Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

11 janeiro, 2014

TEMA 1

A denominada «convergência» das pensões do sistema previdencial da função pública (CGA) com as do sector privado (CNP)


Resumo

Neste documento procede-se a uma análise crítica do decreto 187/XII da Assembleia da República, aprovado em 1 de Novembro de 2013, e do preâmbulo («Exposição de Motivos»)  da proposta de lei  nº171/XII/2ª, aprovada em Conselho de Ministros em 12 de Setembro de 2013, que lhe deu origem. Nele se mostrará que as medidas preconizadas nesse decreto, são, no que têm de essencial (artigo 7º), o contrário do que afirmam ser e que os motivos apresentados na referida proposta de lei como sua justificação são falaciosos, assentes que estão em premissas falsas, omissões clamorosas de informação pertinente para o assunto em apreço, alegações enviesadas, comparações tecnicamente defeituosas e factos deturpados por ignorância, incompetência ou má-fé. Aduziremos  factos e argumentos que mostram claramente: 1) que as pensões actuais da CGA são já iguais ou inferiores às do CNP quando calculadas com base nas regras que vigoram neste último; 2) que, se o decreto nº187/XII fosse promulgado, os actuais aposentados da CGA ficariam com pensões de aposentação de valor ilíquido inferior, em números redondos, entre 8% e 11% às do CNP, por modificação «retroactiva» (e por conseguinte em violação do artigo 12º do Código Civil) do valor ilíquido que lhes foi legalmente fixado na data em se aposentaram/reformaram. Este decreto atingiria igualmente, caso fosse promulgado, os contribuintes da CGA que pediram a sua aposentação até 31-12-2012 (e que aguardam despacho) e, obviamente, todos os futuros pensionistas que foram admitidos na função pública antes de 1993.

Nota: Por economia de palavras e comodidade de exposição, usaremos, sempre que possível, o termo pensões de aposentação como abreviatura de «pensões de aposentação, de reforma, de invalidez, de sobrevivência e de preço de sangue». Assim, o termo aposentado designará qualquer pessoa que receba uma dessas pensões. Da mesma forma, trabalhador da função pública será utilizado para designar qualquer profissional (civil, militar ou agente policial) que exerça as suas funções na admnistrações central, local e regional do Estado. O termo não abrange portanto os cidadãos eleitos por sufrágio universal para cargos políticos. As siglas CGA e CNP correspondem a Caixa Geral de Aposentações e Centro Nacional de Pensões (Instituto da Segurança Social, ISS), respectivamente. Esta terminologia (CGA vs CNP) é preferível à do governo (CGA vs RGSS [= regime geral da Segurança Social]) visto que a segunda parece sugerir que a CGA não faz parte do sistema previdencial da Segurança Social, ou que é uma sua excrescência, o que não é o caso. A CGA foi criada em 1929 e é por isso anterior em muitas décadas ao precursor do CNP, a Caixa Nacional de Pensões (que data de 1963). Acresce que foi a CGA que serviu de modelo ao CNP e não o inverso.

Preâmbulo

No dia 23 de Novembro de 2013, o Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade do Decreto n.º187/XII da Assembleia da República. Mais especificamente, o Presidente da República solicitou ao Tribunal Constitucional que verificasse a conformidade das normas constantes das alíneas a), b), c), e d) do  artigo 7º desse decreto com a Lei Fundamental, no que respeita «aos princípios da unidade do imposto sobre o rendimento, da capacidade contributiva, da progressividade e da universalidade»  e  «ao princípio de proteção da confiança, quando conjugado com o princípio da proporcionalidade» (Fonte: Página Oficial da Presidência da República). Admitido o requerimento no prazo de dois dias (artigo 52º, nº 3, da lei do Tribunal Constitucional), o Tribunal Constitucional (TC) deverá pronunciar-se no prazo de 25 dias (artigo 278º, nº 8, da Constituição).

Convem, porém, não perder de vista que, por imperativo da lei do TC (artigo 54º), o Presidente do TC notifica o orgão de que tiver emanado a norma (ou normas) impugnada(s) para, querendo, se pronunciar sobre ela(s). Ora, a proposta de lei nº 171/XII/2ª do governo, que está na origem do decreto nº 187/XII da Assembleia da República, apresenta um longo e prolixo preâmbulo (ocupa 32 das 46 páginas da proposta) entitulado «exposição de motivos». São os motivos que, alegadamente, levaram o governo a estabelecer «mecanismos de convergência do regime de proteção social da função pública com o regime geral da segurança social» (artigo 1 do referido decreto). É pois muito plausível que sejam estes os motivos que serão invocados pelo governo e pela maioria parlamentar responsável pela aprovação do decreto-lei 187/XII contra a impugnação de que este foi alvo por parte do Presidente da República.

Assim sendo, convem examinar tanto o artigo impugnado pelo Presidente da República como o teor dos motivos invocados pelo governo em sua defesa. Tal é o objectivo do presente documento.

A exposição dividir-se-á em duas partes. Na primeira analisaremos o teor do artigo 7º do decreto 187/XII, objecto da impugnação do Presidente da República. Na segunda parte, analisaremos a «Exposição de Motivos» constante da proposta de lei nº171/XII/2ª que pretende fundamentá-lo.

1. O cerne da questão

O cerne da questão é efectivamente o artigo 7º do decreto 187/XII. Resumidamente, esse artigo propõe um corte entre 7,8% e 10%, consoante os casos — na realidade é mais elevado, como se mostrará, atingindo, em média, 11,1% — nas pensões de aposentação dos actuais aposentados da função pública (CGA) com a  alegação que tal corte seria uma medida destinada a nivelar estas pensões com aquelas, alegadamente inferiores em 10%, dos actuais aposentados do sector privado (CNP).

Esta medida suscita desde logo uma questão de lógica elementar. Suponhamos (por um momento apenas) que a premissa de que parte o governo é correcta — a saber, que as pensões de aposentação da CGA são entre 7,8% e 10% superiores às do CNP. Suponhamos ainda (por um momento apenas) que o governo está animado das melhores intenções de justiça social — a saber, proporcionar a todos os aposentados e futuros aposentados a igualdade de condições perante a lei. Não seria então curial tomar medidas legislativas que levassem a que as pensões de aposentação do sector privado fossem aumentadas entre 7,8% e 10% para corrigir a distorção? Quem, se assim fosse feito, se poderia queixar de estar a ser injustiçado, tanto mais que essas pensões são, como veremos, integralmente financiadas, de forma directa e indirecta, pelos próprios trabalhadores? Obviamente, ninguém que estivesse em seu perfeito juízo. Como poderia o mais alto magistrado do Estado português impugnar o decreto do governo por fundada suspeita (que inúmeras pessoas, entre as quais me incluo, compartilham) de não ser conforme à Constituição da República Portuguesa? Não poderia, obviamente. Por que razão não foi então esse o caminho seguido pelo governo ? Esta questão será respondida na segunda parte deste documento.

Para já, concentremo-nos no fundamental: a premissa do governo é verdadeira? Beneficiam os aposentados da CGA de pensões de aposentação superiores entre 7,8% e 10% às dos seus congéneres do CNP? A resposta é uma dupla negativa.

Comecemos pelas pensões de sobrevivência, por ser o caso mais óbvio.

1.1.   Pensões de sobrevivência

No CNP (que admnistra as pensões de aposentação dos trabalhadores do sector privado) a pensão de sobrevivência corresponde a 60% da pensão do cônjuge falecido, enquanto a da Função Pública corresponde a 50% da parcela P1 (pensão correspondente ao tempo de serviço até 2005) mais 60% da parcela P2 (pensão correspondente ao tempo de serviço depois de 2005), o que determina que, na CGA, a pensão de sobrevivência corresponda, em média, a 53% da pensão do cônjuge falecido.  

Só a partir de 2010 é que a última remuneração recebida até 2005 utilizada para o cálculo da P1 (pensão correspondente ao tempo de serviço até 2005) passou a ser actualizada, sendo-o, até 2012, com base no índice de revalorização dos salários publicado pelo Ministério da Solidariedade e da Segurança Social e, depois de 2012, com base no aumento verificado no índice 100 da escala remuneratória da Função Pública que é muito inferior àquele (na Segurança Social a remuneração de 2005 é actualizada em 17,1%, enquanto na CGA é actualizada em apenas 8,2%). Até 2010, o cálculo da P1 era feito com base na última remuneração recebida sem qualquer atualização. Para os que estavam na Administração Pública, ou seja, para subscritores, o cálculo da P1 era feito, não com base na remuneração de 2005, mas sim com base na última remuneração, ou seja, aquela que tinham no ano em que se aposentaram (por exemplo, se se aposentaram em 2009 a remuneração utilizada era a de 2009), o que atenuava a falta de actualização da remuneração. Mas em relação aos ex-subscritores, até 2010, o cálculo da sua pensão era feito com base na remuneração que tinham na data em que saíram da Administração Pública, portanto com base numa remuneração totalmente desvalorizada.

Apesar de ter sido atempadamente alertado pelos sindicatos da função pública e pela APRe! sobre estes factos, o governo seguiu em frente com as suas propostas de corte das pensões de sobrevivência. A alínea c) do nº 1 do artº 7º da proposta de lei 171/XII/2º, dispõe textualmente o seguinte: «as pensões de sobrevivência de valor global ilíquido superior a uma vez o indexante de apoios sociais (…) têm o valor global ilíquido de Dezembro de 2013 reduzido em 10%». Ora, convém saber que o indexante de apoios sociais (IAS) é igual a 419,22 euros Por conseguinte, todas as pensões de sobrevivência pagas pela CGA, desde que o seu valor ilíquido (antes de qualquer desconto) seja superior a 419,22 euros por mês, sofreriam um corte de 10%. Esta menção ao IAS desapareceu, aparentemente, do decreto 187/XII, mas não é de excluir que se encontre disfarçada nas formulações do  Orçamento de Estado para 2014 (OE-2014) , cuja  versão final ainda não saíu da Assembleia da República. (O relatório do OE-2014 tem 225 páginas e a proposta de lei do OE-2014 tem 345 páginas. Ao todo são 570 páginas que é preciso ler e escrutinar com muita atenção. Esta precaução, sempre necessária, ganha uma maior acuidade nas presentes circunstâncias. É que, como veremos, com o governo actual todo o cuidado é pouco).

Seja como for, uma coisa é clara: as pensões de sobrevivência da CGA superiores a 600 euros — ou a 750, ou a 900, ou a 1050, ou a 1200 euros (se o pensionista tiver mais de 75, 80, 85 e 90 anos, respectivamente) —  sofrerão um corte de 10%, se o decreto 171/XII for promulgado.

E não se pense sequer que as pensões de sobrevivência pagas pela CGA são elevadas. No fim de 2012, as pensões de sobrevivência pagas pela CGA a 69% dos pensionistas era inferior a 500 euros por mês; apenas 1,7% recebiam pensões de sobrevivência superiores a 1.500 euros por mês (em 2012, a pensão média de sobrevivência paga pela CGA era apenas de 451,57 euros por mês). Muitos destes pensionistas só recebiam esta pensão (Fonte: Relatório e Contas da CGA.2012).

Acresce que as pensões de sobrevivência do sistema previdencial contributivo fazem parte dos direitos inalienáveis dos cônjugues (incluindo parceiros de uniões de facto) ou descendentes ou ascendentes a cargo dos subscritores ou ex-subscritores da CGA. Por isso, estas pensões não estão dependentes de qualquer “condição de recursos” (ou seja, do rendimento per capita familiar) — contrariamente ao que acontece (e bem) no sistema não contributivo de protecção social de cidadania — nem o corte que o governo pretende fazer nestas pensões se aplica apenas à 2ª pensão (isto supondo que o cônjuge sobrevivo já recebe uma pensão), contrariamente ao que afirmou o vice-primeiro ministro Paulo Portas em conferência de imprensa (13-10-2013). O vice-primeiro ministro também afirmou na mesma ocasião que as pensões de sobrevivência do CNP são pagas pelo Orçamento de Estado, o que é falso.

O que é verdadeiro é que o Orçamento de Estado (OE) para 2014 introduz subrepticiamente a “condição de recursos” onde ela  não tem cabimento. Assim, o seu artigo 116º determina que as pensões de sobrevivência futuras cuja soma com outra pensão que a pessoa eventualmente receba seja superior a 2000 euros sofrerão um corte. E o corte será calculado segundo procedimentos que constam do referido artigo e segundo percentagens que constam de uma tabela que o acompanha. No caso da pensão de sobrevivência ser paga pela CGA, o corte é superior ao que resulta do caso em que a pensão de sobrevivência é paga pelo CNP, agravando assim (em desfavor dos pensionistas da CGA) a divergência que já existe entre os dois regimes. Em suma, o que acontecerá no futuro, se o decreto 187/XII e o artigo 116º do OE 2014 forem promulgados, é a duplicação dos cortes nas pensões de sobrevivência atribuídas pela CGA. E isto porque estas pensões são já calculadas com base em pensões de aposentação que sofrem um corte de 10% pelo decreto 187/XII, e depois sofrem um novo corte resultante da aplicação das taxas de formação da pensão constantes do artigo 116º do OE 2014.

Fica assim demonstrada a falsidade do argumento da «convergência» utilizado pelo governo no caso das pensões de sobrevivência da CGA.

1.2. As pensões de aposentação (/reforma/invalidez)

Passemos agora às pensões de aposentação(/reforma/invalidez).

Consideremos um trabalhador qualquer, que esteja agora aposentado ao fim de uma carreira contributiva de N anos durante as quais fez os seus descontos legais com base nas suas remunerações íliquidas de valor V. Procuremos saber qual o valor da pensão que aufere aplicando-lhe sucessivamente as regras em vigor na CGA e as regras em vigor no CNP.

 De acordo com os cálculos efectuados pelo doutor Eugénio Rosa (economista, assessor da frente comum dos Sindicatos da Função Pública e reconhecido estudioso destas matérias), se o aposentado em causa for um ex-trabalhador do sector privado a sua pensão tem o valor X. Se o aposentado em causa for um ex-trabalhador da função pública a sua pensão é igual ou ligeiramente inferior a X. Daqui resulta que, se o decreto 171/XII fosse promulgado, os aposentados da função pública ficariam com pensões inferiores entre 8% e 12% às dos seus congéneres do sector privado (Fonte: «A falsa convergência das pensões da CGA e da Segurança Social e as justificações falaciosas do governo para cortar nas pensões e enganar e manipular a opinião pública».11-09-2013. Estudo disponível em www. eugeniorosa.com, pasta: Segurança Social, CGA, Fundos de Pensões). Sobre este ponto, dispomos também do testemunho directo do próprio  Eugénio Rosa sobre o que aconteceu quando deu conta ao governo destes factos:

«Durante a reunião com o Secretário de Estado da Administração Pública em 23-9-2013 afirmámos diretamente que era falsa a afirmação que a pensão correspondente ao tempo de serviço realizado até 2006 da Administração Pública era superior à obtida utilizando as regras de cálculo da Segurança Social. Efetivamente se aplicássemos as regras da CGA e da Segurança Social ao mesmo trabalhador para calcular a pensão correspondente ao tempo de serviço e de contribuições até a 2006, o valor da pensão que obtínhamos com as regras da CGA era superior apenas em 2,9% ao valor que se obtinha com as regras da Segurança Social, diferença esta que desaparece quando se tenha em conta que para ser considerado um ano na Segurança Social basta ter descontado 120 dias, enquanto na CGA é preciso ter um ano completo (basta faltar um dia para um ano de contribuições não ser considerado para o cálculo da pensão: P1). E se o governo reduzisse, como pretende, de 90% (que está em vigor atualmente; na Segurança Social é considerado 100%) para apenas 80% a parcela da remuneração que serve de base de cálculo para pensão correspondente ao tempo de serviço até 2005, o valor da pensão passaria a ser entre 8% e 12% inferior à que se obtém utilizando as regras da Segurança Social. E entregámos os cálculos por escrito ao Secretário de Estado. Este foi incapaz de rebater tais argumentos, refugiando-se no argumento de que a fórmula de cálculo de há 10 ou 20 anos era diferente. Mas quando afirmámos que o que o governo pretendia alterar não era fórmula existente há 10 ou 20 anos, pois esta já tinha sido alterada, mas sim a que estava em vigor em 2013, o Secretário de Estado da Administração Pública calou-se e ficou sem argumentos. Com o seu silêncio reconheceu a falsidade do argumento do governo constante da “Exposição de motivos” da proposta de lei enviada para a Assembleia da República que foi incluída com o objetivo de condicionar o Tribunal Constitucional» (Fonte:E Rosa. «As justificações do Secretário de Estado da A. Pública na reunião de 23-9-2013». www.eugeniorosa.com).

Fica assim demonstrada a falsidade do argumento da convergência das pensões de aposentação da CGA com as da CNP. Fica também demonstrado que o governo está perfeitamente ciente de que o seu argumento é falso.

Acresce — e o acréscimo é da mais alta importância pela sua gravidade — que o decreto 187/XII pretende instituir uma figura legislativa inédita na ordem jurídica dos Estados de direito democrático: a da “retroactividade autêntica” ou “própria”  das leis. Assim, as suas disposições aplicar-se-iam não apenas aos futuros aposentados da CGA (com as consequências já descritas, o que já seria muito grave) mas também aos actuais aposentados.

Ora, o nº 1 do artigo 12º (“Aplicação das leis no tempo. Princípio geral”) do Código Civil determina: «A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular». Por outras palavras, uma nova lei não se pode aplicar a factos ocorridos anteriormente que caiam no âmbito de lei vigente no momento em que ocorreram. A Constituição da República Portuguesa acolhe expressamente o princípio da não retroactividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (art. 18º, nº3), das leis sobre impostos (art. 103º, nº3) e da lei criminal (art. 29, nº4), mas ele está subjacente a toda a ordem jurídica de um Estado de direito democrático.

Fica assim demonstrado que o governo, através do decreto nº187/XII não se limita a estatuir o contrário daquilo que proclama; pretende também fazê-lo  ao arrepio da ordem jurídica vigente.

A este propósito, cabe aqui registar um pormenor grotesco, para memória futura. O secretário de Estado da Admnistração Pública, dr. Helder Rosalino, que já nos havia proposto enriquecer a língua portuguesa com conceitos de tão fino recorte como «salário zero», «requalificação» e «contribuição extraordinária de solidariedade» (em vez dos grosseiros «trabalho escravo», «pôr um funcionário público na prateleira durante 12 meses e a seguir despedi-lo» e «confisco de uma parte das pensões devidas aos aposentados do sistema previdencial», respectivamente), propõe-se agora redefinir o termo «retroactividade» (da lei), que teria afinal, no seu entender, significado idêntico a «retrospectividade» (ver, p.ex., o seu artigo no «Público».29-11-2013). Mas todas as leis são, num certo sentido, retrospectivas, visto que têm de ter em conta as leis vigentes à data da sua elaboração e mesmo as leis anteriores já revogadas, para serem leis boas e bem feitas. Mas isso não as torna retroactivas. Imagine-se o que seria um mundo onde as leis fossem retroactivas. Um novo governo, democraticamente eleito, poderia fazer, p.ex., uma lei ao abrigo da qual H.Rosalino (entre outros membros do actual governo) fosse abrangido, no seu serviço de origem (Banco de Portugal), por uma medida de «requalificação» com «salário zero», durante 4 anos, como indemnização simbólica por todos os prejuízos materiais e arrelias causados aos trabalhadores e aposentados da função pública com a sua acção legislativa actual. Como reagiria ele? Acharia justo?

1.3. Conclusão

O decreto 187/XII não estabelece, ao contrário do que nele se afirma, qualquer mecanismo de convergência do regime das pensões de aposentação (/reforma/invalidez/sobrevivência) da CGA com o chamado regime geral da segurança social da Segurança Social. O que esse decreto estabelece é, isso sim, um mecanismo de divergência entre esses dois regimes que subalterniza e penaliza fortemente os direitos dos futuros aposentados da função pública em relação aos seus congéneres do sector privado. Acresce que o decreto, ao determinar a sua aplicação aos actuais aposentados da CGA, viola um princípio básico do Estado de direito democrático: o da não retroactividade das leis.

2. As justificações do governo

Perante estes factos, tão contrários às suas proclamações, tão arrasadores das suas apregoadas intenções de promover a equidade em matéria de consolidação do sistema previdencial público, compreende-se que o governo tenha sentido a necessidade de se justificar. Essa justificação tomou a forma de uma «Exposição de Motivos», uma longa e prolixa introdução que serve de preâmbulo à  proposta de lei nº171/XII/2ª.

Mostrarei no que se segue que essa «Exposição de Motivos», se alguma coisa justifica não é seguramente o decreto 187/XII, que é injustificável pelas razões apontadas na primeira parte deste texto. Quando muito servirá para nos esclarecer sobre o ideário que preside à política do governo em todos os domínios. Cumpre-nos, no entanto, por muito que nos custe, avançar por esse terreno movediço para não sermos acusados de ignorar ou menosprezar as justificações do governo para actuar como actua. O resultado, como veremos, é instrutivo.

A. 1ª justificação: todos nos endividámos demais

Na «Exposição de Motivos» da proposta de lei nº171/XII/2ª, progenitora do decreto 187/XII da Assembleia da República, o governo apresenta como primeira justificação para o corte das pensões de aposentação da CGA (com o qual pretende arrecadar 828 milhões de euros), o seguinte:

«O limite de 3% do PIB para o défice orçamental nunca foi cumprido, resultando em níveis muito elevados de dívida pública. Mais ainda, o endividamento excessivo não se restringiu ao setor público: também as famílias e as empresas acumularam dívida e também Portugal acumulou uma elevada dívida face ao exterior. Este comportamento resultou em estagnação económica, aumento de desemprego e perda de competitividade» (p.1).

O diagnóstico sobre o «endividamento excessivo» pretende, como se constata, ser salomónico: estaríamos todos (Estado, empresas e famílias) endividados. Mas essa pretensão salomónica não colhe.

As fontes de endividamento excessivo do Estado português nada têm a ver com o sistema previdencial da segurança social, que é contributivo e exclusivamente financiado pelas contribuições dos seus actuais e pretéritos subscritores: os trabalhadores por conta de outrem e por conta própria.

As fontes principais do endividamento excessivo do Estado são hoje bem conhecidas. São os encargos ruinosos resultantes: 1) das PPP; 2) da “nacionalização” e/ou “reabilitação” de bancos privados levados à falência por via da gestão danosa dos seus dirigentes (BPN, BPP, Banif); 3) da recapitalização da restante banca através da injecção massiva de fundos públicos, quer sob a forma de capital, quer sob a forma de instrumentos híbridos (garantia a emissões de títulos de dívida de instituições bancárias, compra de acções preferenciais, empréstimos e swaps, compras de activos de menor liquidez  ou maior risco, etc); 4) da utilização das empresas públicas como instrumentos privilegiados de desorçamentação, 5) dos privilégios fiscais concedidos a uma pequena parte da população, como, por exemplo, em sede de IRS e IRC, as taxas liberatórias aplicáveis a rendimentos de capital e mais-valias, 6) da fuga aos impostos da chamada “economia paralela” (cuja dimensão é estimada entre 18% e 23% do PIB). Destes factores somados resultou, sobretudo a partir de 2003, um aumento constante da dívida pública (incluindo a componente pública da dívida externa) em percentagem do PIB e dos encargos com os seus juros. Com a crise mundial desencadeada pela falência do banco Lehman Brothers (Setembro de 2008), a situação descontrolou-se. Os juros da dívida portuguesa dispararam e...o resto da história já todos conhecem. 
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Alguns exemplos relativos aos quatro primeiros factores mencionados,  bastarão para ilustrar a sua importância. 1) Em 2009, segundo o Tribunal de Contas, os encargos plurianuais com as PPP ascendiam a 50.000 milhões de euros. Em 2014, os encargos anuais com as PPP previstos no OE-2014 ascendem a 1645 milhões de euros (+89,3% do que em 2013). Em 2015 e 2016 serão, nas estimativas oficiais, superiores a 1550 milhões de euros. 2) Os custos (efectivos e potenciais) para o erário público decorrente da “nacionalização” dos prejuízos do BPN já ascendiam, em 2012, a quase 6.000 milhões de euros (Fonte: Relatório preliminar do grupo técnico da «Auditoria Cidadã à Dívida»). 3)  Para apoio à capitalização da banca estão previstos, no OE-2014, 6400 milhões de euros, a somar aos 14.473 milhões de euros que esta recebeu do Estado até Junho 2013. 4) No primeiro semestre deste ano, foram cancelados antecipadamente 69 contratos swap, no valor de 1500 milhões de euros.  Esses cancelamentos reduziram os prejuízos financeiros, mas aumentaram o endividamento do sector empresarial do Estado, já que as empresas tiveram necessidade de contrair crédito para cancelar esses contratos. Em Junho deste ano, existiam 56 swaps activos em 13 empresas do Estado, com perdas potenciais de 1600 milhões de euros (Fonte: Direcção-Geral do Tesouro e Finanças. 28-11-2013).

A quantificação completa dos encargos que acarretam todas as fontes de endividamento público (incluindo as autarquias e os governos regionais)  não existe, nem sequer para as seis fontes acima mencionadas. Só quando for levada a cabo, por medida legislativa da Assembleia da República, uma auditoria externa à dívida pública que integre não só representantes de todos os grupos parlamentares mas também quadros dos organismos públicos relevantes e peritos independentes e que funcione em regime aberto à sociedade civil, é que poderemos todos perceber a real extensão deste problema. Mas uma quantificação parcial desses encargos e da sua origem pode ser encontrada no relatório preliminar do grupo técnico da «Auditoria Cidadã à Dívida» (Conhecer a Dívida para Saír da Armadilha. 2012) de leitura obrigatória para quem queira conhecer a real situação financeira do país. Dele respigamos a seguinte passagem (p.61):

«Portugal é o país “Campeão do Mundo” em parcerias público-privadas (PPP), com o maior gasto em PPP em relação ao PIB (quase 11%) (Fonte: Observatório PPP da Universidade Católica). As PPP têm contribuído para um agravamento da dívida pública, com injustificadas taxas de rentabilidade para os  consórcios privados que as promoveram. (…) Em Portugal existem pelo menos 120 PPP negociadas directamente com o Estado Central, além de centenas de outras a nível local estabelecidas com orgãos do poder local e com outras empresas do Estado. Dado o elevado número de parcerias, Portugal era em 2004, o país com maior exposição aos empréstimos do Banco Europeu de Investimento (BEI), com 2.804 milhões de euros (Cruz, C. e Marques, R. O Estado e as Parcerias Público-Privadas. 2012). (…) O investimento em PPP não é contabilizado em despesa pública, sendo por isso uma estratégia eficaz de desorçamentação do investimento público. Não é por isso decabido dizer que as PPP empurram para o futuro a despesa do investimento presente. (…) O entusiasmo pelas PPP dos governos portugueses dos últimos vinte anos foi activamente apoiado pela União Europeia com incentivos com implicações nos Quadros de Referência Estratégica Nacional (QREN)».

O juízo salomónico do governo sobre o «endividamento excessivo» também não colhe no que respeita às empresas. Convém que se saiba que, em Outubro de 2012, 30% da dívida das empresas dizia respeito a mil grandes empresas, 21% a 6 mil médias empresas, 19% a 39 mil pequenas empresas e os restantes 30% a 321 mil microempresas (Fonte: Boletim Estatístico do Banco de Portugal. Dezembro de 2012). 

No que respeita às famílias, os números são ainda mais esclarecedores e refutam o «mantra» do economês em voga: “os portugueses têm vivido acima das suas possibilidades e você, admita, é um deles”. Em 2010, a maioria das famílias portuguesas (63%) não devia nada aos bancos ou a qualquer outra instituição financeira. A maior parte das dívidas das famílias dizia respeito à aquisição da habitação própria: 24,5% das famílias estava a pagar empréstimos contraídos para compra da sua habitação. Estes números são ainda mais instrutivos quando se tem em conta que, segundo o Eurostat, a percentagem das famílias com habitação própria em Portugal era, em 2011, superior a 75%, facto atribuível à escassez do mercado de arrendamento habitacional e ao crédito relativamente barato para a aquisição de habitação. Poucas famílias tinham outras dívidas. 3,3% tinha adquirido empréstimos para adquirir outros imóveis; 13,5% tinham adquirido empréstimos para outros fins; e apenas 7,5% estavam a pagar empréstimos obtidos com cartão de crédito, linhas de crédito e descobertos bancários. É legítimo concluir, perante estes números, que ¾ das famílias, portuguesas, incluindo as que contraíram empréstimos para aquisição de habitação própria, se comportaram de maneira racional no que respeita à gestão dos seus recursos, e não estouvadamente como se pretende fazer crer. Acresce que quem mais deve é quem mais tem: a mediana da dívida da classe de riqueza mais elevada é quase seis vezes maior do que a da classe de riqueza mais baixa (Fonte: Inquérito à situação financeira das famílias 2010. Banco de Portugal e INE. Maio de 2012).

A «Exposição de Motivos» omite todas estas informações do seu diagnóstico sobre «os elevados níveis da dívida pública». Mas nela se pode ler mais adiante  um resumo dos objectivos que o governo preconiza para a debelar :

«O Programa de Ajustamento Económico e Financeiro (PAEF) prevê uma atuação em três frentes: consolidação orçamental e colocação das finanças públicas numa trajetória sustentável; redução dos níveis de endividamento e recuperação da estabilidade financeira; transformação estrutural dirigida ao aumento de competitividade, à promoção do crescimento económico sustentado e à criação de emprego» (p.2).

Estes objectivos parecem razoáveis. Mas quando passamos aos meios preconizados e empregues pelo governo para os atingir, o caso muda totalmente de figura. Esses meios são bem conhecidos de todos: redução dos salários; aumento da jornada de trabalho; redução dos direitos dos trabalhadores, em particular em caso de despedimento; redução do montante e da duração do “subsídio” de desemprego; cortes profundos nas funções sociais do Estado (Saúde, Educação, sistema de protecção social de cidadania da Segurança Social); privatização do sector empresarial do Estado, seleccionando as empresas mais lucrativas  (EDP, ANA, REN, CTT…); enormes aumentos de impostos directos e indirectos; taxas mais altas de acesso aos serviços públicos; cortes drásticos nas pensões de aposentação do sistema previdencial contributivo da Segurança Social e tentativa de o reconfigurar num sentido assistencialista (voltaremos adiante, na secção C, a este assunto).

Esta metodologia parece insana, porque tem como consequência, entre outros efeitos negativos, o aumento galopante do desemprego, o empobrecimento acelerado de largas  faixas  da população e a recessão económica. No entanto, para o governo,

«…estes efeitos a priori negativos são eles próprios instrumentais para o objetivo de obtenção de um superavit da balança corrente. O desemprego, aliado à redução do montante e duração do subsídio, obriga os trabalhadores a aceitar salários mais baixos; a diminuição do rendimento disponível das famílias decorrente do desemprego e da redução dos salários faz diminuir as importações. A redução dos salários (chamada “desvalorização interna”), por outro lado, é tida como condição do aumento das exportações, por via da redução do seu custo e preço de oferta nos mercados internacionais» (Fonte: Conhecer a dívida para saír da armadilha. p.99).

Esta seria então a única solução para reduzir o défice orçamental e a dívida externa (pública e privada) e pôr o país a crescer.

Vejamos então quais têm sido os resultados da política levada a cabo pelo governo em parceria com a “troika” desde o início de 2011. Entre Dezembro de 2010 e Junho de 2013, a dívida das Administrações Públicas, a chamada dívida pública, passou de 185.844 milhões de euros para 252.855 milhões de euros, ou seja, subiu em 36,1%. A dívida pública na perspectiva do Tratado de Maastricht, que não inclui a totalidade da dívida pública, aumentou 31,4% (Fonte: Banco de Portugal, INE e Eurostat). No mesmo período, o PIB (a riqueza produzida) passou de 40.514,6 milhões de euros para 38.329,3 milhões de euros, ou seja, diminuiu em 5,4%; a procura interna passou de 46.040 milhões de euros para 40.497,1 milhões de euros, ou seja, diminuiu em 12%, e o consumo das famílias passou de 25.813,5 milhões de euros para 23.598,6 milhões de euros, ou seja, diminuiu em 8,6% (Fonte: Contas Nacionais Trimestrais. INE). A quebra do investimento foi de quase 30% e a da produção 6,3% (Fonte: Novo Rumo para um Portugal de Futuro. Documento da CIP, CAP, CCP e CTP). O desemprego passou de 10,9%, no início do mandato deste governo, para 15,6% (838.600 pessoas), no fim do 3º trimestre de 2013 (Fonte: INE). O saldo migratório tornou-se negativo em 2012. Em 2011 saíram do país cerca de 56.980 pessoas. Em 2012 esse valor subiu para 69.460 pessoas. Assim, no 3º trimestre de 2013, a população activa residente diminuiu 135.000 pessoas (2,4%) face ao trimestre homólogo de 2012, das quais 116.926 eram de nacionalidade portuguesa (Fonte: INE). Isto significa que, em média, mais de 10.000 pessoas emigraram por mês nestes dois anos. São valores que só têm precedentes na década de 60 do século passado, quando vivíamos sob um implacável regime ditatorial e miserabilista. Com esta diferença: nessa época eram sobretudo camponeses, operários rurais e industriais com baixas qualificações que emigravam. Agora são também milhares de jovens com o ensino secundário completo ou com um diploma de ensino superior. Quanto à dívida pública (na perspectiva de Maastricht) em percentagem do PIB passou de 108,2%, no início do mandato deste governo, para 131,4% no primeiro semestre de 2013 (Fonte: Boletim Estatístico do Banco de Portugal). Só no 2º trimestre deste ano, a dívida pública subiu mais de 5.000 milhões de euros, a uma cadência superior a 60 milhões de euros por dia e 2,5 milhões por hora. E para pagar os juros aos credores da dívida em 2014 estão previstos 8.174,8 milhões de euros no OE-2014, mais do que está previsto para a rubrica “saúde” ou para a rubrica “educação”.

Apesar destes resultados calamitosos para a grande maioria da população, o governo não erra quando diz que, do seu ponto de vista, esta política de «contracção orçamental expansionista» (como alguns ufanamente lhe chamam por amor aos oximoros) está a ter êxito. As importações sofrerem uma enorme queda e as exportações recuperaram dos mínimos de 2009, impulsionadas sobretudo pelas exportações de combustível da Galp. A balança corrente melhorou, por via da balança de bens e serviços que têm agora um saldo positivo. Tudo o resto constitui o quadro negro descrito.

E ficam as perguntas tidas por inconvenientes: por que razão deveriam milhares de empresas que produzem para o mercado interno abrir falência para que as empresas exportadoras possam prosperar se nem sequer concorrem umas com as outras? E por que razão, para sermos internacionalmente competitivos, teríamos que “exportar” trabalhadores qualificados (a nossa principal fonte de riqueza e inovação)  em vez de aproveitarmos os seus talentos cá dentro? Cabe pois fazer mais uma pergunta: mas quem então beneficia afinal, concretamente, desta política ?

Uma publicação com o expressivo título: «Relatório da Ultra-riqueza no Mundo 2013» (World Ultra Wealth Report 2013), do banco suíço UBS, levanta uma ponta do véu. Há uma pequena minoria da população que não só não tem razões de queixa, como tem também motivos para se regozijar. Segundo esta publicação, o número de ultramilionários portugueses (indivíduos com fortunas  superiores a 24,5 milhões de euros) aumentou 10,8%. São agora, em 2013, 870, mais 85 do que eram em 2012. A sua fortuna também aumentou 11,1%, um valor superior ao da média dos seus congéneres europeus (8,4%). Estes 870 ultramilionários, que representam 0,009% da população portuguesa, detêm em conjunto 74 mil milhões de euros. É um valor bastante próximo dos 78 mil milhões de euros que a «troika» emprestou a Portugal na condição não apenas de que lhe fossem pagos com juros (o que é normal), bem superiores porém aos que o BCE concede aos banqueiros (o que já roça a agiotagem), mas também com a condição suplementar de executar o seu drástico programa de retrocesso social e empobrecimento da maioria da população (o que faz da “troika” uma versão recauchutada dos déspotas “iluminados” do século 18). Segundo o estudo que citámos,  Portugal surge em 12º lugar e 13º lugar na lista europeia no que toca, respectivamente, ao valor total das maiores fortunas e ao número dos seus detentores individuais. Estes números colocam Portugal bem à frente da Irlanda (onde há mais 10 ultramilionários do que em 2012; são agora 580) e da Grécia (onde há mais 50 ultramilionários do que em 2012; são agora 505). Na verdade, Portugal está à frente de países como a Bélgica, Dinamarca, Luxemburgo e Áustria, neste particular. Sim, decididamente, não somos nem a Grécia nem a Irlanda.

Perante estes factos vem-nos à memória uma pergunta que Almeida Garret fez no seu tempo (século 19), para a qual não obteve resposta: «Eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria (…) para produzir um rico?». No que diz respeito ao conceito de «rico» ninguém sabe muito bem como defini-lo. A fazer fé nas medidas fiscais do governo actual, «rico» parece ser quem tenha rendimentos mensais superiores a 600 euros ou 675 euros, ou, talvez, 1350 euros. Desse modo somos quase todos ricos. Mas se nos referirmos ao conceito de «ultra-rico» do banco UBS (quem tenha fortunas superiores a 24,5 milhões de euros) é hoje possível responder com rigor quantitativo à pergunta garretiana:

«Se experimentarmos dividir a riqueza acumulada de 75 mil milhões por 6.790 euros, que é o montante anual de um salário mínimo, concluímos que os nossos 870 multimilionários têm uma fortuna amealhada equivalente a 110 milhões de salários mínimos. O tal salário – de 485 euros mensais – que o governo de Passos Coelho, fazendo eco da tróica, já nos veio dizer que não é possível aumentar» (João Baptista. O Ribatejo. 14-11-2013).

Em suma, o aumento enorme de impostos e a política de cortes profundos nas funções sociais do Estado e nas pensões de aposentação não conseguem parar o aumento da dívida pública:a trajectória da dívida pública continua a subir, uma vez que era, em Dezembro de 2012, de 123,8%, passando para os 127,1% em Março deste ano e tendo agora subido para os 131,4%, como vimos.  E não consegue pela boa e simples razão de que o aumento da dívida não tem, como vimos e veremos, a sua fonte de crescimento acelerado no alegado sobredimensionamento do Estado Social.

Conclui-se do exposto que a primeira justificação genérica do governo para o corte das pensões de aposentação da CGA não tem qualquer relação pertinente com o sistema previdencial contributivo de que elas são emanação. Resulta apenas de uma tentativa canhestra de atirar poeira para os olhos da população em geral.

B. 2ª justificação: gastamos demais com o Estado social

Uma segunda justificação do governo para fazer cortes nas pensões da CGA, é apresentada nos seguintes termos, muito semelhantes aliás aos das prelecções que o dr. Medina Carreira nos faz todas as 2ªs feiras numa estação de televisão:

«Ao mesmo tempo, Portugal apresenta um nível de despesa pública desproporcionada face à sua riqueza: em 2013, a despesa pública total (48,6%) estará próxima da U.E. (49,2%), mas a riqueza produzida por habitante será apenas de 60% da média europeia (15.600 em Portugal, e 25.700 na U.E. Portugal tem hoje um nível de despesa excessivo que, como provam os défices persistentes, não consegue financiar» («Exposição de Motivos», p. 4).

Por incompetência ou por desonestidade intelectual (o leitor escolherá a hipótese que se lhe afigure mais plausível), comparam-se duas coisas diferentes — despesa pública em % do PIB  com PIB por habitante —  para tirar conclusões tecnicamente erradas. É o mesmo que comparar laranjas com diospiros com o pretexto de que são ambos da mesma cor. Para o provar, observem-se os dados do quadro 1 mais abaixo.

Os dados do quadro, que são os divulgados pelo Eurostat, revelam que, em 2012 (não existem ainda dados fidedignos publicamente disponíveis para 2013), o PIB médio por habitante da União Europeia (27 países) era de 25.712 euros e, em Portugal, de 15.668 euros, ou seja, o PIB médio por habitante em Portugal correspondia a 60,9% do da UE-27.

No mesmo ano, a despesa pública por habitante era na UE-27 de 12,676 euros e em Portugal de 7.442 euros, ou seja, correspondia apenas a 58,7% da despesa pública por habitante na União Europeia.
                                            
                                            Quadro 1

Países
PIB 2012
Milhões de euros
População 2012
PIB por habitante
Despesa pública em
% do PIB 2012
Despesa Pública por habitante
UE-27
12.923.199
502.623.021
25.712 €
49,3%
12.676 €
Portugal
165.174
10.542.398
15.668 €
47,5%
7.442 €
  %  Portugal em relação à UE-27
60,9%
                        
58,7%
                                                                       Fonte: Eurostat


Mesmo se utilizarmos as percentagens que constam da «Exposição de Motivos» (2013: Portugal: 48,6%; UE-27: 49,2%) basta fazer a contas para verificar que a despesa pública por habitante representaria em Portugal 60,1% da despesa pública por habitante na UE- 27.

Portanto, é falso afirmar que «Portugal tem um nível de despesa excessivo» (entenda-se, de despesa com as funções sociais do Estado, pois é essa parte da despesa pública que está aqui em causa), como o governo afirma na sua «Exposição de Motivos». Os dados do Eurostat mostram exactamente o contrário: que a despesa pública por habitante é muito inferior à da média da União Europeia. Esses dados mostram também que não são as despesas com o Estado social que são a causa dos «défices persistentes que não se conseguem financiar». As seis razões principais desses défices foram já indicadas na secção 2.A deste texto. Elas foram todas agravadas pela política deliberadamente recessiva seguida pelo governo nos útimos três anos.

C. 3ª justificação: o sistema previdencial não é um sistema de capitalização, logo não tem pernas para andar por si próprio

A terceira justificação genérica que o governo invoca para os cortes nas pensões de aposentação da CGA — a mesma que utiliza para a chamada Contribuição Extraordinária de Solidariedade (que se aplica  a todos os aposentados, quer da CGA quer do CNP) — é a de que o sistema previdencial público é um sistema de repartição e, como tal, incapaz de gerar reservas próprias como os sistemas de capitalização.  A este respeito, podemos ler na «Exposição de Motivos» as três afirmações seguintes,  extraídas das páginas 8 e 9.

(i) «Tanto o sistema previdencial do regime geral como o regime de proteção social convergente são geridos em sistema de repartição, o que significa que as pensões em pagamento são suportadas pelas contribuições atuais dos trabalhadores e empregadores(…)».

(ii) «Este modelo de financiamento, que não assegura a cobertura das responsabilidades dos direitos em formação através da constituição de provisões, como sucede nos regimes geridos em sistema de capitalização, tem subjacente um princípio de solidariedade entre gerações, pressupondo que a geração no ativo suporte o pagamento das pensões da geração aposentada ou reformada.

(iii) «A sustentabilidade deste modelo em que ninguém financia com o seu  esforço contributivo a sua própria pensão, depende da evolução, por natureza incerta quando projectada a longo prazo, de vários factores (…)»

Estas alegações são ambíguas, enviesadas e enganadoras. Um exemplo de ambiguidade é a expressão «regime de protecção social convergente» que mais não é, como veremos, do que uma alusão à Fénix que o governo promete que renascerá das cinzas da CGA. Quanto às alegações enviesadas e enganosas, delas se dará a conta no que segue.

1. A Segurança Social em Portugal inclui dois sistemas públicos diferentes, com missões diferentes e modos de financiamento diferentes. Esses dois sistemas são: (1) o sistema previdencial e (2) o sistema de protecção social de cidadania.

O sistema previdencial inclui os trabalhadores da função pública, por um lado, e os trabalhadores por conta de outrem e por conta própria do sector privado, por outro. O sistema previdencial é um sistema contributivo, autofinanciado e misto. As contribuições dos trabalhadores da função pública são admnistradas pela CGA; as dos trabalhadores do sector privado são admnistradas pelo CNP (ISS).

O sistema de protecção social de cidadania inclui três subsistemas cuja destrinça não é pertinente para o caso em apreço. O sistema de protecção social de cidadania é um sistema não contributivo e, por conseguinte, não autofinanciado.

2. Afirmar que o sistema previdencial da segurança social (CGA e CNP) é um sistema contributivo e autofinanciado é o mesmo que dizer que foi concebido para não precisar de ser alimentado com verbas do Orçamento de Estado, visto que tem como fonte de financiamento suficiente as contribuições dos trabalhadores e das entidades  empregadoras (públicas ou privadas, com ou sem fins lucrativos). A contribuição do trabalhador é financiada por uma parcela do seu salário. A contribuição da entidade empregadora é financiada por uma parcela da riqueza (bens ou serviços) gerada pelo trabalhador. Por isso, o sistema previdencial não constitui qualquer encargo para o Orçamento de Estado, cuja fonte de receita são, como toda a gente sabe, os impostos (que os trabalhadores e aposentados também pagam, sejam eles do sector privado ou da função pública). Na verdade, o sistema previdencial não constitui sequer, tecnicamente, uma “despesa social” do Estado, por muito que isso não caiba na cabeça do dr. Medina Carreira e de outros fiscalistas da mesma índole. Quando muito, e por abuso do poder, constitui uma fonte de receita para alguns governos que dele se servem para cobrir défices orçamentais, como veremos mais adiante.

O sistema de protecção social de cidadania da segurança social abrange pessoas que, na sua grande maioria, nunca descontaram para o sistema previdencial, mas que, devido à sua situação de pobreza, de carência, de dependência, de vulnerabilidade ou de exclusão social, precisam de uma ajuda do resto da sociedade para poderem sobreviver em condições minimamente dignas. Por isso, este sistema é financiado  (e bem) pelo Orçamento de Estado, ou seja, por todos quantos pagam impostos.  

O governo, na «Exposição de Motivos», diz que o sistema previdencial é um sistema de repartição. Isso não é exacto. O sistema previdencial é um sistema misto, um sistema de  repartição e de capitalização (artigo 8º, alínea C; artigo 91º, nº1 nº2; artigo 97, nº2; da lei nº4/2007).

Qualificar o nosso sistema previdencial de sistema de repartição não significa, como é dito na «Exposição de Motivos», que «as pensões em pagamento são suportadas pelas contribuições atuais dos trabalhadores e empregadores(…)». Essa é uma maneira muito tacanha e enviesada de descrever a realidade, porque ignora que o sistema previdencial português, passou, desde que vivemos em democracia, por várias fases: (1) numa primeira fase, a que os especialistas chamam de “juventude”, o número de aposentados era baixo, sendo muito inferior ao dos subscritores. Consequentemente, o gasto com pensões de aposentação era reduzido e as receitas da CGA eram elevadas (e podiam ter sido ainda muito mais elevadas, como veremos adiante). (2) Segue-se uma segunda fase, que os especialista qualificam de “fase adulta”, em que o número de aposentados duplica, enquanto número de subscritores tem um crescimento reduzido. (3) Finalmente, entrou-se numa fase, qualificada de «grande maturidade do sistema», que é a actual, em que o número de aposentados se aproxima rapidamente do número de subscritores. Veremos mais adiante quais as razões para este facto. Seja como for, é só em relação à terceira fase que tem algum cabimento dizer (e mesmo assim com qualificações) que as pensões em pagamento estão mais estreitamente dependentes do número actual de subscritores.

Dizer que o sistema previdencial é um sistema de repartição não significa, portanto, dizer que uns trabalham e descontam para os outros não terem de trabalhar nem de descontar, porque todos trabalharam ou trabalham e todos descontaram ou descontam para poderem não ter de continuar a trabalhar e a descontar até morrerem. Dizer que o sistema previdencial é um sistema repartição significa pois, isso sim, que é gerido com base no princípio: «um por todos e todos por um». Esse princípio engloba e sintetiza todos os outros que são mencionados na Lei de Bases da Segurança Social, entre os quais, o da solidariedade, da coesão intergeracional, da igualdade, da equidade social, da diferenciação positiva e da universalidade (artigo 5º, «Princípios Gerais» da lei nº4/2007).

Mas o sistema previdencial não é apenas um sistema de repartição, é também um sistema de capitalização. Isso significa que uma percentagem (entre 2% e 4%) das contribuições dos trabalhadores e das suas entidades empregadoras, caso sejam trabalhadores por conta de outrem, reverte para um fundo especial, denominado Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS). Este fundo é gerido em regime de capitalização e destina-se a manter uma almofada financeira que permita acautelar o pagamento das pensões de aposentação por um período mínimo de dois anos (artigo 91º da lei nº4/2007), mesmo no caso de uma situação catastrófica imprevisível.

É portanto completamente falso que o sistema previdencial não consiga «constituir provisões», como se afirma na «Exposição de Motivos». Esta afirmação é verdadeiramente espantosa, dado que a carteira de activos financeiros do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social ascendia, no final de 2012, a 10.994,4 milhões de euros, o valor mais alto de sempre (Fonte: Relatório de Acompanhamento da Execução do Orçamento da Segurança Social. Tribunal de Contas).

O governo sabe isso muito bem, visto que quer utilizar esse Fundo como instrumento para obter receitas extraordinárias para fazer baixar os défices orçamentais do Estado. Ainda recentemente, foi amplamente noticiado pela imprensa a obrigação que o governo impôs a este Fundo de comprar dívida pública portuguesa em montantes elevadíssimos — até 90% do total dos activos em carteira (Fonte: Portaria n.º 216-A/2013, de 2 de Julho) — muito para além do que aconselha uma gestão prudente. Foi esta a última decisão do ministro Vítor Gaspar antes de se demitir do governo, depois de ter reconhecido que a sua política austeritária tinha falhado em toda a linha. Com esta manobra o governo espera matar dois coelhos de uma cajadada: por um lado, baixa o rácio da dívida pública para valores mais próximas dos exigidos pela «troika», visto que a dívida detida por entidades que estão dentro do âmbito da administração pública não é contabilizada na dívida pública, e, por outro lado, segura o valor  das taxas de juro no mercado secundário. Mas essa é também uma manobra perigosa que poderá pôr em risco o pagamento futuro das pensões de aposentação dos portugueses. Como vários especialistas alertaram, ao pôr “os ovos todos no mesmo cesto”, o FEFSS pode sofrer grandes perdas, se a dívida pública portuguesa vier a ser reestruturada.

3. É portanto falso dizer que, no sistema previdencial actual, «ninguém financia com o seu esforço contributivo a sua própria pensão». A menos que se considere (o que não é de excluir) que esta frase expressa tão só um lamento: o de que a contribuição de todos os trabalhadores (tanto da função pública, como do sector privado) para o sistema previdencial da segurança social e o valor dos benefícios que ele garante aos seus subscritores não sejam fixados arbitrariamente pelos governos de plantão. Mas não temos nenhuma razão, como cidadãos livres de um país democrático, para lamentar esse facto. É que, se assim fosse, teríamos um regime assistencialista em que os governos decidiriam a seu bel-prazer o que cada um tem ou não tem direito de receber em troca das suas contribuições. Não é o caso, felizmente (pelo menos se pusermos de lado momentâneamente as normas inconstitucionais contidas nos OE de 2012, 2013 e 2014 e o decreto 187/XII, em que o governo se arroga abusivamente esse direito).

A taxa contributiva (a percentagem das remunerações ilíquidas dos trabalhadores com que estes e as entidades empregadoras contribuem para o sistema previdencial) é fixada actuarialmente (artigo 57, nº3, da lei 4/2007), isto é, por cálculos matemáticos especializados feitos por peritos na disciplina actuária, em função do custo financeiro de protecção das seis eventualidades previstas no sistema previdencial contributivo: 1.velhice (as pensões de aposentação para os civis e as pensões de reforma para os militares e agentes policiais); 2. Doença (doença profissional e acidentes de trabalho); 3. morte (as pensões de sobrevivência, mais conhecidas por pensões de viuvez). 4. desemprego (o chamado “subsídio de desemprego”, que não é uma benesse dada por qualquer potestade governamental, mas uma prestação pecuniária a que o trabalhador tem direito nessa eventualidade); 5. invalidez (pensões de invalidez) e 6. parentalidade  (vulgarmente conhecida por licença de maternidade e abonos de família).

4. Esses cálculos actuariais são, por imperativo legal (artigo 51º, nº2, da lei nº110/2009, Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social) revistos de cinco em cinco anos, o que explica as variações que a taxa contributiva tem sofrido ao longo das décadas. Assim, quaisquer alterações nestas taxas têm de ser feitas com base em cálculos actuariais, e as obrigações do Estado perante os trabalhadores nas seis eventualidades previstas decorrem do valor das contribuições calculadas dessa forma.

5. Por último, importa lembrar que o sistema previdencial da Segurança Social se rege por uma relação sinalagmática  (artigo 54º da lei 4/2007), isto é, por um contrato bilateral que gera obrigações e direitos específicos entre os contratantes. Através desse contrato, os trabalhadores (e as suas entidades empregadoras) vinculam-se à obrigação de entregarem ao Estado  (representado pela CGA e pelo CNP), uma certa percentagem mensal do seu salário bruto durante toda a sua vida activa, e o Estado, em troca, vincula-se à obrigação, entre outras coisas, de lhes devolver esse dinheiro sob a forma de uma pensão nos montantes fixados pela lei, depois da sua aposentação. A pensão de aposentação mais não é, portanto, do que um salário diferido no tempo, integralmente financiado pelas contribuições feitas ao longo da  carreira laboral do seu beneficiário.

Por isso, quando o governo actual decidiu (e conseguiu, apesar de ser inconstitucional) suprimir dois meses de pensões em 2012, decretar um imposto especial só aplicável aos aposentados (a chamada C.E.S, “contribuição extraordinária de solidariedade”) e pretende agora cortar entre 8% e 12% das pensões dos aposentados da função pública, rompe essa relação sinalagmática e coloca-se fora da lei, agindo como se fosse um vulgar  assaltante de “esticão”.

Concluímos assim que 3ª justificação do governo não tem, como as anteriores, correspondência com os factos.

D. 4ª justificação: a situação financeira da CGA

A quarta justificação que o governo invoca na sua «Exposição de Motivos» para os cortes que pretende fazer nas pensões de aposentação da CGA são as dificuldades financeiras que este organismo enfrenta. Essas dificuldades, segundo o governo, decorreriam de três ordens de factores: (a) uns de política legislativa, (b) outros de natureza demográfica e (c) outros ainda de natureza económico-financeira (p.16).

Na verdade, as dificuldades financeiras actuais da CGA, que são reais, resultam da conjugação de quatro factos que englobam os factores (a) e (c). (O factor (b), como veremos na secção E, é um assunto de natureza inteiramente diferente). Os quatro factos relevantes são  os seguintes, por ordem crescente de antiguidade e também de importância:

(1) A desconfiança no Estado como pessoa de bem, capaz de honrar os seus contratos com os cidadãos; (2) A utilização da CGA como instrumento para gerar receitas extraordinárias, mas sem base de sustentação a longo prazo;  (3) A transformação da CGA num sistema fechado; (4) A descapitalização da CGA levada a cabo durante muitos anos por sucessivos governos. Examinemo-los um por um.  

(1) Desde 2005, o Estatuto da Aposentação sofreu contínuas alterações, agravadas a partir de 2011. Desde então sucederam-se também, sobretudo na função pública, cortes nas remunerações, confisco de subsídios e pensões, ameaças de transferências para outras zonas geográficas, colocação de trabalhadores na “prateleira” através da mobilidade especial, com a consequente redução de remunerações, despedimentos e ameaças de despedimentos de dezenas milhares de trabalhadores da função pública procurando apresentá-los à opinião pública como privilegiados. Este clima de intimidação psicológica, de desconsideração, de insegurança jurídica generalizada, gerou uma grande desconfiança no Estado como pessoa de bem, capaz de honrar os seus contratos com os seus funcionários, empurrando prematuramente para a aposentação milhares deles. Estes preferiram optar por uma pensão reduzida pelas penalizações inerentes a uma aposentação antecipada (mas que lhes afigurava ser pelo menos certa), à pensão completa no tempo devido para o efeito (que passaram a olhar como uma incógnita muito mais ameaçadora dos seus direitos). Tudo isto agravou as dificuldades financeiras da CGA, já que reduziu as contribuições e aumentou significativamente a despesa com o pagamento de pensões, ainda por cima na sua fase de «grande maturidade». A este fonte, muito recente, de dificuldades financeiras da CGA acrescem as três seguintes mais antigas.

(2) No passado recente, vários fundos de pensões autónomos, designadamente de empresas públicas (p.ex. Caixa Geral de Depósitos), privatizadas (p.ex. ANA, PT, CTT) ou ex-privadas (Banco Português de Negócios) foram transferidos para a Caixa Geral de Aposentações. Estas operações geraram uma receita extraordinária para cobrir os défices orçamentais, objectivo dos sucessivos governos responsáveis por essas transferências. Todavia, para os trabalhadores envolvidos e para a CGA esse processo foi um péssimo negócio. As perdas de valor que esses activos sofreram (alguns deles provavelmente já sobrevalorizados no momento da sua transferência para a CGA) tornaram-nos insuficientes para pagar as pensões dos seus subscritores. No fim de 2011, os prejuízos acumulados na CGA resultantes das perdas do valor desses activos já ascendiam a 1324,5 milhões de euros, sendo 89,2% dessas perdas referentes aos activos dos fundos de pensões da ANA, CGD, PT e Marconi (Fonte: Eugénio Rosa. O futuro da protecção social em Portugal e a sustentabilidade da Segurança Social e da CGA. Este estudo está inserido no livro: «A Segurança Social é Sustentável». Bertrand Editora. 2013). 

(3) A partir de 2006, mais nenhum trabalhador da função pública se pôde inscrever na CGA e os trabalhadores admitidos na função pública a partir dessa data, cerca de 100.000 nas estimativas do governo, passaram a efectuar os seus descontos para o CNP (o sistema previdencial do sector privado). Desta forma, impediu-se a entrada de novos fluxos de receitas contributivas na CGA e quebrou-se o princípio básico da solidariedade intergeracional estabelecido na Lei de Bases da Segurança Social (lei nº4/ 2007). Entre 2005 e 2012, como consequência da transformação da CGA num sistema fechado e da aposentação prematura de milhares de trabalhadores, verificou-se uma redução importante do número de subscritores, que diminuiu em 208.480 (-28,2%). Por sua vez, esta diminuição levou a uma quebra no total de remunerações sobre as quais são feitos os descontos (-4.357 milhões de euros, ou seja, -28,5%) e, concomitantemente, a  uma redução das receitas da CGA em 326 milhões de euros (-23,1%), um valor elevado. O número de aposentados, durante o mesmo período (2005/2012) aumentou em 84.176 (+22,2%), o que é significativo (Fonte: Relatórios e Contas da CGA.2005-2012). Assim, se a situação não for invertida, a CGA caminha para uma morte mais ou menos rápida por asfixia financeira. É este processo de destruição  da CGA que a «Exposição de Motivos» designa eufemisticamente por “sistema de protecção social convergente”.

(4) Porém, a mais importante e antiga fonte das actuais dificuldades financeiras da CGA tem sido a sua descapitalização ao longo de mais de três décadas. O principal porta-voz do governo nestes assuntos (o secretário de Estado da Admnistração Pública, dr. Helder Rosalino), proclama em todas as ocasiões que os sucessivos governos não descapitalizaram a CGA. E essa posição é também expressa na «Exposição de Motivos»:

«Deste exercício resulta também evidente não ter qualquer adesão à realidade a ideia de que seria o facto de os empregadores dos subscritores da Caixa não terem contribuído historicamente com uma percentagem das remunerações dos seus funcionários equivalente à existente no regime geral a responsável pelo desequilíbrio estrutural do regime de proteção social convergente»  (p. 15) .

Note-se que o autor da «Exposição de Motivos» chama “exercício teórico” a uma listagem de pressupostos de um cálculo que provaria  a sua asserção, mas que nunca chega a fazer ! Perante estas alegações vale a pena reproduzir aqui um quadro construído pelo doutor Eugénio Rosa («Sustentabilidade da Segurança social e da CGA, perspectiva futura e impacto na uniformização das pensões». 18-10-2013), com base nos relatórios e contas da CGA, que ele se deu ao trabalho de estudar para depois mostrar de forma quantificada as consequências para a CGA da política de descapitalização de todos os governos constitucionais que  tivemos até ao momento, sem excepção.

                                                   Quadro 2

ANOS

Quotizações dos
trabalhadores

Contribuições das
entidades empregadoras
(e.e)


Transferências
do OE para
a CGA

SOMA
Contribuições +
OE)

Diferença
 entre o que as e.e deviam ter pago (23,75%) à
CGA e o Pago

DIFERENÇA
CAPITALIZADA     a 4%

Anos
VALORES  EM PERCENTAGEM DAS REMUNERAÇÕES

VALORES  EM PERCENTAGEM DAS REMUNERAÇÕES

VALORES  EM PERCENTAGEM DAS REMUNERAÇÕES

VALORES EM PERCENTAGEM DAS REMUNERAÇÕES

Milhões de contos até 2001 (inclusive)  e  milhões de euros a partir de 2002

Milhões de euros
1993

8%
1,2%
9,1%
10,4%
199
2.178

1994

10%
1,5%
9,9%
11,4%
195
2.052

1995

10%
1,5%
13,8%
15,3%
142
1.439

1996
10%
1,6%
15,2%
16,8%
126
1.219

1997

10%
1,5%
16,8%
18,3%
101
941

1998

10%
1,6%
17,0%
18,6%
104
935

1999

10%
1,7%
16,2%
17,9%
131
1.128

2000

10%
1,6%
16,6%
18,2%
136
1.125

2001

10%
1,6%
14,9%
16,5%
195
1.559

2002

10%
1,8%
16,6%
18,5%
750
1.154

2003

10%
2,8%
17,6%
20,4%
481
712

MÉDIA %

9,8%
1,7%
14,9%
16,6%




FUNDO DE ESTABILIZAÇÃO FINANCEIRA DA CGA QUE PODIA TER SIDO CRIADO SE OS GOVERNOS  NÃO TIVESSEM  DESCAPITALIZADO A CGA — VALOR OBTIDO CAPITALIZANDO À TAXA DE 4% (SÓ O EXCEDENTE DE 1993-2003)
14.447 milhões
                                     Fonte: Relatórios e Contas da CGA

Antes de examinarmos o que nos ensina esse quadro, convem esclarecer o seguinte:  o montante actuarialmente fixado para a taxa contributiva global para o sistema previdencial, também conhecida por taxa social única (TSU), é, actualmente, de 34,75% da remuneração ilíquida mensal do trabalhador, cabendo 11% dessa taxa (designada oficialmente por “quotizações”, vulgo descontos) ao trabalhador e 23,75% dela (designada oficialmente por “contribuições”) à entidade empregadora. Mas esse montante, que se aplica tanto às entidades empregadoras privadas como as entitades empregadoras públicas, nunca foi, até hoje, pago pelas entidades empregadoras públicas.

Examinemos então o quadro 2.

1. Como mostram os dados que dele constam, no período de 1993-2003, a contribuição dos trabalhadores da função pública (coluna 2 do quadro) correspondeu, em média, a 9,8% das suas remunerações, enquanto o das entidades empregadoras públicas (coluna 3) rondou em média 1,7%, ou seja, quase seis vezes menos. Se adicionarmos a este montante as transferências do Orçamento de Estado para a CGA (coluna 4), a que o governo chama “subsídio” (um termo inadequado e enganoso, pois sugere que se trata de uma benesse quando o que é feito, de facto, desse modo discricionário,  é  repor, e só em parte, as contribuições em falta das entidades empregadoras públicas), o valor obtido é de 16,6% do valor das remunerações (coluna 5). Esta é uma percentagem bem inferior à da que pagaram as entidades empregadores privadas para o CNP durante o mesmo período. Dizer, por isso, que os governos não descapitalizaram a CGA é, no mínimo, faltar a verdade, e, no máximo, escarnecer dela.

2. Por outro lado, o mesmo quadro  mostra que se se tivesse rentabilizado os valores não entregues pelo governo à CGA só durante aquele período (1993/2003) a uma taxa de 4%, que é aquela que o governo aceitou à PT e aos bancos aquando da transferência dos fundos de pensões destas entidades para a responsabilidade do Estado, isso teria permitido à CGA ter agora um Fundo de Estabilização Financeira próprio com mais de 14.400 milhões de euros (última coluna, última linha separada). E tenha-se  presente que este valor diz respeito apenas a 11 anos de descapitalização da CGA, e que esta não foi criada em 1993, data a partir da qual todos os novos funcionários públicos foram equiparados a trabalhadores do sector privado no que toca ao sistema previdencial (a chamada «convergência»).

3. Recorde-se que só com a lei 64-A/2008 é que as contribuições dos serviços e organismos de administração pública para a CGA aumentaram as suas contribuições para 7,5% do valor das remunerações ilíquidas dos trabalhadores. Em 2010, também pela lei do Orçamento de Estado esse valor subiu para 15%, e em 2013, também por força da lei do Orçamento, aumentou para 20%. Portanto, mesmo em 2013 continuam a ser inferiores à percentagem de 23,75% estabelecida para as entidades privadas.

4. É evidente que no período anterior a 1993, que é o primeiro ano considerado no quadro, o saldo em cada um desses anos foi certamente também positivo. Isto porque estávamos então na fase de “juventude” do sistema, em que o número de aposentados era muito baixo e o número de subscritores muito mais elevado. Portanto, se fosse considerado todo o período de existência da CGA desde que existem governos constitucionais, as reservas acumuladas seriam certamente muito superiores às calculadas no quadro.

5. Fica assim claro que a política dos sucessivos governos foi sempre, enquanto a CGA esteve na sua fase de juventude, e mesmo na sua fase adulta, a de fixar às entidades empregadoras públicas uma percentagem muito baixa de contribuição para  CGA e sempre muito inferior à das entidades empregadoras privadas. Em seguida, transferiam do OE apenas o necessário para que, adicionado ao recebido pela CGA, fosse suficiente para pagar as pensões, ficando com a diferença.

Não é aliás por acaso, observa E. Rosa num dos seus estudos, que só a partir de 2004 é que os sucessivos governos começaram a alterar continuamente o Estatuto da Aposentação, mudando as regras do jogo e começando a falar, cada vez mais, em “reforma da CGA para garantir a sua sustentabilidade”, mas sem irem ao cerne das causas das suas dificuldades financeiras, a principal das quais é a descapitalização da CGA, como acábamos de ver. É que, enquanto o sistema podia produzir grandes excedentes (fase de juventude) ou excedentes consideráveis (fase adulta), os sucessivos governos apropriaram-se desses excedentes canalizando-os para outros fins. Quando o sistema alcançou a maturidade,  procuraram resolver o problema resultante da falta de reservas reduzindo as pensões dos trabalhadores, e atirando para cima destes as consequências da sua imprevidência e má gestão. E o campeão absoluto nesta matéria é, sem qualquer dúvida, o governo actual.

Perante a análise feita, não se sabe pois o que mais devemos admirar: se a maleza ou se o desplante destas passagens da «Exposição de Motivos»:

«O nível de autofinanciamento das prestações pagas pela Caixa (pensões de aposentação e sobrevivência atribuídas) por contribuições recebidas dos trabalhadores e das entidades públicas empregadoras situa-se, em 2013, pouco acima dos 40%, sendo os restantes quase 60% (mais do triplo da taxa contributiva real do empregador no regime geral da segurança social para as eventualidades velhice, invalidez e morte) cobertos por transferências do Orçamento do Estado, ou seja, por impostos ou por recurso ao endividamento. (…)

A evolução previsível dos fatores críticos para a sustentabilidade financeira estrutural
da Caixa aponta no sentido da continuação da degradação da situação, num momento em que desequilíbrios orçamentais estruturais do Estado, vinculações internacionais relacionadas com estes mesmos desequilíbrios e a situação económica do País não permitem continuar, como até aqui, a aumentar anualmente o valor da contribuição para a Caixa. O défice anual da Caixa ascende a 2,6% do PIB, com tendência crescente, situação que se afigura insustentável, pelas razões expostas em 1 (p.17).

Acresce que existe também uma enorme desproporção entre aquilo que é o nível de pensões da Caixa e o esforço contributivo realizado pelos seus beneficiários, que, recorda-se, contribuíram para aposentação e pensão de sobrevivência com uma percentagem da sua remuneração de 7% até 1984, de 8% entre 1985 e 1993, de 10% entre 1994 e 2010 e de 11% desde 2011» (p.14). (A enfâse, em todas as citações, foi acrescentada por mim. JMCS). 

O mundo é assim virado do avesso: «a enorme desproporção do esforço contributivo» não é a das entidades empregadoras públicas (que sempre cumpriram “exemplarmente” as suas obrigações, como atesta o quadro 2 que analisámos), mas a dos trabalhadores da função pública, esses inqualificáveis “privilegiados” que querem arruinar o país com as suas “extravagantes” pensões de aposentação e de sobrevivência.

Concluamos a análise da 4ª justificação do governo.

Sim, as dificuldades financeiras da CGA são bem reais e muito sérias, mas resultam exclusivamente da imprevidência e da má governação dos governos. Não podem ser imputadas aos trabalhadores e aposentados da função pública que a elas são completamente alheios.

Sim, essas dificuldades são todas resolúveis, mas para isso é necessário, primeiro e antes de mais, assegurar que o governo actual não possa  causar mais prejuízos do que aqueles que já causou. É imperioso, por conseguinte,  que o decreto 171/XII vá parar também ao arquivo morto onde jazem os decretos e as leis que provaram, após exame crítico, não ter razão de existir no Portugal democrático.

Ficaremos assim com o tempo e a disponibilidade suficientes para debatermos as medidas necessárias à solução das dificuldades com que se debate a CGA, e a sua relação com o sistema previdencial no seu todo — um tema mais vasto que não foi (nem podia ser) abordado neste texto. O estudo citado («O Futuro da Protecção Social em Portugal e a Sustentabilidade da Segurança Social e da CGA». 2013) sugere algumas dessas medidas; por isso, é de leitura obrigatória para quem se interesse por este assunto. Existirão, sem dúvida, outras soluções a acrescentar, que o estudo e o debate informado entre pessoas intelectualmente honestas se encarregarão de trazer à luz do dia.

E. 5ª justificação: equidade entre gerações e demografia

A quinta justificação utilizada pelo governo para fazer cortes nas pensões da CGA é a da equidade (ou solidariedade) entre gerações que estaria ameaçada pela demografia: o aumento da esperança média de vida dos aposentados e o envelhecimento da população dos subscritores («Exposição de Motivos», p.16).

Na sua formulação técnica mais corrente a interacção entre os dois factores mencionados expressa-se da seguinte forma: o rácio activos/inactivos, que é um dos indicadores estruturais a ter em conta nos cálculos actuariais do financiamento do sistema previdencial, tem vindo a diminuir. No caso particular da CGA, esse rácio era, no final de 2012, de 1,15 subscritores no activo por cada aposentado, um valor que cai ainda mais se forem levados em linha de conta os pensionistas de sobrevivência (Fonte:Relatório e Contas da CGA. 2012). Convem sublinhar que este rácio se situa em quase metade do verificado há 10 anos (2,19) o que, por si só, ilustra bem os efeitos letais da transformação da CGA num sistema fechado.

Já examinámos (secção D) esta e outras razões específicas das dificuldades da CGA, as quais se somam aos efeitos gerais da política recessiva do actual governo vem conduzindo.

Porém, os adversários do sistema previdencial público não querem saber dessas razões específicas, nem tão pouco desses efeitos gerais. Este rácio é, para eles, o pretexto que julgam ideal para profetizarem a insustentabilidade do sistema previdencial, alegando que são os trabalhadores no activo, em especial os mais jovens, que têm de sustentar com as suas contribuições as pensões de uma multidão cada vez mais numerosa de velhos que teimam em viver mais tempo em média do que viviam os seus respectivos pais, avós e bisavós e que, por isso, quando chegar a vez dos actuais subscritores do sistema previdencial passarem à aposentação, já o sistema estará falido, ou reduzido a uma sombra do que é hoje. Por isso, aplaudem, alguns com entusiasmo, medidas como as que estão contidas no decreto nº187/XII.

Não parecem suspeitar, porém, que se as medidas que aplaudem tivessem êxito, eles seriam as suas vítimas seguintes. As duas passagens seguintes da «Exposição de Motivos» são muito claras a esse respeito:

(…) um aposentado recebe, em média, pensão durante 18,1 anos e depois ainda deixa aos herdeiros uma pensão de sobrevivência de cerca de metade da pensão de aposentação (p.15).

A solidariedade entre gerações não pode deixar de ser bidirecional, dos trabalhadores ativos para com os pensionistas, mas igualmente destes para com aqueles, não podendo razoavelmente exigir-se aos primeiros um esforço desproporcionado para aquilo que são as suas capacidades e para aquilo que serão previsivelmente os benefícios que colherão no futuro do sistema, isto mesmo admitindo que as novas regras não serão também elas alvo de alteração em sentido desfavorável no futuro (p.14). 

Este “argumento demográfico” (para lhe dar um nome que não merece) impressiona pelo seu mal disfarçado ataque a uma das mais marcantes conquistas civilizacionais do Portugal democrático: a de ter conseguido, em menos de 40 anos, aumentar a esperança média de vida da sua população (que passou de 13,5 anos aos 65 anos, em 1970, a 18,8 anos aos 65 anos, em 2012), proporcionando-lhe condições de vida mais dignas do que as que prevaleceram em qualquer outro período do seu longo passado histórico. Mas tão ou mais impressionante ainda do que esta diatribe é, porventura, a exibição que os autores deste argumento fazem da sua ignorância crassa, mas atrevida, onde vão buscar a sua sustentação. Bastam por isso meia dúzia de linhas para o fazer cair como um castelo de cartas.

Convém saber que a taxa média de crescimento da produtividade em Portugal foi de 2,9% ao ano entre 1953 e 2011. Ora, o professor Pedro Nogueira Ramos (da faculdade de economia da Universidade de Coimbra, ex-director das Contas Nacionais do INE), mostrou recentemente que bastaria um aumento médio da produtividade de 0,23% até 2030, e de 0,36% até 2060 para compensar a regressão demográfica (Fonte. Pedro Nogueira Ramos. Torturem os números que eles confessam.Almedina. 2013).

Conclusão

Depreende-se de tudo quanto foi dito nas secções anteriores que o decreto  n.º 187/XII não estabelece qualquer mecanismo de convergência entre as pensões de aposentação  da CGA com as do CNP.

Do que se trata, isso sim, é de operar um corte profundo e permanente nas pensões de aposentação dos trabalhadores da função pública que os deixaria numa situação de grande divergência e inferioridade em relação aos actuais e futuros aposentados do sector privado — um corte ainda por cima aplicável, retroactivamente, às pensões em pagamento (artigo 7º do decreto nº187/ XII), o que configura uma clara violação do artigo 12º do código civil e, por consequência, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que aquele está em conformidade com esta.

José Manuel Catarino Soares
                                           


3 de  Dezembro de 2013