreaberta” para a adesão da Europa de Leste à OTAN (ver Documento 27). A opinião do Departamento de Estado era que o alargamento da OTAN não estava na ordem do dia, porque não era do interesse dos EUA organizar “uma coligação anti-soviética” que se estendesse às fronteiras soviéticas, até porque poderia inverter as tendências positivas na União Soviética (ver Documento 26). O governo Bush adoptou este último ponto de vista. E foi isso que foi dito aos soviéticos.

Ainda em Março de 1991, de acordo com o diário do embaixador britânico em Moscovo, o Primeiro-ministro britânico John Major assegurou pessoalmente a Gorbachev que “não estamos a falar do reforço da OTAN”. Posteriormente, quando o Ministro da Defesa soviético, marechal Dmitri Yazov, interrogou Major sobre o interesse dos governantes da Europa Oriental na adesão à OTAN, o governante britânico respondeu: “Não vai acontecer nada disso” (ver Documento 28).

Quando os deputados russos do Soviete Supremo se deslocaram a Bruxelas para visitar a OTAN e se reuniram com o Secretário-geral da OTAN, Manfred Woerner, em Julho de 1991, Woerner disse-lhes que “Não devemos permitir [...] o isolamento da URSS da comunidade europeia”. De acordo com o memorando russo da conversa, “Woerner sublinhou que o Conselho da OTAN e ele próprio são contra o alargamento da OTAN (13 dos 16 membros da Organização apoiam este ponto de vista)” (ver Documento 30).

Assim, Gorbachev ficou até ao fim da União Soviética com a certeza de que o Ocidente não estava a ameaçar a sua segurança e não estava a alargar a OTAN. Em vez disso, a dissolução da URSS foi provocada por russos (Boris Ieltsin e o seu principal conselheiro, Gennady Burbulis) em concertação com os antigos chefes partidários das repúblicas soviéticas, especialmente da Ucrânia, em Dezembro de 1991. Nessa altura, a Guerra Fria já tinha terminado há muito. Os americanos tinham tentado manter a União Soviética unida (ver o discurso de Bush “Chicken Kiev” [**], de 1 de Agosto de 1991). O alargamento da OTAN estava previsto para os próximos anos, altura em que estas disputas voltariam a eclodir e em que seriam dadas mais garantias ao governante russo Boris Ieltsin.

O Arquivo compilou estes documentos desclassificados para um painel de discussão em 10 de Novembro de 2017, na Conferência Anual da Associação de Estudos Eslavos, da Europa Oriental e da Eurásia (ASEEES), em Chicago, sob o título “Quem prometeu o quê a quem sobre o alargamento da OTAN?”. O painel incluiu: 

* Mark Kramer do Davis Center em Harvard, editor do Journal of Cold War Studies, cujo artigo de 2009 Washington Quarterly defende que a “promessa de não alargamento da OTAN” foi um mito”; [4]

* Joshua R. Itkowitz Shifrinson da Bush School no Texas A&M, cujo artigo de 2016 na International Security defendia que os EUA estiveram empenhados num jogo duplo em 1990, levando Gorbachev a acreditar que a OTAN se transformaria numa nova estrutura de segurança europeia, ao mesmo tempo que trabalhavam para assegurar a hegemonia na Europa e a manutenção da OTAN; [5]

* James Goldgeier da American University, que escreveu uma obra de referência sobre a decisão de Clinton quanto ao alargamento da  OTAN, Not Whether But When, e descreveu as falsas garantias dadas pelos EUA ao dirigente russo Boris Yeltsin num artigo de 2016 WarOnTheRocks; [6]

* Svetlana Savranskaya e Tom Blanton do National Security Archive, cujo livro mais recente, The Last Superpower Summits: Gorbachev, Reagan, and Bush: Conversations That Ended the Cold War (CEU Press, 2016), analisa e publica as transcrições e os documentos afins objecto de desclassificação de todas as cimeiras de Gorbachev com Presidentes dos EUA, incluindo dezenas de garantias referentes aos interesses de segurança da URSS. [7]

[A publicação de hoje é a primeira de três partes sobre o assunto. A segunda parte, a publicar oportunamente neste blogue, irá abranger, em particular, as discussões de Shevardnadze com os governantes ocidentais sobre a OTAN.]

 

[*] O tradutor emprega a ortografia em vigor antes do (des)Acordo Ortográfico de 1990.

[**] Nota do Tradutor: Literalmente, “Frango à Quieve” (prato típico ucraniano de peito de frango recheado), é o nome dado a um discurso proferido pelo Presidente dos EUA George H. W. Bush (Bush pai) em Quieve, a 1 de Agosto de 1991. O discurso, em que Bush alertava contra o “nacionalismo suicida”, foi escrito por Condoleezza Rice – mais tarde Secretária de Estado do Presidente George W. Bush (Bush filho) – quando estava encarregada dos Assuntos Soviéticos e da Europa Oriental para o Presidente Bush pai.

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                                                                NOTAS

[1] Ver Robert Gates, University of Virginia, Miller Center Oral History, George H. W. Bush Presidency, July 24, 2000, p. 101)

[2] Ver o Capítulo 6, “The Malta Summit 1989,” in Svetlana Savranskaya e Thomas Blanton, The Last Superpower Summits (CEU Press, 2016), pp. 481-569. O comentário sobre o Muro está na página 538.

[3] Para conhecer os antecedentes, o contexto e as consequências do discurso de Tutzing, ver Frank Elbe, “The Diplomatic Path to Germany Unity,” Bulletin of the German Historical Institute 46 (Spring 2010), pp. 33-46. Elbe era chefe de gabinete de Genscher à data.

[4] Ver Mark Kramer, “The Myth of a No-NATO-Enlargement Pledge to Russia,” The Washington Quarterly, April 2009, pp. 39-61.

[5] Ver Joshua R. Itkowitz Shifrinson, “Deal or No Deal? The End of the Cold War and the U.S. Offer to Limit NATO Expansion,” International Security, Spring 2016, Vol. 40, No. 4, pp. 7-44.

[6] Ver James Goldgeier, Not Whether But When: The U.S. Decision to Enlarge NATO (Brookings Institution Press, 1999); e James Goldgeier, “Promises Made, Promises Broken? What Yeltsin was told about NATO in 1993 and why it matters,” War On The Rocks, 12 July 2016.

[7] Ver também em Svetlana Savranskaya, Thomas Blanton e Vladislav Zubok, “Masterpieces of History”: The Peaceful End of the Cold War in Europe, 1989 (CEU Press, 2010), debate alargado e documentos sobre as negociações de unificação da Alemanha no início de 1990.