As
eleições federais na Alemanha (2025), o “plano de rearmamento da Europa”
e o Quarto Reich alemão
José Catarino Soares
Com o turbilhão e o rebuliço político, comercial e mediático
causados pelas intervenções de Donald Trump e do seu governo no aparelho de
Estado dos EUA, na Ucrânia, na UE, na OTAN (/NATO) e em Israel, corre-se o
risco de deixar passar em claro outros acontecimentos importantes, mas não tão
mediatizados.
As eleições federais na Alemanha são um deles. A Alemanha
é o país economicamente mais industrializado e mais poderoso da Europa
(exceptuando a Rússia). Politicamente é
um “estratovulcão” com um futuro cheio de ameaças
com origem nele próprio. É impossível ser indiferente ao que lá se passa, porque
afecta toda a Europa.
1.
Resultados eleitorais de 23 de Fevereiro de 2025
A participação nas eleições federais na Alemanha subiu
para 82,5%, a taxa mais alta desde a reunificação do país, em 1990. Os
resultados foram os seguintes:
― CDU+CSU (União Democrata-Cristã
+ União Social-Cristã) [partido da direita globalista, católico-conservadora e ordoliberal]:
14 milhões e 158.482 votos, 28,52%, 208 deputados (+11 deputados relativamente
a 2021)
― AfD (Alternativa para a Alemanha) [partido da direita chauvinista,
social-conservadora e “mercado-libertarista” [1]]:
10 milhões e 327.148 votos, 20,8%, 152 deputados (+ 69)
― SPD (Partido Social-Democrata) [partido social-democrata
6.0]: 8 milhões e 148.284 votos, 16,41%, 120 deputados (-89)
― Die Grüne (Os Verdes) [partido ambientalista e belicista]:
5 milhões e 761.476 votos, 11,61%, 85 deputados (-33)
― Die Linke (A Esquerda) [partido neosocial-democrata 1.0]:
4 milhões e 355.382 votos, 8,8%, 64 deputados (+25)
Não elegeram deputados:
― BSW (Aliança Sahra Wagenknetch) [partido neosocial-democrata
2.0]: 2 milhões e 468.670 votos, 4,97%
― FDP (Partido dos Democratas Livres) [partido liberal]: 2
milhões e 148.878 votos, 4,3%
― Outros: 2 milhões e 197.691 votos, 4,4%.
N.B. O SPD foi
fundado em 1869 como Partido Social-Democrata dos Trabalhadores
da Alemanha (SDAP na sigla alemã). Em 1875, ao fundir-se com a Associação
Geral dos Trabalhadores Alemães (ADAV no
acrónimo alemão), mudou o nome para Partido Socialista
dos Trabalhadores da Alemanha, mantendo, porém, a sigla SDAP. Em 1890, tornou
a mudar de nome para Partido Social-Democrata da
Alemanha (SPD), nome que conservou até aos dias de hoje.
Passou, entretanto, por várias fases que o transformaram
profundamente. Uma maneira expedita de assinalar essas transformações é dar-lhes
uma forma semelhante à das novas versões ou gerações de uma aplicação informática
ou de uma rede informática. SPD 1.ª fase: 1890-1914 (SPD 1.0); SPD 2.ª fase: 1914-1933
(SPD 2.0); SPD 3.ª fase: 1933-1945 (SPD 3.0); SPD 4.ª fase: 1945-1959 (SPD 4.0);
SPD 5.ª fase: 1959-2022 (SPD 5.0); 6.ª fase: 2022-20?? (SPD 6.0).
1889. Deputados social-democratas no Reichstag (parlamento do Império alemão). O terceiro homem em pé, a partir da esquerda, e o terceiro homem sentado, a partir da esquerda -- Wilhelm Liebeknetch e August Bebel, respectivamente -- foram os fundadores do SDAP, a primeira versão do SPD. Foto: Julius Braatz. |
2. A derrocada dos partidos da
coligação governamental
O SPD (partido principal da coligação governamental
derrotada) teve a pior votação de sempre desde 1887 (!). Os Verdes (o segundo maior
partido da coligação governamental derrotada) perdem 1 milhão e 52.925 votos. O
FDP (o terceiro partido da coligação governamental derrotada) não consegue
eleger deputados.
Não há qualquer mistério na derrocada destes partidos
governamentais. O governo de coligação SPD-Verdes-FDP foi, com razão, o governo
mais execrado da história da Alemanha do pós-2.ª Guerra Mundial. Oitenta anos
após a guerra de extermínio lançada pelo regime nazi contra a União Soviética (na
qual a Rússia era o núcleo), esse governo voltou a enviar tanques alemães
contra a Rússia, apoiou métodos de genocídio do nazismo em Gaza, expandiu o
Estado policial na Alemanha [2], provocou neste país a recessão económica em 2023,
2024 e muito possivelmente 2025, fez recuar o PIB real, reduziu o investimento produtivo,
manteve os salários reais abaixo dos níveis pré-pandemia COVID-19, aumentou o
número de desempregados para quase 3 milhões (o que acontece pela primeira vez numa
década), aumentou o número de alemães que não ganha o suficiente para chegar ao
fim do mês para ¼ da população com a sua
política a favor dos ultra-ricos, do complexo militar-industrial euro-americano
e de apoio à guerra na Ucrânia. Chegou ao cúmulo de fazer vista grossa quando o
seu “tutor” (os EUA) destruiu com explosivos o
gasoduto Nord Stream-2 e danificou gravemente o gasoduto Nord
Stream-1.
Não foram só os custos do gás natural e da electricidade que dispararam
para as famílias e para as empresas civis alemãs, especialmente no sector da
indústria transformadora, em virtude do corte abrupto nas importações do gás natural
barato oriundo da Rússia. Foram também os investimentos e a capacidade de
inovação das empresas que foram profundamente afectadas.
«A Câmara Alemã de Indústria e
Comércio (DIHK) comentou: “Os elevados preços da energia também afetam as
atividades de investimento das empresas e, portanto, a sua capacidade de
inovação. Mais de um terço das empresas industriais afirmam que atualmente
conseguem investir menos em processos operacionais essenciais devido aos elevados
preços da energia”» [3].
3.
A vitória pífia da CDU
O partido mais votado nas eleições legislativas federais da
Alemanha para o Bundestag (parlamento alemão) foi a CDU (+ CSU), mas teve a
segunda pior votação de sempre. (A sua pior votação de sempre foi nas eleições
anteriores, em 2021). Isto tem também uma
explicação simples, como veremos seguidamente (secções 4, 5, 6, 7).
4.
As falsas alternativas
Todos estes partidos (SPD, Verdes, FDP, CDU) são pró-OTAN (/NATO), pró-apoio militar, económico e financeiro ao esforço da Ucrânia na sua guerra de procuração contra a República Popular de Donetsk, a República Popular de Lugansk e a Rússia; pró-continuação dessa guerra até ao último soldado ucraniano; pró-sanções à Rússia (incluindo o confisco dos activos da Rússia depositados em bancos ocidentais); pró-Israel e a favor da sua política sionista de genocídio, purga étnica, ocupação e colonização da Palestina.
Os eleitores alemães que quiseram opor-se a esta política
através do seu voto não tiveram qualquer possibilidade de o fazer através dos chamados
partidos de oposição, ainda que muitos tenham tido, porventura, essa ilusão.
O Die Linke apoiou abertamente, em várias ocasiões, incluindo
em moções aprovadas na sua conferência federal em 11 de Outubro de 2024 e no
Bundestag em 17 de Outubro de 2024, o governo SPD-Verdes-FDP no que concerne ao
seu indefectível apoio a Israel (incluindo o genocida Netanyahu) e à Ucrânia de
Zelensky.
Bodo Ramelow, do partido Die Linke, primeiro-ministro do Estado federado da Turíngia, hasteia a bandeira de Israel em 7 de Outubro de 2024, no primeiro aniversário da surtida do Hamas em Israel. |
A AfD critica a guerra na Ucrânia, o apoio militar a
Zelensky e as sanções económicas contra a Rússia, mas apoia Israel e Netanyahu
contra os Palestinianos.
Tino Chrupalla e Alice Weidel, co-dirigentes da AfD. Foto: Sebastian Kahnert, dpa/ picture alliance |
Em 7 de Novembro de 2024, no mesmo dia em que a coligação
governamental se desmoronava, os partidos que dela faziam parte (SPD, Verdes,
FDP) propuseram no Bundestag uma denominada “resolução
sobre o anti-semitismo” que foi votada favoravelmente e com muito júbilo
pela direita chauvinista, social-conservadora e “mercado-libertarista” (AfD) e pela direita globalista, católica-conservadora e
ordoliberal (CDU/CSU).
O Die Linke absteve-se nesta resolução, mas o seu
porta-voz, Grgor Gysi, fez questão em demonstrar que o seu partido aprovava a
orientação básica da resolução, ao afirmar: «A
existência e segurança do Estado de Israel fazem parte da razão de Estado [entender:
da razão de ser como Estado, n.e.] da Alemanha»
[n.e. = nota editorial]
Jan van Aken e Heidi Reichinnek, os principais candidatos do Die Linke nas eleições federais de 2025. Foto: Die Linke |
Essa resolução qualifica todos os críticos do terrível
genocídio em Gaza de anti-semitas, amalgamando anti-sionismo e anti-semitismo,
e apoia o morticínio dos palestinianos, que glorifica como “autodefesa” de Israel. Por exemplo, qualquer pessoa que ponha em causa o direito
de existir do Estado de Israel e que defenda uma República una, laica e
democrática da Palestina — isto é, abrangendo todo o território do rio Jordão
até ao mar Mediterrâneo, e com direitos e deveres de cidadania iguais e
representação política igual para palestinianos (muçulmanos, cristãos, não-crentes),
sabras [judeus nascidos na Palestina], beduínos, drusos e circassianos é
apelidada de “anti-semita”.
Os deputados do que é hoje a BSW foram os únicos a votar
contra essa resolução e a BSW é o único partido que critica a guerra por
procuração na Ucrânia e apela ao fim do genocídio em Gaza. No entanto, isso não
a impede de assumir por inteiro «a responsabilidade de
defender sem qualquer reserva o direito de Israel a existir», como diz Sahra
Wagenknecht (a dirigente máxima do BSW).
Mais, a BSW, tal como a AfD, criticou a política governamental,
mas de um ponto de vista geopolítico. Por exemplo, a BSW apoia o rearmamento e
o militarismo da Alemanha e dos países da UE; pretende apenas desenvolvê-los de
forma mais independente dos EUA. «A Europa tem de
decidir se quer ocupar o seu próprio lugar neste novo mundo multipolar ou se
quer morrer como vassalo dos Estados Unidos», disse Sahra Wagenknecht no
Bundestag (parlamento federal alemão), no dia 6 de Novembro de 2024.
Dirigentes da BSW no congresso de fundação do partido, em 27 de Janeiro de 2024. Sahra Wagenknecht é a senhora de vermelho. |
Mesmo assim, graças, em particular, às suas flores de
retórica a favor de uma “paz justa” na Ucrânia
e de uma “solução justa” na Palestina, e,
sobretudo, graças ao carácter odioso das políticas públicas do governo no plano
externo e interno, a AfD, o Die Linke e a BSW tiveram bons resultados eleitorais.
A AfD passou a ser o segundo maior partido do
país. O Die Linke quase duplicou de votação relativamente a 2021. A BSW ⎼ uma cisão do Die Linke que se constitui legalmente como
partido apenas em 2024 e que disputava eleições federais pela primeira vez ⎼ esteve a beira de atingir os 5% exigidos por lei (faltando-lhe
apenas 0,03% ou 13.400 votos) para entrar no Bundestag e eleger 30 deputados.
5.
Origem e função da CDU
Convém saber qual foi a origem e a função inicial da CDU+CSU
(doravante CDU, para abreviar), o partido vencedor das eleições federais de
2025.
A CDU nasceu em 1949, no rescaldo da derrota da Alemanha
nazi, e foi desde o seu início o interlocutor privilegiado das forças ocidentais
de ocupação da Alemanha (EUA, Reino Unido, França) e, em seguida, dos sucessivos
governos americanos, a mais poderosa componente dessas forças. Foi formada a
partir de antigas figuras da direita católica-conservadora da República de
Weimar (o Partido do Centro e o Partido do Povo da Baviera), mas também de
personalidades do Partido Nazi. Vale a pena lembrar, a este propósito, o
percurso de Konrad Adenauer, presidente da CDU e chanceler da Alemanha durante
14 anos (1949-1963):
«Konrad Adenauer, defensor
apaixonado da divisão da Alemanha no imediato pós-Primeira Guerra, advogara a
criação de uma Renânia independente, projecto considerado como traição ao povo
alemão. Por alturas da ascensão dos nazis ao poder, muito embora fosse demitido
das suas funções e alvo de alguma perseguição política, Adenauer defendeu, até
1933, a convergência entre o Partido do Centro e o partido de Hitler. Durante a
vigência do regime hitleriano, só foi incomodado quando, após a tentativa de
golpe de Estado contra Hitler, em 1944, foi detido durante algumas semanas, e
logo libertado.
«No pós-guerra, coube a Adenauer
recusar a proposta de Estaline para a criação de um único Estado alemão,
conquanto este fosse neutral, tal como aconteceria com a Áustria. A CDU, que
tanto blasona por ter sido a artífice da reunificação alemã, opôs-se a um
Estado unificado em 1950. A função de tal partido era, pois, o de estabilizar o
Centro e Norte da Europa no quadro da dominância dos EUA. /…/ A questão que se coloca é, pois, a de saber para que serve
actualmente a CDU, pois que o corte das relações transatlânticas está-se a
desenvolver celeremente» [4].
A pergunta é muito pertinente. Os EUA de Trump querem ter
relações normais com a Rússia; cortar nas despesas que fazem com a OTAN (/NATO),
reduzindo-as à porção côngrua na Europa; diminuir muito a sua esfera de acção
militar; impor tarifas às importações oriundas dos países-membros da UE e do
Reino Unido (RU) e, se possível, desmantelar a UE.
A Rússia quer (i) uma Ucrânia militarmente neutra,
sem armas nucleares e desmilitarizada; (ii) afastar a OTAN (/NATO) das
suas fronteiras, fazendo recuar o seu potencial militar ‒ incluindo, em
primeiro lugar, o seu arsenal nuclear, e, por conseguinte, a ameaça permanente que representa à
existência da Rússia ‒ se possível, para um nível equivalente ao das forças da OTAN (/NATO) estacionadas na Europa em 27 de Maio de 1997; (iii) reatar as
suas exportações normais (sobretudo de gás natural e petróleo) para a UE; (iv)
estabelecer um quadro global de segurança mútua com os EUA, o Reino Unido (RU) e os
países da UE.
Tendo em conta a nova correlação de forças entre os EUA, a
Rússia, a UE e o RU e os novos papéis que os EUA e a Rússia passarão a desempenhar
no continente europeu com o fim da guerra na Ucrânia, não parece plausível a
reedição nem do regime “ordoliberal sob tutela dos EUA” de Adenauer, nem do regime “ordoliberal com acordos comerciais com a Rússia” de
Merkel. Assim sendo, como salienta o autor supracitado, «o futuro e a utilidade [da CDU alemã] estão envoltos em incerteza e mistério» [5].
Mas talvez a incerteza e o mistério não sejam tão grandes quanto aparentam. O próximo chanceler da Alemanha, Franz Merz, é o actual presidente da CDU. E sabemos quem é Merz e ele não esconde ao que vem.
6.
Quem é Friedrich Merz
A Alemanha tornar-se-á o primeiro país a ser governado
por um ex-gestor de topo da BlackRock, o maior fundo de investimentos do
planeta, uma firma financeira multinacional (16.000 empregados em 30 países), com
sede nos EUA, que gere uma carteira de activos (em 18.000 empresas) estimada em
11,6 biliões (1 bilião = 1 milhão de milhões) de dólares americanos [6] —
quase três vezes mais do que o PIB da Alemanha. Entre 2016 e 2020, Franz Merz foi o homem-chave
da BlackRock na Alemanha, na sua qualidade de presidente do Conselho de Supervisão
desta firma.
As suas ligações às instituições da oligarquia financeira
são, porém, muito mais antigas. Durante mais de duas décadas, bem antes de
entrar para a BlackRock, Merz encarnou da maneira mais óbvia a porta
giratória entre política, grandes negócios e alta finança.
O artigo de Thomas Fazi (ver nota 7) é muito esclarecedor a este respeito. Por exemplo, Merz, hoje com 69 anos, aderiu à CDU durante a sua juventude,
quando ainda era estudante. Foi subindo na hierarquia do partido até chegar, em
2002, a adjunto de Angela Merkel, na altura presidente do grupo parlamentar da
CDU no Bundestag. No entanto, a relação entre os dois foi conflituosa e Merz
demitiu-se dois anos depois, retirando-se gradualmente da cena política até
deixar o parlamento em 2009.
No entanto, já antes da sua saída do Parlamento, Merz tinha encontrado a trilha para o Eldorado. Em 2004, foi contratado como advogado sénior pela firma internacional de advocacia, consultoria e pressão-e-barganha (Ingl. lobbying) Mayer Brown, um peso-pesado do sector, com um volume de negócios anual de milhares de milhões de euros.
Friedrich Merz, o novo chanceler da Alemanha. Foto: Liesa Johannssen/Getty. |
Aí, Merz descobriu uma relação muito mais rendosa. Como
explica Werner Rügemer, autor do livro BlackRock Germany (2025), quando esteve na
Mayer Brown, Merz ajudou a facilitar negócios que promoviam os interesses do grande
capital americano na Alemanha, encorajando os investidores americanos a comprar
empresas na República Federal.
O resultado foi a venda e reestruturação de milhares de
empresas alemãs, o que implicou a redução de postos de trabalho e o
congelamento de salários — uma abordagem abertamente elogiada por Merz no seu
livro Mehr
Kapitalismus wagen [“Atrever-se a mais capitalismo”]
(2008). Para dar corpo à tese do seu livro, Merz também fez parte, durante este
período, dos conselhos de administração e de supervisão de várias grandes
empresas, incluindo o Commerzbank, o HSBC, a companhia de seguros AXA e o
promotor imobiliário alemão IVG. Isso fez dele, também, um ultra-rico, um dos
convidados de luxo do Fórum de Davos (Suíça) aonde se deslocou em 2024,
pilotando um dos seus dois jactos privados, para anunciar que a Volkswagen se
sentia parte integrante da economia dos EUA.
Acresce que Merz tem sido também, como dirigente da CDU, um
opositor acérrimo do salário mínimo e das leis contra o despedimento sem justa
causa, um defensor da redução das prestações sociais e da limitação do poder
dos sindicatos e um forte apoiante da privatização dos sistemas de segurança
social publico, em benefício de empresas como a BlackRock, ponta de lança
dos regimes de pensões privados.
Foi então que a BlackRock lhe bateu à porta. Estavam feitos para se encontrarem e entenderem. Banca, indústria farmacêutica, indústria de electrodomésticos, indústria automóvel, “indústrias” do entretenimento, indústria agroalimentar, meios de comunicação social e, claro, armamento e guerra — não há praticamente nenhum sector em que a BlackRock não tente lucrar.
«Sob a influência de Merz, por
exemplo, a BlackRock tornou-se um dos maiores acionistas não alemães em
muitas das empresas mais importantes do país — do Deutsche Bank à Volkswagen,
da BMW à Siemens. No entanto, o seu trabalho não se limitou a aumentar os
lucros dos acionistas; tratou-se também de moldar um ambiente político em que
os interesses das empresas estivessem alinhados com a política governamental.
Por uma feliz coincidência, também criou um clima em que alguém como Merz podia
facilmente mover-se entre as grandes empresas e o Bundestag» [7].
Por conseguinte, a tomada de posse como chanceler deste proeminentíssimo
homem de mão do capital financeiro dar-lhe-á um controlo sem precedentes da
maior economia da Europa ocidental, central e oriental.
7.
Ao que vem Friedrich Merz
Por duas razões principais. A primeira razão prende-se
com “lobistas” alemães e mundiais. É razoável presumir que terem Merz ⎼ um antigo colega de profissão ⎼ como chanceler é um sonho tornado realidade. Ou, como
diz Rügemer: «Isto é pôr a raposa a tomar conta do
galinheiro».
A segunda prende-se com o facto de que as ligações empresariais
de Merz também terão impacto na sua política externa. É público e notório que
Merz é um apoiante convicto da OTAN (/NATO) e que acredita firmemente no papel
dos EUA como garante da “ordem internacional baseada
em regras” (ditadas por Washington).
Esta posição ideológica levou Merz a alinhar com os EUA em questões como o gasoduto Nord Stream-2, apelando ao cancelamento do projecto da sua construção, muito antes da segunda guerra na Ucrânia e da destruição deste gasoduto pelo presidente Biden. Convém relembrar que uma das principais causas contribuintes da recessão da economia alemã em 2023 e 2024 e que é expectável que se prolongue em 2025 ⎼ «o mais longo período de estagnação económica desde a queda de Hitler em 1945» [8] ⎼ e da desindustrialização alemã em curso foi a decisão do governo SPD-Verdes-FDP (apoiado incondicionalmente pela CDU), tomada sob forte pressão dos EUA, de se desligar do gás russo, bem mais barato do que o gás natural liquefeito importado dos EUA e do Qatar e do gás natural importado da Noruega — uma decisão tomada à custa dos interesses fundamentais do seu próprio país.
Porém, é claro que Washington tem agora, com o governo
Trump, uma política muito diferente em relação à Ucrânia e à OTAN (/NATO). Significa
isto que Merz será forçado a abandonar as suas convicções OTANianas pré-Trump e
o seu vínculo de servidão voluntária ao seu tutor do outro do Atlântico?
Não necessariamente. Embora a sua forte russofobia e o seu declarado
vezo militarista e belicista contra a Rússia estejam em completo desacordo com
os esforços de Trump para pôr termo ao conflito armado na Ucrânia e desanuviar
as relações com Rússia, a realidade é que as visões destes dois homens são mais
convergentes, no médio prazo, do que se poderia julgar à primeira vista.
O que é que, afinal, Trump exige da Europa? Um aumento
das despesas militares com a OTAN (/NATO) para 5% do PIB dos seus
Estados-Membros ⎼ que serviriam em grande parte para comprar armamento e
munições ao complexo militar-industrial dos EUA ⎼ e um aumento
significativo na assunção das responsabilidades financeiras, económicas e
estratégicas na reconstrução e estabilização da Ucrânia, depois de celebrado um
acordo de paz entre os EUA e a Rússia — algo que poderia mesmo envolver, segundo
alguns governos europeus, o envio de uma força armada europeia de “manutenção da paz” (o que só seria possível se a
Rússia o consentisse, o que não se afigura de todo plausível).
7.1.
“Rearmar a Europa” contra uma fantasiosa “ameaça russa”
Pelo seu lado, a União Europeia aprovou recentemente (no
Conselho Europeu extraordinário de 6 Março de 2025 e no plenário do Parlamento
Europeu de 11 de Março de 2025) um “Plano para rearmar
a Europa” proposto pela Comissão Europeia em 4 de Março.
Trata-se de um plano destinado a fortalecer as
capacidades militares (em homens, armas e munições) da União Europeia e as suas
indústrias militares com investimentos da ordem dos 800 mil milhões de euros,
nos próximos 4 anos, contra uma fantasiosa “ameaça
russa”. Este objectivo pressupõe que grande parte desse montante total –
cerca de 650 mil milhões – resultaria de um aumento de 1,5% do PIB consagrado
às despesas militares por cada um dos 27 Estados-membros da UE. A outra parte
desse montante (150 mil milhões de euros), que servirá para aumentar a ajuda
militar à Ucrânia, seria obtida mediante empréstimos apadrinhados pela Comissão
Europeia
Para fazer tudo isso, a Comissão Europeia propôs o
recurso a uma eufemisticamente denominada “cláusula
nacional de escape” do chamado “Pacto de Estabilidade
e Crescimento” que permite aos Estados-membros infringir os sacrossantos
“critérios de Maastricht” para evitar o défice excessivo
e a dívida excessiva — ou seja, para poderem gastar em soldados, armamento e
munições à tripa-forra sem receio de sofrerem medidas punitivas por parte da
Comissão Europeia, autoproclamada guardiã daqueles critérios!
A cereja em cima deste bolo monetário envenenado com
doses maciças de militarismo, belicismo e russofobia é o facto de a Comissão Europeia
e os demais órgãos da União Europeia não hesitarem em espezinhar publicamente não
só os critérios de Maastrich que adoptaram (mas que só aplicam quando lhes convém),
mas também os próprios Tratados da União Europeia que estão na origem da sua própria
existência e que regem o seu funcionamento.
Isto, porque as questões de “defesa”,
nos Tratados em que se funda a União Europeia (Tratado da União Europeia e Tratado
sobre o funcionamento da União Europeia), não fazem parte dos domínios de competência
exclusiva da União Europeia (artigo 3.º do Tratado sobre o funcionamento da
União Europeia), nem dos domínios de competência partilhada da União com os
Estados-membros (artigo 4.º, ponto 2, do mesmo tratado), nem dos domínios
facultativos onde União dispõe de competência para desenvolver ações destinadas
a apoiar, coordenar ou completar a acção dos Estados-Membros (artigo 6.º do
mesmo tratado).
Daqui se segue que Comissão Europeia não tem competência para formular e propor planos
e objectivos de gastos militares para os 27 Estados que compõem a União
Europeia. As questões ditas de “defesa”
(incluindo os gastos militares) são da exclusiva competência de cada um dos
Estados-membros da UE e são-no à luz dos próprios Tratados que fundam a UE.
A directiva ilegal dos órgãos de cúpula da UE para o
aumento dos gastos militares dos Estados-membros desta organização baseia-se na
alegação de que a Rússia, “depois de ter invadido a
Ucrânia para a conquistar e subjugar”, se prepara para invadir e anexar os
países bálticos, e, em seguida a Polónia ou a Roménia e sabe-se lá mais o quê, e
que os Estados-membros da UE se encontram desarmados perante o poderio militar
ofensivo da Rússia.
Mas essas alegações são destituídas de fundamento factual.
E basta uma simples comparação numérica para as refutar.
«Actualmente, os gastos
militares dos 27 países da UE, somados aos do Reino Unido, são quatro vezes
maiores do que os da Rússia, cerca de 400 mil milhões de euros contra 100 mil
milhões de euros de uma Rússia em guerra. A estes gastos estratosféricos a
presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, pretende somar mais 800
mil milhões de euros» [9].
7.2.
Os reais objectivos do “plano de rearmamento da Europa”
Na verdade, o “plano de rearmamento da Europa”
visa atingir não um objectivo defensivo contra uma alegada ameaça externa (a
Rússia), mas um objectivo ofensivo contra duas ameaças internas:
― (i) a desvalorização e retração da OTAN (/NATO), como
instrumento da hegemonia internacional do seu criador, patrocinador, director, mentor
e (até à eleição de Donald Trump) principal financiador (os EUA), resultante do
seu declínio económico, financeiro, militar e político e da reorientação das suas
prioridades na cena doméstica e internacional;
― (ii) a perda de “competitividade”
(entender: de lucratividade) da indústria alemã, resultante do repúdio pelo
governo alemão do SPD-Verdes-FDP da importação do gás natural russo, muito mais
barato do que o gás natural liquefeito importado dos EUA e do Qatar e do gás
natural importado da Noruega [10].
O “plano de rearmamento da Europa”
(leia-se: dos Estados-membros da UE), ilegalmente proposto pela Comissão Europeia
e ilegalmente aprovado pelo Conselho Europeu e pelo Parlamento Europeu, é o de contrariar
⎼ e, se possível, extinguir ⎼ esses dois
processos, (i) e (ii).
«A Rheinmetall está de olho no espaço vago deixado pela Volkswagen, numa tentativa de expandir as capacidades de armamento da Europa» (Forbes, March 13, 2025). Foto: Fabiano Simmer ⎼ pool Getty Images. |
Estes objectivos militaristas ⎼ tanto o objectivo militarista de Trump de aumento das despesas militares com a OTAN (/NATO) para 5% do PIB dos seus Estados-membros europeus, como o objectivo militarista da Comissão Europeia de rearmamento dos Estados-membros da UE ⎼ que são, afinal, muito semelhantes, desposam completamente a visão do próprio Merz. Desde há muito que ele defende o aumento substancial do orçamento militar da Alemanha, uma posição bem acolhida pelos seus aliados empresariais do complexo militar-industrial alemão e euro-americano — Rheinmetall AG, Diehl Stiftung & Co. KG, Krauss-Maffei Wegmann, Airbus SE, Lockheed Martin Corporation, RTX Corporation, Leonardo S.p.A, etc.
Agora, bastou-lhe juntar-se ao coro daqueles que apelam à
“Europa” para «tomar a
sua segurança nas suas próprias mãos» e «contruir
um exército europeu». Friedrich Merz instou a União Europeia a demonstrar unidade no que
diz respeito ao futuro papel da OTAN (/NATO) e avisou que seria inaceitável «se os americanos fizessem um acordo com a Rússia à revelia
dos europeus, à revelia da Ucrânia» em quaisquer futuras conversações de
paz.
«A minha prioridade absoluta
será fortalecer a Europa o mais rapidamente possível para que, passo a passo,
possamos realmente alcançar a independência em relação aos EUA» [11]
(declaração de Merz, logo após a vitória da sua coligação, dia 23 de Fevereiro
de 2025).
Todavia, enquanto Merz prometia unir a Europa perante a
mudança de posição dos EUA sobre a Ucrânia e sobre da Rússia, também prometeu
fazer tudo o que estiver ao seu alcance para manter uma boa relação com os EUA,
que afirmou ser vital para ambas as partes (ibidem).
Trump não podia desejar mais. As convicções “mercado-libertaristas” de Merz, semelhantes às de
Trump, os laços fortes de Merz com os sectores da alta finança e do mega-empresariado
internacional e a sua enraizada subserviência em relação ao “Big Brother” americano, fazem com que esteja bem
posicionado para se tornar o “sátrapa” europeu
dos EUA, agora que este reconheceu, finalmente, já não ser, e já não ser capaz
de continuar a ser, a potência hegemónica mundial que foi outrora — em especial durante
o período que vai de 1991 (data da dissolução da União Soviética) até 2017 (data
em que o PIB da China medido em paridade de poder de compra ultrapassou o PIB dos EUA).
Isso colocaria a Alemanha de novo ao leme da União
Europeia — mas de uma União Europeia economicamente mais fraca, politicamente mais
dividida, militarmente mais arrogante e volúvel (uma combinação explosiva) e,
como quase sempre desde o fim da 2.ª Guerra Mundial, estrategicamente subordinada
aos EUA. Naturalmente, este acordo tácito Merz-Trump
«será acompanhado de muita
retórica sobre a “autonomia” alemã e europeia — e possivelmente até de
desacordos públicos acesos entre Berlim e Washington. Na realidade, porém,
seria em grande parte uma fachada, pois a nova dinâmica serviria apenas as
elites europeias e americanas. As primeiras continuariam a alimentar o medo da
Rússia como forma de justificar mais despesas com a defesa, desviando fundos
dos programas sociais e legitimando a sua contínua repressão da democracia [entenda-se,
dos direitos e das liberdades civis, n.e.].
Quanto às segundas, continuariam a beneficiar
da dependência económica da Europa em relação aos EUA. Ao mesmo tempo, pessoas
como Merz estariam bem posicionadas para ajudar a canibalizar ainda mais a
Europa às mãos do capital americano» [12] [n.e.= nota editorial]
7.3.
O Quarto Reich alemão
Tudo indica que Merz e a CDU tentarão formar governo com o
SPD 6.0 ou com o SPD 6.0 e os Verdes, ou, se não for possível, com a AfD (embora tenham prometido, na campanha eleitoral não o fazer). Seja qual for a solução
governamental e parlamentar encontrada, será, do ponto de vista da população
trabalhadora, uma solução ainda pior do que a anterior.
Como vimos, Merz tem como palavra de ordem imediata a
necessidade imperiosa de “rearmamento” da
Alemanha e dos Estados-membros da OTAN (/NATO).
Este imperativo, foi, entretanto,
confortado com o plano ilegal da União Europeia de proceder a um enorme aumento
dos gastos militares dos Estados-membros da UE, os quais pertencem quase todos à OTAN (/NATO).
Este alinhamento de posições não é acidental. Na verdade,
o “Plano de rearmamento da Europa” já tinha
sido enunciado, com outras palavras, por Mark Rutte, secretário-geral da OTAN (/NATO),
durante a 61.ª Conferência de Segurança de Munique, que decorreu de 14 a 16 de
Fevereiro de 2025:
«Os membros da OTAN (/NATO)
terão de aumentar as suas despesas com a defesa em “consideravelmente mais de
3%” do PIB, disse o Secretário-Geral da NATO, Mark Rutte» [13].
Naturalmente, Rutte sabia do que estava a falar. Num
estudo muito recente, publicado apenas 5 dias depois (2 dias antes das eleições
federais alemãs) das suas declarações, dois especialistas do Bruegel e do
Instituto Kiel para a Economia Mundial [14] publicaram
um estudo onde afirmam o seguinte:
«A despesa europeia com a defesa terá de aumentar
substancialmente em relação ao do actual nível de cerca de 2% do PIB. Uma
avaliação inicial sugere que se justifica, no curto prazo, um aumento de cerca
de 250 mil milhões de euros por ano (para cerca de 3,5% do PIB)» [15].
O Financial Times disse, sem floreados, o que implica esse montante de despesas militares para o (impropriamente) chamado “Estado Social” (Escola Pública, Serviço Nacional de Saúde, Segurança Social pública, Protecção Civil, Desporto Escolar):
«A Europa deve cortar o seu Estado social para construir um Estado de guerra. Não há forma de defender o continente sem cortes nas despesas sociais» — pode ler-se em manchete do Financial Times de 5 de Março de 2025. |
E é bem verdade. Por exemplo,
«Portugal [que] gasta 1,55% do seu PIB em gastos de
defesa, assumiu que até 2029 iria atingir os 2%, o que significa despender
cerca de 6 mil milhões de euros. Com a proposta da União Europeia passaria a
gastar, pelo menos, mais 4,5 mil milhões de euros, uma soma superior a 10 mil
milhões de euros e 3,5% do PIB.
Se formos obrigados a cumprir a «meta»
agora exigida por Donald Trump, temos de gastar 5% do PIB, perto de 15 mil
milhões de euros, uma verba equivalente aos gastos orçamentados para o Serviço
Nacional de Saúde. O que significa que esta corrida aos armamentos iria, pura e
simplesmente, acabar com o Estado Social» [16].
Os especialistas do Bruegel e do Instituto Kiel
para a Economia Mundial estão cientes de que este tratamento de
choque pode produzir maus resultados em termos de agitação e conflitualidade
social. Por isso, propõem um aumento gradual das despesas militares a
partir de um nível inicial de 150 mil milhões de euros anuais ⎼ inferior, portanto, aos 250 mil milhões anuais (que,
como vimos, seria para eles o ideal), e inferior também aos 200 mil milhões
anuais propostos pela Comissão Europeia ⎼ financiado pela
dívida pública e com o compromisso dos Estados-membros da UE irem aumentando
gradualmente nos seus orçamentos a parte dessa verba não financiada pela
dívida.
«A chefia e o empenhamento da
Alemanha serão fundamentais [para o êxito do plano de rearmamento acelerado
dos Estados-membros da UE, n.e.]. A Alemanha teria de angariar, sozinha, pelo menos metade
dos 125 mil milhões de euros para aumentar a despesa anual com a defesa
nacional alemã de 80 mil milhões de euros para 140 mil milhões de euros, ou
seja, cerca de 3,5% do PIB, a ser complementada com financiamento conjunto da
UE» [17].
Friedrich Merz não poderia desejar mais e melhor. Este
será, sem dúvida, um dos seus objectivos centrais como novo chanceler da
Alemanha. Em suma, o seu plano é o de fazer da Alemanha o 4.º Reich alemão, a
potência hegemónica da Europa aquém da Rússia que ocupará o lugar que os EUA deixaram vago.
Não é uma tarefa fácil, porque tem de superar dois
obstáculos. O primeiro é o do “travão da dívida”
da Alemanha, que foi inscrito na Constituição alemã em 2009, no auge da crise
financeira mundial. Este travão restringe fortemente a capacidade do governo para
pedir dinheiro emprestado. Ora, sem pedir dinheiro emprestado e, por
conseguinte, endividar-se, a Alemanha não poderá rearmar-se na dimensão desejada
pelo novo chanceler alemão.
Mas Merz e a CDU, juntamente com o SPD 6.0 ⎼ que será, como tudo indica, o seu parceiro principal ou único
de coligação ⎼ anunciaram, na segunda semana de Março de 2025, que têm
planos para revogar o “travão constitucional da
dívida” da Alemanha no Bundestag. Para isso, precisam, no entanto, de
2/3 dos votos do Bundestag. Mas mesmo que consigam obter os votos dos Verdes (o
que não será difícil depois de alguma barganha), isso não chega. Por isso, a
menos que o Die Linke ou a AfD efectuem uma rondada com flic flac, mortal empranchado à retaguarda, não
se vê como será possível obter os dois 2/3 necessários para eliminar o travão
constitucional à dívida.
O segundo obstáculo é de muito maior monta. Para
construir o 4.º Reich alemão, a Alemanha precisa de ter um grande arsenal
nuclear. Ora, ao contrário da França ⎼ e mesmo do Reino
Unido (cujo armamento nuclear, porém, é fornecido pelos EUA e está
profundamente dependente, em termos de comando e controlo, do dispositivo
nuclear que os EUA instalaram na Europa no âmbito da OTAN/NATO) ⎼ a Alemanha não possui armas nucleares próprias, que Merz
declarou que ela deveria possuir.
Por isso, mesmo se pusermos de parte as tremendas
dificuldades que os EUA (dentro da OTAN) e a Rússia (fora da OTAN) criarão à
concretização de um tal projecto, teremos de levar em linha de conta outro óbice.
Para conseguir levar a sua avante, a Alemanha terá de regatear e medir forças
com a França, antes de conseguir impor-lhe a sua vontade neste particular.
«Precisamos de discutir com os
britânicos e com os franceses ⎼ as duas potências nucleares europeias ⎼ se a partilha nuclear, ou pelo menos a segurança nuclear do Reino Unido e
da França, também se pode aplicar a nós» (disse
Merz [18]).
A França e o Reino Unido
já se mostraram disponíveis para discutir essa questão. Seja como for, uma
coisa é certa: um “guarda-chuva
nuclear” abrangendo simultaneamente
o território de vários Estados, mas cujas armas nucleares estão posicionadas apenas
no território de um deles é uma impossibilidade teórica e prática. Por seu
lado, um “guarda-chuva
nuclear” cujas armas nucleares estejam
posicionadas no território de vários Estados, mas sob o controlo e comando
apenas de um deles (que é a situação actual da grande maioria [21] dos Estados-membros
da OTAN/NATO) é uma persistente ilusão de Maya [19].
Assim sendo, resta saber
qual dos três galos de briga (Alemanha, França e Reino Unido) acabará por prevalecer
na nova capoeira europeia da OTAN (/NATO), agora que os EUA já não lhe atribuem
a importância que lhe atribuíram durante quase 80 anos, até ao governo de
Biden. Uma coisa é certa: a Alemanha de Merz tudo fará para ter a supremacia europeia
em tudo.
«O objetivo permanente da Alemanha é tornar-se
o centro da Europa, o que quer dizer, dominar a Europa das penínsulas —
Escandinávia, Ibérica e Itálica — a Europa central — França, Países Baixos — a
Europa de Leste, até Moscovo» [20].
8.
Conclusão
Tendo em conta tudo o que ficou dito nas secções
anteriores deste artigo, parece-me adequado concluir esta análise das eleições
federais alemãs e das suas consequências na conjuntura actual com uma previsão de
outro analista, cujas palavras faço minhas:
«Os sacrifícios dos povos
europeus ainda estão no seu início. A recessão alemã, em aprofundamento,
chegará também a Portugal, Espanha e outros campeões do belicismo. O fanatismo
de Mark Rutte [e, sobretudo, de Friedrich Merz, Emmanuel Macron, Ursula
von der Leyen, Kaja Kallas, António Costa, Keir Starmer e de outros próceres da
UE e do Reino Unido, acrescento eu, J.C.S.], em
defesa da transformação da economia europeia numa economia de guerra, será
derrotado nas ruas das cidades europeias» [21].
Um dos
instrumentos óbvios dessa luta para derrotar os belicistas e os vendedores de
guerras é a realização de referendos pró-paz e as campanhas de mobilização
para a realização de referendos pró-paz por iniciativa de grupos de cidadãos [22].
Por exemplo, uma cidadã portuguesa sugeriu um “Referendo Europeu” [23] com
três questões:
« 1) Apoia a política de rearmamento
europeu?
2) Apoia o recrutamento dos seus filhos e netos para irem lutar na guerra ucraniana?
3) Apoia a emergência da economia de guerra
que todos os contribuintes pagarão no custo de vida, no aumento da inflação e
dos impostos?» [24]
Fonte: António Couvinhas, Facebook [25]
……………………………………………………………………………….
Notas
e Referências
[1]
A co-presidente da AfD, Alice Weidel, define o seu
partido como “libertário” — um termo surripiado
por Murray Rothbard (1926-1995) ao léxico do anarquismo/socialismo, aqui descartado
e substituído por um neologismo, “mercado-libertarista”,
para não se confundir com o original e o poluir. Há uma diferença importante
entre a direita neoliberal e ordoliberal, por um lado, e a direita “mercado-libertarista”, por outro. A direita neoliberal
e a direita ordoliberal utilizam o “Estado de direito”
para reforçar o sistema capitalista e o mercado, ao passo que a direita “mercado-libertarista” considera o próprio “Estado de direito”, incluindo as autoridades reguladoras
e os seus regulamentos, como empecilhos, instrumentos invasivos e prejudiciais ao
bom funcionamento do sistema capitalista e do mercado, os quais, segundo os
seus ideólogos, deveriam reinar livremente (é esse o significado do
termo “mercado-libertarista”), sem restrições legais
e morais de espécie alguma, salvo as decorrentes de contratos voluntários e privados
entre duas pessoas ou entre grupos de pessoas representados por agentes. Actualmente,
o expoente máximo da direita mercado-libertarista é o presidente da Argentina,
Javier Milei.
[2] Ver Ernesto Oliveira, “Solidariedade
com a Palestina erepressão: activistas enfrentam obstáculos na Alemanha.” Público,
16 de Abril de 2024; Alexandra Lucas Coelho, “O Grande Irmão já está aqui, da
polícia alemã aos EUA. A usar os judeus como arma.” Público, 15 de Março
de 2025.
[3] Michael Roberts, “A Alemanha: um país exangue, esvaziado
de energia.” In A Viagem dos Argonautas, 22 de Fevereiro de 2025.
[4] Miguel Castelo Branco, “Para que serve a CDU alemã?” Facebook,
20 Fevereiro de 2025.
[5] Miguel Castelo Branco, ibidem.
[6] Em 2017, os activos da BlackRock atingiam os 5,4
biliões de dólares (cf. Peter Phillips, Giants: The Global Power Elite, New York:
Seven Stories Press, 2018, p.37). No quarto trimestre de 2024, esse montante atingia 11,6 biliões de
dólares (“BlackRock assets hit record $11.6 trillion in fourth quarter of 2024.”
The Economic Times, January 15, 2025).
[7]
Thomas Fazi, “Can Germany
trust Friedrich Merz? The frontrunner is a faux populist.” Unherd,
February 25, 2025 [https://unherd.com/.../will-merz-sell-germany-to-blackrock/]
[8] Michael Roberts, ibidem.
[9] Nuno Ramos de Almeida, “Os números da mentira dos senhores da Guerra.” Abril, Abril, 10 de Março de 2025.
[10] Michael Roberts fornece
abundantes provas desse processo no seu artigo (cf. nota [3]), acompanhados de
gráficos ilustrativos. Por exemplo, «a recuperação da rentabilidade do capital alemão desde o início do euro e a
deslocalização da capacidade industrial para o leste da UE e os baixos salários
para uma grande parte da força de trabalho já deram o que tinham a dar, acabaram.
A rentabilidade começou a cair durante a Grande Recessão e durante a Longa
Depressão da década de 2010. A maior queda ocorreu na pandemia e a
rentabilidade está agora no seu mínimo histórico.
Pior ainda, a massa de lucros também começou a
cair à medida que os custos crescentes de produção (energia, transportes,
componentes) corroem as receitas. A formação bruta real de capital (um
indicador do investimento) está a contrair-se. As
falências de empresas alemãs aumentaram para 2.000, o maior número em dez anos.
Isso representa uma duplicação nos últimos três anos, atingindo 4.215 no final
de 2024».
[11] “Who is Friedrich Merz? Meet the man set to be
Germany’s next chancellor.” France 24, 23.02.2025.
[12]
Thomas Fazi,
ibidem
[13] “Rutte: NATO spending target will be «considerably
more than 3 percent».” Politico. February 15, 2025.
[14] Bruegel [acrónimo
de Brussels European and Global Economic Laboratory]
é um centro de estudos e reflexão estratégica [Ingl. “think tank”] especializado
em políticas económicas europeias e financiado por 19 Estados (como, por exemplo,
a Alemanha e a França); 19 grandes empresas multinacionais e transnacionais (como,
por exemplo, a Amazon e a BlackRock), e 19 bancos de primeiro plano (como,
por exemplo, o Banco de Inglaterra e o Banco de França). O Kiel Institute for World Economy (um
nome que lhe foi dado pelo regime nazi em 1934), é um centro de estudos e
reflexão estratégica centenário, especializado em questões de globalização
económica e financiado pelo Estado federal alemão.
[15] Alexandr Burilkov & Guntram B. Wolff, “Defending
Europe without the US: first estimates of what is needed.” Bruegel and Kiel Institute
for World Economy. February 25, 2025.
[16] Nuno Ramos de Almeida,
ibidem.
[17] Alexandr Burilkov & Guntram B. Wolff, ibidem
[18] “EU
help key to French and British nukes keeping Russia at bay.” Euractiv,
March 4, 2025.
[19]
Este é um tema que requer maior elucidação e desenvolvimento.
Ficará para uma outra oportunidade.
[20] Carlos Matos Gomes, “Rearmar a Europa. Heil.” Medium,
5 de Março de 2025.
[21] Viriato Soromenho Marques, “A Nomenklatura de Bruxelas
quer a guerra por temer a liberdade.” Azorean Torpor, Fevereiro 27, 2025.
[22]
Em Portugal, a proposta de referendos por
iniciativa de grupos de cidadãos eleitores portugueses está prevista no artigo
115.º da Constituição da República Portuguesa e foi regulamentada pela Lei Orgânica
do Regime do Referendo (Lei n.º 15-A/98, com as modificações ulteriores) que fixa
um número mínimo de 60 mil proponentes para sua efectivação.
[23] Ana Paula Fitas, Facebook, 5 de Março de 2025
[24] Presumo que, por “Referendo
Europeu”, Ana Paula Fitas tenha querido dizer “referendos
nacionais realizados em todos os Estados-membros da União Europeia e colocando
as mesmas perguntas”. Isto porque o Tratado
da União Europeia e o Tratado sobre o
Funcionamento da União Europeia (v. Jornal Oficial da União Europeia,
C 306 de 17 de Dezembro de 2007) não prevêem a realização de referendos
transnacionais.
[25] O cartaz é excelente, mas contém um erro que será fácil de corrigir em próxima edição. É um erro de nomenclatura relativo aos números superiores a 1 milhão, para os quais há duas escalas: a escala longa (usada em Portugal e no resto da Europa, salvo no Reino Unido, que a abandonou, nos anos 1970/1980, para se alinhar com os EUA também neste particular), em que cada novo termo é 1 milhão de vezes superior ao anterior, e a escala curta (usada no Brasil e nos EUA), em que cada novo termo é mil vezes superior ao anterior. Assim, o montante anunciado pela senhora Ursula von der Leyen para rearmar a “Europa” e continuar a alimentar a guerra por procuração na Ucrânia é de 800 mil milhões de euros na escala longa usada em Portugal (= 800 “bilhões” na escala curta usada no Brasil) e não “800 biliões” (= 800 milhões de milhões em Portugal) como aparece na primeira linha do cartaz.