Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

16 junho, 2025

 Temas 1, 2, 3

Indulgências para pecados imaginários, remorsos fictícios e ressentimentos melífluos

no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

José Catarino Soares

 

Na cidade algarvia de Lagos, a convite do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, a romancista e conselheira de Estado Lídia Jorge proferiu um longo discurso no dia 10 de Junho [de 2025] — “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”.

Lídia Jorge discursando em Lagos, no dia 10 de Junho de 2025


O seu discurso pode ser lido na íntegra aqui:  https://visao.pt/atualidade/ politica/2025-06-10-o-discurso-de-lidia-jorge-na-integra-a-mensagem-do-10-de-junho-que-sera-recordada/.

1. A primeira parte do discurso de Lídia Jorge

Até sensivelmente à primeira metade do seu discurso (de 15 páginas), a oradora vai discorrendo sobre Camões e sobre o tempo que ao poeta coube em sorte viver.

Uma imagem com desenho, Cara humana, quadro, homem

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Retrato de Luís Vaz de Camões (1577) por Fernão Gomes


A dado passo, porém, Lídia Jorge formula a seguinte tese: tal como Portugal entrou num novo e sombrio ciclo na sequência do desastre que representou a batalha de Alcácer Quibir (1578) e que Camões assinalou numa das últimas estrofes do Canto X de Os Lusíadas, também o mundo contemporâneo entrou num novo e sombrio ciclo.

«O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque [de pôr ao pescoço, n.e.]

E os cidadãos são apenas público, que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global. Porque nós, agora, somos outros».

E como escolheu a oradora desenvolver esta interessante tese? Recuando no tempo, até a um dia de calor tórrido em Agosto 1444, quando desembarcaram em Lagos 235 indivíduos raptados e escravizados nas costas da Mauritânia e como foram repartidos pelos seus proprietários escravistas (um deles o infante D. Henrique).

Lagos. Núcleo Museológico Rota da Escravatura, inaugurado em 2005, e instalado no antigo edifício da Vedoria, edificado no século XVII, e que desempenhou também as funções de Alfândega, Casa da Guarda e Prisão Militar. Este edifício foi construído perto do rossio onde, em 1444, se fez venda dos primeiros escravos chegados a Lagos, referenciado como Terreiro da Porta da Vila (medieval) nas fontes coevas.


Não consigo imaginar uma maneira mais abstrusa de desenvolver a tese de que um novo tempo está a acontecer à escala global. Mas o defeito poderá ser meu, que não entendo o alcance nem a pertinência do paralelismo com o que sucedeu em Lagos em 1444.

2. A segunda parte do discurso de Lídia Jorge

Seja como for, é a partir desse momento do seu discurso que Lídia Jorge se permite fazer toda uma série de entorses a factos da história de Portugal e da humanidade para sustentar um postulado (P) muito curioso [1], mas já enunciado frequentemente noutros fóruns nos últimos anos [2]: a de que

(P) ― os portugueses contemporâneos têm de expiar colectivamente os “pecados” (reais e imaginários), incluindo os crimes mais nefandos, cometidos pelos seus antepassados, para ganharem o reino dos céus na Terra.

Segundo a artista portuguesa Graça Quilomba, a residir em Berlim, a maneira de pôr em prática este postulado consiste em transformá-lo num processo,

«um processo psicológico que passa de negação a culpa, de culpa a vergonha, de vergonha a reconhecimento e de reconhecimento a reparação. Quando estou em Portugal sinto que estamos completamente na negação» [3].

Não preciso de analisar o modo como Lídia Jorge articula uma variante deste postulado na segunda parte do seu discurso, porque o historiador (e também romancista) João Pedro Marques já o fez com a sua habitual competência, sobriedade e clareza, num texto intitulado Considerações sobre um discurso de Lídia Jorge, publicado no seu blogue, Céu Enganador.

O texto de João Pedro Marques que pode ser lido aqui [https://ceuenganador.webnode.pt/] é uma breve mas incisiva lição de história contra a ignorância atrevida sobre os Descobrimentos portugueses e o tráfico transatlântico de escravos do século XVI a meados do século XIX.

E é também uma crítica acutilante da autoflagelação identitária que faz do remorso, da mágoa e do ressentimento por pecados imaginários como, por exemplo, o “pecado dos Descobrimentos” (?!) referido por Lídia Jorge os elementos progressistas (!!) indispensáveis da nova e redentora (!!) narrativa identitária do Portugal do século XXI.

[P.S. 10-08-2025: Acrescento agora o excelente texto de António Guerreiro, intitulado A Metáfora do Sangue, de que não tinha conhecimento à época e que pode ser lido aqui:https://www.publico.pt/2025/06/20/culturaipsilon/cronica/metafora-sangue-2136897

O que eu me proponho fazer no resto deste artigo é prolongar a reflexão [destes dois autores] noutras direcções.

Regressemos, então, ao postulado P.

3.   O comércio das indulgências e os seus questores

Esse postulado é reminiscente do dos “perdoadores” profissionais, os questores de indulgências envolvidos, outrora (séculos XIII-XVI), no comércio das indulgências da Santa Sé.  

Os questores (Lat. quaestores) eram representantes de vários escalões da hierarquia da Igreja Católica Apostólica Romana, frequentemente membros de ordens religiosas, que eram enviados para arrecadar fundos para a Igreja Católica, geralmente em troca de indulgências. As indulgências, nesse contexto, eram remissões de penas temporais por pecados já perdoados, oferecidas em troca de doações financeiras.

4. O comércio das indulgências em versão woke

O comércio das indulgências não desapareceu nos desvãos da história. Mudou de promotores, de questores e de clientelas.

O caso mais notável é o do movimento activista woke [4], cujas bandeiras ideológicas foram explicitamente integradas nas práticas e nos comportamentos dos gestores empresariais de topo e dos gestores políticos de topo que têm vindo a pilotar o processo de globalização transnacional nos últimos 30 anos.

«As grandes empresas tecnológicas e muitas outras empresas proeminentes têm apoiado os direitos LGBTQ+, apesar do risco de alienarem os seus accionistas conservadores. Porque é que o fazem? De que forma é que ser amigo das pessoas LGBTQ+ beneficia as empresas? No seu estudo, Veda Fatmy, John Kihn, Jukka Sihvonen e Sami Vähämaa concluíram que as políticas empresariais favoráveis à comunidade LGBTQ+ têm um impacto positivo na avaliação do mercado de acções e no desempenho financeiro das empresas» [5].

Por outras palavras, uma das chaves do êxito do movimento woke consistiu  na sua capacidade de mostrar aos gestores de topo das grandes empresas e aos gestores de topo das instituições estatais (incluindo as que têm o monopólio legal do uso das armas de guerra e o monopólio legal do uso da violência repressiva contra cidadãos nacionais e estrangeiros) o muito que podem ganhar se actuarem como beneméritos concessores de direitos LGBTQ+, émulos, no estádio zero da religião (ver nota [8])dos questores do outrora próspero comércio das indulgências.

Um exemplo dessa actuação é a comemoração pela CIA do Mês do ORGULHO GAY e LÉSBICO [Ingl. “Gay and Lesbian Pride Month”] que começou a ser comemorado, a partir de 1999, em Junho, por força da Proclamação 7203 do presidente Bill Clinton, e que evoluiu, com o passar dos anos, para o Mês do ORGULHO LGBTQ+.

«Este mês [Junho de 2023, o mês do Orgulho LGBTQ+], estamos orgulhosos não só dos agentes homossexuais que nos ajudaram a dar golpes de Estado e a assassinar chefes de Estado, mas também dos agentes homossexuais que nos ajudaram a fomentar a dissidência e a fazer com que os golpes de Estado parecessem descontentamento orgânico em sociedades com regimes que nos desagradam» (Jessica Burbank, agente da CIA, no X, 7 de Junho de 2023).

Uma imagem com texto, captura de ecrã, Tipo de letra

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5. Reciclagem do comércio das indulgências

O movimento woke é originário dos EUA. Mas bem depressa saltou fronteiras e chegou a outros países dos dois lados do Atlântico incluindo o Canadá, o Brasil, o Reino Unido, a França (muito fortemente em todos eles) e até Portugal (muito fracamente, mas com tendência a crescer) além de muitos países que foram, outrora, possessões ultramarinas do Reino Unido, da França, de Portugal, das Terras Baixas (Holanda), da Bélgica, da Espanha e da Alemanha, com especial destaque para os países da Comunidade do Caribe (Caricom).  

Nesse movimento migratório, o comércio das indulgências foi reciclado e posto de novo a circular sob um novo nome:  reparações. O movimento woke exige reparações monetárias (a indivíduos, comunidades e governos de 30 países), no valor de 107,8 biliões de dólares americanos, a pagar por 10 países (incluindo Portugal, que teria de pagar 20,6 biliões de dólares [=18 biliões de euros], números redondos),[6] além de reparações não monetárias (como, por exemplo, o cancelamento de dívidas de Estados) e materiais (como, por exemplo, a devolução de peças museológicas, artefactos e restos mortais). E exige também uma mudança na narrativa de factos passados e da memória colectiva.

Que factos passados? Apenas os factos passados dos últimos 500 anos e apenas os factos passados relativos aos africanos de pele muito escura e de cabelo encarapinhado — os “negros” na terminologia woke.              

Mas as reparações são a outra face, a face mais visível, de um objectivo impregnado de um elemento fortíssimo de niilismo: o objectivo de corrigir o passado. Os questores das reparações querem fazer justiça, olhando para o passado dos africanos “negros” nos últimos 500 anos com os olhos do presente (isto é, com os conceitos e com os juízos morais do presente, incluindo, em lugar proeminente, os do movimento woke), corrigindo com os olhos do presente aquilo que está mal no passado.   

E é aqui que a porca torce o rabo.                                                                  

«A história foi feita pelos homens que viveram cada momento e que avaliaram os problemas da sua época com os seus conceitos, com os seus valores, com a sua capacidade de intervenção. É possível, aceitável, corrigir coisas recentes. Agora, tentar corrigir coisas que aconteceram há 400, 500 anos, e que eram consideradas aceitáveis na altura é uma coisa completamente absurda. E o movimento woke é isso que quer. Neste caso concreto da escravatura, quer reparações pagas pelos brancos [*] – e apenas pelos brancos [*], esquecendo que o tráfico transatlântico de escravos foi um negócio com duas partes, os europeus de um lado e os potentados africanos do outro lado…Foi um negócio lucrativo para ambas as partes. E por isso os africanos não queriam largá-lo, tiveram de ser forçados muitas vezes manu militari, com navios de guerra, porque para eles era lucrativo.

O movimento woke considera que a culpa é exclusiva dos brancos [*], ignorando esse aspecto que referi e ignorando outra coisa igualmente importante: é que a escravidão e o comércio de escravos a larga distância já existiam em África antes de os brancos [*] lá chegarem. África já vendia escravos para o mundo muçulmano desde o séc. VII/VIII d.C. Quando os portugueses lá chegam, no século XV, já África tinha vendido mais de cinco milhões de escravos negros para o mundo muçulmano. Os woke ignoram isso tudo e querem que os brancos [*] assumam a responsabilidade exclusiva. E querem que paguem indemnizações fortíssimas. Os woke julgam-se Deus, julgam ter poderes de justiça divina, julgam ter capacidade para recompensar os justos e castigar os pecadores» [7].

[*] Apenas um reparo. “Brancos”, aqui, não é a palavra certa, porque os próceres do movimento woke não se interessam minimamente pelas responsabilidades na escravidão e no comércio de escravos “negros” que cabem aos árabes e berberes. Ora, estes são, na sua grande maioria, “brancos”. Para o movimento woke a culpa da escravidão e do comércio de escravos “negros” de longa distância é exclusivamente dos europeus brancos” (ou dos seus descendentes norte-americanos e sul-americanos). Os “brancos” não-europeus estão isentos de culpa, assim como os europeus “não-brancos”.

Uma imagem com mapa, texto

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Mapa das rotas do tráfico transatlântico de escravos africanos “negros” nos séculos XVI -XVIII. Fonte: Caricom


6. Uma conjectura sociológica

Regressando ao que ficou dito na nota [1], coloco-me a questão de saber se a má-consciência individual e o remorso postiço suscitados pelo discurso da alegada culpabilidade colectiva dos portugueses contemporâneos pelo tráfico atlântico e transatlântico de escravos africanos de meados do século XV a meados do século XIX, poderão ter uma explicação sociológica e não apenas psicológica.

Isto porque parece óbvio que nem todas as classes e camadas sociais são igualmente permeáveis a um discurso tão abertamente contra-intuitivo e falacioso — «pois então, se não foste tu, foi o teu pai! [ou foi o teu avô, ou o teu bisavô, ou o teu trisavô, ou o teu tetravô], o que no fim de contas vem a dar no mesmo».

Nesse sentido, conjecturo que o impacto emocional e ideológico que esse tipo de discurso culpabilizador poderá produzir no grande público seja especialmente apelativo naqueles sectores dos meso-assalariados CCS em processo acelerado de desreligionização (entender: de domiciliação no estádio zombi da religião cristã [8]).

O termo meso-assalariados CCS [um neologismo construído a partir de meso- (do Gr. mésos), elemento formador de palavras que exprime a ideia de algo que está num posição “central”, “média”, “intermédia” entre duas coisas, + assalariados, e onde CCS = com cursos superiores] deve entender-se, neste contexto, como denominação genérica de uma classe de assalariados diplomados do ensino superior (politécnico e universitário) e constituída quer por (i) gestores, supervisores, assessores, consultores, formadores, provedores, auditores jurídicos, curadores, técnicos, tecnólogos que trabalham nos escalões intermédios de empresas privadas, empresas públicas e na administração pública (central, regional e local), quer  por (ii) todos aqueles, nos órgãos do poder político (executivo, legislativo e judiciário), a quem é delegado poder político para assegurarem a reprodução social do sistema constitucional vigente (notários, oficiais de justiça, magistrados do ministério público, juízes, autarcas, deputados, governantes).

Convém salientar, a este propósito, que  os meso-assalariados CCS (que outros autores apelidam de “nova classe média” ou “nova pequena-burguesia”, termos que me parecem ambos inadequados) é a classe social ideologicamente mais instável e volúvel de todas em virtude das duas funções antagónicas que os seus membros exercem [a função de supervisão, vigilância e controlo dos processos de trabalho, que a vincula ao capital, e a função de coordenação e unidade dos processos de trabalho, que a vincula ao trabalhador colectivo] no processo de produção e apropriação dos bens e serviços (Guglielmo Carchedi, Frontiers of Political Economy. Verso, 1991).

É nesta duplicidade antagónica das funções laborais exercidas pelos meso-assalariados CCS, combinada com a ansiedade e desorientação cultural decorrentes do estádio zombi da religião, que vejo a brecha por onde se insinuam com êxito os sentimentos de culpabilidade vergonhosa pelo passado histórico instilados pelos novos questores de indulgências.

Naturalmente, será necessário desenvolver um projecto de investigação empírica para testar esta conjectura. Talvez haja algum(a) doutorando/a em ciências sociais que se atreva a pegar nesta sugestão.

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Notas e Referências

[1] É inegável que este tipo de mensagem tem um impacto emocional e ideológico muito forte junto de certos sectores do público, ao criar artificialmente um sentimento de má-consciência culposa. O historiador João Pedro Marques relatou, por exemplo, num dos seus artigos, o que ocorreu no Reino Unido, o país onde esse impacto é mais forte:

«Há várias entidades e cidadãos(ãs) britânicos(as) a pôr a corda ao pescoço, a vestir o hábito de penitente e a ceder jubilosamente a essa pressão e chantagem. Em Fevereiro de 2023, uma conhecida pivô e jornalista da BBC, tornou público que iria doar 100 mil libras para projectos comunitários na ilha de Granada como forma de reparação pela ligação de remotos familiares seus à escravatura e a plantações de cana-de-açúcar na ilha. E fez mais: abandonou a BBC para dedicar o seu tempo a campanhas públicas em favor de reparações pela escravatura. No seguimento da sua decisão, mais de 100 famílias britânicas com antepassados envolvidos no sistema escravista comprometeram-se publicamente a disponibilizar importantes quantias como forma de se purgarem desse pecado e de ajudarem as antigas colónias britânicas nas Caraíbas» (“Pela porta das traseiras”. Céu Enganador, 28-12-2023) E em Portugal também temos casos desses, como, por exemplo, o de Catarina Demony, uma jornalista portuguesa, correspondente da agência global de notícias Reuters, co-autora do filme Debaixo do Tapete, estreado em 2023 (v. João Pedro Marques, “A redenção de Catarina Demony”, Céu Enganador, 1-08.2024) e o de Alfredo de Sousa, co-fundador dos Celeste/ Mariposa, grupo DJ e editora de música (Joana Gorjão Henriques, «Há muito mais famílias que tiveram escravos.” Mas não se fala disso». Público, 23 de Setembro de 2017).

[2] Por exemplo, a que encontramos na “Declaração do Porto: reparar o irreparável”, de 7 de Julho 2023 (in Buala,

 https://www.buala.org/pt/mukanda/declaracao-do-porto-reparar-o-irreparavel).

[3] In Rui Braga, “Justiça racial e colonialismo em Portugal: da negação à reparação”. Open Democracy, 31 de Agosto 2020. Imagine-se o que significaria a generalização deste piedoso mandamento a todas as épocas e a todos os povos-nações do planeta, começando pelos Ingleses, os Alemães e os Americanos! João Pedro Marques trata o assunto no que se refere tão somente à chamadas reparações (uma variante contemporânea [e pós-zombi para os seus questores] do comércio de indulgências) pela escravatura transatlântica em muitos dos seus artigos no Céu Enganador. Ver, por exemplo, “A conta já chegou. São 20 biliões de dólares”,25-09-2023 “Reparações? O abuso de uma velha ideia”.17-02-2025¸ “Reparações: do pressuposto falso à ideia absurda”, “Reparações? O abuso de uma velha ideia”, 17-02-2025; “Tráfico de escravos: má ou boa consciência”, 08-05-2024; “Reparações nunca! Seriam um nó cego”, 16-12-2024; “Repitam comigo: o tráfico foi uma parceria”, 22-05-2024.  

[4] Pelo termo woke (Ingl. literalmente, “acordei[pretérito perfeito simples <past simple> do verbo wake]; em gíria norte-americana, “estar desperto e alerta para as injustiças e as segregações sociais”) deve entender-se, neste contexto, um movimento activista com três componentes interligadas: 1) constelação de direitos LGBTQ+; 2) teoria crítica da raça; 3) cultura do apagamento-censura-e-destruição [Ingl. cancel culture]. A terceira componente é uma componente niilista. [Niilismo: (do latim nihil: nada) designa uma concepção em que tudo o que existe (coisas, factos, valores, princípios, teorias, mundo) é ou pode ser negado e reduzido a nada por um acto de vontade; em que há uma necessidade de criar o vazio]. A primeira componente possui também um forte elemento niilista, representado pela letra T [= transexual] da sigla LGBTQ+, porque é evidentemente impossível, biologicamente, um homem transformar-se (ou ser transformado) em mulher ou uma mulher transformar-se (ou ser transformada) em homem. Por conseguinte, não existem nem podem existir pessoas “transsexuais” e qualificar de “transgéneros” as pessoas que negam essa impossibilidade e afirmam ter mudado de sexo não altera esse facto. As demais facetas do movimento woke (luta contra a desigualdade de direitos e a segregação no acesso ao emprego, à educação escolar, à saúde e à habitação com base no sexo, na escolha dos parceiros sexuais e nas características fenotípicas aparentes dos indivíduos impropriamente apelidadas de “raça”) têm um teor benévolo, positivo, nos seus intuitos. Mas também elas padecem de algo semelhante, no plano intelectual, ao “ouvido vertiginoso” pelo contacto permanente em que se encontram com as facetas ideológicas niilistas. A este propósito ver, por exemplo, White Fragility: Why It’s So Hard for White People to Talk About Racism (2018, Beacon Press), de Robin DiAngelo, vs Woke Racism: How a New Religion Has Betrayed Black People (2021, Portfolio), de John McWhorter, ou, em Português, Uma gota de sangue: história do pensamento racial (2009, Contexto), de Demétrio Magnoli.

[5] Veda Fatmy, John Kihn, Jukka Sihvonen. Sami Vähäma, “Why do corporations embrace the LGBTQ+ cause? LSE Business Review, February 23, 2023.

[6] Estes números são os do relatório, Quantification of Reparation for Transatlantic Chattel Slavery, Brattle, June 8, 2022.

[7] Entrevista a João Pedro Marques, “No movimento woke há sentimento de culpa, ingenuidade e fanatismo”. Sol, 20 de Março de 2024.

[8] Emprego aqui “zombi no sentido que lhe deu Emmanuel Todd na sua teoria dos três estádios da religião monoteísta, quer do cristianismo (católico, ortodoxo e protestante), quer do judaísmo e do islamismo: 1) um estádio activo da religião, no qual as pessoas são crentes e praticantes; 2) um estádio zombi da religião, na qual as pessoas já não são crentes e praticantes, mas conservam nos seus hábitos sociais, valores e comportamentos herdados da religião activa precedente, sem terem consciência disso; 3) um estádio zero da religião, no qual os hábitos sociais, valores e comportamentos herdados da religião desapareceram. Conjecturo que neste último caso o espaço ideológico deixado vago pela religião seja, amiúde (mas não necessariamente, bem entendido), ocupado por crenças e doutrinas niilistas entenda-se, baseadas num imperativo de apagamento-censura-e-destruição de monumentos, memórias, livros, factos, pessoas e da própria realidade, de criação do vazio.

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Post-Scriptum. 22-06-2025

Quem leia só os comentários de Albarda-mos e Whale Project (no blogue Estátua de Sal, que fez uma chamada de atenção para este meu artigo) ficará com a ideia de que artigo que escrevi é sobre o racismo, ou sobre a escravidão e a escravatura desde os primórdios da civilização, ou sobre a ascensão da extrema-direita. Mas quem tenha lido o artigo sabe que não é o caso. O artigo é sobre alguns argumentos falaciosos desenvolvidos por Lídia Jorge no seu discurso em 10 de Junho de 2025 sobre um alegado “remorso” dos portugueses contemporâneos pel’ “o pecado dos Descobrimentos”.

Mais abrangente e especificamente, o artigo é sobre os argumentos falaciosos desenvolvidos pelo movimento woke (v. nota [4]) para justificar a bondade dos 107,8 biliões de dólares americanos (93,5 biliões de euros) que 31 Estados (caribenhos, norte-, centro- e sul-americanos, mas curiosamente, nenhum africano) teriam o direito de exigir a 10 Estados (incluindo Portugal, que teria de pagar 20,6 biliões de dólares [=18 biliões de euros], números redondos), a título de reparações compensatórias pelo tráfico transatlântico de escravos entre 1502 e 1888.

Albarda-mos diz que «não compreende a alusão aos muçulmanos para enquadrar o esclavagismo externo dos africanos, pois antes sequer do Islão existir, os pagãos romanos /…/ já lá iam [a África] importar escravos». Pois é muito fácil de compreender se se der ao trabalho de ler o discurso de Lídia Jorge em 10 de Junho último e estudar as obras dos historiadores da escravatura em Portugal — por exemplo, as obras do professor João Pedro Marques («Os sons do silêncio: O Portugal de Oitocentos e a Abolição dos Escravos [1999]». Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa; «Portugal e a escravatura dos Africanos [2004]». Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa.; «Sá da Bandeira e o Fim da Escravidão: vitória da moral, desforra do interesse [2008]». Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa; «Escravatura — perguntas e respostas [2017]». Guerra e Paz Editores. Lisboa).

Lídia Jorge afirmou no seu discurso:

«Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso, por aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com pólos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX. Lagos expõe a memória desse remorso».

A afirmação é falsa. Não foram os portugueses que inauguraram “o tráfico negreiro intercontinental em larga escala”. Quando os navegadores portugueses passaram o Cabo Bojador e chegaram às costas da Senegâmbia, já os traficantes muçulmanos de escravos haviam comprado e transportado para o mundo árabe 5,7 milhões de pessoas “negras”. Lembremos que, em meados do século VII d.C., o Islão árabe se propagou pelo norte da África a partir do Egipto, atravessando o deserto do Saara e alcançando toda a região do Magrebe. Nesse processo, os berberes foram islamizados e arabizados. No início do século VIII, os berberes, convertidos ao Islão, participaram da invasão da Península Ibérica, onde foram apelidados de “mouros” pelos cristãos.

A objecção de Albarda-mos segundo a qual antes do Islão existir já os romanos antigos capturavam escravos em África não é pertinente neste contexto. Os escravos de Roma eram capturados por toda a Europa e na região do Mediterrâneo, incluindo povos celtas, germânicos, trácios, eslavos, cartagineses — enfim, gente que na terminologia woke é qualificada de “branca” e, por conseguinte, sem interesse como vítimas da escravatura susceptíveis de serem arroladas pelo Brattle Group para fins de reparação compensatória aos seus putativos descendentes. Da época de Diocleciano (284-305 d.C.) até à conquista árabe do Egipto, só um pequeno número de escravos da Roma antiga (cerca de um oitavo) vinha de fora destas regiões, incluindo alguns da África “negra”, subsaariana, via Egipto e Mauritânia (William L. Westermann, «The Slave Systems of Greek and Roman Antiquity». Philadelphia: Memoirs of the American Philosophical Society. 1955). Nada que se compare com o tráfico de escravos africanos em larga escala que os traficantes árabes e berberes organizaram a partir do século VII e que CONTINUAVA MUITO ACTIVO quando os navegadores portugueses de outrora chegaram a África.

Albarda-mos acha que estes factos «não servem de grande álibi». Álibi para quem? Ele não o diz. Mas só poderá ser, digo eu, para quem tem interesse em esconder bem escondido dois factos: 1) que o tráfico intercontinental de escravos africanos “negros” não começou com os Descobrimentos portugueses, e 2) que «o tráfico transatlântico de escravos ter sido, quase desde o seu início, uma parceria Luso-Africana (e, depois, “Euro-Africana)» (João Pedro Marques. “Repitam comigo: o tráfico [de escravos] foi uma parceria”. In Céu Enganador, 22-05-2024). Ou seja, foi um hediondo negócio que resultou da conjugação dos interesses dos navegadores, comerciantes e povoadores portugueses (e, depois, ingleses, holandeses, americanos, brasileiros, etc.) com os interesses dos escravistas africanos e potentados “negros” da África subsaariana. A natureza e o alcance desta parceria escravista foram estabelecidos com grande e minucioso acervo de provas pelo historiador John Thornton, num livro publicado em 1998 e que ficou justamente célebre: «Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680». Cambridge University Press.

«Mas se os poderosos da Europa controlavam o comércio dos mares, em África não podiam dominar nem a costa nem a navegação costeira e, nas Américas, as regiões dominadas estavam rodeadas de povos hostis e, por vezes, agressivos. Assim, o papel dos [potentados] africanos no desenvolvimento do Atlântico não seria simplesmente secundário, em qualquer dos lados do Atlântico. Em África, são os [potentados] africanos que determinam o seu papel comercial e, na América, foram muitas vezes o grupo mais importante entre os primeiros colonos. Mesmo quando não desempenhavam um papel político especial, podiam frequentemente tirar partido da incompletude do domínio europeu. /…/ Não houve conquistas europeias dramáticas em África, e mesmo os escravos que inundaram o Atlântico Sul e sustentaram a colonização na América foram mais frequentemente comprados do que capturados. Este estado de coisas já estava a ser posto em prática pelas expedições de Diogo Gomes em 1456-62 e caracterizaria as relações entre europeus e africanos nos séculos vindouros» (Thornton, pp. 42-43).

Esta verdade sobre a natureza desta parceria não é apenas incómoda: é também, em bom rigor, intolerável para os actuais questores de indulgências (o Brattle Group) ao serviço dos promotores das reparações monetárias pelo tráfico transatlântico de escravos africanos dos séculos XV-XIX. Porquê? Porque (i) arrasa a tese woke de que os escravistas e os traficantes de escravos africanos do século XV em diante eram exclusivamente europeus (juntamente com os seus descendentes norte-, centro- e sul-americanos) e porque (ii) o Brattle Group teria de refazer todos os cálculos das reparações compensatórias e encontrar os descendentes dos escravistas e traficantes africanos de escravos a quem também caberia exigi-las, de acordo com a sua lógica. Só que, desta vez, eles teriam de ser procurados não só na Europa e nas Américas, mas também em África, nos próprios territórios onde eram capturados e/ou vendidos em primeira mão os escravos africanos. Grande berbicacho para o Brattle Group (!), imagino.  

Quanto à objecção de Albarda-mos, estamos, portanto, conversados: não tem pernas para andar. Mas isso não impede o seu autor de achar que ela lhe permite afirmar que o meu artigo é «particularmente fraco devido à sua estrutura cronológica mal urdida e aos raciocínios deturpados por essas deturpações históricas e culturais». Está no seu direito e eu estou no meu em retribuir-lhe a mesma avaliação relativamente ao seu comentário, deixando aos leitores a tarefa de pronunciarem o veredicto sobre quem a merece.  

Passemos agora, para finalizar este P.S. que já vai longo (mas que espero que não seja maçador), ao Whale Project. Este leitor-comentador diz recusar «qualquer discurso desculpabilizante» [dos portugueses e outros europeus traficantes de escravos, presumo] com o argumento de que «muita gente fez o mesmo [que eles]. Quem esquece o passado está condenado a repeti-lo». Certo.

Mas, então, temos também de recusar qualquer discurso desculpabilizante dos africanos subsaarianos traficantes de escravos africanos subsaarianos com o argumento de que muitos portugueses e outros europeus fizeram igual ou pior. Temos de recusar ter dois pesos e duas medidas. Temos de tratar todos os traficantes de escravos africanos --- sejam eles traficantes africanos magrebinos [árabes e berberes], traficantes europeus, traficantes [norte-, centro- e sul-] americanos, traficantes caribenhos ou traficantes africanos subsaarianos --- com a mesma bitola. E temos de relembrar, as vezes que foram necessárias, que, para acabar com o tráfico de escravos africanos, no século XIX, foi necessário agir não só contra os traficantes europeus e descendentes de europeus (portugueses, ingleses, holandeses, americanos, brasileiros, etc.), mas também contra os negreiros africanos e os potentados “negros” que não queriam terminar aquele negócio tão lucrativo.

Por último, mas não menos importante nos dias que correm, temos de repudiar o conto do vigário das alegadas reparações monetárias às vítimas desse negócio tenebroso, pela razões apontadas no artigo Indulgências para pecados imaginários, remorsos fictícios e ressentimentos melífluos no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste P.S. e no comentário que fiz no blogue Estátua de Sal (reproduzido mais abaixo).

Saúde! Saravá!

07 junho, 2025

 

A guerra onde os corpos das mulheres 

perderam os seus direitos

Mariam Khateeb [*]

 

(In Mondoweiss, 19 de Maio de 2025. Tradução de José Catarino Soares)

 

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A guerra em Gaza não é apenas a história de escombros e ataques aéreos. É a história da rapariga que fica com o período sob bombardeamentos, da mãe que sangra em silêncio e aborta em pisos frios ou que dá à luz sob drones.

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Um bebé palestiniano recém-nascido sob as bombas israelitas na faixa de Gaza, Palestina.Foto: Mondoweiss. 


Em Outubro, sangrei durante dez dias sem ter acesso a uma casa de banho em condições.

A casa para onde fugimos ‒ como a maioria dos abrigos em Gaza ‒ não tinha privacidade. Quarenta pessoas dormiam em dois quartos. A casa de banho não tinha porta, apenas uma cortina rasgada. Lembro-me de esperar que todos dormissem para me poder limpar com uma garrafa de água e restos de pano. Lembro-me de rezar para não manchar o colchão que partilhava com três primos. Lembro-me da vergonha — não do meu corpo, mas de ser incapaz de cuidar dele.

Na guerra, o corpo perde os seus direitos, especialmente o corpo feminino.

Os títulos dos jornais raramente falam disto, do que significa para uma rapariga ter o período [menstrual, n.d.t.] sob bombardeamentos, de mães forçadas a sangrar em silêncio e a abortar em pisos frios ou a dar à luz sob drones. A guerra em Gaza não é apenas uma história de escombros e ataques aéreos. É uma história de corpos interrompidos, invadidos e sem descanso. E, no entanto, de alguma forma, esses corpos continuam. [n.d.t.= nota do tradutor]

Como mulher palestiniana e estudante deslocada que vive agora no Egipto, carrego comigo esta memória corporal. Não como uma metáfora, mas como um facto. O meu corpo ainda se retrai perante ruídos fortes. A minha digestão vacila. O meu sono vem em fragmentos. Conheço muitas mulheres ‒ amigas, familiares, vizinhas que desenvolveram doenças crónicas durante a guerra, que perderam a menstruação durante meses, cujos seios secaram quando tentavam amamentar nos abrigos. A guerra entra no corpo como uma doença e fica.

O corpo de Gaza é um mapa de interrupções. Aprende cedo a contrair-se — a ocupar menos espaço, a manter-se alerta, a suprimir o desejo, a fome, a hemorragia. A natureza pública da deslocação destrói a privacidade, enquanto o medo constante corrói o sistema nervoso. As mulheres que antes preservavam o seu pudor, mudam de roupa à frente de estranhos. As raparigas deixam de falar dos seus ciclos [menstruais, n.d.t.]. A dignidade torna-se um fardo que ninguém pode suportar.

É este o paradoxo da sobrevivência: o mesmo corpo a que é negada a segurança torna-se o instrumento de resistência. As mulheres cozinham lentilhas à luz das velas, acalmam as crianças nas caves, embalam os moribundos. Estes actos não são passivos; são radicais. Menstruar, carregar, alimentar, acalmar no meio da destruição é insistir na vida.

Volto, uma e outra vez, à imagem da minha mãe durante a guerra. As costas curvadas sobre uma panela, as mãos a tremer, os olhos a perscrutar o tecto a cada som. Não comia até que toda a gente comesse. Não dormia até as crianças estarem a dormir. O seu corpo suportava a arquitectura da guerra e da maternidade ao mesmo tempo. Apercebo-me agora de como a sua exaustão era política — como o seu trabalho, tal como o de tantas mulheres palestinianas, desafiava a lógica da aniquilação.

Não há tenda para o corpo em Gaza. Não há espaço seguro onde o corpo feminino se possa desdobrar sem medo. A guerra despoja-nos não só das nossas casas e pertences, mas também dos rituais que nos tornam humanos: tomar banho, menstruar, chorar em privado. Mas mesmo sem abrigo, os nossos corpos resistem. Lembram-se. Resistem.

E talvez, na sua persistência trémula, escrevam a história mais verdadeira de todas.

 

Soldada israelita (Serdadu Yahudi Penjajah) e mulher palestiniana  (Muslimah Pemberani) em confronto verbal. Fonte: X.com @sahabatalaqsha


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O texto original, em Inglês, pode ser lido aqui:

https://mondoweiss.net/2025/05/the-war-where-womens-bodies-lost-their-rights/?fbclid=IwY2xjawKwfpZleHRuA2FlbQIxMQBicmlkETFGNFhPVWRYMlpxSmc5aE1IAR4O3Ia3THiludGGNtXSOuyWvbH7c3cnPPGYYhIIB8KbFMq4ElKPhYeTzKkAXw_aem_BRodxBgrnM6iLjjHQ2rYWQ

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[*] Mariam Katheeb, é o nome literário de Mariam Mohammed El Khatib, uma prosadora, poeta e activista palestiniana de Gaza. Estuda medicina dentária no Egipto, onde também prossegue o seu trabalho literário. Os seus escritos ‒ publicados em plataformas como This Week in Palestine, We Are Not Numbers e Avery Review ‒ exploram temas como a memória, a guerra e a resistência, especialmente a partir de perspectivas feministas e existenciais. Utiliza a narração de histórias como forma de resistência cultural, documentando a experiência palestiniana e amplificando as vozes do seu povo.


01 junho, 2025

 Temas 1, 2, 3

Uma breve panorâmica sobre a obra

de Emmanuel Todd,

 seguida de um comentário crítico sobre

um dos seus pontos cegos  

 

José Catarino Soares


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N.B. Este ensaio foi suscitado pela palestra que Emmanuel Todd fez na Academia das Ciências Russa, em 23 de Abril de 2025, sob o título Antropologia e Realismo Estratégico nas Relações Internacionais”, divulgada ao público fora da Rússia com a menção Da Rússia, com  amor, e que foi traduzida e publicada neste blogue, aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/06/da-russia-com-amor-emmanuel-todd-in.html

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PARTE I

Emmanuel Todd (nascido em 1951) é um historiador, antropólogo, sociólogo e politólogo francês.

Emmanuel Todd em 26 de Janeiro de 2023. Foto: Weltwoche.
 

Tem uma obra vasta, multifacetada e muito original, embora mal conhecida em Portugal e praticamente desconhecida no mundo de língua inglesa — a língua em que, de há uns 40 anos a esta parte, se fazem e desfazem as reputações mediáticas, incluindo as do meio universitário e científico.

1.Três níveis societais

A originalidade epistémica e fecundidade heurística da obra de Emmanuel Todd residem, em minha opinião, no modelo teórico que construiu da sociedade humana e da história humana em três níveis ou camadas: (x) consciente, (y) subconsciente, (z) inconsciente.

Esta tripla distinção tem como referente a sociedade, não o indivíduo. Trata-se de um consciente social, de um subconsciente social e de um inconsciente social. Não deve, por isso, ser confundida com a distinção homónima introduzida na psicologia e na psiquiatria por Sigmund Freud (com início nos seus Estudos sobre a Histeria [1893-1895) e culminando em Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise [1912] e O inconsciente [1915]), de um consciente pessoal, de um pré-consciente pessoal (Freud usava o termo pré-consciente e não o de subconsciente) e de um inconsciente pessoal.

O inconsciente social de Todd também não deve ser confundido com a noção de inconsciente colectivo que Carl Gustav Yung introduziu no seu livro Metamorfose e Símbolos da Libido (1912) — um espaço psíquico comum a todos os seres humanos, com conteúdos universais e arquetípicos que influenciam o nosso inconsciente pessoal, mas que não é adquirido individualmente ou socialmente, mas herdado biologicamente.

A grande fraqueza da argumentação de Freud e dos seus continuadores (cultores da psicanálise), assim como de Yung e dos seus continuadores (cultores da psicologia analítica), era a sua crença comum na existência de uma estrutura familiar única e universal como campo de floração de sentimentos, atitudes e comportamentos inconscientes e subconscientes. E que estrutura familiar seria essa? Pois, aquela que predominava no meio social onde trabalharam: a da família autoritária (na Áustria) e da família nuclear absoluta (na Inglaterra), no caso de Freud, e a da família autoritária (numa parte da Suíça) e da família nuclear absoluta (noutra parte da Suíça), no caso de Yung. Neste aspecto, a psicanálise e a psicologia analítica pedem meças à politologia de inspiração liberal e à economia (impropriamente chamada) neoclássica pelo seu arreigado e estreito eurocentrismo.

Emmanuel Todd introduziu a tripla distinção societal dos níveis (x)/(y)/(z)-ciente na antropologia social e na sociologia, mas desvinculada dos seus referentes freudianos e yunguianos, salvo no que respeita ao reconhecimento da autonomia e do carácter primordial (entenda-se: de infra-estrutura social) da família, bem evidenciados por Freud, embora dentro dos estreitos limites eurocêntricos supramencionados.

Exemplificando: no nível consciente das sociedades encontramos a economia em todas as épocas históricas e a política desde, pelo menos, o desenvolvimento da sedentarização decorrente da invenção da agricultura, da criação de gado e da metalurgia. Por exemplo, na Europa, na chamada Idade Média, na época da Reforma e da Contra-Reforma ou actualmente, em países como, por exemplo, o Irão e a Arábia Saudita, encontramos também a religião no nível consciente.

Actualmente, em países como, por exemplo, a Suécia, a França e o Reino Unido, a religião encontra-se na interface entre o nível subconsciente e o nível inconsciente, enquanto noutros, como, por exemplo, Portugal, Espanha, Itália, a religião se encontra na interface entre o nível subconsciente e o nível consciente.

Nas sociedades modernas (i.e., pós-revolução industrial capitalista [1780-1830] e pós-revolução francesa [1789-1793]) encontramos a educação no nível subconsciente, ou oscilando entre o nível subconsciente e o nível consciente. No nível inconsciente, encontramos, em todas as épocas, os sistemas familiares ou, equivalentemente, as estruturas familiares (o termo preferido de Todd) — isto é, as relações entre esposo e esposa, entre pais e filhos, entre pai e filhos, entre pai e filhas, entre mãe e filhas, entre mãe e filhos, entre irmãos e irmãs, entre irmãos, entre irmãs, entre avós e netos.

É neste livro, originalmente publicado em 2017, que Todd sistematiza mais clara e sucintamente a tripla distinção dos níveis societais.


Os parâmetros configuracionais dos sistemas familiares [bilaterais, patrilineares ou matrilineares; bilocais, matrilocais ou patrilocais; autoritários ou libertários; igualitários ou inigualitários; endogâmicos ou exogâmicos; segundo os países e as épocas] condicionam, sem o conhecimento dos indivíduos-agentes, escolhas e condutas políticas, valores e crenças religiosas, desempenhos e comportamentos educativos.

Para grande surpresa de Emannuel Todd, «esta identificação de um inconsciente familiar da vida ideológica, à qual eu tinha chegado de uma maneira puramente empírica, suscitou uma resistência, e mesmo uma rejeição, da parte dos investigadores em ciências humanas, em particular nas sociedades mais livres em temperamento e costumes» [1].

Ironicamente, essa resistência e essa rejeição são facilmente explicáveis pelos sistemas familiares dominantes nos países onde elas se manifestam mais fortemente (!) — um ponto que não podemos aprofundar aqui.

2. Temporalidade societal a três velocidades

Seja como for, uma coisa é certa: compreender teoricamente as sociedades humanas como sistemas complexos estratificados (sistemas compostos de sistemas mais restritos, seus subsistemas) que incluem níveis ou camadas conscientes, subconscientes e inconscientes, conduz-nos a uma nova concepção da história humana. Trata-se de uma concepção necessariamente esquemática (como são todas as concepções científicas), mas que nos permite entender duas coisas importantes, que equivalem a uma revolução coperniciana no domínio das ciências sociais.

1.ª O tempo está em permanente e incessante fluxo e com o tempo tudo muda, inclusive no domínio societal.“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Muda-se o ser, muda-se a confiança. Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades” (como tão bem disse o nosso grande poeta, Luís Vaz de Camões).

Uma imagem com desenho, Cara humana, quadro, homem

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Retrato de Luís Vaz de Camões por Fernão Gomes, provavelmente pintado entre 1573 e 1575.


2.ª Mas os ritmos de mudança não são os mesmos em cada um dos subsistemas e em cada um dos níveis do macrossistema societal. Em primeira aproximação, pode dizer-se que quanto mais nos embrenhamos nas profundezas subconsciente e inconsciente da vida social, mais o tempo transcorre lentamente, e mais as relações e instituições sociais perduram sem alteração sensível.

Por exemplo, o processo de globalização (ou mundialização) industrial, comercial, financeira, comunicacional, política e cultural que se iniciou no pós-Segunda Guerra Mundial, levou pouco mais de 60 anos para se impor (1945-2007/2008): arranque, aceleração, consolidação, implosão parcial. É um processo económico e político maximamente consciente porque foi pilotado à vista de todos pela potência imperial então hegemónica (EUA) e porque inclui acontecimentos e processos também eles conscientes (tratados, guerras, trocas comerciais, deslocalização de indústrias, migrações em massa intra- e intercontinentais, instalação de paraísos fiscais, etc.).

Globalização comunicacional. Fonte da foto:  Peterson Institute for Internacional Economics.


Ao nível subconsciente, o tempo (da mudança de um estado de estrutura de um sistema para outro estado) transcorre mais lentamente. Por exemplo, o movimento das sociedades para a alfabetização universal começou na Alemanha, no século XVI, com a Reforma Protestante que exigia que todos os crentes soubessem ler a Bíblia para poderem meditar directamente sobre os Evangelhos e dialogar directamente com “a palavra de Deus”. Por volta de 2030, prevê-se (previsão optimista) que todas as crianças em todo o mundo, incluindo a África, aprendam a ler, a escrever e a dominar as regras básicas da aritmética. Foram precisos 5 séculos para alcançar este resultado, ou seja, simplificando, 10 vezes mais tempo do que necessitou a globalização mais recente, filo-americana e neoliberal.

Ao nível inconsciente, o movimento das sociedades é ainda mais lento. Se escolhermos, como fez Emmanuel Todd, a Suméria na Mesopotâmia (3.000 anos a.C.) e a China do Norte (1.500 anos a.C.) ‒ as duas épocas, as duas regiões e as duas vezes em que a escrita foi inventada de maneira independente ‒ como ponto de partida formal da diferenciação dos sistemas familiares do Homo Sapiens, temos de contar com 5.000 a 3.500 anos de evolução. Dito de outro modo, para dar conta do processo de diferenciação universal dos sistemas familiares, temos de multiplicar a escala temporal do processo de alfabetização universal por 10 e multiplicar por 100 a escala temporal da globalização [industrial, agro-industrial, comercial, financeira, comunicacional  e, em menor medida  política e cultural] conduzida pelos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial.

Exemplares de escrita cuneiforme (assim chamada por ser executada em tabuinhas de barro com estiletes em forma de cunha) inventada, cerca de 3.500 anos a.C., pelos mesopotâmicos da Suméria. Foto: BBC Ideas



Exemplar da escrita em ossos oraculares. Trata-se de textos curtos escritos em escápulas de bovinos e em plastrões de tartarugas. São a mais antiga forma de escrita chinesa, desenvolvida durante a dinastia Shang, também conhecida como dinastia Yin. De acordo com a historiografia chinesa, a dinastia Shang foi a segunda dinastia real que dominou a China, de cerca de 1570 a 1045 a.C. Foto da gravura: Wikipédia. 



Simplificando e arredondando,

«dizemos que o consciente económico funciona numa escala [temporal] de 50 anos, o subconsciente educativo numa [escala temporal] de 500 anos, o inconsciente familiar numa de 5.000 anos» (Todd, op. cit., p.27).

Por tudo isto, não é de estranhar que Emmanuel Todd seja, ainda hoje, um autor deveras inquietante e até maldito, quer para muitos dos seus colegas de profissão, quer para o sistema mediático oligopolista de comunicação social do “Ocidente alargado” e que sejam muitos os seus ostracizadores e detractores nesses dois meios profissionais. Mas não precisamos de estar de acordo com Todd em tudo o que diz, ou em muito do que diz, para reconhecermos tudo (e é muito) o que com ele podemos aprender.

O que acabei de dizer no parágrafo precedente resume a motivação que me levou a escrever esta nota biográfico-científica sobre Emmanuel Todd. Julgo que ela ajudará a entender melhor o seu artigo-palestra, Da Rússia, com amor, aqui publicado — o mais recente texto da sua lavra.


Parte II

3. Um ponto cego

Posto isto, passo agora a fazer um comentário crítico de um ponto cego da sua obra. Refiro-me ao seu emprego abundante de uma palavra que suscita as paixões mais desencontradas e que alimenta enormes confusões conceptuais que perduram há mais de um século e meio: “comunismo”. E esta confusão perdura, vale a pena salientá-lo, apesar dos esforços bem-sucedidos que o mais arguto, competente e rigoroso investigador do comunismo o filósofo, economista político, sociólogo, politólogo e historiador Karl Marx (1818-1883) fez para a dissipar.

Um bom exemplo desse ponto cego da obra de Emmanuel Todd é a expressão communisme achevé que ocorre na palestra Antropologia e Realismo Estratégico nas Relações Internacionais, a qual sobretitulou (com um sorriso irónico para os fãs actuais do agente 007) Da Rússia, com amor. Eu traduzi-a por comunismo realizado (também poderia traduzir-se por comunismo consumado)

Esta expressão remete-nos directamente para um dos elos fracos da argumentação de Emmanuel Todd: a sua deficiente teorização da esfera política (onde as facetas ideologia, doutrina, instituição e conduta não são adequadamente destrinçadas), acompanhada por uma frequente confusão e deslize entre categorias económicas e categorias políticas. Eis dois exemplos tirados de um dos seus livros:

«Ideologia vedeta do século vinte, o comunismo foi abundantemente analisado. A politologia clássica, incapaz de explicar o surgimento do fenómeno em tal ou tal país, conseguiu, mesmo assim, dar dele uma boa descrição, que define, aliás, pela negativa, mas com igual precisão, a sua antítese económico-política e o seu adversário mundial, o liberalismo anglo-saxónico.

Lado comunismo: ausência de liberdades políticas, religiosas e económicas elementares. Submissão igualitária dos indivíduos ao Estado. Partido único e inamovível.

Lado liberalismo: exercício livre pelos indivíduos de direitos políticos, religiosos e económicos. Horror do Estado encarado como uma necessidade técnica mas também como uma ameaça. Alternância rápida de partidos diferentes no poder graças au sistema electivo» [2].

Na página 69 do mesmo livro, pode ler-se:

«O que é o comunismo? A ditadura do proletariado, respondiam os pequenos manuais da 3.ª Internacional. Proponho aqui uma outra definição que parece coincidir melhor com a realidade sociológica e geográfica do fenómeno: o comunismo é a transferência para o partido-Estado das características morais e dos mecanismos de regulação da família comunitária exogâmica». [destaques a traço grosso acrescentados ao original, n.e.] [n.e.= nota editorial]

4. Ditadura do proletariado

Tudo está errado nestas duas citações. “Ditadura do proletariado” é um oxímoro, uma expressão abstrusa que enlaça dois conceitos de níveis categorialmente diferentes (político-institucional vs socio-económico) e mutuamente incongruentes para os efeitos discursivos pretendidos pelos seus defensores.

1)Ditadura” era um dispositivo constitucional inventado pela República Romana Antiga que atribuía, transitoriamente, plenos poderes a um magistrado de confiança, denominado “ditador” (porque passava a ser ele a ditar as leis e a tomar todas as decisões importantes), para enfrentar com êxito uma situação de emergência interna ou externa considerada de grande perigosidade para a segurança e estabilidade da República.

2)Proletariado” era também um termo da Roma antiga. Segundo Cícero, a palavra latina proletarius/proletarii (proletário/proletários), que deriva de proles (prole, linhagem, os filhos), teria sido inventada pelo sexto rei de Roma, Sérvio Túlio (Servius Tulius, 579-535 a.C.), para designar, no quadro da sua reforma militar e censitária do reino, os membros da sexta e última classe do censo, a mais pobre de todas, que estavam isentos de imposto por não possuírem terras nem fortuna pecuniária e que não tinham direitos políticos pela mesma razão. Sérvio Túlio apelidou de proletários os cidadãos romanos desta classe censitária, «para fazer ver que só lhes era pedido que dessem filhos e uma posteridade ao Estado». Na primeira metade do século XIX, são criados os termos classe proletária e proletariado em França e na Prússia (hoje Alemanha).  Com eles pretendia-se designar os trabalhadores assalariados, sem terra e sem outros meios de produção individual, a classe mais numerosa, ou em vias de se tornar a mais numerosa, nos países europeus onde o modo capitalista de produção (ou “o capitalismo”, para abreviar) estava mais desenvolvido e também, porventura, a classe mais pobre.

Hal Draper (1914-1990) fez dois estudos minuciosos das poucas ocorrências da expressão “ditadura do proletariado” na obra de Karl Marx e do seu fiel amigo e colaborador, Friedrich Engels [3], e eu próprio abordei, a traços largos, essa questão noutra ocasião [4]. Remeto os leitores interessados para esses artigos.

Aqui, limitar-me-ei a salientar duas coisas.

1.ª) Se “A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios trabalhadores” (o lema que Marx propôs para a Associação Internacional dos Trabalhadores [AIT] e que foi aceite), então, a designação de um ditador, ou de um colectivo de ditadores (com o nome de “Partido Comunista” ou outro qualquer), investido(s) de plenos poderes ‒ ainda que com a alegação de se tratar de uma situação transitória ‒ para agir em nome dos “superiores interesses do proletariado”, conduzirá a tudo menos à sua auto-emancipação.

 2.ª) Só por ignorância crassa ou má-fé se poderá aceitar como boa a resposta “a ditadura do proletariado” à pergunta, “o que é o comunismo?”. Nem sequer os partidários mais fervorosos da “ditadura do proletariado”, incluindo Nikolai Boukharine e Eugenii Preobajensky os autores do ABC do Comunismo, o grande manual enciclopédico (e não “um pequeno manual” como sugere Todd) publicado, em 1920, pela 3.ª Internacional, que foi distribuído em centenas de milhares de exemplares tanto dentro da União Soviética (18 edições) como fora dela (traduzido em 20 línguas estrangeiras) ‒, sustentaram alguma vez tamanho disparate.

5. Liberalismo e Comunismo

Passemos, agora, a examinar as noções de “liberalismo” e “comunismo” que Emmanuel Todd situa, erradamente, no mesmo plano conceptual.

Liberalismo” é o nome de uma doutrina que faz a apologia da oligocracia electiva liberal, no plano político, e do modo capitalista de produção e apropriação de bens e serviços, no plano económico.

Comunismo” é o nome (melhor dizendo, um dos nomes possíveis, entre outros,  [e.g., socialismo, colectivismo,” anarquismo, associativismo, cooperativismo] e não necessariamente o melhor nome) de um modo de produção e apropriação de bens e serviços cujas condições materiais (tecnológicas e sociais) se formaram naturalmente no decurso do desenvolvimento do modo capitalista de produção e apropriação.

Essas condições materiais são, fundamentalmente, três:

(i) a maquinofactura (vulgo, indústria), filha do desenvolvimento da ciência e da tecnologia

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Sinergia entre trabalhadores e maquinaria na produção de automóveis na fábrica AutoEuropa da Volkswagen, em Palmela, Portugal. Fonte da foto: Portugal Global.


(ii) o desenvolvimento tecnológico trifacetado da maquinofactura (indústrias de base, indústrias intermediárias, indústrias de bens de consumo), alimentada por formas variadas de energia cinética, térmica, química, eléctrica, nuclear ⎼ e capaz, por isso, de produzir em larga escala massas enormes de bens duráveis e não duráveis, além de uma vastíssima gama de serviços, destinados a satisfazer as necessidades da população humana;  

(iii) a enorme expansão concomitante de uma classe de trabalhadores “sem eira nem beira”, exclusivamente dependentes, para a sua sobrevivência e reprodução, do aluguer da sua força de trabalho aos proprietários dos meios de produção industrial.

Raoul Julien, um menino trabalhador assalariado fotografado em 1909, numa maquinofactura têxtil de Burlington, Vermont, EUA. Repare-se que está descalço porque os sapatos ainda eram, nesta época  38 anos depois da data de feitura do quadro que se pode ver abaixo ⎼ um luxo para estas crianças proletárias. A foto é do incansável sociólogo e fotógrafo amador Lewis Wickes Hine (1874-1940)




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No último terço do século XIX, nas zonas rurais dos EUA (como também até ao final dos anos 1950 em Portugal), ainda eram muitas as crianças das classes trabalhadoras que iam à escola primária descalças, como nos mostra este magnífico quadro a óleo do pintor americano Winslow Homer (1836-1910), intitulado The Country School [A Escola Rural] de 1871.


Mais: o modo capitalista de produção e apropriação não criou apenas (embora sem querer) as condições materiais da sua superação pelo modo comunista de produção (ou «modo associativo de produção» ou «modo cooperativo de produção», como lhe chamou Karl Marx), baseado na «associação de produtores livres e iguais» (APLI, para abreviar).

O modo capitalista de produção criou também (e também sem querer) as condições mínimas necessárias para que a sua componente humana mais importante (a classe dos trabalhadores assalariados, mencionada mais acima em [iii]) fizesse a demonstração prática, embora em pequena escala, da viabilidade económica (em termos de produtividade do trabalho) e da superioridade política (em termos da liberdade e igualdade dos produtores) do modo associativo de produção que lhe poderá suceder.

Na verdade, durante os primeiros anos da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), que desenvolveu a sua actividade de 1864 a 1876, Marx descobriu o protótipo do modo cooperativo de produção baseado na APLI nas cooperativas de produção de trabalhadores. Na Alocução Inaugural da AIT, Marx salienta de forma extremamente elogiosa as «fábricas cooperativas» como sendo «grandes experiências sociais premeditadas» [“great social experiments” no original]. No volume 3 de O Capital, escrito no mesmo período em que foram escritos os documentos fundadores da AIT, Marx considerou as cooperativas de produção como sendo uma forma transitória para o modo associativo de produção.

«As sociedades anónimas capitalistas [firmas onde o capital é dividido em acções que podem ser negociadas livremente (sociedades anónimas de capital aberto) ou que são detidas por um grupo limitado de accionistas (sociedades anónimas de capital fechado), n.e.], assim como as fábricas cooperativas, devem ser vistas como formas transitórias do modo capitalista de produção para um modo associativo de produção; simplesmente num caso, a oposição [entre o capital e o trabalho, n.e.] é abolida de uma forma negativa, e no outro, de uma forma positiva». [5]

Em especial, as fábricas cooperativas, sublinhou,  

«mostram como, numa determinada fase do desenvolvimento das forças materiais de produção – e das formas sociais de produção que lhes correspondem – se desenvolve um novo modo de produção que foi formado naturalmente a partir do velho», onde «a oposição entre o capital e o trabalho foi abolida». Na alocução inaugural da AIT, Marx deixou claro que as cooperativas de produção «mostram praticamente» a superação do capitalismo por «uma associação de produtores livres e iguais» e que «a produção cooperativa» «ataca os alicerces [do capitalismo]».

Daqui se segue que o comunismo ou seja, o modo cooperativo de produção e apropriação de bens e serviços por associações de produtores livres e iguais que trabalham com meios de produção industrial (e também terra [na actividade agrícola, florestal, ganadeira e mineira]) que possuem em comum e com base num plano racional discutido e aprovado democraticamente é antitético do capitalismo, no seio do qual, porém, nasceu e se desenvolve embrionariamente.

Consideremos as cooperativas de produção actualmente existentes, em especial as fábricas cooperativas que são o seu tipo mais complexo — por exemplo, a fábrica cooperativa SCOP-TI, em Gémenos, nas Bouches-du-Rhône, ou a fábrica cooperativa ACOME, em Mortain-Bocage, Manche, ambas em França.

Uma imagem com fábrica, pessoa, edifício, indústria

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ACOME é uma fábrica cooperativa especializada na produção de cabos de alta tecnicidade e de fibra óptica para o sector automóvel e das telecomunicações. Tem a particularidade de ser a maior sociedade cooperativa de França e de pertencer a 100% aos seus mais de 2.000 sócios-trabalhadores. Foto: Acome.2019



SCOP-TI é uma fábrica cooperativa especializada na produção de chá e infusões naturais. Tem a particularidade de ter resultado de uma luta de 1336 dias dos seus trabalhadores para a salvarem do fecho pelos seus anteriores proprietários: o grupo Unilever. 1336 é agora o nome da marca dos chás e infusões produzidos na fábrica que, desde 2014, pertence a 100% aos seus 47 sócios-trabalhadores. Foto: Scop-Ti.


Julgo que não é difícil imaginarmos, com base na observação destas e de outras fábricas cooperativas (e apesar de todas as limitações decorrentes de operarem num ambiente industrial,  comercial e comunicacional que lhes é profundamente hostil), que a forma capitalista da sociedade pode ser abolida para dar lugar

― ao «sistema republicano e beneficente da associação de produtores livres e iguais» [6];  

― a «uma sociedade composta por associações de produtores livres e iguais que levam a cabo a sua actividade socio-económica com base num plano comum e racional» [7].

Por conseguinte, o agente do comunismo, tal como Marx o entendeu, não é uma abstracta “sociedade” ou um “Estado” que detém a propriedade dos meios industriais de produção e da terra. Também não é um “partido de vanguarda” que dirige sozinho, instalado na cúpula desse Estado, os organismos de planificação estatal da produção de acordo com a sua interpretação dos “superiores interesses do proletariado”.

É, como vimos, a associação dos produtores livres e iguais, as associações cooperativas unidas que levam a cabo a sua actividade socioeconómica com meios industriais de produção (e terra agricultável e minerável) que possuem em comum e com base num plano comum e racional discutido e aprovado democraticamente.

Assim sendo, é fácil de ver que regimes que Emmanuel Todd considera como sendo exemplos de “comunismo realizado(como, por exemplo, [1] a ex-URSS, [2] a ex-República Socialista Federativa da Jugoslávia, [3]  a ex- República Popular da Albânia, [4] a República Popular da China, [5] a República Socialista do Vietnam ou [6] a República de Cuba) não têm nada em comum (casos [1], [3],[4], [5], [6]) ou têm muito pouco  em comum (caso [2]) com o comunismo  — aliás, o modo cooperativo de produção baseado na APLI que foi identificado por Marx no útero do modo capitalista de produção cujo funcionamento explicou e descreveu meticulosamente em milhares de páginas.

Isto conduz-nos a uma última consideração sobre a relação entre comunismo e capitalismo. Embora o comunismo (na acepção marxiana do termo, a única que considero válida pelas razões apontadas) seja antitético do capitalismo, não se opõe à ideia de liberdade sustentada pelo liberalismo. Pelo contrário, para Marx o comunismo expande a ideia liberal-burguesa da liberdade, levando-a até aos seus limites lógicos, que nunca podem ser atingidos no âmbito do capitalismo.

Isso acontece porque, dentro do capitalismo, as liberdades mais exaltadas pelo liberalismo a liberdade económica de criar, comprar e vender bens e serviços e a liberdade política de escolher quem governa são liberdades parciais, instáveis e provisórias, por duas ordens de razão.

São liberdades parciais porque pressupõem que seja mantida a separação dos produtores (que são, na sua grande maioria, trabalhadores assalariados) relativamente aos meios industriais de produção de bens e serviços que eles operam e que asseguram as suas condições materiais de existência, mas que não lhes pertencem.

São liberdades instáveis e provisórias porque, caso essa separação seja posta em causa pelos produtores em busca da condição fundamental das suas liberdades (a de constituírem «uma associação de homens livres que trabalham com meios de produção que possuem em comum, e que dispendem as suas diferentes formas de força de trabalho com plena auto-consciência e como uma única força de trabalho social») [8] todas essas liberdades parciais são imediatamente restringidas, suspensas ou violentamente suprimidas pelos  chamados “poderes fácticos”.

6. Resumindo e concluindo

Em resumo, o “mapa do comunismo realizado” que Todd construiu e a “derrocada do comunismo” que ele diz ter previsto são construtos fictícios, sem correspondência com a realidade.  Só podem ser recuperados do cesto de papéis amachucados para onde devem ser atirados, se começarmos por admitir duas coisas:

a)  que o “mapa do comunismo realizado” de Todd não cobre o comunismo, como ele afirma erradamente, porque o comunismo ou seja, uma vez mais, o modo cooperativo de produção de bens e serviços por associações de produtores livres e iguais, que trabalham com meios industriais de produção (e terra) que possuem em comum e com base num plano racional e comum, discutido e aprovado democraticamente nunca foi realizado, até à data, em parte nenhuma, à escala de um país inteiro, ou, por maioria de razão, à escala de vários países.

b) que a “derrocada da União Soviética” que Todd previu, de certa maneira, em 1976 [9], não é equivalente, como ele afirma erradamente, à “derrocada do comunismo”, mas à derrocada de outra coisa bem distinta do comunismo e que merece, como tal, ter um nome adequado que lhe seja próprio e, sobretudo, ser estudada no que tem (/teve) de original e específico.

Que coisa? A questão não pode ser respondida aqui. Exigiria um livro inteiro. Contentar-me-ei, por conseguinte, em dar-lhe um nome provisório tão-somente para fixarmos as ideias, separarmos o trigo do joio e facilitarmos a conversação. O nome que sugiro foi proposto por George Orwell, o númen inspirador deste blogue: colectivismo oligárquico, ou, como prefiro dizer (mas que vem a ser o mesmo) colectivismo oligocrático, para que possa rimar (e contrastar) com um futuro colectivismo democrático — «um grande e harmonioso sistema de trabalho livre e cooperativo» [10].

Assim sendo, «la décomposition de la sphère soviétique» [a desagregação da esfera soviética] a que Emmanuel Todd dedicou um livro 15 anos antes da sua ocorrência, foi, na verdade, a desagregação de todas as formas de colectivismo oligocrático que vigoraram durante muitas décadas nos 15 países que formavam a ex-União Soviética (1917-1991) e nos 7 países que formavam com ela o ex-Pacto de Varsóvia (1955-1991).  

Regressemos, então, ao “mapa do comunismo realizado” de Todd, sabendo agora que tem um título errado e enganoso.  Deveremos atirá-lo para o cesto de papéis que deixaram de ter préstimo? Ou existem razões para salvá-lo desse triste destino, uma vez separado desse título? 

Julgo que devemos responder “não” à primeira pergunta e “sim” à segunda. Isto porque o que o mapa de Todd sugere ou indica, de facto, uma vez liberto do seu erro de julgamento, é que existe uma forte correlação estatística

(i) entre, por um lado, a implantação eleitoral, em certas regiões, de partidos que se autodenominam comunistas e, por outro, um certo tipo de família (a família comunitária exogâmica) predominante nas regiões de maior implantação eleitoral desses partidos;

e que existe uma

(ii) prevalência numérica desse mesmo tipo de família na população de Estados onde vigoraram ou vigoram formas de organização económica social e política típicas do colectivismo oligocrático.

Se se vier a concluir que as proposições (i) e (ii) são verdadeiras o que exigirá, certamente, uma aturada investigação empírica para além daquela que Todd efectuou a conclusão constituirá uma descoberta interessante e valiosa, até pelo seu carácter inusitado e deveras intrigante para quem não está familiarizado com os trabalhos de Emmanuel Todd. É que, embora refutando e corrigindo as conclusões originais de Todd sobre o assunto, esse veredicto não deixa de ser um êxito a creditar na conta da sua teoria dos três níveis societais e, em particular, da relação, por ele descoberta, entre os sistemas familiares e os sistemas ideológicos.

É como se Emmanuel Todd tivesse descoberto uma coisa verdadeiramente nova, mas que não é, ou não é no essencial, o que ele julga que é. Neste sentido, o caso de Todd é, neste particular, reminiscente do caso de Cristovão Colombo. É sabido que Colombo, quando chegou às Bahamas, na América do Norte, julgou ter chegado à Índia, por uma rota diferente da que tinha sido descoberta por Vasco da Gama. Colombo manteve essa crença até ao fim da sua vida. Espero que não aconteça o mesmo com Todd no que respeita à sua equivocada caracterização do comunismo.

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Notas e Referências

[1] Emmanuel Todd, Où en sommes-nous? Une esquisse de l’histoire humaine. Paris, Éditions du Seuil, 2017, p.21(traduzido em português como Onde Estamos? Uma outra visão da história humana. Editor: Temas e Debates, 2018).

[2] Emmanuel Todd, La Diversité du Monde. Structures familiales et modernité. Éditions Seuil. 2017, p.32.

 [3] Hal Draper, “Marx and the Dictatorship of the Proletariat”. New Politics, Vol. 1, N. º 4, Summer 1962, pp. 93 ff); Hal Draper, “The ‘Dictatorship of the Proletariat’ in Marx and Engels”. Chapter 1 of “The ‘Dictatorship of the Proletariat’ from Marx to Lenin”, by Hal Draper, Monthly Review Press, 1987.

[4] José Catarino Soares, “O que fazer com a obra de Karl Marx nos tempos que correm, 200 anos depois do seu nascimento? -Parte I-”. Tertúlia Orwelliana, 21 Junho, 2018

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2018/06/tema-4-o-que-fazer-com-obra-de-karl_20.html

[5] Karl Marx, Capital. Vol. 3 (Fn. 7), p. 572 (MEGA II/4.2, p. 504)

[6] Karl Marx, “Instructions for the Delegates of the Provisional General Council. The Different Questions”. In: MEGA I/20, p. 232.

[7] Karl Marx, “The Nationalization of the Land”. In: MECW. Vol. 23, p. 136).

[8] Karl Marx. Capital. Vol. 1 (Fn. 6), p. 171 (MEGA II/6, p. 109)

[9] Emmanuel Todd, La chute finale. Essai sur la décompositionde la sphère soviétique. Robert Laffont, 1976. Reedição em 2004.

[10] Karl Marx, “Instructions for the Delegates of the Provisional General Council. The Different Questions”. In: MEGA I/20, p. 232.