TERTÚLIA ORWELLIANA

Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

06 setembro, 2025

 

Nota editorial introdutória ao arquivo

“Alargamento da OTAN:

O que foi dito a Gorbachev”

[“NATO Expansion: What Gorbachev Heard”]

 (Tradução de Fernando Oliveira)

Mikhail Gorbachev discute a “reunificação” alemã com Hans-Dietrich Genscher e Helmut Kohl na Rússia, 15 de Julho de 1990. Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung.
 

Nem um centímetro em direcção ao leste da Europa 

Uma das causas contribuintes da 2.ª guerra na Ucrânia (a que começou na semana de 15 a 22 de Fevereiro de 2022) foi a expansão da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) – também conhecida por NATO, o seu acrónimo inglês – em 5 ondas sucessivas (1999, 2004, 2009, 2017, 2020) em direcção às fronteiras da Rússia – espezinhando assim as garantias de segurança dadas a Mikhail Gorbachev (presidente da União Soviética) e Eduard Shevardnadze (ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética)  em representação da União Soviética, pelos EUA, Reino Unido e França (as três outras potências ocupantes da Alemanha no fim da 2.ª Guerra Mundial), de que a OTAN não avançaria «nem um centímetro em direcção ao Leste da Europa» (James Baker III, ministro dos Negócios Estrangeiros dos EUA no governo de George H.W. Bush, 1990), em troca da sua anuência à chamada “reunificação” da Alemanha.

Mentiras reiteradas 

Ora, como escrevi no livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo, Julho de 2023): 

«De 1992 em diante tornou-se corriqueiro os governantes americanos, incluindo o próprio James Baker III, mentirem descaradamente, afirmando que essas garantias nunca existiram, ou então (versão hipócrita) que nunca foram dadas por escrito e que, por conseguinte, não têm qualquer valor. Estes dois argumentos são repetidos à exaustão pelos comentadores do sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado”. Alguns vão mesmo ao ponto de afirmar que são uma invenção dos Russos, em particular de Putin! Mas os factos são teimosos.

Actualmente, qualquer pessoa que tenha acesso à Internet e saiba Inglês pode ler essas garantias tal como foram registadas por escrito nos documentos oficiais da época (actas, relatórios e memorandos) que foram, entretanto, desclassificados. Encontram-se no National Security Archive da University of Washington (Washington, D.C.). Cf. “NATO Expansion: What Gorbachev Heard” [https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early]). E existem também disponíveis outros documentos e testemunhos preciosos sobre o mesmo assunto» (op.cit., p.15, nota 10).

O valor jurídico das promessas internacionais

Ninguém pode, pois, impedir que qualquer pessoa verifique, se o desejar e tiver os meios para isso, a existência dessa documentação compilada e depositada, em 2017, no National Security Archive da Universidade de Washington.

Obrigados a abandonar essa primeira trincheira (“os documentos não existem, as promessas foram meramente orais e circunstanciais”), muitos comentadores (incluindo quase todos os que operam nos canais de maior audiência da televisão portuguesa) passaram a ocupar uma segunda trincheira, de onde julgam que não poderão ser desalojados.

Alegam, para tanto, como já foi dito, que, por não terem sido formalizadas em tratados, as garantias dadas a Gorbachev carecem de valor jurídico e força vinculativa segundo o direito internacional público. No entanto, tal posição é juridicamente enganosa e falsa do ponto de vista histórico.

O precedente do Tribunal Internacional de Justiça

Em 1974, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) estabeleceu um precedente ao afirmar que declarações orais feitas por representantes estatais podem ser juridicamente obrigatórias, desde que satisfaçam critérios específicos. Este entendimento decorre do caso Nuclear Tests (Austrália v. França), onde a França fez promessas (que não cumpriu) em relação a testes nucleares no Oceano Pacífico, em que o TIJ [1] concluiu que:

          # Declarações unilaterais sobre situações jurídicas ou factuais podem criar obrigações legais se houver intenção clara do Estado de se vincular.

      # Não importa se a declaração é oral ou escrita; o direito internacional não exige formalismo documental para reconhecer tal valor jurídico

As garantias dadas à União Soviética (e à Rússia) são vinculativas

Este precedente é fundamental para analisar as promessas feitas a Gorbatchev no final da Guerra Fria por James Baker e outros dirigentes ocidentais (François Mitterrand, Margaret Tatcher, John Major) de não expandir a OTAN para Leste caso Moscovo aceitasse a “reunificação” da Alemanha — um eufemismo para a dissolução da RDA (Alemanha oriental) e a anexação do seu território e património pela RFA (Alemanha ocidental).

Embora não tivessem sido formalizadas em tratado, estas promessas foram feitas em contexto diplomático oficial e por representantes autorizados dos seus respectivos Estados — exactamente as condições identificadas pelo TIJ como geradoras de obrigações legais.

O acórdão do TIJ de 1974 também esclareceu que declarações deste tipo não precisam de aceitação formal ou resposta da outra parte para produzirem efeitos. O princípio da boa-fé, pacta sunt servanda [“os pactos devem ser cumpridos”], serve de base à obrigatoriedade dessas promessas.

O papel da confiança internacional

O TIJ realçou ainda que a confiança é um elemento central na cooperação internacional. Ignorar compromissos orais assumidos em negociações relevantes enfraquece esta confiança e põe em causa a ordem normativa que pode manter a paz e as relações pacíficas entre Estados.

Portanto, segundo o acórdão de 1974 do TIJ, promessas unilaterais, mesmo que orais e informais, podem criar obrigações jurídicas. Assim, as garantias ocidentais dadas à URSS ‒ e, por conseguinte, à sua sucessora legal, a Federação Russa ou Rússia ‒ possuem uma forte base jurídica para serem consideradas vinculativas, ainda por cima tendo em conta as graves consequências geopolíticas envolvidas.

Como observou Pascal Lottaz:

«A recusa em reconhecer o significado legal e moral destas promessas teve consequências de longo alcance, incluindo, naturalmente, a quebra completa da confiança entre a Rússia e o Ocidente e, em última análise, a guerra na Ucrânia. Descartar essas garantias como sem sentido ignora tanto o quadro jurídico estabelecido pela jurisprudência internacional quanto as responsabilidades éticas que vêm com o Estado. Como o TIJ reconheceu há mais de 50 anos, a palavra de um Estado – mesmo quando oral – pode vinculá-lo. E quando isso acontece, deve ser honrada» [2].

Entra Fernando Oliveira

Esclarecido tudo isto, que tanta boa gente desconhece, compreender-se-á a importância do que Fernando Oliveira decidiu fazer, em boa hora e por sua alta recreação: traduzir pro bono todos os documentos depositados no National Security Archive da Universidade de Washington sobre as promessas feitas a Gorbachev a respeito da OTAN.

São 65 páginas de informação muito densa que são assim, e pela primeira vez (que eu saiba), postos gratuitamente à disposição do público de língua portuguesa através da Tertúlia Orwelliana — o veículo escolhido por Fernando Oliveira para divulgar o produto do seu precioso trabalho.

Só me resta agradecer-lhe mais esta prova de confiança na Tertúlia Orwelliana e esperar que os leitores apreciem tanto quanto eu a sua competência como tradutor e a sua generosidade, cultura e argúcia como cidadão empenhado.

José Catarino Soares, 5 de Setembro de 2025

N.B. Dada a grande extensão do arquivo, este será publicado em três partes consecutivas ao longo de três semanas. Editei ligeiramente o texto para o adequar às normas tipográficas e estilísticas da Tertúlia Orwelliana

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Notas e referências

[1] O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) é o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas (ONU), estabelecido para resolver disputas legais entre Estados e emitir pareceres consultivos sobre questões jurídicas para a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança da ONU. Sediado no Palácio da Paz em Haia, na Holanda, o tribunal é composto por 15 juízes eleitos por nove anos e não deve ser confundido com o Tribunal Penal Internacional (TPI), que também tem a sua sede em Haia, mas que não pertence à ONU e que julga indivíduos por crimes de guerra ou crimes contra a humanidade.

[2] Pascal Lottaz, «Yes, “Not an Inch to the East” Was Binding Under International Law». Substack, July 11, 2025 [https://substack.com/@ pascallottaz]

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Alargamento da OTAN:

O que foi dito a Gorbachev

(Parte I)

(Tradução de Fernando Oliveira [*])

Documentos desclassificados revelam garantias de segurança contra o alargamento da OTAN dadas aos governantes soviéticos por Baker, Bush, Genscher, Kohl, Gates, Mitterrand, Thatcher, Hurd, Major e Woerner.

Painel de Estudos Eslavos aborda “Quem Prometeu o Quê a Quem sobre o Alargamento da OTAN?”

Publicação: 12 Dez. 2017

Briefing Book # 613

Svetlana Savranskaya e Tom Blanton

 

Temas                    OTAN

                    Relações URSS-EUA

                     Pacto de Varsóvia

Regiões                  Europa Central/de Leste

                     Rússia e ex-União Soviética

                     Europa Ocidental

Acontecimentos    Fim da Guerra Fria, 1989-1991

Projecto                 OTAN @ 75

                    Programas da Rússia

 

 

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Página das notas de Stepanov-Mamaladze de 12 de Fevereiro de 1990, que reflectem a garantia dada por Baker a Shevardnadze no decurso da Conferência sobre o Regime de Céu Aberto de Otava: “E se a A[lemanha] U[nificada] ficar na OTAN, devemos ter o cuidado de não alargar a sua jurisdição para Leste.”


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 Eduard A. Shevardnadze (à direita) cumprimenta Hans-Dietrich Genscher (à esquerda) e Helmut Kohl (no centro) à chegada a Moscovo a 10 de Fevereiro de 1990, para conversações sobre a reunificação alemã. Fotografia: AP Photo / Victor Yurchenko. 


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O acordo para dar início às conversações “Dois Mais Quatro” é apresentado à imprensa pelos seis Ministros dos Negócios Estrangeiros na Conferência “Céu Aberto” em Otava, a 13 de Fevereiro de 1990. Da esquerda para a direita: Eduard Shevardnadze (URSS), James A. Baker (EUA), Hans-Dietrich Genscher (RFA), Roland Dumas (França), Douglas Hurd (Grã-Bretanha), Oskar Fischer (RDA). Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung
 
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Primeira ronda oficial das negociações “Dois Mais Quatro”, com os seis Ministros dos Negócios Estrangeiros, em Bona, a 5 de Maio de 1990. Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung.


Da direita para a esquerda: Ministro dos Negócios Estrangeiros Hans-Dietrich Genscher (RFA), Ministro Presidente Lothar de Maizière (RDA) e Ministros dos Negócios Estrangeiros Roland Dumas (França), Eduard Shevardnadze (URSS), Douglas Hurd (Grã-Bretanha) e James Baker (EUA) assinam o denominado Acordo “Dois Mais Quatro” (Tratado sobre a Regulamentação Definitiva referente à Alemanha) em Moscovo, a 12 de Setembro de 1990. Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung.

 

As sessões de trabalho em Camp David realizadas na esplanada, ao ar livre, aqui da esquerda para a direita e a partir de cima à esquerda, intérprete Peter Afanasenko, Baker, Bush, Vice-presidente Dan Quayle (o único com gravata), Scowcroft, Shevardnadze, Gorbachev e Akhromeyev (de costas para a câmara), 2 de Junho de 1990. (Fonte: Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, P13412-08).


O Presidente Bush saúda o Presidente Checo Vaclav Havel no exterior da Casa Branca, Washington, D.C., 2 de Fevereiro de 1990. (Fonte: Biblioteca Presidencial e Museu George H. W. Bush)


O Ministro dos Negócios Estrangeiros Genscher oferece ao Presidente Bush um fragmento do Muro de Berlim, Sala Oval da Casa Branca, Washington, D.C., 21 de Novembro de1989. (Fonte: Biblioteca Presidencial e Museu George H. W. Bush)


Os governantes reunidos para uma fotografia de grupo em Camp David. Todos sorriem excepto o marechal soviético, à direita.  A partir da esquerda, Baker, Barbara Bush, Presidente Bush, Raisa Gorbacheva, Presidente Gorbachev, Shevardnadze, Scowcroft, Akhromeyev.  2 de Junho de 1990. (Fonte: Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, P13437-14)


A chegada à cimeira de Washington, em 31 de Maio de 1990, teve uma cerimónia de alto nível no relvado da Casa Branca, aqui com cumprimentos formais do Presidente Bush a Mikhail Gorbachev, agora Presidente da URSS.  (Fonte: Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, P13298-18)

Washington D.C., 12 de Dezembro de 2017 – A famosa garantia do Secretário de Estado norte-americano James Baker “nem um centímetro para Leste” sobre o alargamento da OTAN, na sua reunião com o governante soviético Mikhail Gorbachev, a 9 de Fevereiro de 1990, fez parte de uma cascata de garantias sobre a segurança soviética dadas pelos governantes ocidentais a Gorbachev e a outros responsáveis soviéticos durante o processo de reunificação alemã em 1990 e 1991, de acordo com documentos desclassificados dos norte-americanos, soviéticos, alemães, britânicos e franceses publicados hoje pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington (http://nsarchive.gwu.edu).

Os documentos revelam que vários governantes nacionais ponderaram e rejeitaram a adesão da Europa Central e Oriental à OTAN desde o início de 1990 e durante 1991, que os debates sobre a OTAN no contexto das negociações de reunificação da Alemanha em 1990 não se limitavam de todo ao estatuto do território da Alemanha Oriental e que as queixas soviéticas e russas subsequentes sobre terem sido enganados quanto ao alargamento da OTAN se baseavam em memorandos escritos e registos de teleconferências contemporâneas ao mais alto nível.

Os documentos reforçam as críticas do ex-director da CIA, Robert Gates, à “pressão para o alargamento da OTAN para Leste [nos anos 90], quando Gorbachev e outros foram levados a acreditar que isso não aconteceria.” [1] A expressão-chave, escorada pelos documentos, é “levados a acreditar.”

O Presidente George H. W. Bush assegurou a Gorbachev, na cimeira de Malta, em Dezembro de 1989, que os EUA não tirariam partido (“Não andei aos saltos por causa do Muro de Berlim”) das revoluções na Europa de Leste para prejudicar os interesses soviéticos; mas nem Bush nem Gorbachev nessa altura (nem, aliás, o Chanceler da RFA, Helmut Kohl) esperavam que a derrocada da Alemanha de Leste ou a rapidez da reunificação alemã ocorressem tão cedo. [2]

As primeiras garantias concretas dos governantes ocidentais sobre a OTAN começaram em 31 de Janeiro de 1990, quando o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha Ocidental, Hans-Dietrich Genscher, abriu a agenda com um importante discurso público em Tutzing, na Baviera, sobre a reunificação alemã. A Embaixada dos Estados Unidos em Bona (ver Documento 1) informou Washington de que Genscher deixou claro “que as mudanças na Europa Oriental e o processo de reunificação alemã não devem conduzir a uma “deterioração dos interesses de segurança soviéticos”. Por conseguinte, a OTAN deveria excluir um “alargamento do seu território para Leste, isto é, aproximando-o das fronteiras soviéticas”. O telegrama de Bona também referia a proposta de Genscher de deixar o território da Alemanha Oriental fora da estrutura militar da OTAN, mesmo numa Alemanha reunificada e na OTAN. [3]

Esta última ideia de um estatuto especial para o território da RDA foi codificada no tratado final de reunificação alemã assinado em 12 de Setembro de 1990 pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Dois Mais Quatro (ver Documento 25). A primeira ideia sobre “mais perto das fronteiras soviéticas” não está plasmada em tratados, mas sim em múltiplos memorandos de conversações entre os soviéticos e os interlocutores ocidentais ao mais alto nível (Genscher, Kohl, Baker, Gates, Bush, Mitterrand, Thatcher, Major, Woerner e outros) oferecendo garantias ao longo de 1990 e 1991 sobre a protecção dos interesses de segurança soviéticos e a inclusão da URSS nas novas estruturas de segurança europeias. As duas questões estavam relacionadas, mas não eram a mesma coisa. Análises posteriores, por vezes, confundiram as duas com o argumento de que a discussão não envolvia toda a Europa. Os documentos publicados a seguir mostram claramente que envolvia.

A “fórmula de Tutzing” tornou-se imediatamente o centro de uma série de importantes discussões diplomáticas durante os dez dias seguintes, em 1990, conduzindo ao crucial encontro de 10 de Fevereiro de 1990, em Moscovo, entre Kohl e Gorbachev, em que o dirigente da Alemanha Ocidental obteve o consentimento soviético, em princípio, para a reunificação alemã na OTAN, desde que esta não se expandisse para Leste. Os soviéticos precisariam de muito mais tempo para trabalhar com a sua opinião interna (e com a ajuda financeira dos alemães ocidentais) antes de assinarem formalmente o acordo em Setembro de 1990.

As conversas que antecederam a garantia de Kohl envolveram discussões explícitas sobre o alargamento da OTAN, os países da Europa Central e Oriental e a forma de convencer os soviéticos a aceitarem a reunificação. A título de exemplo, a 6 de Fevereiro de 1990, quando Genscher se reuniu com o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico Douglas Hurd, o registo britânico mostrava Genscher a dizer: “Os russos têm de ter alguma garantia de que se, por exemplo, o governo polaco deixasse o Pacto de Varsóvia num dia, não aderiria à OTAN no dia seguinte” (ver Documento 2).

Tendo reunido com Genscher a caminho das conversações com os soviéticos, Baker repetiu exactamente a formulação de Genscher no seu encontro com o Ministro dos Negócios Estrangeiros Eduard Shevardnadze, em 9 de Fevereiro de 1990 (ver Documento 4); e, mais importante ainda, no frente-a-frente com Gorbachev.

Na reunião com Gorbachev de 9 de Fevereiro de 1990, Baker utilizou a fórmula “nem um centímetro para Leste” não uma, mas três vezes. Concordou com a declaração de Gorbachev em resposta às garantias de que “o alargamento da OTAN é inaceitável”. Baker assegurou a Gorbachev que “nem o Presidente nem eu tencionamos retirar quaisquer vantagens unilaterais dos processos que estão em curso” e que os americanos compreendiam que “não só para a União Soviética, mas também para outros países europeus, é importante ter garantias de que, se os Estados Unidos mantiverem a sua presença na Alemanha no quadro da OTAN, nem um centímetro da actual jurisdição militar da OTAN se estenderá para Leste” (ver Documento 6).

Posteriormente, Baker escreveu a Helmut Kohl, que se iria encontrar com o governante soviético no dia seguinte, com uma linguagem muito semelhante. Baker relatou: “E depois coloquei-lhe [a Gorbachev] a seguinte questão: Preferia ver uma Alemanha reunificada fora da OTAN, independente e sem forças americanas, ou preferia que uma Alemanha reunificada estivesse ligada à OTAN, com garantias de que a jurisdição da OTAN não se deslocaria um centímetro para leste da sua posição actual? Respondeu que a chefia soviética estava a ponderar bem todas essas opções [...] E acrescentou: «Certamente que qualquer alargamento da zona da OTAN seria inaceitável»”. Baker acrescentou entre parênteses, para benefício de Kohl: “Implicitamente, a OTAN na sua zona actual poderia ser aceitável” (ver Documento 8).

Devidamente informado pelo Secretário de Estado americano, o Chanceler da RFA ficou a conhecer a linha de base fulcral dos soviéticos e assegurou a Gorbachev em 10 de Fevereiro de 1990: “Acreditamos que a OTAN não deve expandir a esfera da sua actividade” (ver Documento 9). Depois desta reunião, Kohl mal podia conter o seu entusiasmo com o acordo de princípio de Gorbachev para a reunificação alemã e, como parte da fórmula de Helsínquia de que os Estados escolhiam as suas próprias alianças, a Alemanha podia escolher a OTAN. Kohl escreveu nas suas memórias que andou toda a noite à volta de Moscovo — mas compreendia que ainda havia um preço a pagar.

Todos os Ministros dos Negócios Estrangeiros ocidentais estavam de acordo com Genscher, Kohl e Baker. Seguiu-se o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Douglas Hurd, a 11 de Abril de 1990. Nesta altura, os alemães de leste tinham votado esmagadoramente a favor do marco alemão e da rápida reunificação, nas eleições de 18 de Março, nas quais Kohl surpreendeu quase todos os observadores com uma verdadeira vitória. As análises de Kohl (explicadas pela primeira vez a Bush em 3 de Dezembro de 1989) de que a derrocada da RDA abriria todas as possibilidades, de que tinha de se apressar para chegar à frente do comboio, de que precisava do apoio dos Estados Unidos, de que a reunificação poderia acontecer mais depressa do que se pensava – revelaram-se todas correctas. A união monetária avançaria já em Julho e as garantias de segurança continuavam a chegar. Hurd reforçou a mensagem de Baker-Genscher-Kohl no seu encontro com Gorbachev em Moscovo, a 11 de Abril de 1990, dizendo que a Grã-Bretanha “reconhecia claramente a importância de não fazer nada que prejudicasse os interesses e a dignidade dos soviéticos” (ver Documento 15).

A conversa de Baker com Shevardnadze em 4 de Maio de 1990, tal como Baker a revelou no seu relatório ao Presidente Bush, descreveu de forma muito eloquente o que os dirigentes ocidentais estavam exactamente a dizer a Gorbachev naquele momento: “Utilizei o seu discurso e o nosso reconhecimento da necessidade de adaptar a OTAN, política e militarmente, e de desenvolver a CSCE [Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa (Nota do T)] para tranquilizar Shevardnadze de que o processo não produziria vencedores nem vencidos. Em vez disso, produziria uma nova estrutura europeia legítima – uma estrutura que seria inclusiva e não exclusiva” (ver Documento 17).

Baker voltou a dizê-lo directamente a Gorbachev, em 18 de Maio de 1990, em Moscovo, dando a Gorbachev os seus “nove pontos”, que incluíam a transformação da OTAN, o reforço das estruturas europeias, a manutenção da Alemanha sem armas nucleares e a tomada em consideração dos interesses de segurança soviéticos. Baker começou as suas observações: “Antes de proferir algumas palavras sobre a questão alemã, queria sublinhar que as nossas políticas não têm como objectivo separar a Europa Oriental da União Soviética. Já tivemos essa política antes. Mas hoje estamos interessados em construir uma Europa estável e em fazê-lo em conjunto convosco” (ver Documento 18).

O presidente francês François Mitterrand não estava em sintonia com os americanos, muito pelo contrário, como o demonstra o facto de ter dito a Gorbachev, em Moscovo, a 25 de Maio de 1990, que era “pessoalmente a favor do desmantelamento gradual dos blocos militares”; mas Mitterrand prosseguiu a cascata de garantias dizendo que o Ocidente deve “criar condições de segurança para si, bem como para a segurança europeia no seu conjunto” (ver Documento 19). Mitterrand escreveu de imediato uma carta a Bush sobre a sua conversa com o governante soviético, começando com “Cher George” e referindo que “não nos recusaríamos certamente a pormenorizar as garantias que ele teria o direito de esperar para a segurança do seu país” (ver Documento 20).

Na cimeira de Washington de 31 de Maio de 1990, Bush fez tudo o que estava ao seu alcance para assegurar a Gorbachev que a Alemanha na OTAN nunca seria direccionada contra a URSS: “Acreditem em mim, não estamos a empurrar a Alemanha para a reunificação e não somos nós que definimos o ritmo deste processo. E, claro, não temos qualquer intenção, nem mesmo nos nossos pensamentos, de prejudicar a União Soviética de qualquer forma. É por isso que nos pronunciamos a favor da reunificação alemã na OTAN, sem ignorar o contexto mais vasto da CSCE, tendo em consideração os laços económicos tradicionais entre os dois Estados alemães. Este modelo, na nossa opinião, corresponde também aos interesses soviéticos” (ver Documento 21).

A “Dama de Ferro” também deu o seu contributo, após a cimeira de Washington, no encontro que teve com Gorbachev em Londres, a 8 de Junho de 1990. Thatcher deu uma antevisão das medidas que os americanos (com o seu apoio) tomariam na conferência da OTAN do início de Julho para apoiar Gorbachev com descrições da transformação da Organização numa aliança mais política e menos ameaçadora do ponto de vista militar. Thatcher disse a Gorbachev: “Temos de encontrar formas de dar à União Soviética a confiança de que a sua segurança será garantida... A CSCE poderia ser um guarda-chuva para tudo isso, além de ser o fórum que trouxe a União Soviética para a discussão sobre o futuro da Europa” (ver Documento 22).

A Declaração de Londres da OTAN, de 5 de Julho de 1990, teve um efeito bastante positivo nas deliberações em Moscovo, de acordo com a maior parte dos relatos, dando a Gorbachev munições suficientes para contrariar os partidários da linha dura no Congresso do Partido [Comunista da União Soviética] que decorria naquele momento. Algumas versões desta história afirmam que foi dada uma cópia antecipada aos assessores de Shevardnadze, enquanto outras descrevem apenas um alerta que permitiu a esses assessores utilizar uma cópia da agência noticiosa e produzir uma avaliação positiva soviética antes que os militares ou a linha dura a pudessem designá-la de propaganda.

Como Kohl disse a Gorbachev em Moscovo, a 15 de Julho de 1990, quando elaboraram o acordo final sobre a reunificação alemã: “Nós sabemos o que espera a OTAN no futuro e penso que vocês também já sabem”, referindo-se à Declaração de Londres da OTAN (ver Documento 23).

No telefonema a Gorbachev em 17 de Julho, Bush pretendia reforçar o êxito das conversações Kohl-Gorbachev e a mensagem da Declaração de Londres. Bush explicou: “Portanto, o que tentámos fazer foi ter em conta as suas preocupações que manifestou a mim e a outros, e fizemo-lo das seguintes formas: através da nossa declaração conjunta sobre a não agressão; do nosso convite para aderir à OTAN; do nosso acordo para abrir a OTAN a contactos diplomáticos regulares com o seu governo e os dos países da Europa Oriental; e da nossa oferta de garantias sobre a futura dimensão das forças armadas de uma Alemanha reunificada – uma questão que sei que discutiu com Helmut Kohl. Também alterámos, no fundamental, a nossa abordagem militar relativamente às forças convencionais e nucleares. Transmitimos a ideia de uma CSCE alargada e mais forte, com novas instituições que a URSS possa partilhar e integrar numa nova Europa” (ver Documento 24).

Os documentos mostram que Gorbachev concordou com a reunificação alemã na OTAN em resultado desta sucessão de garantias e com base na sua própria análise de que o futuro da União Soviética dependia da sua integração na Europa, para o que a Alemanha seria o actor decisivo. Ele e a maioria dos seus aliados acreditavam que alguma versão da casa comum europeia continuava a ser possível e que se desenvolveria a par da transformação da OTAN que conduzisse a um espaço europeu mais inclusivo e integrado, que o acordo pós-Guerra Fria teria em conta os interesses de segurança soviéticos. A aliança com a Alemanha permitiria não só ultrapassar a Guerra Fria como também inverter o legado da Grande Guerra Patriótica.

Mas, no seio do governo dos Estados Unidos, prosseguia um debate diferente, um debate sobre as relações entre a OTAN e a Europa Oriental. As opiniões divergiam, mas a sugestão do Departamento de Defesa, a partir de 25 de Outubro de 1990, era deixar “a porta entreaberta” para a adesão da Europa de Leste à OTAN (ver Documento 27). A opinião do Departamento de Estado era que o alargamento da OTAN não estava na ordem do dia, porque não era do interesse dos EUA organizar “uma coligação anti-soviética” que se estendesse às fronteiras soviéticas, até porque poderia inverter as tendências positivas na União Soviética (ver Documento 26). O governo Bush adoptou este último ponto de vista. E foi isso que foi dito aos soviéticos.

Ainda em Março de 1991, de acordo com o diário do embaixador britânico em Moscovo, o Primeiro-ministro britânico John Major assegurou pessoalmente a Gorbachev que “não estamos a falar do reforço da OTAN”. Posteriormente, quando o Ministro da Defesa soviético, marechal Dmitri Yazov, interrogou Major sobre o interesse dos governantes da Europa Oriental na adesão à OTAN, o governante britânico respondeu: “Não vai acontecer nada disso” (ver Documento 28).

Quando os deputados russos do Soviete Supremo se deslocaram a Bruxelas para visitar a OTAN e se reuniram com o Secretário-geral da OTAN, Manfred Woerner, em Julho de 1991, Woerner disse-lhes que “Não devemos permitir [...] o isolamento da URSS da comunidade europeia”. De acordo com o memorando russo da conversa, “Woerner sublinhou que o Conselho da OTAN e ele próprio são contra o alargamento da OTAN (13 dos 16 membros da Organização apoiam este ponto de vista)” (ver Documento 30).

Assim, Gorbachev ficou até ao fim da União Soviética com a certeza de que o Ocidente não estava a ameaçar a sua segurança e não estava a alargar a OTAN. Em vez disso, a dissolução da URSS foi provocada por russos (Boris Ieltsin e o seu principal conselheiro, Gennady Burbulis) em concertação com os antigos chefes partidários das repúblicas soviéticas, especialmente da Ucrânia, em Dezembro de 1991. Nessa altura, a Guerra Fria já tinha terminado há muito. Os americanos tinham tentado manter a União Soviética unida (ver o discurso de Bush “Chicken Kiev” [**], de 1 de Agosto de 1991). O alargamento da OTAN estava previsto para os próximos anos, altura em que estas disputas voltariam a eclodir e em que seriam dadas mais garantias ao governante russo Boris Ieltsin.

O Arquivo compilou estes documentos desclassificados para um painel de discussão em 10 de Novembro de 2017, na Conferência Anual da Associação de Estudos Eslavos, da Europa Oriental e da Eurásia (ASEEES), em Chicago, sob o título “Quem prometeu o quê a quem sobre o alargamento da OTAN?”. O painel incluiu: 

* Mark Kramer do Davis Center em Harvard, editor do Journal of Cold War Studies, cujo artigo de 2009 Washington Quarterly defende que a “promessa de não alargamento da OTAN” foi um mito”; [4]

* Joshua R. Itkowitz Shifrinson da Bush School no Texas A&M, cujo artigo de 2016 na International Security defendia que os EUA estiveram empenhados num jogo duplo em 1990, levando Gorbachev a acreditar que a OTAN se transformaria numa nova estrutura de segurança europeia, ao mesmo tempo que trabalhavam para assegurar a hegemonia na Europa e a manutenção da OTAN; [5]

* James Goldgeier da American University, que escreveu uma obra de referência sobre a decisão de Clinton quanto ao alargamento da  OTAN, Not Whether But When, e descreveu as falsas garantias dadas pelos EUA ao dirigente russo Boris Yeltsin num artigo de 2016 WarOnTheRocks; [6]

* Svetlana Savranskaya e Tom Blanton do National Security Archive, cujo livro mais recente, The Last Superpower Summits: Gorbachev, Reagan, and Bush: Conversations That Ended the Cold War (CEU Press, 2016), analisa e publica as transcrições e os documentos afins objecto de desclassificação de todas as cimeiras de Gorbachev com Presidentes dos EUA, incluindo dezenas de garantias referentes aos interesses de segurança da URSS. [7]

[A publicação de hoje é a primeira de três partes sobre o assunto. A segunda parte, a publicar oportunamente, irá abranger as discussões de Yeltsin com os governantes ocidentais sobre a OTAN.]

 

[*] O tradutor emprega a ortografia em vigor antes do (des)Acordo Ortográfico de 1990.

[**] Nota do Tradutor: Literalmente, “Frango à Quieve” (prato típico ucraniano de peito de frango recheado), é o nome dado a um discurso proferido pelo Presidente dos EUA George H. W. Bush (Bush pai) em Quieve, a 1 de Agosto de 1991. O discurso, em que Bush alertava contra o “nacionalismo suicida”, foi escrito por Condoleezza Rice – mais tarde Secretária de Estado do Presidente George W. Bush (Bush filho) – quando estava encarregada dos Assuntos Soviéticos e da Europa Oriental para o Presidente Bush pai.

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                                                                NOTAS

[1] Ver Robert Gates, University of Virginia, Miller Center Oral History, George H. W. Bush Presidency, July 24, 2000, p. 101)

[2] Ver o Capítulo 6, “The Malta Summit 1989,” in Svetlana Savranskaya e Thomas Blanton, The Last Superpower Summits (CEU Press, 2016), pp. 481-569. O comentário sobre o Muro está na página 538.

[3] Para conhecer os antecedentes, o contexto e as consequências do discurso de Tutzing, ver Frank Elbe, “The Diplomatic Path to Germany Unity,” Bulletin of the German Historical Institute 46 (Spring 2010), pp. 33-46. Elbe era chefe de gabinete de Genscher à data.

[4] Ver Mark Kramer, “The Myth of a No-NATO-Enlargement Pledge to Russia,” The Washington Quarterly, April 2009, pp. 39-61.

[5] Ver Joshua R. Itkowitz Shifrinson, “Deal or No Deal? The End of the Cold War and the U.S. Offer to Limit NATO Expansion,” International Security, Spring 2016, Vol. 40, No. 4, pp. 7-44.

[6] Ver James Goldgeier, Not Whether But When: The U.S. Decision to Enlarge NATO (Brookings Institution Press, 1999); e James Goldgeier, “Promises Made, Promises Broken? What Yeltsin was told about NATO in 1993 and why it matters,” War On The Rocks, 12 July 2016.

[7] Ver também em Svetlana Savranskaya, Thomas Blanton e Vladislav Zubok, “Masterpieces of History”: The Peaceful End of the Cold War in Europe, 1989 (CEU Press, 2010), debate alargado e documentos sobre as negociações de unificação da Alemanha no início de 1990.

08 agosto, 2025

 Temas 1 e 2

Governar por meio das Fake News [*]

Jacques Baud

4.º Capítulo.  O Irão 

(tradução de Fernando Oliveira)


Parte II




A Parte I deste artigo está aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/08/governacao-engenharia-do-consentimento.html

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3.1. O contexto e os atentados de 23 de Outubro de 1983

A principal razão para associar o Irão ao terrorismo internacional é o seu apoio ao Hezbollah libanês, mas estas acusações são alimentadas mais pela nossa ignorância do que por factos concretos.

Foi a intervenção israelita de 1982 que levou à criação do Hezbollah. Após a guerra de 1967 e os acontecimentos de Setembro de 1970 na Jordânia, cerca de 300 000 refugiados palestinianos estabeleceram-se no sul do Líbano. Esta presença desestabilizou a economia local e afectou a população xiita, que vivia em paz com o vizinho israelita. O estabelecimento do comando da OLP em Beirute e as frequentes incursões dos Fedayeen na fronteira libanesa levaram Israel a intervir no Líbano em Junho de 1982. O alvo da Operação PAZ NA GALILEIA foi a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat.

A população xiita libanesa acolhe os israelitas com entusiamo e «uma chuva de grãos de arroz[i]». Mas em vez de se apoiar nesta população e nas dissensões intra-árabes para combater a OLP, os israelitas combatem indiscriminadamente xiitas libaneses e sunitas palestinianos, criando rapidamente uma unanimidade contra si. Os serviços secretos israelitas não compreendem a situação e as tropas são apanhadas numa espiral de violência[ii]. Daqui resulta uma reacção negativa da comunidade judaica americana, que ameaça deixar de apoiar a política israelita[iii].

Des pompiers et un sauveteur dans la rue des Rosiers après l’attentat ayant visé le restaurant de charcuterie Jo Goldenberg, à Paris, le 9 août 1982.
Bombeiros e um socorrista na Rue des Rosiers após o atentado que visou o restaurante e charcutaria Jo Goldenberg em Paris, a 9 de Agosto de 1982.Foto: JACQUES DEMARTHON /AFP


É neste ponto que – segundo fontes de serviços de informações – ocorre o atentado da Rue des Rosiers em Paris (9 de Agosto de 1982), operação especial destinada a gerar um sentimento de unidade à volta da política israelita.

Em Setembro de 1982, na sequência dos acordos de cessar-fogo entre Israel e a OLP, foi destacada para Beirute uma Força Multinacional de Segurança (MNF), com base na Resolução 521 do Conselho de Segurança, que previa a ajuda ao governo libanês para proteger a população. No ano seguinte, as forças americanas foram alvo de uma série de escaramuças atribuídas a comandos israelitas[iv]. A 18 de Abril de 1983, um atentado à bomba contra a embaixada americana em Beirute reivindicado pela Organização da Jihad Islâmica (ODI) provoca 63 vítimas.

Em 23 de Outubro de 1983, dois atentados atingiram a Força Multinacional de Segurança (MNF) em Beirute: o primeiro matou 241 pessoas no quartel-general dos US Marines e o segundo, dois minutos depois, destruiu o «Drakkar» [Nota do tradutor: edifício de oito andares na cidade de Beirute], matando 58 pára-quedistas franceses.

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Atentado contra o quartel dos Marines

Attentat du Drakkar : 58 paras de Pamiers tués au Liban il y a 30 ans -  ladepeche.fr
Atentado do Drakkar




Foram avançados vários motivos, incluindo o facto de a França ter entregado aviões Super-Étendard ao Iraque alguns dias antes. A linha oficial culpa o Hezbollah e faz dos ocidentais as vítimas do terrorismo iraniano. Mas isso é falso: o Irão está muito longe do Líbano e as razões residem na forma como o Ocidente interpreta o seu mandato. Um assunto delicado…A MNF era uma força de segurança, que devia ser imparcial, mas os ocidentais não o eram. A França efectua patrulhas conjuntas com o exército libanês: embora não participe em operações de combate, torna-se protagonista do conflito[v].

Quanto aos americanos, a sua presença é ambígua. Antes de mais, importa recordar que a legislação americana proíbe os militares americanos de obedecerem a qualquer autoridade que não seja a do Presidente dos Estados Unidos. O resultado é que, sempre que uma força americana faz parte de uma estrutura multinacional, surgem estruturas de liderança híbridas. No Líbano, em simultâneo com a participação na MNF (sob mandato da ONU), as forças americanas apoiavam o Exército Libanês. Em Abril de 1983, sem grande consulta no seio da Administração, Robert Mcfarlane, Representante Especial do Presidente para o Médio Oriente, ordenou que o navio de guerra USS New Jersey fosse destacado ao largo da costa do Líbano para bombardear aldeias libanesas ocupadas pela oposição – causando cerca de um milhar de vítimas civis e inocentes. Foi este o motivo do atentado de retaliação de 23 de Outubro. Com uma ingenuidade tipicamente americana, o comando americano tinha-se abstido de elevar o nível de alerta do seu contingente da MNF, a fim de sublinhar que nada tinham a ver com as forças americana que combatiam noutros locais do Líbano[vi], subtileza jurídica que os terroristas claramente não entenderam. Os americanos vão cometer exactamente o mesmo erro em Mogadíscio, na Somália, dez anos mais tarde, e no Afeganistão, trinta anos mais tarde.

Apesar de a Itália ter fornecido armas ao Iraque durante a guerra[vii], o seu contingente, colocado entre os americanos e os franceses, manteve-se no seu papel inicial e não foi visado por qualquer atentado. Victor Ostrovsky, ex-agente da Mossad, revelará mais tarde que os israelitas estavam ao corrente deste atentado, mas não o comunicaram aos americanos para que estes se envolvessem no conflito[viii].

Os dois atentados são imediatamente atribuídos ao ODI (como o atentado de Abril), mas são reivindicados pelo Movimento da Revolução Islâmica Livre (MRIL)[ix], desconhecido até à data. Os americanos associam-no ao Irão, mas não têm provas: é o inimigo da moda. Foi só mais tarde, para atribuir a culpa a uma entidade conhecida, que Israel e vários países ocidentais, incluindo os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, acusaram o Hezbollah, afirmando que este fora fundado em 1982.

Na realidade o Hezbollah não existe em 1983[x] e as publicações sobre terrorismo dos anos 1982-1984 não o referenciam[xi]. É por isso que, à excepção de um punhado de países ocidentais que alinham a sua política externa com Washington – e, portanto, com Israel –, a maioria dos países não a considera uma organização terrorista. A sua criação foi marcada pelo estabelecimento de uma Carta em 16 de Fevereiro de 1985[xii], no momento em que Israel terminava a primeira fase da sua retirada do Líbano[xiii]. Antes desta data, nenhum grupo armado libanês se referia ou se definia em relação ao Partido de Deus (Hezbollah). O principal grupo de resistência xiita na altura era o ODI, uma entidade vaga cujos contornos nunca foram definidos com precisão, um pouco como a «Al-Qaeda» vinte anos mais tarde. A antecipação da criação do Hezbollah permitiu associar indivíduos suspeitos de estarem ligados ao ODI, tais como Imad Mougnieh[xiv], a uma estrutura identificável. Os juristas americanos irão utilizar o mesmo artifício vinte anos mais tarde com a «Al-Qaeda», de modo a poderem utilizar a legislação nacional. Voltaremos a este assunto mais tarde.

Em Setembro de 2001, Caspar Weinberger, Secretário da Defesa em 1983, afirmou numa entrevista:

(…) Continuamos sem saber quem perpetrou o atentado à bomba contra o quartel dos Marines no aeroporto de Beirute, e tão pouco o sabíamos nessa altura[xv].

Em 2009, o Presidente Obama foi criticado por não ter mencionado o Hezbollah durante as comemorações do atentado[xvi], mas a razão dessa «omissão» é muito simples: até hoje, ninguém sabe exactamente quem o cometeu. /…/

4. «O general Qasem Soleimani preparava ataques iminentes contra os Estados Unidos»[xvii]

4.1. O assassinato

O assassinato do general Soleimani foi motivado pela reivindicação de Donald Trump em relação à autoridade americana sobre o petróleo iraquiano, em troca de investimentos no país! Para pressionar o Iraque, Trump ofereceu ao primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi a possibilidade de concluir a reconstrução das infra-estruturas do país em troca de 50% do petróleo iraquiano. Mas Abdul-Mahdi recusou, preferindo assinar um acordo com a China em Setembro de 2019. Trump pediu-lhe então que cancelasse o acordo, sem o que ameaçava provocar manifestações populares para derrubar o regime; ameaçou mesmo utilizar atiradores dos US Marines para abater manifestantes e assim agravar a situação[xviii]. Verdade ou não, o facto é que, em Outubro de 2019, eclodiram manifestações violentas em Bagdade, com 63% dos apelos provenientes da Arábia Saudita, 5% dos Emirados, 2% da Alemanha e 1% da Suíça[xix], criando um clima explosivo no país.

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General Qasem Soleimani

 

A faísca surgiu em 27 de Dezembro de 2019: foguetes FAJR-1 de 107 mm de fabrico iraniano atingiram a base militar K-1 em Kirkuk, onde se encontravam unidades iraquianas e americanas dedicadas à luta contra o Estado Islâmico, tendo morrido um mercenário americano. Os autores do ataque não são conhecidos, mas os Estados Unidos atribuem-no imediatamente às Kataeb Hezbollah (Falanges do Hezbollah), uma organização xiita iraquiana (sem ligações ao Hezbollah libanês), representada no parlamento iraquiano e que tinha combatido o Estado Islâmico com os curdos. O Presidente americano acusou o Irão e os Guardas da Revolução e, em 29 de Dezembro, foram lançados ataques de retaliação na Síria e contra uma base militar pertencente ao seu aliado iraquiano, que albergava soldados iraquianos e tropas das Kataeb[xx]. Estes ataques provocaram motins que culminaram na intrusão na embaixada americana de Bagdade, a 31 de Dezembro, dando a Trump um pretexto para abater Qasem Soleimani a 3 de Janeiro de 2020.

Em Fevereiro de 2020, o New York Times revelou que a decisão americana não fora objecto de qualquer consulta aos serviços secretos iraquianos, baseando-se apenas na identificação dos foguetes utilizados como tendo origem iraniana. Mas, de facto, o Irão tinha fornecido foguetes ao Iraque para combater o Estado Islâmico, e sabe-se que um certo número fora roubado dos depósitos do exército iraquiano. Além disso, as provas materiais encontradas após o incidente de 27 de Dezembro mostram que os tiros foram disparados pelo Estado Islâmico[xxi].

Em 3 de Janeiro de 2020, o major-general iraniano Qasem Soleimani foi eliminado em Bagdade por ordem de Donald Trump, que o acusou de preparar operações contra 4 embaixadas americanas no Médio Oriente: uma «ameaça iminente» tendo as informações sido fornecidas por Israel[xxii]. Na verdade, a decisão de Trump baseou-se em três elementos[xxiii]: as visitas de Soleimani às milícias xiitas na Síria e no Iraque; uma comunicação desconhecida ao Presidente iraniano, que poderia muito bem ter sido um pedido de licença; e a situação tensa em Bagdade, onde um mercenário americano fora morto num motim. A ideia do assassinato partiu de Richard Goldberg, membro do Conselho Nacional de Segurança e – ao mesmo tempo – conselheiro da Fundação para a Defesa da Democracia (FDD)[xxiv], uma entidade financiada pelo governo israelita.

Simultaneamente, os americanos procuram abater Abdoul Reza Shahlai, dirigente Huti, no Iémen, mas falharam[xxv]. Esta tentativa tende a desacreditar a justificação de uma «ameaça iminente». Manifestamente, a equipa presidencial joga com os factos, como comprova a sua recusa de fornecer ao Congresso elementos justificativos[xxvi]. O Vice-presidente Mike Pence chega mesmo a afirmar que Soleimani ajudara os terroristas a preparar o «11 de Setembro»[xxvii], dando voz a uma lenda que os americanos adoram: o envolvimento do Irão. No entanto, o relatório da Comissão Parlamentar sobre o 11 de Setembro refere que não há qualquer indicação de que o Irão estivesse envolvido:

(…) existem provas sólidas de que o Irão facilitou a passagem de membros da Al-Qaeda de e para o Afeganistão antes do 11 de Setembro (…) Não encontrámos qualquer prova de que o Irão ou o Hezbollah estivessem ao corrente do planeamento do que viria a ser o ataque do 11 de Setembro[xxviii].

É evidente que lhe pode ser imputado o mesmo erro que à Alemanha, muito abaixo da responsabilidade dos próprios Estados Unidos (que sabiam, mas não agiram!). Para além disso, o relatório não menciona Soleimani uma única vez.

Portanto, como de costume, Trump, Pompeo e Pence mentem tentando justificar uma acção que é ilegal à luz da legislação americana. A Ordem Executiva 12333, assinada pelo Presidente Ronald Reagan em 1981[xxix], define os papéis e as missões da comunidade de serviços secretos dos EUA e estipula que «nenhuma pessoa empregada ou actuando em nome do Governo dos Estados Unidos se envolverá, ou conspirará para se envolver, em assassinatos», o que formaliza assim uma política já estabelecida pelo Presidente Gerald Ford em 1976.

Os meios de comunicação anglo-saxónicos – de todos os quadrantes – questionaram a noção de «ameaça iminente» que justificava o assassinato, porque esta desmoronava-se a cada dia que passava[xxx]. A 12 de Janeiro, o Secretário da Defesa, Mark Esper, declarou ao canal CBS que não tinha visto qualquer informação sobre essas ameaças[xxxi], tal como a administração do Departamento de Estado[xxxii]. Quando questionado na France 24 sobre o envolvimento de Israel na operação, o porta-voz do exército israelita, tenente-coronel Jonathan Conricus, optou pela via mais fácil, afirmando que a operação fora chefiada pelos Estados Unidos e que Israel não fazia parte dela. Esta é apenas uma parte da verdade, porque a informação sobre a «ameaça iminente» veio de Israel[xxxiii]. E a 13 de Janeiro, Mike Pompeo confessa:

Qasem Soleimani planeou uma série de ataques iminentes, embora não saibamos quando ou onde exatamente, mas planeou[xxxiv].

No mesmo dia, Donald Trump confessou que o problema não era a «ameaça iminente», mas sim o «passado horrível[xxxv]» do general!

Estava a referir-se à sua alegada responsabilidade pela morte de 600 soldados americanos no Iraque desde 2003. Esta acusação é difundida em França por meios de comunicação pró-israelitas, como Dreuz.info[xxxvi], mas é falsa: o porta-voz do Pentágono confessa que «não dispõe de estudos, documentação ou dados para disponibilizar aos jornalistas que possam confirmar estes números[xxxvii]». Sem confirmação, o número 600 não foi originalmente atribuído a Soleimani, mas ao Irão[xxxviii]. O que também é uma mentira: teve origem em Janeiro de 2007, quando o Vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, procurava pretextos para atacar o Irão. Após a recusa unânime e categórica dos generais do Joint Chiefs of Staff [Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas] em atacar as capacidades nucleares iranianas sobre as quais não havia qualquer informação[xxxix], Cheney afirmou que o Irão tinha fornecido minas direcionais anti-carro (responsáveis pelas mortes em causa)[xl]. Nova mentira: os engenhos foram fabricados no Iraque[xli], com material comprado nos Emirados Árabes Unidos, como confirma a muito insuspeita Janes Intelligence Review[xlii].

Em França, os meios de comunicação dividem-se entre o ódio a Donald Trump e o apoio cego à sua política para o Médio Oriente, mas a mensagem do Governo Trump é transmitida de forma bastante subserviente. No programa «C dans l’air» de 3 de Janeiro, o jornalista François Clemenceau disse que o General Soleimani é [uma] «figura central que tem estado constantemente a confrontar os Estados Unidos há muito tempo, não só desde o início da guerra no Iraque em 2003, mas mesmo antes disso[xliii]O que ele fez foi retransmitir um tweet de Trump[xliv], mas isto é desinformação. O Irão não só apoiou os Estados Unidos no Afeganistão, tirando partido das suas boas relações com a comunidade Hazara, como também os ajudou durante a revolta de Herat em 2001:

As equipas de operações especiais americanas eram constituídas pelos US Army Rangers e pela Força Delta, sob o comando do general Tommy Franks do CENTCOM. As forças iranianas eram constituídas por agentes da Força Al-Quds sob o comando do major-general Yahya Rahim Safavi, Comandante dos Guardas da Revolução, e do major-general Qasem Soleimani, Comandante da Força Al-Quds do Irão[xlv].

O Courrier International faz mesmo o título com «Boa solução»[xlvi], sem felicitar nem culpar os americanos. Ironicamente, é também esta a posição adoptada pelo EI na sua revista de propaganda Al-Nabd[xlvii]!... Em 2015, o Irão apoiou a coligação internacional no Iraque na sua luta contra o EI. Na reconquista da cidade de Tikrit, as forças apoiadas pelo Irão beneficiaram mesmo de apoio aéreo americano, tendo a revista Newsweek citado o general Dempsey:

(…) sem a ajuda iraniana e os conselhos de Soleimani, a ofensiva sobre Tikrit não teria sido possível[xlviii].

O papel do Irão está imerso numa atmosfera de distorção dos factos, em linha com a retórica israelita. Por exemplo, France 5 afirma que, no Verão de 2006, o General Soleimani «combateu ao lado do Hezbollah[xlix]» contra Israel, o que não é verdade. Soleimani esteve no Líbano durante alguns dias como observador[l], o que não é incongruente tendo em conta os ataques regulares de Israel fora das suas fronteiras, mas não tomou parte nos combates (nem é claro por que razão o teria feito). Circulam listas de «crimes» de Soleimani[li], mas não passam de um conjunto de rumores.

Soleimani foi eliminado com Abou Mahdi al-Mohandes, apresentado pela France 24 como «lugar-tenente» de Soleimani no Iraque[lii]. Na realidade, ele não tinha qualquer ligação orgânica com os Guardas da Revolução Iraniana, mas era o chefe das Unidades de Mobilização Popular (PMU) iraquianas. As PMU foram criadas para colmatar as falhas do exército iraquiano na luta contra o Estado Islâmico no norte do país. Classificadas como «milícias pró-iranianas» pela imprensa ocidental, o seu carácter iraquiano é minimizado[liii], mas reflectem a composição do país na medida em que incluem uma maioria de xiitas, com sunitas, turcomanos, curdos e iazidis.

De facto, em 5 de Janeiro de 2020, durante os debates no Parlamento iraquiano sobre a manutenção da presença militar estrangeira, Adil Abdul-Mahdi, primeiro-ministro iraquiano, revelou que Soleimani estava numa missão diplomática de paz: deveriam ter um encontro a 3 de Janeiro para transmitir a resposta do Irão tendo em vista um abrandamento das tensões com a Arábia Saudita, negociado pelo Iraque. Foi por essa razão que Soleimani se dirigiu a Bagdade num voo regular e passou pela imigração com o seu passaporte diplomático, o que torna bastante improvável a ideia de que estivesse a preparar uma acção clandestina. Na verdade, é muito provável que os serviços americanos estivessem a par desta iniciativa de paz e opunham-se a essa eliminação, o que explicaria por que razão o comunicado do Pentágono de 2 de Janeiro enfatiza a origem presidencial da decisão[liv]. Mas nenhum meio de comunicação tradicional deu conta desta informação.

Em 6 de Janeiro, de forma bastante decepcionante, a declaração conjunta de Alemanha, França e Grã-Bretanha (signatárias do JCPOA) menciona «o papel negativo» do Irão no Médio Oriente, mas não o assassinato[lv]. Além disso, a França não condena o assassinato de um emissário em missão diplomática, mas apenas a reacção iraniana[lvi]. Em Julho de 2020, a ONU condenará este ataque, qualificado como injustificado e ilegal[lvii]. No que diz respeito ao Médio Oriente, verifica-se que os meios de comunicação tradicionais tendem a seguir uma linha bastante favorável a Trump, ao arrepio dos valores e do respeito pelo direito internacional que dizem professar.

Independentemente do que se pense do general Soleimani, o problema aqui é que se aceita o princípio de que «os fins justificam os meios»: é exactamente o mesmo raciocínio dos terroristas do Estado Islâmico e choca contra os «valores» que pretendemos defender. Além disso, os únicos que realmente se alegraram com este assassinato – além dos americanos e israelitas, o que não é muito surpreendente – são os jihadistas do enclave de Idlib, na Síria[lviii], e do Estado Islâmico[lix]. A página da Internet do ministério paquistanês da Defesa refere mesmo que esta eliminação poderia conduzir a um renascimento do Estado Islâmico[lx]! Como de costume, os dirigentes ocidentais privilegiam políticas baseadas em acções tão pouco ponderadas e espectaculares quanto inúteis. /…/

5. Conclusões sobre a ameaça iraniana

A ameaça iraniana é artificial. Alimentada por um sentimento profundo de vingança por parte dos americanos, que não conseguiram antecipar a revolução de 1979, tem agora um único objetivo: fracturar o eixo Teerão-Damasco [Nota do tradutor: fractura concretizada com a tomada do poder na Síria pelos terroristas islâmicos do Hayat Tahrir al-Sham, em finais de 2024], criado pela intervenção americano-britânica no Iraque e que assusta as monarquias do Golfo. Quanto à ameaça contra Israel, é igualmente artificial e não tem qualquer fundamento histórico. Em contrapartida, alimenta um discurso musculado de ambos os lados, destinado a criar uma unidade nacional para fins de política interna. Neste contexto, a instabilidade regional serve Benjamin Netanyahu, que se esforça por reunir uma maioria a seu favor para as eleições de 2019-2020. É por isso que lança repetidas provocações contra os seus vizinhos, a Palestina, a Síria e o Irão[lxi].

O Ocidente nunca compreendeu o Irão e o funcionamento do Médio Oriente: as suas políticas só tiveram efeito contrário aos objectivos que pretendiam alcançar. As sanções e acções clandestinas, directas ou indirectas, com o apoio de grupos terroristas, apenas serviram para que a população cerrasse fileiras. Com uma população iraniana muito pró-ocidental, uma mudança de regime poderia ser efectuada quase de imediato, aliviando todas as sanções que pesam sobre o país e encorajando a sua prosperidade... Mas o Ocidente está demasiado preso aos seus preconceitos. Em Maio de 2019, no decurso de uma visita a Bagdade, Ali Khamenei, Dirigente Supremo da Revolução, afirmou:

Graças a Deus por nos ter concedido inimigos tão estúpidos[lxii]!

Ali Khamenei
O dirigente supremo do Irão, Ayatollah Ali Khamenei


/…/



Notas e Referências


[*] Conservei a expressão Fake News [notícias fraudulentas] porque faz parte do título original do livro de Jacques Baud (em francês): Gouverner par les Fake NewsNota do Tradutor.

[i] Greg Myre, «Israelis in a Shiite Land: Hard Lessons From Lebanon», The New York Times, 27 de Abril de 2003

[ii] Ronen Bergman, The Secret War with Iran, Oneworld, Oxford, 2008 (p. 58)

[iii] Dov Waxman, Trouble in the Tribe: The American Jewish Conflict over Israël, Princeton University Press, 2016 (pp. 316)

[iv] Donald Neff, «Israël Charged with Systematic Harassment of U.S. Marines», Washington Report on Middle East Affairs, Março de 1995, pp. 79-81.

[v] Alain Brouillet, « La seconde force multinationale à Beyrouth (24 de Setembro de 1982-31 de Março de 1984) », Annuaire français de droit international, volume 31, 1985. pp. 115-166

[vi] Nir Rosen, «Lesson Unlearned », Foreign Policy, 29 de Outubro de 2009 (http://foreignpolicy. com/2009/10/29/lesson-unlearned/).

[vii] «La prima guerra del golfo: Iran-Iraq (1980-1988)», archivio900.it, 8 de Agosto de 2006

[viii] Ostrovsky, Victor & Claire Hoy, By Way of Deception, New York, St. Martin's Press, 1990, p. 321.

[ix] Jornal televisivo das 20 horas, Antenne 2, 23 de Outubro de 1983; William E. Farrell, "Unanswered Question: Who Was Responsible?", The New York Times, 25 de Outubro de 1983

[x] Nir Rosen, "Lesson Unlearned", Foreign Policy, 29 de Outubro de 2009

[xi] Ver, por exemplo, Samuel M. Katz & Lee E. Russell, Armies in Lebanon 1982-84, Osprey Publishing Ltd, Londres, 1985

[xii]  https://www.cia.gov/library/readingroom/docs/DOC_0000361273.pdf; Jonathan Masters & Zachary Laub, «Hezbollah», Council on Foreign Relations, 3 de Janeiro de 2014; «Profile: Lebanon's Hezbollah movement», BBC News, 15 de Março de 2016

[xiii] Jean-Jacques Mevel, « L’UE place le Hezbollah sur la liste noire du terrorisme », lefigaro.fr, 22 de Julho de 2013

[xiv] Será misteriosamente assassinado em Damasco em 2008, provavelmente por um israelita.

[xv] Frontline - Target America, Entrevista de Caspar Weinberger, (http://www.pbs.org/ wgbh/pages/frontline/shows/target/interviews/weinberger.html) (consultado no dia 16 de Agosto de 2019)

[xvi] http://archive.defense.gov/home/features/2008/1008_beirut/

[xvii] Veronica Stracqualursi & Jennifer Hansler, «Pompeo: Strike on Soleimani disrupted an 'imminent attack' and 'saved American lives'», CNN, 3 de Janeiro de 2020

[xviii] Discurso de Adil Abdul-Mahdi perante o Parlamento iraquiano, 5 de Janeiro de 2020.

[xix] https://twitter.com/aseyedp/status/1179852662449135616

[xx] Julian E. Barnes, «U.S. Launches Airstrikes on Iranian-Backed Forces in Iraq and Syria», The New York Times, 29 de Dezembro de 2019

[xxi] Alissa J. Rubin, «Was U.S. Wrong About Attack That Nearly Started a War With Iran? », The New York Times, 6 de Fevereiro de 2020

[xxii] «Pompeo, Netanyahu discuss Iran's 'malign influence after Soleimani strike», The Times of Israël, 4 de Janeiro de 2020

[xxiii] https:/ /twitter.com/rcallimachi/status/1213421769777909761

[xxiv] www.fdd.org/ analysis/2020/01/02/u-s-kills-irans-qods-force-commander-and-iraqs-deputy­-leader-in-strike-in-baghdad

[xxv] Eric Schmitt, Edward Wong & Julian E. Barnes, «U.S. Unsuccessfully Tried Killing a Second Iranian Military Official», The New York Times, 10 de Janeiro de 2020

[xxvi] Rebecca Klar, «Esper: Gang of 8 'did not think' further intelligence on Iranian threat should be with Congress», The Hill, 12 de Janeiro de 2020

[xxvii] Steve Benen, «Why Pence's falsehood about Soleimani and 9/11 matters», MSNBC News, 6 de Janeiro de 2020

[xxviii] The 9/11 Commission Report (Authorized Edition), Norton & Company, Nova Iorque, 22 de Julho de 2004, p. 241

[xxix] Executive Order 12333 - United States Intelligence Activities (As Amended by Executive Orders 13284 (2003), 13355 (2004) and 13470 (2008), 4 de Dezembro de 1981, número 2.11 (www.cia.gov/about­cia/eo12333.html)

[xxx] Aaron Blake, «Trump's 'four embassies' claim utterly falls apart», MSN News, 13 de Janeiro de 2020

[xxxi] Valerie Volcovici, «Pentagon chief says no specific evidence Iran was plotting to attack four U.S embassies», Reuters, 12 de Janeiro do 2020; Robert Burns, «Defense Secretary Mark Esper Says He 'Didn't See' Evidence That 4 U.S. Embassies Were Under Threat From Iran», Time/AP, 12 de Janeiro de 2020; Peter Baker & Thomas Gibbons-Neff, «Esper Says He Saw No Evidence Iran Targeted 4 Embassies, as Story Shifts Again», The New York Times, 12 de Janeiro de 2020.

[xxxii] Sonam Sheth, «Stace Department was reportedly unaware of an 'imminent threat' to 4 US embassies, blowing a hole through Trump's claims», Business Insider, 13 de Janeiro de 2020

[xxxiii] «Israeli intel helped US carry out strike that killed Iran's Soleimani - report», The Times of Israël, 12 de Janeiro de 2020

[xxxiv] Mike Pompeo a Laura Ingraham, FOX News, 9 de Janeiro de 2020

[xxxv] https://tiwitter.com/realDonaldTrump/status/1216754098382524422

[xxxvi] « Report : Iran Killed 600 U.S. Soldiers in the Iraq War », The National Interest, 3 de Abril de 2019 ; Jean-Patrick Grumberg, « Plus important que Ben Laden et Baghdadi, le chef militaire iranien Qasem Soleimani a ete éliminé », dreuz.info, 3 de Janeiro de 2020

[xxxvii] Gareth Porter, «Lies About Iran Killing US Troops in Iraq Are a Ploy to Justify War», Truthaut.org, 9 de Julho de 2019

[xxxviii] Kyle Rempfer, «Iran killed more US troops in Iraq than previously known, Pentagon says», Military Times, 4 de Abril de 2019

[xxxix] Gareth Porter, «Military Resistance Forced Shift on Iran Strike», Inter Press Service News Agency, 18 de Outubro de 2007

[xl] NdA: na realidade são dispositivos anticarro com projécteis formados por explosão (em inglês, Explosive Formed Penetrators ou EFP) concebidos para penetrarem as blindagens mais espessas dos veículos militares

[xli] Gareth Porter, «U.S. Military Ignored Evidence of Iraqi-Made EFPs», Inter Press Service News Agency, 25 de Outubro de 2007

[xlii] Michael Knights, «Struggle for Control», Jane's Intelligence Review, Janeiro de 2007, pp 18-23

[xliii] François Clemenceau clans l'émission « C clans l’air », « Trump/Iran : la guerre est-elle déclarée ? #cdanslair 03.01.2019», France5/YouTube, 4 de Janeiro de 2020, (06'16")

[xliv] https://twitter.com/ realDonaldTrump/stams/1213096352072294401

[xlv] Wikipedia, página «2001 uprising in Herat»

[xlvi] « Bete noire. La mort de Soleimani vue du Golfe : bon debarras », Courrier international, 3 de Janeiro de 2020

[xlvii] https:/ /twitter.com/Minalami/status/1215558269588201472

[xlviii] Jack Moore, «Iranian Military Mastermind Leading Battle to Recapture Tikrit from ISIS», Newsweek, 5 de Março de 2015

[xlix] « Crash du Boeing 737: l'Iran accusé #cdanslair 10.01.2019», France5/YouTube, 11 de Janeiro de 2020 (48'48")

[l] « Shadowy Iran commander gives interview on 2006 Israël-Hezbollah war », France24.com, 10 de Janeiro de 2019

[li] Jean-Patrick Grumberg, « La liste terrifiante des activités terroristes et criminelles de Qassem Soleimani », dreuz.info, 7 de Janeiro de 2020

[lii] Jornal das 12h30, France 24, 24 de Janeiro de 2020

[liii] Wikipedia, artigo «Hachd al-Chaabi»

[liv] Statement by the Department of Defense, 2 de Janeiro de 2020, (www.defense.gov/Newsroom/ Releases/Release/Article/2049534/statement-by-the-department-of-defense/)

[lv] Declaração conjunta do Presidente da República Francesa, da Chancelaria Federal da Alemanha, do primeiro-ministro do Reino Unido, Elysee.fr, 6 de Janeiro de 2020

[lvi] « Après la mort de Soleimani, Macron veut « éviter une escalade dangereuse » », Reuters, 3 de Janeiro de 2020

[lvii] « Frappe US « illégale et arbitraire », selon une experte des Nations unies », www.20min.ch, 7 de Julho de 2020

[lviii] https://twitter.com/naveedkhizer/status/1213145880250998784

[lix] Ryan Fahey, «ISIS welcomes the death of lran's Qaseem Soleimani and declare it an act of ‘divine intervention' that will let them regroup in Iraq», Daily Mail, 10 de Janeiro de 2020; Jeremy Bowen, «Qassem Soleimani: Why his killing is good news for IS jihadists», BBC News, 10 de Janeiro de 2020; Jeremy Bowen, «"L’assassinat de Qassem Soleimani est une bonne nouvelle pour le groupe "Etat islamique"», BBC News, 10 de Janeiro de 2020

[lx] «ISIS praises US assassination of Iranian general Soleimani as 'divine intervention that will help rise again», defence.pk, 11 de Janeiro de 2020

[lxi] Dahlia Scheindlin, « Netanyahu Needs Conflict to Survive », Foreign Policy, 16 de Maio de 2018; Bel Trew, « Netanyahu's gamble with Gaza may save his political career but spark a complex drawn-our conflict », The Independent, 13 de Novembro de 2019

[lxii] https://afaq.tv/contents/view/details?id=87510.