TERTÚLIA ORWELLIANA

Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

16 março, 2025

 

As eleições federais na Alemanha (2025), o “plano de rearmamento da Europa”

e o Quarto Reich alemão

José Catarino Soares


Com o turbilhão e o rebuliço político, comercial e mediático causados pelas intervenções de Donald Trump e do seu governo no aparelho de Estado dos EUA, na Ucrânia, na UE, na OTAN (/NATO) e em Israel, corre-se o risco de deixar passar em claro outros acontecimentos importantes, mas não tão mediatizados.

As eleições federais na Alemanha são um deles. A Alemanha é o país economicamente mais industrializado e mais poderoso da Europa (exceptuando a Rússia).  Politicamente é um “estratovulcão” com um futuro cheio de ameaças com origem nele próprio. É impossível ser indiferente ao que lá se passa, porque afecta toda a Europa.

1. Resultados eleitorais de 23 de Fevereiro de 2025

A participação nas eleições federais na Alemanha subiu para 82,5%, a taxa mais alta desde a reunificação do país, em 1990. Os resultados foram os seguintes:

― CDU+CSU (União Democrata-Cristã + União Social-Cristã) [partido da direita globalista, católico-conservadora e ordoliberal]: 14 milhões e 158.482 votos, 28,52%, 208 deputados (+11 deputados relativamente a 2021)

― AfD (Alternativa para a Alemanha) [partido da direita chauvinista, social-conservadora e “mercado-libertarista[1]]: 10 milhões e 327.148 votos, 20,8%, 152 deputados (+ 69)

― SPD (Partido Social-Democrata) [partido social-democrata 6.0]: 8 milhões e 148.284 votos, 16,41%, 120 deputados (-89)

― Die Grüne (Os Verdes) [partido ambientalista e belicista]: 5 milhões e 761.476 votos, 11,61%, 85 deputados (-33)

― Die Linke (A Esquerda) [partido neosocial-democrata 1.0]: 4 milhões e 355.382 votos, 8,8%, 64 deputados (+25)

Não elegeram deputados:

― BSW (Aliança Sahra Wagenknetch) [partido neosocial-democrata 2.0]: 2 milhões e 468.670 votos, 4,97%

― FDP (Partido dos Democratas Livres) [partido liberal]: 2 milhões e 148.878 votos, 4,3%

― Outros: 2 milhões e 197.691 votos, 4,4%.

N.B. O SPD foi fundado em 1869 como Partido Social-Democrata dos Trabalhadores da Alemanha (SDAP na sigla alemã). Em 1875, ao fundir-se com a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães (ADAV no acrónimo alemão), mudou o nome para Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha, mantendo, porém, a sigla SDAP. Em 1890, tornou a mudar de nome para Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD), nome que conservou até aos dias de hoje.

Passou, entretanto, por várias fases que o transformaram profundamente. Uma maneira expedita de assinalar essas transformações é dar-lhes uma forma semelhante à das novas versões ou gerações de uma aplicação informática ou de uma rede informática. SPD 1.ª fase: 1890-1914 (SPD 1.0); SPD 2.ª fase: 1914-1933 (SPD 2.0); SPD 3.ª fase: 1933-1945 (SPD 3.0); SPD 4.ª fase: 1945-1959 (SPD 4.0); SPD 5.ª fase: 1959-2022 (SPD 5.0); 6.ª fase: 2022-20?? (SPD 6.0).

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1889. Deputados social-democratas no Reichstag (parlamento do Império alemão). O terceiro homem em pé, a partir da esquerda, e o terceiro homem sentado, a partir da esquerda -- Wilhelm Liebeknetch e August Bebel, respectivamente -- foram os fundadores do SDAP, a primeira versão do SPD. Foto: Julius Braatz.


2. A derrocada dos partidos da coligação governamental

O SPD (partido principal da coligação governamental derrotada) teve a pior votação de sempre desde 1887 (!). Os Verdes (o segundo maior partido da coligação governamental derrotada) perdem 1 milhão e 52.925 votos. O FDP (o terceiro partido da coligação governamental derrotada) não consegue eleger deputados.

Não há qualquer mistério na derrocada destes partidos governamentais. O governo de coligação SPD-Verdes-FDP foi, com razão, o governo mais execrado da história da Alemanha do pós-2.ª Guerra Mundial. Oitenta anos após a guerra de extermínio lançada pelo regime nazi contra a União Soviética (na qual a Rússia era o núcleo), esse governo voltou a enviar tanques alemães contra a Rússia, apoiou métodos de genocídio do nazismo em Gaza, expandiu o Estado policial na Alemanha [2], provocou neste país a recessão económica em 2023, 2024 e muito possivelmente 2025, fez recuar o PIB real, reduziu o investimento produtivo, manteve os salários reais abaixo dos níveis pré-pandemia COVID-19, aumentou o número de desempregados para quase 3 milhões (o que acontece pela primeira vez numa década), aumentou o número de alemães que não ganha o suficiente para chegar ao fim do mês para ¼  da população com a sua política a favor dos ultra-ricos, do complexo militar-industrial euro-americano e de apoio à guerra na Ucrânia. Chegou ao cúmulo de fazer vista grossa quando o seu “tutor” (os EUA) destruiu com explosivos o gasoduto Nord Stream-2 e danificou gravemente o gasoduto Nord Stream-1.

Não foram só os custos do gás natural e da electricidade que dispararam para as famílias e para as empresas civis alemãs, especialmente no sector da indústria transformadora, em virtude do corte abrupto nas importações do gás natural barato oriundo da Rússia. Foram também os investimentos e a capacidade de inovação das empresas que foram profundamente afectadas.

«A Câmara Alemã de Indústria e Comércio (DIHK) comentou: “Os elevados preços da energia também afetam as atividades de investimento das empresas e, portanto, a sua capacidade de inovação. Mais de um terço das empresas industriais afirmam que atualmente conseguem investir menos em processos operacionais essenciais devido aos elevados preços da energia”» [3].

3. A vitória pífia da CDU

O partido mais votado nas eleições legislativas federais da Alemanha para o Bundestag (parlamento alemão) foi a CDU (+ CSU), mas teve a segunda pior votação de sempre. (A sua pior votação de sempre foi nas eleições anteriores, em 2021).  Isto tem também uma explicação simples, como veremos seguidamente (secções 4, 5, 6, 7).

4. As falsas alternativas

Todos estes partidos (SPD, Verdes, FDP, CDU) são pró-OTAN (/NATO),  pró-apoio militar, económico e financeiro ao esforço da Ucrânia na sua guerra de procuração contra a República Popular de Donetsk, a República Popular de Lugansk e a Rússia; pró-continuação dessa guerra até ao último soldado ucraniano; pró-sanções à Rússia (incluindo o confisco dos activos da Rússia depositados em bancos ocidentais); pró-Israel e a favor da sua política sionista de genocídio, purga étnica, ocupação e colonização da Palestina.

Os eleitores alemães que quiseram opor-se a esta política através do seu voto não tiveram qualquer possibilidade de o fazer através dos chamados partidos de oposição, ainda que muitos tenham tido, porventura, essa ilusão.

O Die Linke apoiou abertamente, em várias ocasiões, incluindo em moções aprovadas na sua conferência federal em 11 de Outubro de 2024 e no Bundestag em 17 de Outubro de 2024, o governo SPD-Verdes-FDP no que concerne ao seu indefectível apoio a Israel (incluindo o genocida Netanyahu) e à Ucrânia de Zelensky.  

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Bodo Ramelow, do partido Die Linke, primeiro-ministro do Estado federado da Turíngia, hasteia a bandeira de Israel em 7 de Outubro de 2024, no primeiro aniversário da surtida do Hamas em Israel.


A AfD critica a guerra na Ucrânia, o apoio militar a Zelensky e as sanções económicas contra a Rússia, mas apoia Israel e Netanyahu contra os Palestinianos.

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Tino Chrupalla e Alice Weidel, co-dirigentes da AfD. Foto: Sebastian Kahnert, dpa/ picture alliance


Em 7 de Novembro de 2024, no mesmo dia em que a coligação governamental se desmoronava, os partidos que dela faziam parte (SPD, Verdes, FDP) propuseram no Bundestag uma denominada “resolução sobre o anti-semitismo” que foi votada favoravelmente e com muito júbilo pela direita chauvinista, social-conservadora e “mercado-libertarista (AfD) e pela direita globalista, católica-conservadora e ordoliberal (CDU/CSU).

O Die Linke absteve-se nesta resolução, mas o seu porta-voz, Grgor Gysi, fez questão em demonstrar que o seu partido aprovava a orientação básica da resolução, ao afirmar: «A existência e segurança do Estado de Israel fazem parte da razão de Estado [entender: da razão de ser como Estado, n.e.] da Alemanha» [n.e. = nota editorial]

Jan van Aken e Heidi Reichinnek, os principais candidatos do Die Linke nas eleições federais de 2025. Foto: Die Linke

 

Essa resolução qualifica todos os críticos do terrível genocídio em Gaza de anti-semitas, amalgamando anti-sionismo e anti-semitismo, e apoia o morticínio dos palestinianos, que glorifica como “autodefesa” de Israel. Por exemplo, qualquer pessoa que ponha em causa o direito de existir do Estado de Israel e que defenda uma República una, laica e democrática da Palestina — isto é, abrangendo todo o território do rio Jordão até ao mar Mediterrâneo, e com direitos e deveres de cidadania iguais e representação política igual para palestinianos (muçulmanos, cristãos, não-crentes), sabras [judeus nascidos na Palestina], beduínos, drusos e circassianos é apelidada de “anti-semita”.

Os deputados do que é hoje a BSW foram os únicos a votar contra essa resolução e a BSW é o único partido que critica a guerra por procuração na Ucrânia e apela ao fim do genocídio em Gaza. No entanto, isso não a impede de assumir por inteiro «a responsabilidade de defender sem qualquer reserva o direito de Israel a existir», como diz Sahra Wagenknecht (a dirigente máxima do BSW).

Mais, a BSW, tal como a AfD, criticou a política governamental, mas de um ponto de vista geopolítico. Por exemplo, a BSW apoia o rearmamento e o militarismo da Alemanha e dos países da UE; pretende apenas desenvolvê-los de forma mais independente dos EUA. «A Europa tem de decidir se quer ocupar o seu próprio lugar neste novo mundo multipolar ou se quer morrer como vassalo dos Estados Unidos», disse Sahra Wagenknecht no Bundestag (parlamento federal alemão), no dia 6 de Novembro de 2024.

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Dirigentes da BSW no congresso de fundação do partido, em 27 de Janeiro de 2024. Sahra Wagenknecht é a senhora de vermelho.


Mesmo assim, graças, em particular, às suas flores de retórica a favor de uma “paz justa” na Ucrânia e de uma “solução justa” na Palestina, e, sobretudo, graças ao carácter odioso das políticas públicas do governo no plano externo e interno, a AfD, o Die Linke e a BSW tiveram bons resultados eleitorais.

A AfD passou a ser o segundo maior partido do país. O Die Linke quase duplicou de votação relativamente a 2021. A BSW uma cisão do Die Linke que se constitui legalmente como partido apenas em 2024 e que disputava eleições federais pela primeira vez esteve a beira de atingir os 5% exigidos por lei (faltando-lhe apenas 0,03% ou 13.400 votos) para entrar no Bundestag e eleger 30 deputados.

5. Origem e função da CDU

Convém saber qual foi a origem e a função inicial da CDU+CSU (doravante CDU, para abreviar), o partido vencedor das eleições federais de 2025.

A CDU nasceu em 1949, no rescaldo da derrota da Alemanha nazi, e foi desde o seu início o interlocutor privilegiado das forças ocidentais de ocupação da Alemanha (EUA, Reino Unido, França) e, em seguida, dos sucessivos governos americanos, a mais poderosa componente dessas forças. Foi formada a partir de antigas figuras da direita católica-conservadora da República de Weimar (o Partido do Centro e o Partido do Povo da Baviera), mas também de personalidades do Partido Nazi. Vale a pena lembrar, a este propósito, o percurso de Konrad Adenauer, presidente da CDU e chanceler da Alemanha durante 14 anos (1949-1963):

«Konrad Adenauer, defensor apaixonado da divisão da Alemanha no imediato pós-Primeira Guerra, advogara a criação de uma Renânia independente, projecto considerado como traição ao povo alemão. Por alturas da ascensão dos nazis ao poder, muito embora fosse demitido das suas funções e alvo de alguma perseguição política, Adenauer defendeu, até 1933, a convergência entre o Partido do Centro e o partido de Hitler. Durante a vigência do regime hitleriano, só foi incomodado quando, após a tentativa de golpe de Estado contra Hitler, em 1944, foi detido durante algumas semanas, e logo libertado.

«No pós-guerra, coube a Adenauer recusar a proposta de Estaline para a criação de um único Estado alemão, conquanto este fosse neutral, tal como aconteceria com a Áustria. A CDU, que tanto blasona por ter sido a artífice da reunificação alemã, opôs-se a um Estado unificado em 1950. A função de tal partido era, pois, o de estabilizar o Centro e Norte da Europa no quadro da dominância dos EUA. /…/ A questão que se coloca é, pois, a de saber para que serve actualmente a CDU, pois que o corte das relações transatlânticas está-se a desenvolver celeremente» [4].

A pergunta é muito pertinente. Os EUA de Trump querem ter relações normais com a Rússia; cortar nas despesas que fazem com a OTAN (/NATO), reduzindo-as à porção côngrua na Europa; diminuir muito a sua esfera de acção militar; impor tarifas às importações oriundas dos países-membros da UE e do Reino Unido (RU) e, se possível, desmantelar a UE.

A Rússia quer (i) uma Ucrânia militarmente neutra, sem armas nucleares e desmilitarizada; (ii) afastar a OTAN (/NATO) das suas fronteiras, fazendo recuar o seu potencial militar ‒ incluindo, em primeiro lugar, o seu arsenal nuclear, e, por conseguinte,  a ameaça permanente que representa à existência da Rússia ‒ se possível, para um nível equivalente ao das forças da OTAN (/NATO) estacionadas na Europa em 27 de Maio de 1997; (iii) reatar as suas exportações normais (sobretudo de gás natural e petróleo) para a UE; (iv) estabelecer um quadro global de segurança  mútua com os EUA, o Reino Unido (RU) e os países da UE.

Tendo em conta a nova correlação de forças entre os EUA, a Rússia, a UE e o RU e os novos papéis que os EUA e a Rússia passarão a desempenhar no continente europeu com o fim da guerra na Ucrânia, não parece plausível a reedição nem do regime “ordoliberal sob tutela dos EUA” de Adenauer, nem do regime “ordoliberal com acordos comerciais com a Rússia” de Merkel. Assim sendo, como salienta o autor supracitado, «o futuro e a utilidade [da CDU alemã] estão envoltos em incerteza e mistério» [5].

Mas talvez a incerteza e o mistério não sejam tão grandes quanto aparentam. O próximo chanceler da Alemanha, Franz Merz, é o actual presidente da CDU. E sabemos quem é Merz e ele não esconde ao que vem.

6. Quem é Friedrich Merz

A Alemanha tornar-se-á o primeiro país a ser governado por um ex-gestor de topo da BlackRock, o maior fundo de investimentos do planeta, uma firma financeira multinacional (16.000 empregados em 30 países), com sede nos EUA, que gere uma carteira de activos (em 18.000 empresas) estimada em 11,6 biliões (1 bilião = 1 milhão de milhões) de dólares americanos [6] — quase três vezes mais do que o PIB da Alemanha.  Entre 2016 e 2020, Franz Merz foi o homem-chave da BlackRock na Alemanha, na sua qualidade de presidente do Conselho de Supervisão desta firma.

As suas ligações às instituições da oligarquia financeira são, porém, muito mais antigas. Durante mais de duas décadas, bem antes de entrar para a BlackRock, Merz encarnou da maneira mais óbvia a porta giratória entre política, grandes negócios e alta finança.

O artigo de Thomas Fazi (ver nota 7) é muito esclarecedor a este respeito. Por exemplo, Merz, hoje com 69 anos, aderiu à CDU durante a sua juventude, quando ainda era estudante. Foi subindo na hierarquia do partido até chegar, em 2002, a adjunto de Angela Merkel, na altura presidente do grupo parlamentar da CDU no Bundestag. No entanto, a relação entre os dois foi conflituosa e Merz demitiu-se dois anos depois, retirando-se gradualmente da cena política até deixar o parlamento em 2009.

No entanto, já antes da sua saída do Parlamento, Merz tinha encontrado a trilha para o Eldorado. Em 2004, foi contratado como advogado sénior pela firma internacional de advocacia, consultoria e pressão-e-barganha (Ingl. lobbying) Mayer Brown, um peso-pesado do sector, com um volume de negócios anual de milhares de milhões de euros.

 
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             Friedrich Merz, o novo chanceler da Alemanha. Foto: Liesa Johannssen/Getty.


Aí, Merz descobriu uma relação muito mais rendosa. Como explica Werner Rügemer, autor do livro BlackRock Germany (2025), quando esteve na Mayer Brown, Merz ajudou a facilitar negócios que promoviam os interesses do grande capital americano na Alemanha, encorajando os investidores americanos a comprar empresas na República Federal.

O resultado foi a venda e reestruturação de milhares de empresas alemãs, o que implicou a redução de postos de trabalho e o congelamento de salários — uma abordagem abertamente elogiada por Merz no seu livro Mehr Kapitalismus wagen [“Atrever-se a mais capitalismo”] (2008). Para dar corpo à tese do seu livro, Merz também fez parte, durante este período, dos conselhos de administração e de supervisão de várias grandes empresas, incluindo o Commerzbank, o HSBC, a companhia de seguros AXA e o promotor imobiliário alemão IVG. Isso fez dele, também, um ultra-rico, um dos convidados de luxo do Fórum de Davos (Suíça) aonde se deslocou em 2024, pilotando um dos seus dois jactos privados, para anunciar que a Volkswagen se sentia parte integrante da economia dos EUA.

Acresce que Merz tem sido também, como dirigente da CDU, um opositor acérrimo do salário mínimo e das leis contra o despedimento sem justa causa, um defensor da redução das prestações sociais e da limitação do poder dos sindicatos e um forte apoiante da privatização dos sistemas de segurança social publico, em benefício de empresas como a BlackRock, ponta de lança dos regimes de pensões privados.

Foi então que a BlackRock lhe bateu à porta. Estavam feitos para se encontrarem e entenderem. Banca, indústria farmacêutica, indústria de electrodomésticos, indústria automóvel, indústrias do entretenimento, indústria agroalimentar, meios de comunicação social e, claro, armamento e guerra — não há praticamente nenhum sector em que a BlackRock não tente lucrar.

«Sob a influência de Merz, por exemplo, a BlackRock tornou-se um dos maiores acionistas não alemães em muitas das empresas mais importantes do país — do Deutsche Bank à Volkswagen, da BMW à Siemens. No entanto, o seu trabalho não se limitou a aumentar os lucros dos acionistas; tratou-se também de moldar um ambiente político em que os interesses das empresas estivessem alinhados com a política governamental. Por uma feliz coincidência, também criou um clima em que alguém como Merz podia facilmente mover-se entre as grandes empresas e o Bundestag» [7].

Por conseguinte, a tomada de posse como chanceler deste proeminentíssimo homem de mão do capital financeiro dar-lhe-á um controlo sem precedentes da maior economia da Europa ocidental, central e oriental.

7. Ao que vem Friedrich Merz

Por duas razões principais. A primeira razão prende-se com “lobistas” alemães e mundiais. É razoável presumir que terem Merz um antigo colega de profissão como chanceler é um sonho tornado realidade. Ou, como diz Rügemer: «Isto é pôr a raposa a tomar conta do galinheiro».


A segunda prende-se com o facto de que as ligações empresariais de Merz também terão impacto na sua política externa. É público e notório que Merz é um apoiante convicto da OTAN (/NATO) e que acredita firmemente no papel dos EUA como garante da “ordem internacional baseada em regras” (ditadas por Washington).  

Esta posição ideológica levou Merz a alinhar com os EUA em questões como o gasoduto Nord Stream-2, apelando ao cancelamento do projecto da sua construção, muito antes da segunda guerra na Ucrânia e da destruição deste gasoduto pelo presidente Biden. Convém relembrar que uma das principais causas contribuintes da recessão da economia alemã em 2023 e 2024 e que é expectável que se prolongue em 2025 «o mais longo período de estagnação económica desde a queda de Hitler em 1945» [8] e da desindustrialização alemã em curso foi a decisão do governo SPD-Verdes-FDP (apoiado incondicionalmente pela CDU), tomada sob forte pressão dos EUA, de se desligar do gás russo, bem mais barato do que o gás natural liquefeito importado dos EUA e do Qatar e do gás natural importado da Noruega — uma decisão tomada à custa dos interesses fundamentais do seu próprio país.

Porém, é claro que Washington tem agora, com o governo Trump, uma política muito diferente em relação à Ucrânia e à OTAN (/NATO). Significa isto que Merz será forçado a abandonar as suas convicções OTANianas pré-Trump e o seu vínculo de servidão voluntária ao seu tutor do outro do Atlântico?

Não necessariamente. Embora a sua forte russofobia e o seu declarado vezo militarista e belicista contra a Rússia estejam em completo desacordo com os esforços de Trump para pôr termo ao conflito armado na Ucrânia e desanuviar as relações com Rússia, a realidade é que as visões destes dois homens são mais convergentes, no médio prazo, do que se poderia julgar à primeira vista.

O que é que, afinal, Trump exige da Europa? Um aumento das despesas militares com a OTAN (/NATO) para 5% do PIB dos seus Estados-Membros que serviriam em grande parte para comprar armamento e munições ao complexo militar-industrial dos EUA e um aumento significativo na assunção das responsabilidades financeiras, económicas e estratégicas na reconstrução e estabilização da Ucrânia, depois de celebrado um acordo de paz entre os EUA e a Rússia — algo que poderia mesmo envolver, segundo alguns governos europeus, o envio de uma força armada europeia de “manutenção da paz” (o que só seria possível se a Rússia o consentisse, o que não se afigura de todo plausível).

7.1. “Rearmar a Europa” contra uma fantasiosa “ameaça russa”

Pelo seu lado, a União Europeia aprovou recentemente (no Conselho Europeu extraordinário de 6 Março de 2025 e no plenário do Parlamento Europeu de 11 de Março de 2025) um “Plano para rearmar a Europa” proposto pela Comissão Europeia em 4 de Março.  

Trata-se de um plano destinado a fortalecer as capacidades militares (em homens, armas e munições) da União Europeia e as suas indústrias militares com investimentos da ordem dos 800 mil milhões de euros, nos próximos 4 anos, contra uma fantasiosa “ameaça russa”. Este objectivo pressupõe que grande parte desse montante total – cerca de 650 mil milhões – resultaria de um aumento de 1,5% do PIB consagrado às despesas militares por cada um dos 27 Estados-membros da UE. A outra parte desse montante (150 mil milhões de euros), que servirá para aumentar a ajuda militar à Ucrânia, seria obtida mediante empréstimos apadrinhados pela Comissão Europeia

Para fazer tudo isso, a Comissão Europeia propôs o recurso a uma eufemisticamente denominada “cláusula nacional de escape” do chamado “Pacto de Estabilidade e Crescimento” que permite aos Estados-membros infringir os sacrossantos “critérios de Maastricht” para evitar o défice excessivo e a dívida excessiva — ou seja, para poderem gastar em soldados, armamento e munições à tripa-forra sem receio de sofrerem medidas punitivas por parte da Comissão Europeia, autoproclamada guardiã daqueles critérios!

A cereja em cima deste bolo monetário envenenado com doses maciças de militarismo, belicismo e russofobia é o facto de a Comissão Europeia e os demais órgãos da União Europeia não hesitarem em espezinhar publicamente não só os critérios de Maastrich que adoptaram (mas que só aplicam quando lhes convém), mas também os próprios Tratados da União Europeia que estão na origem da sua própria existência e que regem o seu funcionamento.

Isto, porque as questões de “defesa”, nos Tratados em que se funda a União Europeia (Tratado da União Europeia e Tratado sobre o funcionamento da União Europeia), não fazem parte dos domínios de competência exclusiva da União Europeia (artigo 3.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia), nem dos domínios de competência partilhada da União com os Estados-membros (artigo 4.º, ponto 2, do mesmo tratado), nem dos domínios facultativos onde União dispõe de competência para desenvolver ações destinadas a apoiar, coordenar ou completar a acção dos Estados-Membros (artigo 6.º do mesmo tratado).  

Daqui se segue que Comissão Europeia não tem competência para formular e propor planos e objectivos de gastos militares para os 27 Estados que compõem a União Europeia. As questões ditas de “defesa” (incluindo os gastos militares) são da exclusiva competência de cada um dos Estados-membros da UE e são-no à luz dos próprios Tratados que fundam a UE.

A directiva ilegal dos órgãos de cúpula da UE para o aumento dos gastos militares dos Estados-membros desta organização baseia-se na alegação de que a Rússia, “depois de ter invadido a Ucrânia para a conquistar e subjugar”, se prepara para invadir e anexar os países bálticos, e, em seguida a Polónia ou a Roménia e sabe-se lá mais o quê, e que os Estados-membros da UE se encontram desarmados perante o poderio militar ofensivo da Rússia.

Mas essas alegações são destituídas de fundamento factual. E basta uma simples comparação numérica para as refutar.

«Actualmente, os gastos militares dos 27 países da UE, somados aos do Reino Unido, são quatro vezes maiores do que os da Rússia, cerca de 400 mil milhões de euros contra 100 mil milhões de euros de uma Rússia em guerra. A estes gastos estratosféricos a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, pretende somar mais 800 mil milhões de euros» [9].

7.2. Os reais objectivos do “plano de rearmamento da Europa”

Na verdade, o “plano de rearmamento da Europa” visa atingir não um objectivo defensivo contra uma alegada ameaça externa (a Rússia), mas um objectivo ofensivo contra duas ameaças internas:

(i) a desvalorização e retração da OTAN (/NATO), como instrumento da hegemonia internacional do seu criador, patrocinador, director, mentor e (até à eleição de Donald Trump) principal financiador (os EUA), resultante do seu declínio económico, financeiro, militar e político e da reorientação das suas prioridades na cena doméstica e internacional;

(ii) a perda de “competitividade” (entender: de lucratividade) da indústria alemã, resultante do repúdio pelo governo alemão do SPD-Verdes-FDP da importação do gás natural russo, muito mais barato do que o gás natural liquefeito importado dos EUA e do Qatar e do gás natural importado da Noruega [10].

O “plano de rearmamento da Europa” (leia-se: dos Estados-membros da UE), ilegalmente proposto pela Comissão Europeia e ilegalmente aprovado pelo Conselho Europeu e pelo Parlamento Europeu, é o de contrariar e, se possível, extinguir esses dois processos, (i) e (ii).

«A Rheinmetall está de olho no espaço vago deixado pela Volkswagen, numa tentativa de expandir as capacidades de armamento da Europa» (Forbes, March 13, 2025). Foto: Fabiano Simmer  pool Getty Images.                                                                                                              
                                                                                                              

Estes objectivos militaristas tanto o objectivo militarista de Trump de aumento das despesas militares com a OTAN (/NATO) para 5% do PIB dos seus Estados-membros europeus, como o objectivo militarista da Comissão Europeia de rearmamento dos Estados-membros da UE que são, afinal, muito semelhantes, desposam completamente a visão do próprio Merz. Desde há muito que ele defende o aumento substancial do orçamento militar da Alemanha, uma posição bem acolhida pelos seus aliados empresariais do complexo militar-industrial alemão e euro-americano — Rheinmetall AG, Diehl Stiftung & Co. KG, Krauss-Maffei Wegmann, Airbus SE, Lockheed Martin Corporation, RTX Corporation, Leonardo S.p.A, etc.

Agora, bastou-lhe juntar-se ao coro daqueles que apelam à “Europa” para «tomar a sua segurança nas suas próprias mãos» e «contruir um exército europeu». Friedrich Merz instou a União Europeia a demonstrar unidade no que diz respeito ao futuro papel da OTAN (/NATO) e avisou que seria inaceitável «se os americanos fizessem um acordo com a Rússia à revelia dos europeus, à revelia da Ucrânia» em quaisquer futuras conversações de paz. 

«A minha prioridade absoluta será fortalecer a Europa o mais rapidamente possível para que, passo a passo, possamos realmente alcançar a independência em relação aos EUA» [11] (declaração de Merz, logo após a vitória da sua coligação, dia 23 de Fevereiro de 2025).  

Todavia, enquanto Merz prometia unir a Europa perante a mudança de posição dos EUA sobre a Ucrânia e sobre da Rússia, também prometeu fazer tudo o que estiver ao seu alcance para manter uma boa relação com os EUA, que afirmou ser vital para ambas as partes (ibidem).

Trump não podia desejar mais. As convicções “mercado-libertaristas” de Merz, semelhantes às de Trump, os laços fortes de Merz com os sectores da alta finança e do mega-empresariado internacional e a sua enraizada subserviência em relação ao “Big Brother” americano, fazem com que esteja bem posicionado para se tornar o “sátrapa” europeu dos EUA, agora que este reconheceu, finalmente, já não ser, e já não ser capaz de continuar a ser, a potência hegemónica  mundial que foi outrora — em especial durante o período que vai de 1991 (data da dissolução da União Soviética) até 2017 (data em que o PIB da China medido em paridade de poder de compra ultrapassou o PIB dos EUA).

Isso colocaria a Alemanha de novo ao leme da União Europeia — mas de uma União Europeia economicamente mais fraca, politicamente mais dividida, militarmente mais arrogante e volúvel (uma combinação explosiva) e, como quase sempre desde o fim da 2.ª Guerra Mundial, estrategicamente subordinada aos EUA. Naturalmente, este acordo tácito Merz-Trump

«será acompanhado de muita retórica sobre a “autonomia” alemã e europeia — e possivelmente até de desacordos públicos acesos entre Berlim e Washington. Na realidade, porém, seria em grande parte uma fachada, pois a nova dinâmica serviria apenas as elites europeias e americanas. As primeiras continuariam a alimentar o medo da Rússia como forma de justificar mais despesas com a defesa, desviando fundos dos programas sociais e legitimando a sua contínua repressão da democracia [entenda-se, dos direitos e das liberdades civis, n.e.].

Quanto às segundas, continuariam a beneficiar da dependência económica da Europa em relação aos EUA. Ao mesmo tempo, pessoas como Merz estariam bem posicionadas para ajudar a canibalizar ainda mais a Europa às mãos do capital americano» [12] [n.e.= nota editorial]

7.3. O Quarto Reich alemão

Tudo indica que Merz e a CDU tentarão formar governo com o SPD 6.0 ou com o SPD 6.0 e os Verdes, ou, se não for possível, com a AfD (embora tenham prometido, na campanha eleitoral não o fazer). Seja qual for a solução governamental e parlamentar encontrada, será, do ponto de vista da população trabalhadora, uma solução ainda pior do que a anterior.  

Como vimos, Merz tem como palavra de ordem imediata a necessidade imperiosa de “rearmamento” da Alemanha e dos Estados-membros da OTAN (/NATO).

Este imperativo, foi, entretanto, confortado com o plano ilegal da União Europeia de proceder a um enorme aumento dos gastos militares dos Estados-membros da UE, os quais pertencem quase todos à OTAN (/NATO).

Este alinhamento de posições não é acidental. Na verdade, o “Plano de rearmamento da Europa” já tinha sido enunciado, com outras palavras, por Mark Rutte, secretário-geral da OTAN (/NATO), durante a 61.ª Conferência de Segurança de Munique, que decorreu de 14 a 16 de Fevereiro de 2025:

«Os membros da OTAN (/NATO) terão de aumentar as suas despesas com a defesa em “consideravelmente mais de 3%” do PIB, disse o Secretário-Geral da NATO, Mark Rutte» [13].

Naturalmente, Rutte sabia do que estava a falar. Num estudo muito recente, publicado apenas 5 dias depois (2 dias antes das eleições federais alemãs) das suas declarações, dois especialistas do Bruegel e do Instituto Kiel para a Economia Mundial [14] publicaram um estudo onde afirmam o seguinte:

«A despesa europeia com a defesa terá de aumentar substancialmente em relação ao do actual nível de cerca de 2% do PIB. Uma avaliação inicial sugere que se justifica, no curto prazo, um aumento de cerca de 250 mil milhões de euros por ano (para cerca de 3,5% do PIB)» [15].

O Financial Times disse, sem floreados, o que implica esse montante de despesas militares para o (impropriamente) chamado “Estado Social” (Escola Pública, Serviço Nacional de Saúde, Segurança Social pública, Protecção Civil, Desporto Escolar):

Uma imagem com texto, Cara humana, captura de ecrã, pessoa

Os conteúdos gerados por IA poderão estar incorretos.

«A Europa deve cortar o seu Estado social para construir um Estado de guerra. Não há forma de defender o continente sem cortes nas despesas sociais»  — pode ler-se em manchete do Financial Times de 5 de Março de 2025.


E é bem verdade. Por exemplo,

«Portugal [que] gasta 1,55% do seu PIB em gastos de defesa, assumiu que até 2029 iria atingir os 2%, o que significa despender cerca de 6 mil milhões de euros. Com a proposta da União Europeia passaria a gastar, pelo menos, mais 4,5 mil milhões de euros, uma soma superior a 10 mil milhões de euros e 3,5% do PIB.

Se formos obrigados a cumprir a «meta» agora exigida por Donald Trump, temos de gastar 5% do PIB, perto de 15 mil milhões de euros, uma verba equivalente aos gastos orçamentados para o Serviço Nacional de Saúde. O que significa que esta corrida aos armamentos iria, pura e simplesmente, acabar com o Estado Social» [16].

Os especialistas do Bruegel e do Instituto Kiel para a Economia Mundial estão cientes de que este tratamento de choque pode produzir maus resultados em termos de agitação e conflitualidade social. Por isso, propõem um aumento gradual das despesas militares a partir de um nível inicial de 150 mil milhões de euros anuais inferior, portanto, aos 250 mil milhões anuais (que, como vimos, seria para eles o ideal), e inferior também aos 200 mil milhões anuais propostos pela Comissão Europeia financiado pela dívida pública e com o compromisso dos Estados-membros da UE irem aumentando gradualmente nos seus orçamentos a parte dessa verba não financiada pela dívida.

«A chefia e o empenhamento da Alemanha serão fundamentais [para o êxito do plano de rearmamento acelerado dos Estados-membros da UE, n.e.]. A Alemanha teria de angariar, sozinha, pelo menos metade dos 125 mil milhões de euros para aumentar a despesa anual com a defesa nacional alemã de 80 mil milhões de euros para 140 mil milhões de euros, ou seja, cerca de 3,5% do PIB, a ser complementada com financiamento conjunto da UE» [17].

Friedrich Merz não poderia desejar mais e melhor. Este será, sem dúvida, um dos seus objectivos centrais como novo chanceler da Alemanha. Em suma, o seu plano é o de fazer da Alemanha o 4.º Reich alemão, a potência hegemónica da Europa aquém da Rússia que ocupará o lugar que os EUA deixaram vago.

Não é uma tarefa fácil, porque tem de superar dois obstáculos. O primeiro é o do “travão da dívida” da Alemanha, que foi inscrito na Constituição alemã em 2009, no auge da crise financeira mundial. Este travão restringe fortemente a capacidade do governo para pedir dinheiro emprestado. Ora, sem pedir dinheiro emprestado e, por conseguinte, endividar-se, a Alemanha não poderá rearmar-se na dimensão desejada pelo novo chanceler alemão.  

Mas Merz e a CDU, juntamente com o SPD 6.0 que será, como tudo indica, o seu parceiro principal ou único de coligação anunciaram, na segunda semana de Março de 2025, que têm planos para revogar o “travão constitucional da dívida” da Alemanha no Bundestag. Para isso, precisam, no entanto, de 2/3 dos votos do Bundestag. Mas mesmo que consigam obter os votos dos Verdes (o que não será difícil depois de alguma barganha), isso não chega. Por isso, a menos que o Die Linke ou a AfD efectuem uma rondada com flic flac, mortal empranchado à retaguarda, não se vê como será possível obter os dois 2/3 necessários para eliminar o travão constitucional à dívida.

O segundo obstáculo é de muito maior monta. Para construir o 4.º Reich alemão, a Alemanha precisa de ter um grande arsenal nuclear. Ora, ao contrário da França e mesmo do Reino Unido (cujo armamento nuclear, porém, é fornecido pelos EUA e está profundamente dependente, em termos de comando e controlo, do dispositivo nuclear que os EUA instalaram na Europa no âmbito da OTAN/NATO)a Alemanha não possui armas nucleares próprias, que Merz declarou que ela deveria possuir.

Por isso, mesmo se pusermos de parte as tremendas dificuldades que os EUA (dentro da OTAN) e a Rússia (fora da OTAN) criarão à concretização de um tal projecto, teremos de levar em linha de conta outro óbice. Para conseguir levar a sua avante, a Alemanha terá de regatear e medir forças com a França, antes de conseguir impor-lhe a sua vontade neste particular.

«Precisamos de discutir com os britânicos e com os franceses as duas potências nucleares europeias se a partilha nuclear, ou pelo menos a segurança nuclear do Reino Unido e da França, também se pode aplicar a nós» (disse Merz [18]).

A França e o Reino Unido já se mostraram disponíveis para discutir essa questão. Seja como for, uma coisa é certa: um “guarda-chuva nuclear” abrangendo simultaneamente o território de vários Estados, mas cujas armas nucleares estão posicionadas apenas no território de um deles é uma impossibilidade teórica e prática. Por seu lado, um “guarda-chuva nuclear” cujas armas nucleares estejam posicionadas no território de vários Estados, mas sob o controlo e comando apenas de um deles (que é a situação actual da grande maioria [21] dos Estados-membros da OTAN/NATO) é uma persistente ilusão de Maya [19].

Assim sendo, resta saber qual dos três galos de briga (Alemanha, França e Reino Unido) acabará por prevalecer na nova capoeira europeia da OTAN (/NATO), agora que os EUA já não lhe atribuem a importância que lhe atribuíram durante quase 80 anos, até ao governo de Biden. Uma coisa é certa: a Alemanha de Merz tudo fará para ter a supremacia europeia em tudo.

«O objetivo permanente da Alemanha é tornar-se o centro da Europa, o que quer dizer, dominar a Europa das penínsulas — Escandinávia, Ibérica e Itálica — a Europa central — França, Países Baixos — a Europa de Leste, até Moscovo» [20].

8. Conclusão

Tendo em conta tudo o que ficou dito nas secções anteriores deste artigo, parece-me adequado concluir esta análise das eleições federais alemãs e das suas consequências na conjuntura actual com uma previsão de outro analista, cujas palavras faço minhas:  

«Os sacrifícios dos povos europeus ainda estão no seu início. A recessão alemã, em aprofundamento, chegará também a Portugal, Espanha e outros campeões do belicismo. O fanatismo de Mark Rutte [e, sobretudo, de Friedrich Merz, Emmanuel Macron, Ursula von der Leyen, Kaja Kallas, António Costa, Keir Starmer e de outros próceres da UE e do Reino Unido, acrescento eu, J.C.S.], em defesa da transformação da economia europeia numa economia de guerra, será derrotado nas ruas das cidades europeias» [21].

Um dos instrumentos óbvios dessa luta para derrotar os belicistas e os vendedores de guerras é a realização de referendos pró-paz e as campanhas de mobilização para a realização de referendos pró-paz por iniciativa de grupos de cidadãos [22]. Por exemplo, uma cidadã portuguesa sugeriu um “Referendo Europeu[23] com três questões:

« 1) Apoia a política de rearmamento europeu?

   2) Apoia o recrutamento dos seus filhos e netos para irem lutar na guerra ucraniana?

  3) Apoia a emergência da economia de guerra que todos os contribuintes pagarão no custo de vida, no aumento da inflação e dos impostos?» [24]

Fonte: António Couvinhas, Facebook [25]

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Notas e Referências

[1] A co-presidente da AfD, Alice Weidel, define o seu partido como “libertário” — um termo surripiado por Murray Rothbard (1926-1995) ao léxico do anarquismo/socialismo, aqui descartado e substituído por um neologismo, “mercado-libertarista”, para não se confundir com o original e o poluir. Há uma diferença importante entre a direita neoliberal e ordoliberal, por um lado, e a direita “mercado-libertarista”, por outro. A direita neoliberal e a direita ordoliberal utilizam o “Estado de direito” para reforçar o sistema capitalista e o mercado, ao passo que a direita “mercado-libertarista” considera o próprio “Estado de direito”, incluindo as autoridades reguladoras e os seus regulamentos, como empecilhos, instrumentos invasivos e prejudiciais ao bom funcionamento do sistema capitalista e do mercado, os quais, segundo os seus ideólogos, deveriam reinar livremente (é esse o significado do termo “mercado-libertarista”), sem restrições legais e morais de espécie alguma, salvo as decorrentes de contratos voluntários e privados entre duas pessoas ou entre grupos de pessoas representados por agentes. Actualmente, o expoente máximo da direita mercado-libertarista é o presidente da Argentina, Javier Milei.

[2] Ver Ernesto Oliveira, “Solidariedade com a Palestina erepressão: activistas enfrentam obstáculos na Alemanha.” Público, 16 de Abril de 2024; Alexandra Lucas Coelho, “O Grande Irmão já está aqui, da polícia alemã aos EUA. A usar os judeus como arma.” Público, 15 de Março de 2025.

[3] Michael Roberts, “A Alemanha: um país exangue, esvaziado de energia.” In A Viagem dos Argonautas, 22 de Fevereiro de 2025.

[4] Miguel Castelo Branco, “Para que serve a CDU alemã?” Facebook, 20 Fevereiro de 2025.

[5] Miguel Castelo Branco, ibidem.

[6] Em 2017, os activos da BlackRock atingiam os 5,4 biliões de dólares (cf. Peter Phillips, Giants: The Global Power Elite, New York: Seven Stories Press, 2018, p.37). No quarto trimestre de 2024, esse montante atingia 11,6 biliões de dólares (“BlackRock assets hit record $11.6 trillion in fourth quarter of 2024.” The Economic Times, January 15, 2025).

[7] Thomas Fazi, “Can Germany trust Friedrich Merz? The frontrunner is a faux populist.” Unherd, February 25, 2025 [https://unherd.com/.../will-merz-sell-germany-to-blackrock/]

[8] Michael Roberts, ibidem.

[9] Nuno Ramos de Almeida, “Os números da mentira dos senhores da Guerra.” Abril, Abril, 10 de Março de 2025.

[10] Michael Roberts fornece abundantes provas desse processo no seu artigo (cf. nota [3]), acompanhados de gráficos ilustrativos. Por exemplo, «a recuperação da rentabilidade do capital alemão desde o início do euro e a deslocalização da capacidade industrial para o leste da UE e os baixos salários para uma grande parte da força de trabalho já deram o que tinham a dar, acabaram. A rentabilidade começou a cair durante a Grande Recessão e durante a Longa Depressão da década de 2010. A maior queda ocorreu na pandemia e a rentabilidade está agora no seu mínimo histórico.

Pior ainda, a massa de lucros também começou a cair à medida que os custos crescentes de produção (energia, transportes, componentes) corroem as receitas. A formação bruta real de capital (um indicador do investimento) está a contrair-se. As falências de empresas alemãs aumentaram para 2.000, o maior número em dez anos. Isso representa uma duplicação nos últimos três anos, atingindo 4.215 no final de 2024».

[11] “Who is Friedrich Merz? Meet the man set to be Germany’s next chancellor.” France 24, 23.02.2025.

[12] Thomas Fazi, ibidem

[13] “Rutte: NATO spending target will be «considerably more than 3 percent».” Politico. February 15, 2025.

[14] Bruegel [acrónimo de Brussels European and Global Economic Laboratory] é um centro de estudos e reflexão estratégica [Ingl. “think tank”] especializado em políticas económicas europeias e financiado por 19 Estados (como, por exemplo, a Alemanha e a França); 19 grandes empresas multinacionais e transnacionais (como, por exemplo, a Amazon e a BlackRock), e 19 bancos de primeiro plano (como, por exemplo, o Banco de Inglaterra e o Banco de França).  O Kiel Institute for World Economy (um nome que lhe foi dado pelo regime nazi em 1934), é um centro de estudos e reflexão estratégica centenário, especializado em questões de globalização económica e financiado pelo Estado federal alemão.

[15] Alexandr Burilkov & Guntram B. Wolff, Defending Europe without the US: first estimates of what is needed.” Bruegel and Kiel Institute for World Economy. February 25, 2025.

[16] Nuno Ramos de Almeida, ibidem.

[17] Alexandr Burilkov & Guntram B. Wolff, ibidem

[18] EU help key to French and British nukes keeping Russia at bay.” Euractiv, March 4, 2025.

[19] Este é um tema que requer maior elucidação e desenvolvimento. Ficará para uma outra oportunidade.

[20] Carlos Matos Gomes, “Rearmar a Europa. Heil.” Medium, 5 de Março de 2025.

[21] Viriato Soromenho Marques, “A Nomenklatura de Bruxelas quer a guerra por temer a liberdade.” Azorean Torpor, Fevereiro 27, 2025.

[22] Em Portugal, a proposta de referendos por iniciativa de grupos de cidadãos eleitores portugueses está prevista no artigo 115.º da Constituição da República Portuguesa e foi regulamentada pela Lei Orgânica do Regime do Referendo (Lei n.º 15-A/98, com as modificações ulteriores) que fixa um número mínimo de 60 mil proponentes para sua efectivação.

[23] Ana Paula Fitas, Facebook, 5 de Março de 2025

[24] Presumo que, por “Referendo Europeu”, Ana Paula Fitas tenha querido dizer “referendos nacionais realizados em todos os Estados-membros da União Europeia e colocando as mesmas perguntas”. Isto porque o Tratado da União Europeia e o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (v. Jornal Oficial da União Europeia, C 306 de 17 de Dezembro de 2007) não prevêem a realização de referendos transnacionais.  

[25] O cartaz é excelente, mas contém um erro que será fácil de corrigir em próxima edição. É um erro de nomenclatura relativo aos números superiores a 1 milhão, para os quais há duas escalas: a escala longa (usada em Portugal e no resto da Europa, salvo no Reino Unido, que a abandonou, nos anos 1970/1980, para se alinhar com os EUA também neste particular), em que cada novo termo é 1 milhão de vezes superior ao anterior, e a escala curta (usada no Brasil e nos EUA), em que cada novo termo é mil vezes superior ao anterior. Assim, o montante anunciado pela senhora Ursula von der Leyen para rearmar a “Europa” e continuar a alimentar a guerra por procuração na Ucrânia é de 800 mil milhões de euros na escala longa usada em Portugal (= 800 “bilhões” na escala curta usada no Brasil) e não “800 biliões” (= 800 milhões de milhões em Portugal) como aparece na primeira linha do cartaz.