TERTÚLIA ORWELLIANA

Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

28 dezembro, 2024

 

“Rebranding” de al-Julani, fim da fase 1:

um bom detergente made in USA lava todos os assassínios, por maiores que sejam

 

José Catarino Soares

 

Dia 20 de Dezembro de 2024, Barbara Leaf, a secretária de Estado adjunta para os Assuntos do Médio Oriente do Departamento de Estado dos EUA [equivalente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros nos países europeus] no governo de Joe Biden, aterrou em Damasco para transmitir pessoalmente a decisão dos EUA de eliminar a recompensa de 10 milhões de dólares pela detenção do dirigente máximo do Hay’at Tahrir al-Sham  (HTS) e sátrapa da Síria actual, Abu Mohammed al-Julani.

Barbara Leaf, Secretária de Estado adjunta para os Assuntos do Médio Oriente, testemunhando perante a Câmara dos Representantes dos EUA, em 8 de Novembro de 2023. Foto: Alex Wong/Getty Images/AFP.


«Com base na nossa conversa, eu disse-lhe que não iríamos prosseguir com a oferta de uma recompensa do programa “Recompensas para a Justiça” que tem estado em vigor há alguns anos», disse Leaf aos jornalistas (Rabia Iclal Turan, “US removes $10M bounty on HTS leader following talks in Damascus”. AA, 20-12-2024).


Este cartaz data de 2018 e foi divulgado pelo “Rewards for Justice”, o principal programa de prémios e recompensas de segurança nacional do Departamento de Estado dos EUA.

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Depois das conversas com al-Julani e outros dirigentes do HTS, que ela afirmou terem sido “muito produtivas”, disse ainda a senhora Barbara Leaf, congratulando-se com as declarações amistosas de al-Julani para com os EUA, o seu ex-perseguidor implacável:

«É um pouco incoerente, portanto, ter uma recompensa pela cabeça do homem».


Abu Mohammed al-Julani (aliás, Ahmed Hussein al-Shara), sátrapa da Síria actual. Que ninguém se esqueça nem se iluda com o seu estudado ar de respeitabilidade. Este homem conquistou este cadeirão de poder a degolar e decapitar  “infiéis”.


Este espectacular flic-flac com mortal empranchado à rectaguarda permitirá agora que Washington (já com Trump outra vez na Casa Branca) levante as sanções contra a Síria decretadas ao abrigo do infame Caesar Syria Civilian Protection Act de 2019 — a arma de guerra económica que sufocou e acabou por fazer cair a República Árabe Síria, o último regime civil e laico do Médio Oriente.

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P.S. [2 de Janeiro 2024]. Reproduzo aqui, com a devida vénia, o seguinte bilhete público, que se coaduna bem com o título do meu artigo mais acima:

CANALHICE DOS ORGÃOS MEDIÁTICOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL  OCIDENTAIS

«Há dois anos, durante uma entrevista programada pela CNN, com o presidente iraniano Ibrahim Raisi, a jornalista da CNN negou-se a usar o hijab e a entrevista foi cancelada. Mas, quando o ex-líder do Daesh e Al-Qaeda e actual líder da Síria Abu Muhammad al-Julani exigiu o hijab, a mesma CNN aceitou, sorrindo, e a jornalista colocou o hijab. 

Essa é a desgraça dos orgãos mediáticos de comnunicação social ocidentais: contaminam milhões» 

(Carlos Sério, Facebook, 1 de Janeiro de 2025, revisão da Tertúlia Orwelliana). 


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P.S.-2 [3 de Janeiro de 2025]. A seguir à benção da senhora Barbara Leaf, do governo dos EUA, foi agora a vez ‒ hoje, dia 3 de Janeiro de 2025 ‒ dos ministros dos Negócios Estrangeiros da Alemanha (Annalena Baerbock) e da França (Jean-Noël Barrot), se deslocarem a Damasco para darem também a sua benção ao sátrapa da Síria actual --- o corta-goelas e corta-cabeças Abu Mohammed al-Julani (aliás, Ahmed Hussein al-Shara). Ver foto abaixo. 

«É possível um reset político entre a Europa e a Síria, entre a Alemanha e a Síria. É com esta mão estendida, mas também com claras expectativas em relação aos novos governantes, que nos deslocamos hoje a Damasco», afirmou a ministra alemã, Annalena Baerbock. Pormenor picante, mas elucidativo: apesar destas juras de apoio, al-Julani recusou-se a apertar a mão à senhora Annalena Baerbock, certamente por esta ser uma mulher...

3 de Janeiro de 2025, Damasco. Annalena Baerbock (ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha), sentada à esquerda, e Jean-Noël Barrot (ministro dos Negócios Estrangeiro da França), sentado à direita, expressam o apoio dos seus governos a Abu Mahommed al-Julani (o dirigente do braço sírio da Al-Qaeda e do Estado Islâmico na Síria que tomou o poder neste país há menos de um mês), sentado ao centro.



14 dezembro, 2024

 Temas 2 e 3

 “Rebranding” de um assassino veterano do Estado Islâmico e da Alcaida [al-Qaeda] num impoluto combatente pela liberdade e num estadista tolerante e moderado


José Catarino Soares

 

Está em curso uma das mais vastas e sofisticadas operações de reformulação de marca (Ingl. “rebranding”) iniciada pelos altos-comandos (Ingl. “commanding heights”) do “Ocidente alargado” no século XXI.

A primeira consistiu em transformar um obscuro comediante ucraniano, Volodymyr Zelensky desconhecido do público ocidental, mas famoso no seu país pelas suas actuações provocantes (como, por exemplo, as de tocar piano com o pénis ou saracotear-se vestido de mulher e de sapatos altos) e, mais tarde, por uma telenovela onde fazia o papel de um bem-sucedido candidato presidencial num candidato presidencial vitorioso. Mas esta primeira operação de “rebranding” foi feita apenas com prata da casa: a bem nutrida conta bancária e as seis estações de televisão do magnata mafioso, Ihor Kolomoysky, um dos mais poderosos oligarcas da Ucrânia, à época.

A segunda operação de “rebranding” foi feita com meios e numa escala sem precedentes, já que envolveu o sistema mediático dominante e oligarquizado de comunicação social do “Ocidente alargado” — jornais e revistas mundanas de grande circulação; redes de televisão e emissoras de rádio de grande audiência; agências noticiosas globais [AP, AFP, Reuters, EFE]; agências globais de comunicação estratégica, estatais [e.g., Office of Public Affairs da CIA, Office of Corporate Communications da Defense Intelligence Agency], interestatais [e.g., NATO Communications and Information Organization (NCIO)], criptoestatais [e.g., National Endowment for Democracy] e não-estatais [e.g., Bellingcat, Edelman, Weber Shandwick, Ketchum, FleishmanHillard, Burson].

Tratou-se de transformar, aos olhos do público ocidental, Zelensky, o presidente de um regime banderista, russofóbico e liberticida, saído do golpe de Estado sangrento de 22 de Fevereiro de 2014, em Quieve (e, por conseguinte, um regime ilegal e ilegítimo desde a primeira hora), num novo Churchill em luta pelos valores da liberdade e da democracia.

A terceira operação de “rebranding” é a mais ambiciosa de todas. Trata-se de transformar, aos olhos do público, Abu Mohammed al-Julani (aliás, Ahmed Hussein al-Shara, o seu verdadeiro nome), o indivíduo que aparece na foto abaixo um veterano assassino da Alcaida e do Estado Islâmico, com um cadastro de atrocidades e crimes de guerra de fazer inveja a Netanyahu num impoluto combatente pela liberdade e num estadista tolerante e moderado.


Este cartaz data de 2018 e foi divulgado pelo “Rewards for Justice”, o principal programa de prémios e recompensas de segurança nacional do Departamento de Estado [equivalente a Ministério dos Negócios Estrangeiros] dos EUA.


Convém, por isso, estar preparado para não ser arrastado pela verdadeira enxurrada de notícias fraudulentas (Ingl. “fake news”) desta operação de “rebranding” que entra todos os dias em nossas casas através dos aparelhos de televisão e de rádio, nem ficar sequer enlameado e conspurcado com os seus salpicos.  

Pela parte que me toca, procurarei divulgar aqui e noutros espaços públicos a que tenho acesso informações e análises que nos permitem manter a lucidez e o espírito crítico  perante tanto embuste e perfídia.

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P.S.(1) [15-12-2024] 


A ominosa penitenciária de Sednaya

tem o pedigree da CIA

José Catarino Soares

 

Uma das correntes mais fortes da enxurrada de notícias fraudulentas associadas ao “rebranding” de Abu Mohammed al-Julani e dos seus jihadistas da HTS,  é a que consiste em apresentar o regime derrubado de Bashar al-Assad como o regime mais cruel e sanguinário que existiu ao cimo do planeta, relativamente ao qual até os assassinos e terroristas encartados do Estado Islâmico e da Alcaida, ao estilo de al-Julani, parecem mansos cordeiros, cuja tomada de poder em Damasco deveria, por conseguinte, ser saudada como um “mal menor” ou, até, como uma auspiciosa «nova oportunidade de liberdade e paz para todo o povo sírio» (António Costa, Presidente do Conselho Europeu).

Foi assim que, em 9 de Dezembro de 2024, intoxicados com a sua própria desinformação, centenas de militantes e simpatizantes da organização pró-turca denominada Defesa Civil Síria, mais conhecida como Capacetes Brancos, se precipitaram para a prisão de Sednaya, em Damasco, apetrechados de martelos pneumáticos, brocas, varas metálicas  e retroescavadoras. Objectivo?  Procurar e libertar as dezenas de milhares de presos políticos que acreditavam jazerem nas masmorras secretas subterrâneas de Sednaya. Ao fim de 4 dias de buscas, ficaram muito desapontados, porque não encontraram nada do que esperavam: nem presos nem masmorras secretas subterrâneas.

Mas não havia razões objectivas para o desapontamento. Desde o dia 28 de Novembro de 2024 que a Associação de Detidos e Pessoas Desaparecidas de Sednaya (ADPDS), uma ONG turca, tinha obtido do governo de Bashar al-Assad uma informação oficial sobre o número de presos em Sednaya: (4300), dos quais 230 acusados de terrorismo — os únicos que poderiam ser qualificados de “presos políticos”, se admitirmos que o terrorismo é uma forma legítima de luta política (que não é o meu caso). O director da ADPDS, Diab Serria, também já tinha informado em diversas ocasiões que não havia masmorras subterrâneas secretas em Sednaya e que todos os presos tinham sido soltos na manhã do dia 8 de Dezembro.

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4300 detainees in Sednaya prison

The Association of Detainees and Missing Persons of Sednaya Prison (ADMSP) obtained an official document indicating that the number of prisoners, as of November 28, 2024, had reached 4300 individuals.

According to the document, which Enab Baladi obtained a copy of through the Association, the daily inspection recorded 4300 prisoners distributed as follows:

  • Military field court: 1231 prisoners, one of whom was referred to the hospital.
  • Terrorism court: 252 prisoners.
  • Judicial court (misdemeanors and criminal charges involving a military party): 2817 prisoners, three of whom were referred to the hospital.
  • Desertion trials: No prisoners.

The statistics recorded on this date indicate no cases of death.

The director of the association, Diab Serriya, confirmed in a video recording that there are no secret basements in Sednaya prison on multiple occasions, and clarified that all detainees were removed from the prison on the morning of Sunday, December 8 (Enab Baladi, 11-12-2024).

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Tudo em vão. A “nuvem de gafanhotos” (HTS e apaniguados) que, com a ajuda indispensável dos  predadores de grande porte (EUA, Turquia, Israel)caiu sobre a República Árabe Síria para a desapossar definitivamente das suas riquezas (petróleo, gás natural, trigo, etc.) e substituir o seu regime civil e laico por um regime teocrático islamita baseado na Sharia [“lei islâmica”], dirigiu-se à Sednaya como que atraída por um imã irresistível: a mentira de que nela jaziam dezenas de milhares de inimigos de Bashar al-Assad.


O poeta António Aleixo alertou-nos, porém, para uma constante: «P’ra mentira ser segura/e atingir profundidade, / tem de trazer à mistura/qualquer coisa de verdade»

No caso em apreço, a “qualquer coisa de verdade” na ideia de uma  Sednaya a abarrotar de presos políticos sujeitos às piores torturas é, antes de mais, o uso que  fez  do aparelho prisional sírio a CIA, essa bem conhecida e inveterada guardiã dos valores da “liberdade” e “democracia” made in USA. De facto, as cadeias sírias acolheram, no início deste século, muitos prisioneiros (não sabemos ao certo quantos), ali chegados por via da CIA, no quadro da chamada Guerra contra o Terror. 

«Os EUA pediram então ao regime sírio que recebesse levas de presos jihadistas e que ali fossem submetidos a interrogatório e posterior detenção. Nesses anos de guerra e tortura em que Guantánamo, a base aérea de Bagram, Abu Ghraib e outros black sites se tornaram conhecidos pela brutalidade do tratamento conferido a milhares de prisioneiros, a maioria ali chegada sem culpa formada, não me parece que no Ocidente as consciências se questionassem sobre as brutalidades cometidas.

Penitenciária de Sednaya, situada a cerca de 30 km a Norte de Damasco.  

Agora que as portas de Sednaya se abriram, ao invés das dezenas de milhares que ali se dizia vegetarem, o número de presos políticos ‒ ou antes, de terroristas ‒ ali encontrados resume-se a 252. Incomodados pelo fracasso da acção de propaganda, centenas de homens dedicaram os primeiros dias a escavar o solo e as paredes em busca de um mítico dédalo subterrâneo de celas. Não havia celas subterrâneas, pelo que se transformou a visita a Sednaya em motivo para depoimentos de ex-detidos e seus familiares. Com o improviso, muitos destes depoimentos são manifestamente destituídos de credibilidade, como o deste rapazinho de 10 anos que acaba por confessar que não vê o pai…. há 14 anos» [!] (Miguel Castelo Branco, Facebook, 13-12-2024). O vídeo com a mentirola do rapazinho pode ser visto aqui :

https://www.youtube.com/shorts/DDLjzYdan6s

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P.S.(2) [17-12-2024] 


A CNN ESCARNECE DE NÓS

José Catarino Soares

 

A CNN pôs uma sua jornalista, Clarissa Ward, a descobrir e a libertar um preso político “esquecido” numa alegada prisão secreta do regime de Bashar al-Assad, na Síria. O vídeo da reportagem de Clarissa Ward  pode ser visto aqui:  https://www.youtube.com/watch?v=K7fTV7tqafk

Ao centro, Adel Gharbal, aliás Salama Mohammad Salama, a olhar para o céu, depois da sua “libertação”. À direita, Clarissa Ward, repórter da CNN.

O homem disse chamar-se Adel Gharbal, ser um civil morador na cidade de Homs e ter sido preso três meses antes, depois de ter estado com o seu telefone sob escuta pela polícia do regime. Durante esse período, declarou ter vegetado na escuridão de uma cela sem janelas nem luz eléctrica.

Mas ninguém diria as provações por que passou, pois apresentava-se vestido com um bom casaco, roupas limpas, as unhas impecavelmente manicuradas e com aspecto saudável. E, espantosamente, não pestanejou sequer ao olhar para o céu depois de ter saído para a luz do dia, aparentando estar cheio de alegria por ter sido “libertado” pela CNN.

As mãos limpas e as unhas bem tratadas de um homem alegadamente preso há 3 meses numa  masmorra sem luz. 
   

Nas imagens, vemos o dito Adel Gharbal escondido debaixo de um cobertor no chão da cela como se estivesse a dormir, apesar dos tiros utilizados para arrombar a fechadura da sua cela uns segundos antes.  Apesar dos alegados maus-tratos infligidos aos detidos nas prisões secretas, Gharbal aparentava, como já foi dito, estar limpo, fisicamente saudável, sem ferimentos visíveis ou sinais de tortura — uma imagem incongruente de alguém alegadamente mantido em confinamento solitário no escuro durante 90 dias.

Na verdade, toda a reportagem da CNN é uma encenação fraudulenta do princípio ao fim.

Segundo o Verify-Sy (uma ONG síria sediada na Turquia que se dedica à verificação de factos e que está associada ao Poynter Institute), o homem filmado na reportagem da CNN mentiu com quase todos os dentes da boca. O seu verdadeiro nome é Salama Mohammad Salama, também conhecido como Abu Hamza. Salama é um primeiro-tenente dos serviços secretos da Força Aérea síria, conhecido pelas suas actividades em Homs, onde terá gerido vários postos de controlo de segurança e onde esteve envolvido em roubos e extorsões.

Segundo os habitantes locais, o seu recente encarceramento pela polícia do regime de Bashar al-Assad ‒ que durou menos de um mês ‒ deveu-se a uma disputa sobre a partilha dos lucros dos fundos extorquidos com um oficial de patente superior. Este facto levou à sua detenção numa das celas de Damasco, onde a CNN o foi desencantar.

Salama Mohammad Salama, com seu uniforme de primeiro-tenente,

no seu gabinete em Homs. Fonte: Verify-Sy.

Em suma, a CNN (e Clarissa Ward [1]escarnece de nós, embora de uma maneira diferente da de António Costa, presidente do Conselho Europeu [2]. Toma-nos por lorpas e papalvos, prontos para engolirmos qualquer patranha ou fraude que nos queira impingir, por mais grosseira e absurda que seja. Terá razão? Eis a questão.  


Notas e Referências


[1] Esta Clarissa Ward é a mesma «actriz de telejornal que em tempos fingiu estar sob fogo directo do Hamas e que passou mais de uma década a propagandear descaradamente os jihadistas que agora executam minorias em Latakia» (Max Blumenthal, X, 12 de Dezembro de 2024).

[2] Ver,  José Catarino Soares, António Costa escarnece de nós”. Estátua de Sal, 13-12-2024 [https://estatuadesal.com/2024/12/13/antonio-costa-escarnece-de-nos/]

09 dezembro, 2024

 Temas 2 e 3


Três exemplos de interferência descarada da

 União Europeia na expressão da vontade

 popular: Geórgia, Roménia e Moldávia

 

Seguem-se quatro textos sobre este tema comum. O primeiro é meu (JCS); os outros três são do major-general Raul Cunha, aqui republicados com a devida vénia. O título do terceiro texto foi acrescentado por mim.


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Não votaram bem.

Temos de repetir a votação…

José Catarino Soares

 

Na Geórgia, os protestos contra o governo do partido “Sonho Georgiano” (recentemente reeleito, em 26 de Outubro de 2024,  com 53,93% dos votos contra 37,79% de uma aliança de partidos da oposição) transformaram-se em motins violentos, à semelhança do EuroMaidan em Kiev, em 2014, que precedeu o golpe de Estado de 22 de Fevereiro de 2014 — a origem da primeira guerra na Ucrânia: a que começou em 2 de Maio de 2014, até se fundir com a que começou em 24 de Fevereiro de 2022 e que se prolongou até hoje, sem fim à vista.

Um homem mascarado com uma bandeira da UE no meio de barricadas a arder; uma cena comum na Geórgia em Novembro e Dezembro de 2024. Foto de Daro Sulakauri.


Qual é a razão dos protestos? A decisão da UE de suspender indefinidamente o processo de pedido de adesão da Geórgia, devido à aprovação, em Junho, de uma “lei da Transparência” — entenda-se, uma lei sobre as organizações influenciadas e financiadas pelo estrangeiro. A lei georgiana obriga a que todas as organizações não governamentais ou meios de comunicação social do país que recebam pelo menos 20% do seu financiamento do estrangeiro se registem como grupos “ao serviço dos interesses de uma potência estrangeira”.

A hipocrisia e a russofobia da UE são patentes. Esta lei georgiana, que a UE diz ser inspirada numa lei russa de 2012 e ser contrária aos princípios e valores da UE, foi feita à semelhança de leis do mesmo teor que existem não apenas na Rússia, mas também em muitos outros países que a UE considera como campeões da liberdade e da democracia (“Lei dos agentes estrangeiros: ferramenta política usada dos EUA à Venezuela”, Público, 10 de Março de 2023).

É o caso, por exemplo, dos EUA, que têm uma lei semelhante desde 1938, a Lei do Registo de Agentes Estrangeiros (FARA, no acrónimo em inglês), que foi emendada nos anos 1960 para englobar grupos de influência e empresas que promovam interesses de governos estrangeiros. É o caso também do Canadá e da Austrália, que têm leis semelhantes, baseadas na lei americana.

Na União Europeia, países como a Hungria e a Bulgária aprovaram leis semelhantes nos últimos cinco anos E, pasme-se, até Israel e a Ucrânia (em 2018), que a UE considera como exemplos máximos do respeito pelos direitos humanos (excepto, naturalmente, em Gaza, Cisjordânia, Lugansk, Donetsk, Zaporíjia, Quérson, “territórios infestados de terroristas que têm de ser exterminados”, como proclamam os seus dirigentes), têm também as suas leis de registo de agentes estrangeiros.

Mas tudo isso pouco importa aos georgianos amotinados, que culpam o governo georgiano ― que é declaradamente pró-UE, mas que se recusou a adoptar sanções económicas contra a Rússia e que pretende manter boas relações com ela ‒‒ pela decisão da UE de suspender o processo de adesão do país a esta organização por causa dessa lei. Têm o apoio da presidente cessante, Salome Zourabichvili, uma diplomata francesa [!] com uma carreira de mais de 30 anos ao serviço do Estado francês, que muitos suspeitam que não terminou com a sua eleição como presidente da Geórgia.

Esta senhora anunciou a sua recusa em abandonar o cargo, que termina este ano, enquanto não forem marcadas novas eleições legislativas no país, porque não lhe agradaram os resultados das que se efectuaram em Outubro de 2024. Belo exemplo de respeito pelo voto popular…Diz a senhora Salome que a Geórgia foi vítima da pressão de Moscovo contra a adesão à UE e instou os Estados Unidos e a UE a apoiarem os motins (!!).  Ou seja, instou a UE e os EUA a fazerem… aquilo que acusa a Rússia de fazer: a interferência descarada nos assuntos internos da Geórgia!!

Acusação sem provas, convém acrescentar. Para que são necessárias provas quando se trata de defender “a ordem internacional baseada em regras” (ditadas pelos EUA), sobretudo contra a Rússia? É óbvio que para os seus defensores vale tudo.


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Votar

até que votem bem…

Raul Cunha

(in Facebook, 7-12-2024)


Na Roménia, o Ocidente deixou cair totalmente a máscara. Quando um candidato anti-guerra ganhou a primeira volta das eleições presidenciais, os gritos de indignação ouviram-se até Washington.  Começaram logo a surgir ameaças de sanções — porque, aparentemente, a democracia deixa de ser democrática quando não está alinhada com os planos de guerra da OTAN. E só para que fique bem claro, o tribunal constitucional da Roménia interveio dois dias antes da segunda volta, declarando o processo inválido e determinando que fosse refeito.

E assim, anulou os resultados da primeira volta das eleições presidenciais devido a uma alegada interferência russa ... através do (atenção, que não dá para acreditar)... TikTok. 🤡

 ▪️Na prática, esta decisão equivale a um golpe de Estado, só porque não gostaram do possível vencedor.

 ▪️O que é engraçado é que, por alguma estranha razão, esta gentalha sente-se no direito de perorar sem parar e de dar palestras sobre Democracia.

 ▪️Pode ser vista em seguida a primeira declaração de Călin Georgescu (o vencedor e suspeito de ser pró-russo) após o cancelamento das eleições presidenciais:

Neste mesmo dia, o Estado romeno tomou a nossa democracia numa anedota e calcou-a (...) O sistema corrupto na Roménia mostrou a sua verdadeira face e fez um pacto com o diabo.”

Antes de ser cancelada a 2ª volta das eleições, Georgescu estava com uma vantagem de 63% nas sondagens contra 37% de Lasconi, portanto os pró-Ocidente estavam prestes a perder e por isso mesmo tinham de impedir esse facto [*].

A própria Elena Lasconi (à direita na foto), que ficou em segundo lugar na primeira volta das eleições presidenciais, protestou contra a sua anulação pelo Tribunal Constitucional da Roménia.

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[*] Nota editorial (n.e). O argumento principal usado pelos seus adversários contra a inadmissibilidade da eleição de Georgescu, é o de que ele é um político de “extrema-direita”. Mas com esse argumento especioso, a porta fica aberta para banir (se necessário for com um golpe de Estado) todo e qualquer candidato eleito que não caiba no molde fabricado pelo “centrão”.


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Se és Moldavo na diáspora podes votar,

mas se viveres na Rússia não podes,

como compreenderás…

Raul Cunha

(in Facebook, 5-11-2024)


Se disseres a verdade, não tens de te lembrar de nada [“If you tell the truth, you don't have to remember anything.”] ―Mark Twain.

 

A União Europeia foi cúmplice de uma fraude maciça nas eleições que ocorreram na Moldávia, no referendo sobre a adesão à UE e na 1.ª e 2.ª voltas da eleição do Presidente.

No dia 3 de Novembro, ocorreu a segunda volta das eleições presidenciais na Moldávia. De acordo com dados preliminares da Comissão Eleitoral Central da Moldávia (controlada pela UE), a atual chefe de Estado M. Sandu venceu, obtendo 55 % dos votos.

Não é exagero afirmar que esta foi a campanha eleitoral mais antidemocrática em todos os anos da independência da Moldávia.

As suas características mais salientes foram:

― Uma repressão sem precedentes, por parte das autoridades, contra a oposição e os meios de comunicação independentes, em especial os de língua russa,

― Uma interferência descarada das lideranças ocidentais no processo eleitoral, especialmente da Comissão Europeia e da Roménia,

― A utilização em larga escala de recursos administrativos pelas autoridades, em favor da atual liderança do País.

Merece um especial destaque a discriminação oficial de Chisinau [capital da Moldávia, n.e.] contra os eleitores moldavos que vivem na Rússia. Para a diáspora moldava nesse país, cujo número, segundo várias estimativas, chega a 500 mil pessoas, apenas foram abertas duas assembleias de voto, tal como na primeira volta. Para efeitos de comparação, note-se que na Europa Ocidental e na América do Norte, onde também vivem cerca de 500 mil moldavos, foram formadas mais de 200 assembleias de voto e, em vários países, os cidadãos moldavos foram inclusivamente autorizados a votar pelo correio.

Os resultados da contagem dos votos permitem concluir que, tal como nas últimas eleições presidenciais de 2020, a vitória de M. Sandu foi assegurada pelos votos da diáspora moldava que vive nos países ocidentais, enquanto a maioria dos residentes da própria Moldávia votou, de facto, contra a atual presidente e o rumo enviesado e sectário das autoridades no poder.

Especialistas e cientistas políticos apontam inúmeras violações e falsificações por parte das autoridades. Chamam a atenção para a organização opaca do voto pelo correio, que abre oportunidades para fraudes.

As violações durante o processo eleitoral foram tão massivas e óbvias que mesmo a missão de observação da OSCE/ODIHR, conhecida pela sua parcialidade, não conseguiu fechar os olhos a tal facto nas suas conclusões preliminares. Foi flagrante o desrespeito de Chisinau pelas normas internacionais.

Votação no referendo sobre a adesão à UE, de 20 de Outubro de 2024, na Moldávia.


Os resultados desta segunda volta das eleições presidenciais confirmaram a existência de uma divisão profunda na sociedade moldava, que se manifestou também durante a primeira volta e no referendo sobre a adesão à UE.

Esta polarização foi provocada pelas políticas sectárias da liderança do país e pela contínua interferência grosseira das lideranças ocidentais nos processos políticos internos da Moldávia.


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Democracia de fachada,

mas controlo da verdade!

Raul Cunha

(in Facebook, 8-12-2024)

 

Moldávia. Roménia. Geórgia. É o mesmo guião, reescrito para diferentes fases. O Ocidente adora a democracia, mas apenas quando esta apresenta os resultados desejados. Quando o povo vota contra a narrativa aprovada...? Caiem as máscaras e o mecanismo de coação entra em funcionamento: bloqueios de estradas, tribunais, protestos, manifestações, sanções. Não importa a vontade do povo; o que está em causa é a vontade de Bruxelas e de Washington.

Isto é a democracia, ao estilo ocidental — uma roleta manipulada onde a casa ganha sempre. A Moldávia, a Roménia e a Geórgia são apenas os últimos nessa mesa, com a sua soberania vendida pela ilusão de escolha. A mensagem é clara: “Pode votar como quiser, mas se não escolher corretamente, nós escolheremos por si!”