Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

01 junho, 2025

 Temas 2 e 3

Da Rússia, com amor

Emmanuel Todd

(In Substack, 24 de Maio de 2025, tradução de José Catarino Soares)

 

Emmanuel Todd, na Praça Vermelha, Moscovo, em Abril de 2025


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Depois de Budapeste, Moscovo. Aqui está o texto da palestra que proferi na Academia das Ciências Russa, em 23 de Abril de 2025, sob o título “Antropologia e Realismo Estratégico nas Relações Internacionais”.

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Fazer esta palestra impressiona-me. Faço frequentemente palestras na França, Itália, Alemanha, no Japão e no mundo anglo-americano — no Ocidente, portanto. Nessas ocasiões, falo então a partir de dentro do meu mundo, numa perspectiva crítica, certamente, mas a partir de dentro do meu mundo. Aqui é diferente, estou em Moscovo, na capital do país que desafiou o Ocidente e que, sem dúvida, vencerá esse desafio. Psicologicamente, é um exercício completamente diferente.

Auto-retrato anti-ideológico

Primeiro, vou apresentar-me, não por narcisismo, mas porque, muitas vezes, as pessoas da França ou de outros lugares que falam da Rússia com compreensão, ou mesmo com simpatia, têm um certo perfil ideológico. Muitas vezes, essas pessoas vêm da direita conservadora ou do populismo e projectam uma imagem ideológica a priori sobre a Rússia. A simpatia ideológica deles é, na minha opinião, um pouco irrealista e fantasiosa. Eu não pertenço a essa categoria de modo nenhum.

Em França, sou o que se apelidaria de liberal de esquerda, alguém fundamentalmente ligado à democracia liberal. O que me distingue das pessoas que são adeptas da democracia liberal é que, por ser antropólogo, por conhecer a diversidade do mundo através da análise dos sistemas familiares, tenho uma grande tolerância às culturas externas e não presumo que todos devam imitar o Ocidente. O enviesamento de quem dá lições é particularmente tradicional em Paris. Eu, pelo meu lado, penso que cada país tem a sua própria história, a sua própria cultura, a sua própria trajectória.

Devo confessar, no entanto, que há uma dimensão emocional em mim, uma verdadeira simpatia pela Rússia, o que pode explicar a minha capacidade de ouvir os seus argumentos no actual confronto geopolítico. A minha abertura não resulta do que a Rússia é ideologicamente, mas de um sentimento de gratidão por ela nos ter livrado do nazismo. É o momento de dizê-lo, à medida que nos aproximamos do 9 de Maio, o dia da celebração da vitória [contra a Alemanha nazi em 9 de Maio de 1945, n.d.t.]. Os primeiros livros de história que li, quando tinha 16 anos, falavam da guerra travada pelo Exército Vermelho contra o nazismo.  Tenho o sentimento de uma dívida que deve ser paga. [n.d.t.= nota do tradutor]

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2 de Maio de 1945. O tenente A. Medzhidov e os soldados Mamedov, Ahmedzade, Berezhnoi, Andreev ‒ todos do Azerbeijão e todos da 416.ª Divisão de Carabinas do Exército Vermelho  erguem a bandeira da União Soviética no alto do Portão de  Brandemburgo, em Berlim, e disparam tiros para o ar para celebrar a vitória sobre a Alemanha nazi, que seria oficialmente confirmada em 9 de Maio de 1945.


Eu acrescentaria que estou ciente de que a Rússia saiu do comunismo [*] por si própria, por meio dos seus próprios esforços, e que sofreu enormemente durante o período de transição. Acredito que a guerra defensiva à qual o Ocidente forçou a Rússia, depois de todo esse sofrimento, no exacto momento em que ela estava a recuperar, é uma ofensa moral por parte do Ocidente. Eis o que tinha para dizer no que diz respeito à dimensão ideológica, ou melhor dizendo, emocional.

“Actualmente, a Rússia defende a soberania dos povos e das nações”, afirmou o Presidente Vladimir Putin, em 31 de Dezembro de 2022, aquando desta foto. Foto: Michael Lklimentyav/Sputnik/Kremlin/ EPA.


Quanto ao resto, não sou um ideólogo, não tenho um programa para a humanidade, sou um historiador, sou um antropólogo, considero-me um cientista e o que posso contribuir para a compreensão do mundo e, em particular, para a geopolítica vem essencialmente das minhas competências profissionais.

Antropologia e Política

Formei-me em investigação no domínio da história e da antropologia na Universidade de Cambridge, em Inglaterra. O meu orientador de tese chamava-se Peter Laslett. Ele descobriu que a família inglesa do século XVII era simples, nuclear e individualista. Os seus filhos abandonavam muito cedo a casa dos pais para se dispersarem pela sociedade.  Depois, tive como examinador de tese, em Cambridge, outro grande historiador inglês, que continua vivo, Alan Macfarlane. Ele compreendeu que havia uma relação entre o individualismo político e económico dos ingleses (e, portanto, dos anglo-saxões em geral) e essa família nuclear identificada por Peter Laslett no passado da Inglaterra.

Sou aluno desses dois grandes historiadores britânicos. Essencialmente, o que eu fiz foi generalizar a hipótese de Macfarlane. Descobri que o mapa do comunismo realizado [*], por volta de meados da década de 1970, se parecia muito com o mapa de um sistema familiar que qualifico de comunitário (e que outros qualificam de família patriarcal ou família conjunta), um sistema familiar que é, de certa forma, o oposto conceptual do sistema familiar inglês.

Tomemos como exemplo a família camponesa russa. Não sou especialista em Rússia; o que eu realmente conheço da Rússia são listas do século XIX de nomes de habitantes; listas nominativas que descreviam famílias camponesas russas. Essas famílias não eram, como as famílias dos camponeses ingleses do século XVII, pequenas famílias nucleares (pai, mãe, filhos), mas lares enormes com um homem, a sua esposa, os seus filhos, as esposas dos filhos e dos netos. Esse sistema era patrilinear porque as famílias trocavam as suas mulheres umas com as outras para fazer delas esposas. A família comunitária é encontrada na China, no Vietnam, na Sérvia e na Itália central, uma região que votava comunista [*] [entender: no partido comunista italiano, n.t.d.]. Uma das peculiaridades da família comunitária russa, era que ela mantinha um estatuto elevado para as mulheres, porque o seu surgimento era recente.

A família comunitária russa surgiu entre os séculos XVI e XVIII. A família comunitária chinesa surgiu antes do início da Era Comum [eufemismo para “Era de Cristo”, n.d.t.]. A família comunitária russa tinha vários séculos de existência, enquanto a família comunitária chinesa tinha dois milénios.

Esses exemplos revelam-vos a minha percepção do mundo. Não percebo um mundo abstracto, mas um mundo em que cada uma das grandes nações, cada uma das pequenas nações, tinha uma estrutura familiar camponesa particular, uma estrutura que ainda explica muito do seu comportamento actual.

Posso dar outros exemplos. O Japão e a Alemanha, tão semelhantes em termos industriais e nas suas concepções de hierarquia, também têm em comum uma estrutura familiar, diferente dos tipos de família nuclear e família comunitária, a família-tronco, que não discutirei nesta palestra.

Se observarem os órgãos mediáticos de comunicação social actualmente, verão que os jornalistas e políticos vos falam de Donald Trump e Vladimir Putin como se eles fossem os agentes fundamentais da história, ou mesmo pessoas que moldam as suas sociedades. Eu vejo-os, em primeiro lugar, como a expressão de culturas nacionais, as quais podem estar em expansão, estáveis ​​ou em decadência.

Quero esclarecer uma coisa sobre minha reputação. 95% da minha vida de investigador foi dedicada à análise de estruturas familiares, um assunto sobre o qual escrevi livros de 500 ou 700 páginas. Mas não sou conhecido principalmente por isso no mundo. Sou conhecido por três ensaios sobre geopolítica nos quais usei o meu conhecimento desse contexto antropológico para entender o que estava a acontecer.  Em 1976, publiquei La chute finale. Essai sur la décomposition de la sphère soviétique [“A Derrocada Final. Ensaio sobre a Desagregação da Esfera Soviética”, n.d.t.], no qual previ a derrocada do comunismo [*].

A queda na taxa de fecundidade das mulheres russas mostrou que os russos eram pessoas como quaisquer outras, em processo de modernização, e que nenhum homo sovieticus havia sido criado pelo comunismo [*]. Eu tinha identificado especialmente um aumento na mortalidade infantil entre 1970 e 1974 na Rússia e na Ucrânia. O aumento da mortalidade de crianças menores de um ano mostrou que o sistema tinha começado a deteriorar-se. Escrevi esse primeiro livro quando era muito jovem, tinha 25 anos, e tive de esperar cerca de 15 anos para que minha previsão se concretizasse.

Em 2002, escrevi um segundo livro sobre geopolítica, intitulado em francês Après l’Empire. Essai sur la décomposition du système américain [Depois do Império. Ensaio sobre desagregação do sistema americano, n.d.t.], numa época em que todos falavam apenas da hiperpotência americana.

Explicavam-nos que a América dominaria o mundo por um período indefinido, um mundo unipolar. Eu dizia, pelo contrário: não, o mundo é demasiado vasto, o tamanho relativo da América está a diminuir economicamente e a América não será capaz de controlar este mundo. Acontece que era verdade. Em Depois do Império, há, em particular, uma previsão correcta que até a mim me surpreende.

Um dos seus capítulos intitula-se: “O regresso da Rússia”. Nele prevejo o regresso da Rússia como uma grande potência, mas a partir de muito poucos índices. Eu só tinha observado uma retomada do declínio da mortalidade infantil (entre 1993 e 1999, após um aumento entre 1990 e 1993). Mas eu sabia instintivamente que o contexto cultural comunitário russo, que tinha produzido o comunismo [*] numa fase de transição, sobreviveria ao período de anarquia da década de 1990 e que constituía uma estrutura estável que permitiria que algo fosse reconstruído.

Há, no entanto, um erro enorme nesse livro: nele previ um destino autónomo para a Europa Ocidental. E falta uma coisa: nele não falo sobre a China.

Chego ao meu último livro sobre geopolítica, que creio que será o último, La Défaite de l’Occident [tradução portuguesa, A Derrota do Ocidente, Editor: Principia, 2025, n.d.t.].

É para falar sobre esse livro que estou aqui, em Moscovo. Ele prevê que o Ocidente sofrerá uma derrota no confronto geopolítico aberto pela entrada do exército russo na Ucrânia. Mais uma vez, apareço em oposição à opinião geral do meu país, ou do meu grupo, já que sou ocidental. Primeiro, direi por que foi fácil para mim escrever este livro, mas depois gostaria de tentar dizer porque é que, agora que a derrota do Ocidente parece certa, se tornou muito mais difícil para mim explicar o processo de desintegração do Ocidente, sem deixar de ser capaz de fazer uma previsão de longo prazo sobre a continuação do declínio americano.

Estamos num ponto de viragem: estamos a passar da derrota para a desintegração. O que me deixa cauteloso é a minha experiência passada na época da derrocada do sistema soviético. Eu previ essa derrocada, mas devo admitir que, quando o sistema soviético entrou realmente em derrocada, não fui capaz de prever a extensão da desintegração e o nível de sofrimento que essa desintegração traria à Rússia.

Eu não tinha compreendido que o comunismo [*] não era apenas uma organização económica, mas também um sistema de crenças, uma quase religião, que estruturava a vida social soviética e a vida social russa. A desintegração dessa crença levaria a uma desorganização psicológica muito além da desorganização económica. Actualmente, estamos a chegar a uma situação semelhante no Ocidente. O que estamos a vivenciar não é simplesmente um malogro militar e económico, mas uma desestruturação das crenças que organizaram a vida social ocidental por várias décadas.

Da derrota à desintegração

Lembro-me muito bem do contexto em que escrevi A Derrota do Ocidente. Eu estava na minha pequena casa bretã, no Verão de 2023. Jornalistas da França e de outros lugares andavam muito excitadas com os “êxitos” (fantasmáticos) da contra-ofensiva ucraniana. Consigo ver-me muito bem a escrever calmamente: “A derrota do Ocidente é certa”. Não tive nenhum problema com isso. Por outro lado, quando falo hoje sobre desintegração, adopto uma postura de humildade diante dos acontecimentos. O comportamento de Trump é uma encenação da incerteza. O belicismo desses europeus que perderam a guerra ao lado dos americanos e que agora falam em vencê-la sem os americanos é algo muito surpreendente.

Isso, é o presente. Os acontecimentos de curto prazo são muito difíceis de prever. Por outro lado, o médio e longo prazo do Ocidente, particularmente os dos Estados Unidos, parecem-me mais acessíveis à compreensão e à previsão — sem certezas, é claro. Eu tinha uma visão positiva de médio e longo prazo para a Rússia desde muito cedo, já em 2002, como eu disse. Mas hoje tenho uma visão muito negativa de médio a longo prazo para os Estados Unidos. O que estamos a vivenciar é apenas o começo da queda dos Estados Unidos e devemos estar preparados para ver coisas muito mais dramáticas.

A derrota do Ocidente: uma previsão fácil

Primeiro, recordarei o modelo de A Derrota do Ocidente. Este livro foi publicado, qualquer pessoa pode verificar o que nele está escrito. Direi por que razão foi relativamente simples conceber essa derrota. Nos anos anteriores, eu já tinha analisado pormenorizadamente o regresso da Rússia à estabilidade.

Eu não vivia na fantasia ocidental de um regime monstruoso de Putin, de um Putin que seria o diabo e de os russos que seriam idiotas ou submissos, que era a visão ocidental dominante. Eu tinha lido Russie, le retour de la puissance [Rússia, o regresso da potência, n.d.t.], um excelente livro de um francês infelizmente pouco conhecido, David Teurtrie, publicado pouco antes da entrada das tropas russas na Ucrânia. Ele descreveu a recuperação da economia russa, da sua agricultura e das suas exportações de centrais nucleares. Ele explicou que a Rússia se estava a preparar desde 2014 para se desconectar do sistema financeiro ocidental.

Além disso, eu tinha os meus indicadores habituais, que são mais de estabilidade social do que de estabilidade económica. Continuei a monitorizar a taxa de mortalidade infantil, o indicador estatístico que mais utilizo. Crianças menores de um ano são os seres mais frágeis de uma sociedade e suas possibilidades de sobrevivência são o indicador mais sensível de coesão e eficiência social. Nos últimos 20 anos, a taxa de mortalidade infantil russa vem diminuindo em ritmo acelerado, embora a mortalidade geral russa, principalmente entre os homens, seja insatisfatória. Durante vários anos, a taxa de mortalidade infantil russa caiu abaixo da taxa de mortalidade infantil americana.

A taxa de mortalidade infantil americana é um indicador que nos mostra que o país não está bem. Infelizmente, acredito que, de momento, a taxa de mortalidade infantil francesa, que está a aumentar, está a ultrapassar a da Rússia. É uma mágoa para mim, como francês, mas tenho de ser capaz, como historiador, de ver e analisar coisas que não gosto. A história que se desenrola não está ali para me agradar. Está lá para ser estudada.

Desenvolvimento económico satisfatório na Rússia, estabilização social. Houve também uma rápida queda das taxas de suicídio e de homicídio entre os anos de 2000 e 2020. Eu tinha todos esses indicadores e também mantive o meu conhecimento do contexto familiar comunitário russo, de origem camponesa, que já não existe de maneira visível, mas que continua a actuar. É claro que a família camponesa russa do século XIX já não existe. Mas os seus valores sobrevivem nas interacções entre os indivíduos. Na Rússia, ainda existem valores regulatórios de autoridade, igualdade e comunidade, que garantem uma coesão social particular.

Esta é uma hipótese que pode ser difícil de aceitar para homens e mulheres modernos inseridos na vida urbana. Acabo de chegar a Moscovo, que estou a redescobrir, em 2025, transformada desde a minha última viagem, em 1993. Moscovo é uma cidade enorme e moderna. Como posso imaginar em tal contexto material e social a persistência de valores comunitários do século XIX? Mas eu faço isso aqui como noutros lugares. Essa é uma experiência que tive, por exemplo, no Japão. Tóquio também é uma cidade enorme, na verdade, com os seus 40 milhões de habitantes, duas vezes maior do que Moscovo. Mas é fácil de ver e aceitar a ideia de que um sistema de valores japonês, herdado de uma antiga estrutura familiar, se perpetuou em Tóquio. Penso o mesmo sobre a Rússia, com a diferença de que a família comunitária russa, autoritária e igualitária, não era a mesma coisa do que família-tronco japonesa, autoritária e inigualitária.

Economia, demografia, antropologia da família: em 2022 não tive dúvidas sobre a solidez da Rússia. E assim tenho observado, desde o início da guerra na Ucrânia, com uma mistura de divertimento e tristeza, jornalistas, políticos e politólogos franceses apresentando as suas hipóteses sobre a fragilidade da Rússia, sobre a iminente derrocada da sua economia, do seu regime, etc.

Autodestruição dos Estados Unidos

Embaraça-me um pouco dizer isto aqui, em Moscovo, mas devo confessar que a Rússia não é uma questão importante para mim. Não estou a dizer que a Rússia não é interessante, estou a dizer que ela não está no cerne do meu pensamento. O cerne do meu pensamento está indicado no título do meu livro, A Derrota do Ocidente. Não é a vitória da Rússia que estou a estudar, é a derrota do Ocidente. Acho que o Ocidente se está a destruir.

Para emitir e demonstrar essa hipótese, eu também tinha uma série de indicadores. Vou limitar-me aqui a falar dos Estados Unidos. Tenho vindo a trabalhar sobre a evolução dos Estados Unidos há muito tempo.

Eu estava ciente da destruição da base industrial americana, principalmente desde a entrada da China na Organização Mundial do Comércio em 2001. Eu estava ciente da dificuldade que os Estados Unidos teriam de produzir armas em número suficiente para alimentar a guerra [na Ucrânia, n.d.t.].

Consegui calcular o número de engenheiros ⎼ pessoas que se dedicam a fazer coisas reais nos Estados Unidos e na Rússia. Cheguei à conclusão de que a Rússia, com uma população duas vezes e meia menor do que a dos Estados Unidos, conseguia produzir mais engenheiros do que eles. Isto acontece simplesmente porque, entre os estudantes americanos, apenas 7% estudam engenharia, enquanto na Rússia esse número anda perto de 25%. É claro que esse número de engenheiros deve ser considerado como um número-farol, que evoca, mais profundamente, os técnicos, os operários qualificados, uma capacidade industrial geral.

Eu tinha outros indicadores de longo prazo sobre os Estados Unidos. Tenho trabalhado há décadas no declínio dos padrões educacionais, no declínio do ensino superior americano em termos de qualidade e quantidade, um declínio que começou em 1965. O declínio do potencial intelectual americano vem de longa data. Este declínio, porém, não podemos esquecê-lo, ocorre depois de uma ascensão que durou dois séculos e meio. Os Estados Unidos foram um enorme êxito histórico, antes de se afundar no seu revés actual. O êxito histórico dos Estados Unidos foi um exemplo, entre outros, mas o mais maciço, do êxito histórico do mundo protestante. A religião protestante era o coração da cultura americana, assim como da cultura britânica, das culturas escandinavas e da cultura alemã, já que dois terços da Alemanha eram protestantes.

O protestantismo exigia o acesso de todos os crentes às escrituras. Ele exigiu que as pessoas soubessem ler. Em todos os lugares, o protestantismo era, portanto, muito favorável à educação. Por volta de 1900, o mapa de países onde todos sabiam ler é o do protestantismo. Além disso, nos Estados Unidos, o ensino secundário descolou entre as duas guerras [mundiais, n.d.t.], o que não ocorreu nos países protestantes da Europa.

A derrocada educacional dos Estados Unidos está mais obviamente relacionada com a sua derrocada religiosa. Estou ciente de que se fala muito ultimamente sobre esses evangélicos excitados que pululam em torno de Trump. Mas tudo isso, para mim, não é verdadeiramente religião. Em qualquer caso, isso não é verdadeiramente o protestantismo. O Deus dos evangélicos americanos é um tipo simpático que distribui prendas financeiras; já não é o severo Deus calvinista que exige um alto padrão de moralidade, que incentiva uma forte ética de trabalho e que promove a disciplina social.

A disciplina social dos Estados Unidos deve muito à disciplina moral protestante. E isso era verdade até mesmo no século XX, quando os Estados Unidos já não eram um país protestante homogéneo, com imigrantes católicos e judeus, e depois imigrantes da Ásia. Pelo menos, até a década de 1970, o núcleo dominante da América e da cultura americana permaneceu protestante. Naquela época, as pessoas zombavam de bom grado dos WASPs [White, AngloSaxons, Protestants, n.d.t.], protestantes, anglo-saxónicos, brancos, que tinham, certamente, os seus defeitos, mas representavam uma cultura central e controlavam o sistema americano.

Estádios Activo, Zombi e Zero da Religião

Uma concepção que me é particular permite analisar o declínio religioso, não apenas neste livro [A Derrota do Ocidente, n.d.t.], mas em todos os meus livros recentes. É uma análise em três etapas do apagamento da religião.

# Em primeiro lugar, distingo um estádio activo da religião, no qual as pessoas são crentes e praticantes.

# Segue-se então uma fase, a que chamo fase zombi da religião, na qual as pessoas já não são crentes e praticantes, mas conservam nos seus hábitos sociais valores e comportamentos herdados da religião activa precedente. Eu falaria, por exemplo, do republicanismo francês, que sucedeu à Igreja Católica na França na Bacia de Paris, como sendo uma religião civil zombi.

# Vem então um terceiro estádio, que estamos actualmente a vivenciar no Ocidente, que apelido de estádio zero da religião, no qual os hábitos sociais herdados da religião desapareceram. Vou dar um indicador temporal para situar esse estádio zero, mas não deveis interpretá-lo de uma maneira moralista. Este é um instrumento técnico que me permite situar o fenómeno em 2013, 2014 ou 2015.

Um casamento entre duas mulheres em Portugal. O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo em Portugal entrou em vigor a 5 de Junho de 2010. Portugal passou a ser o oitavo país do mundo a realizar em todo o território nacional casamentos civis entre pessoas do mesmo sexo, juntando-se às Terras Baixas (Holanda), Espanha, Bélgica, África do Sul, Canadá, Noruega e Suécia. Foto: Laranja Metade

Utilizo para datar o início da fase zero qualquer lei que estabeleça o casamento para todos, ou seja, o casamento entre indivíduos do mesmo sexo. Isso é um indicador de que nada resta dos hábitos religiosos do passado. O casamento civil espelhava o casamento religioso. O casamento para todos é pós-religioso. Repito, eu não disse que era mau. Não estou aqui como moralista. Digo que é isso que nos permite considerar que chegámos ao estádio zero da religião.

Um casamento entre dois homens em Portugal. A partir de 10 de Fevereiro de 2016 passou a ser o 24.º país do planeta a permitir a adopção de crianças por casais homossexuais. Foto: casamentos.pt


Remontar do declínio industrial ao declínio educacional e ao declínio religioso, para diagnosticar finalmente um estado zero da religião permite-nos afirmar que a queda dos Estados Unidos não é um fenómeno de curto prazo e reversível. Não será reversível em nenhum caso durante os poucos anos que leva a guerra na Ucrânia.

Uma derrota americana

Esta guerra, que ainda está em curso, é um confronto entre a Rússia e os Estados Unidos, embora o exército que representa o Ocidente seja ucraniano. Ela não poderia ter acontecido sem equipamento americano. Ela não poderia ter ocorrido sem os serviços de observação e informação militar americanos. É por isso que é perfeitamente normal que as negociações finais ocorram entre os russos e os americanos.

A surpresa actual dos europeus, ao verem-se excluídos das negociações, causa-me estranheza. A surpresa deles é uma surpresa para mim. Desde o início do conflito, os europeus comportaram-se como súbditos dos Estados Unidos. Participaram nas sanções, forneceram armas e equipamentos, mas não chefiaram a guerra. Esta é a razão pela qual os europeus não têm uma representação correcta ou realista da guerra.

Chegámos aqui. O Ocidente foi derrotado industrialmente. Economicamente. Prever essa derrota não foi um grande problema intelectual para mim.

Chego ao que mais me interessa e que é mais difícil para um prospectivista: a análise e a compreensão dos acontecimentos actuais. Dou palestras com bastante regularidade. Fiz algumas em Paris. Fiz algumas na Alemanha. Fiz algumas na Itália. Fiz uma recentemente em Budapeste. O que me impressiona é que em cada nova palestra, embora haja sempre uma base estável, comum a todas, há também novos acontecimentos a integrar.  Nunca se sabe qual é a verdadeira atitude de Trump. Não está claro se o seu desejo de abandonar a guerra é sincero. Há surpresas extraordinárias, como o seu ressentimento repentino contra seus próprios aliados, ou melhor, os seus súbditos. Ver o presidente dos Estados Unidos apontar o dedo para os europeus e ucranianos pela guerra e pela derrota foi bastante surpreendente. Hoje, devo confessar a minha admiração pela compostura e calma do governo russo, que tem (aparentemente) de levar Trump a sério, que deve aceitar a sua representação da guerra porque é necessário negociar.

Noto, no entanto, um elemento positivo em Trump que permaneceu estável desde o início: ele está a conversar com o governo russo e está a afastar-se da atitude ocidental de diabolizar a Rússia. É um regresso à realidade e que é, por si só, algo de positivo, mesmo que essas negociações não levem a nada de concreto.

A Revolução Trump

Gostaria de tentar compreender a causa imediata da Revolução Trump.

Todas as revoluções têm causas sobretudo endógenas; são, antes de mais, o resultado de dinâmicas e contradições internas da sociedade em questão. Todavia, uma coisa impressionante na história é a frequência com que as revoluções são desencadeadas por derrotas militares.

A Revolução Russa de 1905 foi precedida por uma derrota militar perante o Japão. A Revolução Russa de 1917 foi precedida por uma derrota perante a Alemanha. A revolução alemã de 1918 também foi precedida por uma derrota.

Até mesmo a Revolução Francesa, que parece mais endógena, foi precedida, em 1763, pela derrota da França na Guerra dos Sete Anos, uma grande derrota já que o Antigo Regime perdeu nela todas as suas colónias. A derrocada do sistema soviético também foi desencadeada por uma dupla derrota: na corrida armamentista com os Estados Unidos e pela retirada do Afeganistão.

Acredito que devemos partir dessa noção de uma derrota que leva a uma revolução para entender a revolução Trump. A experiência em curso nos Estados Unidos, mesmo que não saibamos exactamente o que ela vai dar, é uma revolução. É uma revolução no sentido estrito do termo? É uma contra-revolução? É, em qualquer caso, um fenómeno de uma violência extraordinária, uma violência que se vira, por um lado, contra os súbditos aliados, os europeus, os ucranianos, mas que se expressa, por outro lado, internamente, na sociedade americana, por uma luta contra as universidades, contra a teoria de género, contra a cultura científica, contra a política de inclusão dos Negros nas classes médias americanas, contra o comércio livre e contra a imigração.

Essa violência revolucionária está, na minha opinião, ligada à derrota. Várias pessoas relataram-me conversas entre membros da equipa de Trump, e o que chama a atenção é a consciência da derrota. Pessoas como J.D. Vance, o vice-presidente, e muitos outros, são pessoas que compreenderam que a América perdeu esta guerra.

Foi uma derrota fundamentalmente económica para os Estados Unidos. A política de sanções mostrou que o poder financeiro do Ocidente não é omnipotente. Os americanos tiveram a revelação da fragilidade da sua indústria militar. As pessoas no Pentágono sabem muito bem que um dos limites da sua acção é a capacidade limitada do complexo militar-industrial americano.

Essa consciência americana de derrota contrasta com a falta de consciência dos europeus.

Os europeus não organizaram a guerra. Como não organizaram a guerra, não podem ter plena consciência da derrota. Para ter uma compreensão completa da derrota, precisariam de ter acesso ao pensamento do Pentágono. Mas os europeus não lhe têm acesso. Os europeus estão, portanto, mentalmente posicionados no antes da derrota, enquanto o governo actual americano está mentalmente posicionado no depois da derrota.

Derrota e crise cultural

A minha experiência com a queda do comunismo [*] ensinou-me, como eu disse, uma coisa importante: a derrocada de um sistema é tanto mental quanto económica. O que está actualmente em derrocada no Ocidente, e principalmente nos Estados Unidos, não é apenas o domínio económico, mas também o sistema de crenças que o animava ou que lhe estava sobreposto. As crenças que acompanharam o triunfalismo ocidental estão a desmoronar-se. Mas, como em qualquer processo revolucionário, ainda não é claro qual das novas crenças é a mais importante, qual é a crença que sairá vitoriosa do processo de decomposição.

Razoabilidade no governo Trump

Faço questão em esclarecer que não tinha nenhuma hostilidade de princípio em relação a Trump, no início. Quando Trump foi eleito pela primeira vez em 2016, eu estava entre aqueles que admitiram que a América estava doente, que o seu coração industrial e operário estava a ser destruído, que os americanos comuns estavam a sofrer com as políticas gerais do Império e que havia boas razões para muitos eleitores votarem em Trump. Há algumas coisas muito razoáveis ​​nas intuições de Trump. O proteccionismo de Trump, a ideia de que a América deve ser protegida para reconstruir a sua indústria, deriva de uma intuição muito razoável. Eu próprio sou um proteccionista. Escrevi livros sobre isso há muito tempo. Também considero razoável a ideia de controlo da imigração, mesmo que o estilo adoptado pelo governo Trump na gestão da imigração seja insuportavelmente violento.

Outro elemento razoável, que surpreende muitos ocidentais, é a insistência do governo Trump de que existem apenas dois sexos na humanidade: homens e mulheres. Não vejo isso como uma reaproximação com a Rússia de Vladimir Putin, mas sim um regresso à concepção comum de humanidade que existe desde o surgimento do Homo sapiens, um facto biológico sobre o qual, aliás, a ciência e a Igreja concordam.

Há alguma razão na revolução de Trump.

Niilismo na Revolução Trump

Agora devo dizer porque é que, apesar da presença desses elementos razoáveis, sou pessimista e porque é que acredito que a experiência Trump irá falhar. Lembrarei porque é que eu estava optimista em relação à Rússia em 2002 e porque é que estou pessimista em relação aos Estados Unidos em 2025.

Há no comportamento do governo Trump um défice de pensamento, um despreparo, uma brutalidade, um comportamento impulsivo e irreflectido, que evoca o conceito central de A Derrota do Ocidente, o do niilismo.

Explico em A Derrota do Ocidente que o vazio religioso, o estádio zero da religião, leva à ansiedade em vez de levar a um estado de liberdade e bem-estar. O estado zero traz-nos de volta ao problema fundamental. O que significa ser um homem? Qual é o significado das coisas? Uma resposta clássica a essas perguntas, numa fase de derrocada religiosa, é o niilismo. Passamos da ansiedade do vazio para a deificação do vazio, uma deificação do vazio que pode levar ao desejo de destruir coisas, pessoas e, finalmente, a realidade. A ideologia do transgénero não é em si algo de grave no plano moral, mas é fundamental a um nível intelectual porque dizer que um homem pode tornar-se uma mulher ou uma mulher um homem revela um desejo de destruir a realidade. Era, em associação com a cancel culture [cultura da censura-e-anulação, n.d.t], e com a preferência pela guerra, um elemento de niilismo que predominou no governo Biden.

Trump rejeita tudo isso. Mas o que me impressiona actualmente é o surgimento de um niilismo que assume outras formas: um desejo de destruir a ciência e a universidade, as classes médias negras ou uma violência desordenada na aplicação da estratégia proteccionista americana. Quando Trump, sem reflectir, quer estabelecer taxas alfandegárias entre o Canadá e os Estados Unidos, quando se sabe que a região dos Grandes Lagos constitui um único sistema industrial, vejo nisso um impulso tanto para destruir quanto para proteger. Quando vejo Trump a introduzir subitamente tarifas proteccionistas contra a China, esquecendo-se de que a maioria dos telemóveis digitais multimédia são fabricados na China, digo a mim próprio que não podemos considerar isso simplesmente como estupidez. É estupidez, com certeza, mas talvez seja também niilismo.

Vamos passar para um nível moral mais elevado: a fantasia trumpiana de transformar Gaza, esvaziada de sua população, numa estância de turismo de luxo é tipicamente um projecto niilista de alta intensidade.

No entanto, eu procuraria a contradição fundamental da política americana no proteccionismo.

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As taxas aduaneiras sobre as importações de aço, fixadas em Março, vão aumentar de 25% para 50%, já a partir da “próxima semana”, anunciou Trump, em 31 de Maio 2025, num comício em Pittsburgh, na Pensilvânia, para assinalar um acordo de investimento entre a Nippon Steel, uma siderurgia japonesa, e a norte-americana U.S. Steel. «O aumento das tarifas dará ainda mais segurança à indústria no país», acrescentou. Foto: Leah Millis/ Reuters.
 

A teoria do proteccionismo diz-nos que a protecção só pode funcionar se um país tiver uma população qualificada que lhe permita tirar partido da protecção tarifária. Uma política proteccionista só será eficaz se o país tiver engenheiros, cientistas e técnicos qualificados. O que os americanos não têm em quantidade suficiente. Agora vejo os Estados Unidos a começar a perseguir os seus estudantes chineses, e tantos outros, exactamente aqueles que permitem compensar o seu défice de engenheiros e cientistas. Isso é absurdo. A teoria do proteccionismo também nos diz que a protecção só pode lançar ou revitalizar a indústria se o Estado intervier para participar na construção de novas indústrias. Mas vemos o governo Trump a atacar o Estado, o Estado que deveria nutrir a pesquisa científica e o progresso tecnológico. Pior, se procurarmos a motivação por trás da luta contra o governo federal chefiada por Elon Musk e outros, compreenderemos que ela nem é económica.

30 de Maio de 2025. Elon Musk despede-se da chefia do Departamento de Eficiência Governamental (DOGE no acrónimo inglês), cuja missão principal é cortar nos gastos do Estado Federal que Trump considera perdulários. «Elon trabalhou incansavelmente, ajudando a dirigir o programa de reforma governamental mais abrangente e consequente em gerações», disse Trump, em conferência de imprensa, durante a qual ofereceu ao multimilionário uma chave dourada, um presente que disse dar apenas a “pessoas muito especiais”. Foto: EPA/ Francis Chung/Pool.

 

Quem esteja familiarizado com a história americana conhece o papel fundamental do governo federal na emancipação dos Negros. O ódio ao Estado federal nos Estados Unidos geralmente advém do ressentimento contra os Negros. Quando se luta contra o Estado federal americano, luta-se contra as administrações centrais que emanciparam e protegeram os Negros. Uma alta proporção da classe média Negra encontrou empregos na administração federal. A luta contra o Estado federal, portanto, não se enquadra numa concepção geral de reconstrução económica e nacional.

Quando penso nas acções múltiplas e contraditórias do governo Trump, a palavra que me vem à mente é desintegração. Uma desintegração cujo caminho realmente não conhecemos.

Família nuclear absoluta + religião zero = atomização

Estou muito pessimista em relação aos Estados Unidos. Para concluir esta palestra exploratória, regressarei aos meus conceitos fundamentais como historiador e antropólogo.

Eu disse no início desta palestra que a razão fundamental pela qual acreditei, bem no início, em 2002, no regresso da Rússia à estabilidade, foi porque eu estava ciente da existência de uma comunidade de base antropológica na Rússia. Ao contrário de muitos, não preciso de suposições sobre o estado da religião na Rússia para entender o regresso do país à estabilidade. Vejo uma cultura familiar, comunitária, com os seus valores de autoridade e igualdade, o que também nos permite entender um pouco o que é a nação na mente dos russos. De facto, há uma relação entre a forma da família e a ideia que temos de nação. A família comunitária corresponde a uma ideia forte e compacta de nação ou de povo. Assim é a Rússia.

No caso dos Estados Unidos, assim como no da Inglaterra, estamos na situação oposta. O modelo de família inglês e americano é nuclear, individualista, sem sequer incluir uma regra precisa de herança. A liberdade de testamento reina. A família nuclear absoluta anglo-americana fornece muito pouca estrutura para a nação. A família nuclear absoluta tem certamente a vantagem da flexibilidade. As gerações sucedem-se e separam-se. A velocidade de adaptação dos Estados Unidos ou da Inglaterra, a plasticidade das suas estruturas sociais (que permitiram a revolução industrial inglesa e a descolagem americana) resultam, em grande parte, dessa estrutura familiar nuclear absoluta.

Mas, ao lado ou acima dessa estrutura familiar individualista, havia na Inglaterra, assim como nos Estados Unidos, a disciplina da religião protestante, com o seu potencial de coesão social. A religião, como factor estruturante, foi crucial para o mundo anglo-americano. Ela desapareceu. O estado zero de religião, combinado com valores familiares muito pouco estruturantes, não me parece ser uma combinação antropológica e histórica que possa levar à estabilidade. O mundo anglo-americano caminha para uma atomização cada vez maior. Essa atomização só pode levar a uma acentuação, sem limite visível, da decadência americana. Espero estar errado, espero ter perdido de vista algum factor positivo importante.

Infelizmente, agora encontro apenas mais um factor negativo, que me apareceu enquanto lia um livro de Amy Chua, uma universitária da Universidade de Yale que foi mentora de J.D. Vance. Intitula-se Political Tribes. Group instinct and the Fate of Nations (2018) [“Tribos políticas. Instinto de Grupo e o Destino das Nações”, n.d.t.] e salienta, depois de muitos outros textos, o carácter único da nação americana: uma nação cívica, fundada pela adesão de todos os imigrantes sucessivos a valores políticos que vão além da etnia. Com certeza. Essa foi a teoria oficial desde muito cedo. Mas também havia nos Estados Unidos um grupo protestante branco dominante, que tinha uma história bastante longa e era fundamentalmente étnico.



Esta nação americana tornou-se, desde a pulverização do grupo protestante, verdadeiramente pós-étnica, uma nação puramente “cívica”, em teoria unida pelo apego à sua Constituição, aos seus valores. O medo de Amy Chua é que os Estados Unidos estejam a voltar ao que ela apelida de tribalismo. Uma pulverização regressiva.

Cada uma das nações europeias é, no fundo, qualquer que seja sua estrutura familiar, a sua tradição religiosa, a sua visão de si própria, uma nação étnica, no sentido de um povo ligado a uma terra, com a sua língua, a sua cultura, um povo ancorado na história. Cada um tem um fundo estável. Os russos têm isso, os alemães têm isso, os franceses têm isso, mesmo que eles estejam um pouco baralhados neste momento sobre esses conceitos. A América já não tem isso. Uma nação cívica? Além da ideia, a realidade de uma nação cívica americana privada de moral pelo estado zero de religião deixa-nos meditabundos. Até causa arrepios na espinha.

O meu temor pessoal é que não estejamos no fim, mas apenas no início de uma queda dos Estados Unidos que nos revelará coisas que nem podemos imaginar. A ameaça está lá (ainda mais do que num império americano, esteja ele triunfante, enfraquecido ou destruído): caminhar em direcção a coisas que não podemos imaginar.

Estou hoje em Moscovo, portanto concluirei a minha palestra com a situação futura na Rússia. Vou dizer duas coisas, uma agradável e outra preocupante para ela. A Rússia vai, sem dúvida, vencer esta guerra. Mas, no contexto da desagregação americana, ela terá responsabilidades muito pesadas num mundo que vai ter de encontrar um equilíbrio.

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As fotos e legendas que ilustram o texto são da responsabilidade do tradutor, salvo a primeira foto.

O texto original em francês desta palestra pode ser lido aqui

https://substack.com/home/post/p-164264733

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Nota do tradutor

Marquei com um asterisco [*] todas as ocorrências (8) da palavra “comunismo” que Emmanuel Todd emprega neste seu artigo-palestra, porque são, em meu entender, todas elas (salvo a terceira), muitíssimo problemáticas — para não empregar uma palavra mais forte, como, por exemplo, “estapafúrdias”.

Para fundamentar esta advertência aos leitores sem, contudo, apoucar o artigo-palestra de Todd (que reputo ser muito interessante e esclarecedor [se não tivesse essa opinião, não me teria dado ao trabalho de o traduzir e divulgar]), nem achincalhar as grandes qualidades intelectuais e a argúcia científica do seu autor (pessoa que tenho em alta estima intelectual) acabei por me sentir na obrigação de escrever um ensaio que pode ser lido neste blogue aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/06/uma-breve-panoramica-sobre-obra-de.html


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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana