TERTÚLIA ORWELLIANA

Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

23 outubro, 2025

 

O alargamento da OTAN:

O que foi dito a Gorbachev

(Parte IV e última)

(Tradução de Fernando Oliveira [*])

Helmut Kohl (à esquerda) e Mikhail Gorbachev (à direita), em 1990


Documento 23

Registo da conversa entre Mikhail Gorbachev e Helmut Kohl, Moscovo (excertos).

15 de Julho de 1990

Fonte

Mikhail Gorbachev i germanskii vopros, editado por Alexander Galkin e Anatoly Chernyaev, (Moscow: Ves Mir, 2006), pp. 495-504

Esta conversa fundamental entre o Chanceler Kohl e o Presidente Gorbachev estabelece os parâmetros finais para a reunificação alemã. Kohl fala repetidamente da nova era de relações entre uma Alemanha reunificada e a União Soviética, e da forma como esta relação contribuiria para a estabilidade e segurança europeias. Gorbachev exige garantias sobre o não alargamento da OTAN[/NATO]:

«Temos de falar sobre a não proliferação de estruturas militares da OTAN para o território da RDA e sobre a manutenção de tropas soviéticas nesse território durante um certo período de transição».

O dirigente soviético refere no início da conversa que a OTAN já começou a transformar-se. Para ele, a promessa de não-alargamento da OTAN para o território da RDA significa que a OTAN não se aproveitaria da vontade soviética de se comprometer com a Alemanha. Exige também que o estatuto das tropas soviéticas na RDA durante o período de transição seja «regulamentado. Não deve pairar no ar, precisa de uma base legal». Entrega a Kohl as considerações soviéticas para um verdadeiro tratado soviético-alemão que inclua essas garantias. Quer também ajuda para a deslocação das tropas e para a construção de alojamentos para as mesmas. Kohl promete fazê-lo, desde que essa ajuda não seja interpretada como «um programa de assistência alemã ao exército soviético

Ao falar sobre o futuro da Europa, Kohl alude à transformação da OTAN: «Nós sabemos o que espera a OTAN no futuro, e penso que agora vocês também sabem». Kohl sublinha ainda que o Presidente Bush está consciente e apoia os acordos soviético-alemães e que desempenhará um papel fundamental na construção da nova Europa.

Chernyaev resume este encontro no seu diário de 15 de Julho de 1990:

«Hoje – Kohl. Encontram-se na mansão Schechtel na rua Alexei Tolstoy. Gorbachev confirma o seu acordo para a entrada da Alemanha reunificada na OTAN. Kohl é decidido e assertivo. Lidera um jogo limpo, mas duro. E não é o engodo (empréstimos), mas o facto de que é inútil resistir aqui, iria contra a corrente dos acontecimentos, seria contrário às próprias realidades que M.S. tanto gosta de referir.»[14]

Documento 24

Memorando da conversa telefónica entre Mikhail Gorbachev e George Bush

17 de Julho de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, Memcons and Telcons ((https://bush41library.tamu.edu/)

 

O Presidente Bush estende a mão a Gorbachev imediatamente após os encontros Kohl-Gorbachev em Moscovo e a retirada do Cáucaso de Arkhyz, que resolveu a reunificação alemã, deixando apenas os acordos financeiros para serem resolvidos em Setembro. Gorbachev não só tinha feito o acordo com Kohl, como também tinha sobrevivido e triunfado no 28.º Congresso do PCUS, no início de Julho, o último da história do Partido Soviético. Gorbachev descreve esta altura como «talvez o período mais difícil e importante da minha vida política». O Congresso submeteu o dirigente do partido a críticas mordazes, tanto dos comunistas conservadores como da oposição democrática. Gorbachev conseguiu defender o seu programa e ser reeleito como Secretário-geral, mas tinha muito pouco para mostrar do seu empenhamento com o Ocidente, especialmente depois de ter cedido tanto em relação à reunificação alemã.

Washington D.C., 31 de Maio de 1990, relvado da Casa Branca. George Bush, presidente dos EUA, dá as boas-vindas a Mikhail Gorbachev, presidente da União Soviética. Fonte: George H.W. Bush Presidential Library, Р13298-18)


Enquanto Gorbachev lutava pela sua vida política como dirigente soviético, a cimeira de Houston do G-7 tinha debatido formas de ajudar a Perestroika, mas devido à oposição dos EUA a créditos ou ajuda económica directa antes da promulgação de reformas sérias de mercado livre, não foi aprovado qualquer pacote de assistência concreto; o grupo limitou-se a autorizar “estudos” pelo FMI e pelo Banco Mundial. Gorbachev contrapõe que, com recursos suficientes, a URSS «poderia passar para uma economia de mercado», caso contrário, o país «terá de depender mais de medidas reguladas pelo Estado». Neste telefonema, Bush expande as garantias de segurança de Kohl e reforça a mensagem da Declaração de Londres:

«Assim, o que tentámos fazer foi ter em conta as preocupações que me manifestou, a mim e a outros, e fizemo-lo das seguintes formas: através da nossa declaração conjunta sobre a não agressão; do nosso convite para virem para a OTAN; do nosso acordo para abrir a OTAN a contactos diplomáticos regulares com o vosso governo e os dos países da Europa Oriental; e da nossa oferta de garantias sobre a futura dimensão das forças armadas de uma Alemanha reunificada — uma questão que sei que discutiu com Helmut Kohl. Também alterámos fundamentalmente a nossa abordagem militar relativamente às forças convencionais e nucleares. Transmitimos a ideia de uma CSCE [Comunidade de Segurança e Cooperação Económica] alargada e mais forte, com novas instituições que a URSS possa partilhar, integrando a nova Europa

Documento 25

Sessão Ministerial ‘Dois-Mais-Quatro’, 12 de Setembro, Moscovo: Relato pormenorizado [inclui texto do Tratado sobre a Regulamentação Definitiva referente à Alemanha e Minuta Acordada para o Tratado sobre o estatuto militar especial da RDA após a reunificação]

2 de Novembro de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, NSC Condoleezza Rice Files, 1989-1990 Subject Files, Folder “Memcons and Telcons – USSR [1]”

 

Funcionários do Gabinete Europeu do Departamento de Estado redigiram este documento, praticamente um memcon [memorando de uma conversação] e enviaram-no a altos funcionários como Robert Zoellick e Condoleezza Rice, com base em notas tomadas pelos participantes americanos na sessão ministerial final sobre a reunificação alemã, em 12 de Setembro de 1990. O documento contém declarações de todos os seis ministros do processo ‘Dois Mais Quatro’ – Shevardnadze (o anfitrião), Baker, Hurd, Dumas, Genscher e De Maizière da RDA – (muitas das quais seriam repetidas nas suas conferências de imprensa após o evento), juntamente com o texto acordado do tratado final sobre a reunificação alemã. O tratado codificava o que Bush tinha anteriormente oferecido a Gorbachev —“estatuto militar especial” para o território da antiga RDA. À última hora, as preocupações britânicas e americanas de que a linguagem restringisse as deslocações de emergência de tropas da OTAN para esse território forçaram a inclusão de uma “minuta” que deixava ao critério da Alemanha recém-unificada e soberana o significado da palavra “deployed” [“destacadas”. Nota do T.]. Kohl comprometera-se com Gorbachev que apenas as tropas alemãs da OTAN seriam autorizadas a entrar naquele território após a saída dos soviéticos, e a Alemanha manteve esse compromisso, embora essa “minuta” se destinasse a permitir que outras tropas da OTAN atravessassem ou fizessem exercícios ali, pelo menos temporariamente. Mais tarde, colaboradores de Gorbachev, como Pavel Palazhshenko referiram-se à linguagem do tratado para argumentar que o alargamento da OTAN violava o “espírito” deste Tratado de Acordo Final.

Documento 26

Departamento de Estado EUA, Gabinete Europeu: Documento de Estratégia Revisto da OTAN para Discussão na Reunião do Sub-Ungroup

2 de Outubro de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, NSC Heather Wilson Files, Box CF00293, Folder “NATO – Strategy (5)”

 

O governo Bush criara o “Ungroup” em 1989 para contornar uma série de conflitos pessoais ao nível dos secretários adjuntos que tinham bloqueado o habitual processo inter-agências de desenvolvimento de políticas sobre controlo de armamento e armas estratégicas. Os membros do “Ungroup”, presidido por Arnold Kanter do Conselho Nacional de Segurança (NSC em inglês), tinham a confiança dos seus chefes, mas não necessariamente um título formal concomitante ou um posto oficial.[15] O Ungroup sobrepôs-se a um Grupo de Estratégia de Segurança Europeia, igualmente ad hoc, e este tornou-se o local, pouco depois de concluída a reunificação alemã, para a discussão no seio da Administração Bush do novo papel da OTAN na Europa e, especialmente, das relações da OTAN com os países da Europa Oriental. Estes países, ainda formalmente pertencentes ao Pacto de Varsóvia, mas chefiados por governos não comunistas, estavam interessados em tornar-se membros de pleno direito da comunidade internacional, procurando aderir à futura União Europeia e, potencialmente, à OTAN.

Este documento, preparado para um debate sobre o futuro da OTAN por um subgrupo constituído por representantes do NSC, do Departamento de Estado, do Estado-Maior Conjunto e de outras agências, afirma que  «[a] potencial ameaça soviética mantém-se e constitui uma justificação básica para a manutenção da OTAN». Ao mesmo tempo, na discussão sobre a potencial adesão da Europa Oriental à OTAN, a revisão sugere que «no ambiente actual, não é do melhor interesse da OTAN ou dos EUA que a estes Estados seja concedida a adesão plena à OTAN e às inerentes garantias de segurança». Os Estados Unidos não «desejam organizar uma coligação anti-soviética cuja fronteira seja a fronteira soviética» — sobretudo devido ao impacto negativo que isto poderia ter nas reformas da URSS. Os gabinetes de ligação da OTAN seriam suficientes para o momento actual, concluiu o grupo, mas a relação desenvolver-se-á no futuro. Na ausência do confronto da Guerra Fria, as funções “fora da área” da OTAN terão de ser redefinidas.

Documento 27

James F. Dobbins, Departamento de Estado, Gabinete Europeu, Memorando para o Conselho de Segurança Nacional: Documento de Análise da Estratégia da OTAN para Discussão em 29 de Outubro.

25 de Outubro de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush: NSC Philip Zelikow Files, Box CF01468, Folder “File 148 NATO Strategy Review No. 1 [3]”[16]

 

Este memorando conciso provém do Gabinete Europeu do Departamento de Estado como nota de apresentação de documentos informativos para uma reunião agendada para 29 de Outubro de 1990 sobre as questões do alargamento da OTAN e da cooperação europeia em matéria de defesa com a OTAN. O mais importante é o resumo que o documento faz do debate interno no governo Bush, principalmente entre o Departamento de Defesa (especificamente o Gabinete do Secretário da Defesa [OSD na sigla americana, n.e.], Dick Cheney) e o Departamento de Estado. Relativamente à questão do alargamento da OTAN, o OSD «deseja deixar a porta entreaberta», enquanto o Departamento de Estado «prefere simplesmente notar que a discussão sobre o alargamento do número de membros não está na ordem do dia....» O governo Bush adopta efectivamente o ponto de vista do Departamento de Estado nas suas declarações públicas, mas o ponto de vista do Departamento da Defesa prevaleceria no governo  seguinte.

Documento 28

Diário do Embaixador Rodric Braithwaite, 05 de Março de 1991

5 de Março de 1991

Fonte

Diário pessoal de Rodric Braithwaite (utilizado com autorização do autor)


O embaixador britânico Rodric Braithwaite esteve presente em algumas das garantias dadas aos governantes soviéticos em 1990 e 1991 sobre o alargamento da OTAN. Neste caso, Braithwaite descreve no seu diário uma reunião entre o Primeiro-Ministro britânico John Major e oficiais militares soviéticos, chefiados pelo Ministro da Defesa marechal Dmitry Yazov.

1 de Setembro de 1991, Moscovo. John Major (à direita) cumprimenta Mikhail Gorbachev durante a sua visita a Moscovo. Foto: Mirrorpix

 


A reunião teve lugar durante a visita de Major a Moscovo e logo após o seu encontro com o Presidente Gorbachev. Durante a reunião com Major, Gorbachev exprimiu preocupação com a nova dinâmica da OTAN:

 «No contexto de processos favoráveis na Europa, comecei subitamente a receber informações de que certos círculos tencionam continuar a reforçar a OTAN como principal instrumento de segurança na Europa. Anteriormente, falavam em mudar a natureza da OTAN, em transformar os actuais blocos político-militares em estruturas e mecanismos de segurança pan-europeus. E agora, subitamente, [voltam a falar de] um papel especial de manutenção da paz da OTAN. Estão a falar novamente da OTAN como a pedra angular. Isto não parece complementar a casa comum europeia que começámos a construir».

Major respondeu:

«Penso que as suas ideias sobre o papel da OTAN na situação actual são o resultado de um mal-entendido. Não estamos a falar do reforço da OTAN. Estamos a falar da coordenação de esforços que já está a acontecer na Europa entre a OTAN e a União da Europa Ocidental, o que, tal como está previsto, permitiria a todos os membros da Comunidade Europeia contribuir para reforçar a [nossa] segurança.»[17] 

Na reunião com os oficiais militares que se seguiu, o marechal Yazov expressou as suas preocupações acerca do interesse dos governantes da Europa Oriental na adesão à OTAN. No diário, Braithwaite escreve: «Major assegura-lhe que nada disso irá acontecer». Anos mais tarde, citando o registo da conversa nos arquivos britânicos, Braithwaite conta que Major respondeu a Yazov que «ele próprio não previa circunstância alguma, agora ou no futuro, em que os países da Europa Oriental se tornassem membros da OTAN». O Embaixador Braithwaite cita também o que o Ministro dos Negócios Estrangeiros Douglas Hurd disse ao Ministro dos Negócios Estrangeiros soviético Alexander Bessmertnykh em 26 de Março de 1991: «não há planos na OTAN para incluir os países da Europa Central e Oriental na OTAN de uma forma ou de outra.»[18]

Documento 29

Paul Wolfowitz Memorando da Conversa com Vaclav Havel e Lubos Dobrovsky em Praga.

27 de Abril de 1991

Fonte

U.S. Department of Defense, FOIA release 2016, National Security Archive FOIA 20120941DOD109

Este memorando escrito de Abril de 1991 constitui o suporte para a “educação de Vaclav Havel” sobre a OTAN (ver Documentos 12-1 e 12-2 acima). O Secretário da Defesa dos EUA para a Política [os ministros nos EUA tem o nome de Secretários, n.e.], Paul Wolfowitz, incluiu estes memorandos de comunicações no relatório ao NSC e ao Departamento de Estado a propósito da sua participação numa conferência em Praga sobre “O Futuro da Segurança Europeia”, de 24 a 27 de Abril de 1991.

Paul Wolfowitz (Ministro da Defesa adjunto dos EUA no governo de George Bush-filho), em 9 de Dezembro de 2003.Fonte da foto: Department of Defense, USA


 

Durante a conferência, Wolfowitz teve reuniões separadas com Havel e com o Ministro da Defesa Dobrovsky. Na conversa com Havel, Wolfowitz agradece-lhe as suas declarações sobre a importância da OTAN e das tropas americanas na Europa. Havel informa-o de que o embaixador soviético Kvitsinsky se encontrava em Praga a negociar um acordo bilateral e que os soviéticos queriam que o acordo incluísse uma disposição segundo a qual a Checoslováquia não aderiria a alianças hostis à URSS. Wolfowitz aconselha Havel e Dobrovsky a não entrarem em tais acordos e a recordarem aos soviéticos as disposições da Acta Final de Helsínquia que postulam a liberdade de aderir a alianças da sua escolha. Havel afirma que, para a Checoslováquia, nos próximos 10 anos, isso significa a OTAN e a União Europeia.Em conversa com Dobrovsky, Wolfowitz observa que «a própria existência da OTAN estava em dúvida há um ano, mas com a chefia dos EUA e o apoio dos aliados da OTAN (bem como da Alemanha reunificada), a sua importância para a Europa é agora compreendida e as declarações dos dirigentes da Europa Oriental foram importantes a este respeito». Dobrovsky descreve com franqueza a mudança de posição do governo da Checoslováquia, «que tinha revisto radicalmente os seus pontos de vista. No início, o Presidente Havel tinha insistido na dissolução tanto do Pacto de Varsóvia como da OTAN», mas depois concluiu que a OTAN se devia manter. «Extraoficialmente», diz Dobrovsky, «a República Federativa Checa e Eslovaca (RFCE) foi atraída pela OTAN porque esta assegurava a presença dos EUA na Europa

Documento 30

Memorando da Delegação do Soviete Supremo da Rússia ao QG da OTAN para Boris Yeltsin

1 de Julho de 1991

Fonte

State Archive of the Russian Federation (GARF), Fond 10026, Opis 1



8 de Novembro de 1991. Manfred Woerner, Secretário-Geral da OTAN(/NATO)

Foto: Picture Alliance


Este documento é importante por descrever a mensagem clara, em 1991, por parte dos mais altos níveis da OTAN – o Secretário-Geral Manfred Woerner – de que o alargamento da OTAN não estava a acontecer. A audiência era uma delegação do Soviete Supremo russo, que neste memorando estava a informar Boris Yeltsin (que em Junho fora eleito Presidente da República Russa, a maior da União Soviética), mas sem dúvida que Gorbachev e os seus assessores estavam a ouvir a mesma garantia nessa altura. O emergente aparelho de segurança russo já estava preocupado com a possibilidade de alargamento da OTAN, por isso, em Junho de 1991, esta delegação visitou Bruxelas para se encontrar com a chefia da OTAN, ouvir as suas opiniões sobre o futuro da OTAN e partilhar as preocupações russas.

Em Maio de 1990, Woerner proferiu em Bruxelas um discurso muito apreciado, no qual defendeu que:

«A principal tarefa da próxima década será construir uma nova estrutura de segurança europeia, que inclua a União Soviética e as nações do Pacto de Varsóvia. A União Soviética terá um papel importante a desempenhar na construção desse sistema. Se considerarmos a situação actual da União Soviética, que praticamente deixou de ter aliados, então podemos compreender o seu desejo justificado de não ser forçada a sair da Europa.»

Agora, em meados de 1991, Woerner responde aos russos afirmando que ele pessoalmente e o Conselho da OTAN são contra o alargamento – «13 dos 16 membros da OTAN compartilham este ponto de vista» – e que se pronunciará contra a adesão da Polónia e da Roménia à OTAN aos governantes desses países, tal como já fizera com os governantes da Hungria e da Checoslováquia. Woerner sublinha que «não devemos permitir [...] o isolamento da URSS da comunidade europeia». A delegação russa advertiu que qualquer reforço ou alargamento da OTAN poderia «atrasar seriamente as transformações democráticas» na Rússia e apelou aos seus interlocutores da OTAN para que diminuíssem gradualmente as funções militares da Aliança.

Este memorando sobre a conversa com Woerner foi escrito por três proeminentes reformadores e aliados próximos de Yeltsin – Sergey Stepashin (Presidente do Comité de Segurança da Duma e futuro Vice-ministro da Segurança e Primeiro-ministro), o general Konstantin Kobets (futuro inspector militar chefe da Rússia, depois de ter sido o oficial militar soviético de mais alta patente a apoiar Yeltsin durante o golpe de Agosto de 1991) e o general Dmitry Volkogonov (conselheiro de Yeltsin para questões de defesa e segurança, futuro chefe da Comissão Conjunta EUA-Rússia sobre os prisioneiros de guerra e desaparecidos e destacado historiador militar).


[*] O tradutor emprega a ortografia em vigor antes do (des)Acordo Ortográfico de 1990

…………………………………………………………………………….

NOTAS

[14] Anatoly Chernyaev Diary, 1990, traduzido por Anna Melyakova e editado por Svetlana Savranskaya, pp. 41-42.

[15] Ver Michael Nelson e Barbara A. Perry, 41: Inside the Presidency of George H.W. Bush (Cornell University Press, 2014), pp. 94-95.

[16] Os autores agradecem a Josh Shifrinson por disponibilizar a sua cópia deste documento.

[17] Ver Memorando da Conversa entre Mikhail Gorbachev e John Major publicado em Mikhail Gorbachev, Sobranie Sochinenii, v. 24 (Moscovo: Ver Mir, 2014), p. 346

…………………………………………………………………………..

A  Parte III deste arquivo pode ser lida aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/10/alargamento-da-otan-o-que-foi-dito.html

Parte II deste arquivo pode ser lida aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/09/alargamento-da-otan-o-que-foi-dito.html

Parte I deste arquivo pode ser lida aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/09/nota-editorial-introdutoria-ao-arquivo.html

O arquivo original encontra-se em:

https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early

 

03 outubro, 2025

 Temas 1 e 2

O alargamento da OTAN:

O que foi dito a Gorbachev

(Parte III)

(Tradução de Fernando Oliveira [*])

Uma imagem com vestuário, pessoa, homem, Cara humana

Os conteúdos gerados por IA podem estar incorretos.

12 de Setembro de 1990, em Moscovo. As Quatro Potências ocupantes da Alemanha  e garantes do estatuto quadripartido de ocupação estabelecido em 1945, juntamente com representantes das duas Alemanhas (a de Oeste [RFA] e a de Leste [RDA]) assinam o Tratado «Dois Mais Quatro» sobre o Acordo Final relativo à Alemanha, selando o estatuto internacional definitivo da Alemanha “reunificada”. Da esquerda para a direita, em segunda fila, a partir do terceiro homem: Eduard Shevardnadze (ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS), James Baker (ministro do Negócios Estrangeiros dos EUA), Hans-Dietrich Genscher (ministro dos Negócios Estrangeiros da RFA) e  Douglas Hurd (Ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido). Na primeira fila, da esquerda para a direita: Roland Dumas (ministro dos Negócios Estrangeiros da França), Mikhail Gorbachev (presidente da URSS), Lothar de Maizière (ministro dos Negócios Estrangeiros da RDA). Fonte: Presse- und Informationsamt der Bundesregierung (BPA), 10117 Berlin, Dorotheenstr. 84. http://www.bundesregierung.de/Webs/Breg/DE/ Homepage/home.html.

Documento 15

Sir R. Braithwaite (Moscovo). Telegrama N. 667: “Reunião do Secretário de Estado com o Presidente Gorbachev.”

11 de Abril de 1990

Fonte

Documents on British Policy Overseas, series III, volume VII: German Unification, 1989-1990(Foreign and Commonwealth Office. Documents on British Policy Overseas, edited by Patrick Salmon, Keith Hamilton e Stephen Twigge, Oxford and New York, Routledge 2010), pp. 373-375.

 

O telegrama do Embaixador Braithwaite [embaixador do Reino Unido em Moscovo] resume a reunião entre o Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth, Douglas Hurd, e o Presidente Gorbachev, registando o “humor expansivo” de Gorbachev. Este pede ao Ministro que lhe transmita o seu apreço pela carta que Margaret Thatcher lhe enviou após a cimeira com Kohl, na qual, segundo Gorbachev, ela seguiu as linhas de política que Gorbachev e Thatcher discutiram na sua recente conversa telefónica, com base na qual o governante soviético concluiu que «as posições britânicas e soviéticas eram de facto muito próximas». Hurd avisa Gorbachev de que as suas posições não são 100% concordantes, mas que os britânicos «reconheceram a importância de não fazer nada que prejudicasse os interesses e a dignidade soviéticos». Gorbachev, tal como reflectido no resumo de Braithwaite, fala da importância de construir novas estruturas de segurança como forma de lidar com o problema das duas Alemanhas:

«Se estamos a falar de um diálogo comum sobre uma nova Europa que se estende do Atlântico aos Urais, essa era uma forma de lidar com a questão alemã

Isso exigiria um período de transição para acelerar o ritmo do processo europeu e «sincronizá-lo com a procura de uma solução para o problema das duas Alemanhas». Contudo, se o processo fosse unilateral – apenas a Alemanha na OTAN e sem ter em conta os interesses de segurança soviéticos – seria muito pouco provável que o Soviete Supremo aprovasse essa solução e a União Soviética questionaria a necessidade de acelerar a redução das suas armas convencionais na Europa. Na sua opinião, a adesão da Alemanha à OTAN sem progressos nas estruturas de segurança europeias «poderia perturbar o equilíbrio da segurança, o que seria inaceitável para a União Soviética.»

Uma imagem com pessoa, vestuário, relva, ar livre

Os conteúdos gerados por IA podem estar incorretos.
5 de Maio de 1990. Imagem de grupo num prado no rio Reno: da esquerda para a direita: Markus Meckel (RDA), Hans-Dietrich Genscher (RFA), Eduard Schewardnadse (URSS), James Baker (EUA), Roland Dumas (França) e Douglas Hurd (Grã-Bretanha). A primeira ronda da conferência Dois mais Quatro” dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos dois Estados alemães e das quatro forças aliadas (Reino Unido, França, EUA, URSS) teve início em 5 de Maio de 1990. Foto: dpa


Documento 16

Memorando de Valentin Falin para Mikhail Gorbachev (excertos)

18 de Abril de 1990

Fonte

Mikhail Gorbachev i germanskii vopros, editado por Alexander Galkin e Anatoly Chernyaev, (Moscow: Ves Mir, 2006), pp. 398-408

Este memorando do mais alto especialista do Comité Central sobre a Alemanha soa como uma chamada de atenção para Gorbachev. Falin coloca a questão em termos directos: embora a política europeia soviética tenha caído na inactividade e mesmo na “depressão” após as eleições de 18 de Março na Alemanha de Leste, e Gorbachev tenha deixado Kohl acelerar o processo de reunificação, os seus compromissos em relação à Alemanha na OTAN só podem levar ao afastamento do seu principal objectivo para a Europa — a casa comum europeia.

«Resumindo os últimos seis meses, é forçoso concluir que a ‘casa comum europeia’, que costumava ser uma tarefa concreta que os países do continente estavam a começar a implementar, está agora a transformar-se numa miragem

Enquanto o Ocidente se dirige a Gorbachev com falinhas mansas para que aceite a reunificação alemã na OTAN, Falin observa (correctamente) que «os Estados ocidentais já estão a violar o princípio do consenso ao fazerem acordos preliminares entre si» relativamente à reunificação alemã e ao futuro da Europa que não incluem uma «longa fase de desenvolvimento construtivo». Falin nota que o Ocidente está a «cultivar intensamente não só a OTAN, mas também os nossos aliados do Pacto de Varsóvia» com o objectivo de isolar a URSS no quadro do ‘Dois-Mais-Quatro’ e da CSCE.

Comenta ainda que já não se ouvem vozes razoáveis:

«Genscher continua, de tempos a tempos, a discutir a aceleração do movimento em direcção à segurança colectiva europeia com a ‘dissolução da OTAN e do Pacto de Varsóvia na mesma’... Mas muito poucas pessoas ...ouvem Genscher».

Falin propõe a utilização dos direitos das quatro potências para conseguir um acordo formal juridicamente vinculativo, equivalente a um tratado de paz, que garanta os interesses de segurança soviéticos, como «a nossa única hipótese de encaixar a reunificação alemã no processo pan-europeu». Sugere também a utilização das negociações de controlo de armamento em Viena e Genebra como alavanca se o Ocidente continuar a tirar partido da flexibilidade soviética. O memorando sugere disposições específicas para o acordo final com a Alemanha, cuja negociação demoraria muito tempo e proporcionaria uma janela para a construção de estruturas europeias. Mas a ideia principal do memorando é alertar Gorbachev para não ser ingénuo quanto às intenções dos seus parceiros americanos:

«O Ocidente está a derrotar-nos, prometendo respeitar os interesses da URSS, mas na prática, passo a passo, está a separar-nos da ‘Europa tradicional’».

Documento 17

James A. Baker III, Memorando para o Presidente, “A minha reunião com Shevardnadze.”

4 de Maio de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, NSC Scowcroft Files, Box 91126, Folder “Gorbachev (Dobrynin) Sensitive 1989 – June 1990 [3]”

 

O Secretário de Estado acabara de passar quase quatro horas reunido com o Ministro dos Negócios Estrangeiros soviético em Bona, a 4 de Maio de 1990, abordando uma série de assuntos, mas centrando-se na crise na Lituânia e nas negociações sobre a reunificação alemã. Tal como nas conversações de Fevereiro e ao longo do ano, Baker esforçou-se por dar garantias aos soviéticos sobre a sua inclusão no futuro da Europa. Baker relata:

«Utilizei também o seu discurso e o nosso reconhecimento da necessidade de adaptar a OTAN, política e militarmente, e de desenvolver a CSCE para tranquilizar Shevardnadze de que o processo não produziria vencedores nem vencidos. Produziria, isso sim, uma nova estrutura europeia legítima – que seria inclusiva, não exclusiva».

A resposta de Shevardnadze indica que «a nossa discussão sobre a nova arquitectura europeia era compatível com grande parte do pensamento deles, embora o seu pensamento ainda estivesse a ser desenvolvido». Baker relata que Shevardnadze «sublinhou mais uma vez a dificuldade psicológica que eles têm – especialmente o público soviético – de aceitar uma Alemanha reunificada na OTAN». Com perspicácia, Baker prevê que Gorbachev não «assumirá agora este tipo de questão política de grande carga emocional» e só o fará provavelmente depois do Congresso do Partido em Julho.

Documento 18

Registo da conversa entre Mikhail Gorbachev e James Baker em Moscovo.

18 de Maio de 1990

Fonte

Arquivo da Fundação Gorbachev, Fond 1, Opis 1.

Esta conversa fascinante abrange uma série de questões de controlo de armamento em preparação para a cimeira de Washington e inclui discussões extensas, embora inconclusivas, sobre a reunificação alemã e as tensões nos países bálticos, em especial o impasse entre Moscovo e a Lituânia secessionista.

Gorbachev faz uma tentativa acalorada de persuadir Baker de que a Alemanha deve reunificar-se fora dos principais blocos militares, no contexto do processo totalmente europeu. Baker dá a Gorbachev uma garantia de nove pontos para provar que a sua posição está a ser tida em conta. O ponto oito é o mais importante para Gorbachev – que os Estados Unidos estão «a fazer um esforço em vários fóruns para acabar por transformar a CSCE numa instituição permanente que se tornaria numa pedra angular importante de uma nova Europa

Apesar desta garantia, quando Gorbachev menciona a necessidade de construir novas estruturas de segurança para substituir os blocos, Baker deixa escapar uma reacção pessoal que revela muito sobre a verdadeira posição dos EUA sobre o assunto:

«É bom falar de estruturas de segurança pan-europeias, do papel da CSCE. É um sonho maravilhoso, mas apenas um sonho. Entretanto, a OTAN existe...»

Gorbachev sugere que, se os EUA insistirem na adesão da Alemanha à OTAN, então ele «anunciará publicamente que também queremos aderir à OTAN». Shevardnadze vai mais longe, oferecendo uma observação profética:

«se a Alemanha reunificada aderir à OTAN, a Perestroika vai rebentar. O nosso povo não nos vai perdoar. As pessoas dirão que acabámos por ser os perdedores e não os vencedores

Documento 19

Registo da conversa entre Mikhail Gorbachev e Francois Mitterrand (excertos).

25 de Maio de 1990

Fonte

Mikhail Gorbachev i germanskii vopros, editado por Alexander Galkin e Anatoly Chernyaev, (Moscow: Ves Mir, 2006), pp. 454-466

 

Gorbachev sentia que, de todos os europeus, o Presidente francês era o seu aliado mais próximo na construção de uma Europa pós-Guerra Fria, porque o dirigente soviético acreditava que Mitterrand partilhava o seu conceito de casa comum europeia e a ideia de dissolver os dois blocos militares a favor de novas estruturas de segurança europeias. E Mitterrand partilhava, até certo ponto, essa opinião.

François Mitterrand (presidente a República francesa) recebe Mikhail Gorbatchev (presidente da URSS) no palácio do Eliseu (Paris), em 1985. Foto: AFP.



Mikhail Gorbachev recebe o Presidente francês François Mitterrand em Moscovo em 9 de Julho de 1986. Foto:  Alexis DUCLOS/Gamma-Rapho via Getty Images


Nesta conversa, Gorbachev continua a tentar persuadir o seu homólogo a juntar-se a ele na oposição à reunificação alemã na OTAN. Mitterrand é bastante directo, dizendo a Gorbachev que é demasiado tarde para lutar contra esta questão e que não daria o seu apoio, porque «se eu disser ‘não’ à adesão da Alemanha à OTAN, ficarei isolado dos meus parceiros ocidentais».

No entanto, Mitterrand sugere a Gorbachev que exija «garantias adequadas» da OTAN. Fala do perigo de isolar a União Soviética na nova Europa e da necessidade de «criar condições de segurança para vós, bem como para a segurança europeia no seu conjunto. Este foi um dos meus objectivos orientadores, especialmente quando propus a minha ideia de criar uma confederação europeia. É semelhante ao vosso conceito de uma casa comum europeia»

Nas recomendações que faz a Gorbachev, Mitterrand está basicamente a repetir as linhas do memorando Falin (ver Documento 16). Diz que Gorbachev deve esforçar-se por chegar a um acordo formal com a Alemanha utilizando os direitos que lhe assistem nas Quatro Potências e usar a influência das negociações de controlo de armamento das convenções:

«Não deve abandonar um trunfo como as negociações de desarmamento.»

Dá a entender que a OTAN não é a questão fundamental neste momento e que pode ser abafada em futuras negociações; o importante é assegurar a participação soviética no novo sistema de segurança europeu. Repete que é «pessoalmente a favor do desmantelamento gradual dos blocos militares

Gorbachev manifesta a sua desconfiança e suspeita em relação aos esforços dos EUA para «perpetuar a OTAN», para «usar a OTAN na criação de uma espécie de mecanismo, uma instituição, uma espécie de directório para gerir os assuntos mundiais». Fala a Mitterrand sobre a sua preocupação de que os EUA estejam a tentar atrair os europeus de Leste para a OTAN:

«Disse a Baker: “estamos cientes da sua atitude favorável em relação à intenção manifestada por alguns representantes de países da Europa Oriental de se retirarem do Pacto de Varsóvia e, subsequentemente, aderirem à OTAN”. E quanto à adesão da URSS?»

Caminhada pelo bosque circundante dos presidentes russo e francês, Mikhail Gorbachev e François Mitterrand, em Latche, nas Landes (França) em 30 de Outubro de 1991. Foto:  Archives Michel Lacroix/ “Sud Ouest”

Mitterrand aceita apoiar Gorbachev nos seus esforços para encorajar os processos pan-europeus e assegurar que os interesses de segurança soviéticos são tidos em conta, desde que não tenha de dizer “não” aos alemães. Afirma:

«Sempre disse aos meus parceiros da OTAN: comprometam-se a não deslocar as formações militares da OTAN do seu actual território na RFA para a Alemanha Oriental

Documento 20

Carta de Francois Mitterrand para George Bush

25 de Maio de 1990

Fonte

Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, NSC Scowcroft Files, FOIA 2009-0275-S

Fiel à sua palavra, Mitterrand escreve uma carta a George Bush descrevendo a situação de Gorbachev sobre a questão da reunificação alemã na OTAN, chamando-lhe genuína e não «falsa ou táctica». Adverte o Presidente americano para que não o faça como um facto consumado sem o consentimento de Gorbachev, insinuando que Gorbachev poderia retaliar sobre o controlo de armas (exactamente o que o próprio Mitterrand – e Falin antes – sugerira na sua conversa). Mitterrand defende um «acordo de paz formal de acordo com o direito internacional» e informa Bush de que, na sua conversa com Gorbachev, este «indicou que, do lado ocidental, não recusaríamos certamente pormenorizar as garantias que ele teria o direito de esperar para a segurança do seu país». Mitterrand considera que «devemos tentar dissipar as preocupações do Sr. Gorbatchev» e oferece-se para apresentar «um certo número de propostas» sobre essas garantias quando ele e Bush se encontrarem pessoalmente.

Documento 21

Registo da conversa entre Mikhail Gorbachev e George Bush. Casa Branca, Washington D.C.

31 de Maio de 1990

Fonte

Arquivo da Fundação Gorbachev, Moscovo, Fond 1, opis 1.[13]

 

Nesta famosa discussão das “duas âncoras”, as delegações americana e soviética deliberam sobre o processo de reunificação alemã e, em especial, sobre a questão da adesão de uma Alemanha reunificada à OTAN. Bush tenta persuadir o seu homólogo a reconsiderar os seus receios em relação à Alemanha, baseados no passado, e a encorajá-lo a confiar na nova Alemanha democrática. O Presidente dos EUA afirma:

«Acreditem, não estamos a empurrar a Alemanha para a reunificação e não somos nós que determinamos o ritmo deste processo. E, claro, não temos qualquer intenção, nem mesmo nos nossos pensamentos, de prejudicar a União Soviética de qualquer forma. É por isso que nos pronunciamos a favor da reunificação alemã na OTAN, sem ignorar o contexto mais vasto da CSCE, tendo em consideração os laços económicos tradicionais entre os dois Estados alemães. Tal modelo, na nossa opinião, corresponde também aos interesses soviéticos

1 de Junho de 1990. Os Presidentes George H. W. Bush e Mikhail Gorbachev assinam acordos entre ao Estados Unidos e a União Soviética na Sala Leste da Casa Branca. Foto: Biblioteca e Museu Presidencial George Bush.


Baker repete as nove garantias feitas anteriormente pela Administração, incluindo que os Estados Unidos concordam agora em apoiar o processo pan-europeu e a transformação da OTAN para eliminar a percepção soviética de ameaça. A posição preferida de Gorbachev é a Alemanha com um pé na OTAN e no Pacto de Varsóvia – as “duas âncoras” – criando uma espécie de membro associado.

Baker intervém, dizendo que «as obrigações simultâneas de um mesmo país para com o Pacto de Varsóvia e a OTAN cheiram a esquizofrenia». Depois de o Presidente dos EUA enquadrar a questão no contexto do acordo de Helsínquia, Gorbachev propõe que o povo alemão tenha o direito de escolher a sua aliança – o que, no fundo, já tinha afirmado a Kohl durante o encontro de Fevereiro de 1990.

Neste ponto, Gorbachev excede significativamente o seu mandato e incorre na ira de outros membros da sua delegação, especialmente do drigente com a pasta alemã, Valentin Falin, e do marechal Sergey Akhromeyev. Gorbachev lança um aviso importante sobre o futuro:

«Se o povo soviético ficar com a impressão de que somos ignorados na questão alemã, todos os processos positivos na Europa, incluindo as negociações em Viena [sobre as forças convencionais], correrão um sério risco. Isto não é apenas bluff. É simplesmente o facto de o povo nos obrigar a parar e a olhar em volta».

É um reconhecimento notável das pressões políticas internas sobre o último dirigente soviético.

Documento 22

Carta de Mr. Powell (N. 10) para Mr. Wall: Memorando da conversa Thatcher-Gorbachev.

8 de Junho de 1990

Fonte

Documents on British Policy Overseas, series III, volume VII: German Unification, 1989-1990 (Foreign and Commonwealth Office. Documents on British Policy Overseas, editado por Patrick Salmon, Keith Hamilton e Stephen Twigge, Oxford and New York, Routledge 2010), pp 411-417

Margareth Thatcher visita Gorbachev logo após este regressar a casa depois da cimeira com George Bush. Entre as muitas questões abordadas na conversa, o centro de gravidade é a reunificação alemã e a OTAN, sobre as quais, observa Powell, as «opiniões de Gorbachev ainda estavam a evoluir». Em vez de concordar com a reunificação alemã na OTAN, Gorbachev fala da necessidade de a OTAN e o Pacto de Varsóvia se aproximarem, passando do confronto à cooperação para construir uma nova Europa:

«Temos de moldar as estruturas europeias para que nos ajudem a encontrar a casa comum europeia. Nenhuma das partes deve ter medo de soluções pouco ortodoxas


Embora Thatcher se oponha às ideias de Gorbachev, que não incluem a adesão plena da Alemanha à OTAN, e sublinhe a importância de uma presença militar dos EUA na Europa, também considera que «a CSCE poderia servir de guarda-chuva para tudo isto, para além de ser o fórum que levaria a União Soviética a participar plenamente na discussão sobre o futuro da Europa». Gorbachev diz que quer «ser completamente franco com a Primeira-Ministra», dizendo que se os processos se tornassem unilaterais, «poderia haver uma situação muito difícil [e a] União Soviética sentiria a sua segurança em perigo». Thatcher responde com firmeza que não era do interesse de ninguém pôr em causa a segurança soviética:

«Temos de encontrar formas de dar à União Soviética a confiança de que a sua segurança será salvaguardada».

 8 de Junho de 1990. A primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher, aperta a mão do presidente soviético, Mikhail Gorbachev, no Palácio do Kremlin, em Moscovo, onde se reuniram para conversar no início da sua visita de quatro dias à URSS. Foto: Barry Batchelor/PA Archive/PA Images

.....................................................................................................................................................

A Parte IV (a última) deste arquivo será publicada oportunamente neste blogue.

......................................................................................................................................................


NOTAS

[13] Publicado em inglês pela primeira vez em Savranskaya e Blanton, The Last Superpower Summits (2016), pp. 664-676.

…………………………………………………………………………….

A Parte II deste arquivo pode ser lida aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/09/alargamento-da-otan-o-que-foi-dito.html

A Parte I deste arquivo pode ser lida aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/09/nota-editorial-introdutoria-ao-arquivo.html

O arquivo original encontra-se em:

https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early

……………………………………………………………………………….

[*] O tradutor seguiu a ortografia anterior ao (des)acordo Ortográfico de 1990