Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

29 setembro, 2023

 

Um insólito e grotesco (mas esclarecedor) 

macrossurto de russofobia

José Catarino Soares

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9.º artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

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Este homem, de cabelo branco e braço estendido, teve de esperar até aos 98 anos para as suas proezas, como ex-combatente nazi, serem finalmente reconhecidas por um país do chamado “Ocidente alargado” como grandes feitos heróicos. Chama-se Yaroslav Hunka. Durante a Segunda Guerra Mundial combateu na 14.ª Divisão de granadeiros das Waffen SS (o ramo militar da organização Schutzstaffel [cuja abreviatura era SS] do Partido Nazi de Adolf Hitler), também conhecida como 1.ª Divisão Ucraniana ou Divisão Galícia, pelo facto de ser composta de voluntários ucranianos da Galícia (região actualmente repartida entre a parte ocidental da Ucrânia e a Polónia).

1. A 14.ª Divisão das Waffen SS

A 14.ª divisão das Waffen SS combateu na Ucrânia, Polónia, Eslováquia e na ex-Jugoslávia. De acordo com o “Centro de Estudos do Holocausto dos Amigos de Simon Wiesenthal”, a 1.ª Divisão Ucraniana das Waffen SS «foi responsável pelo assassínio em massa de civis inocentes com um nível de brutalidade e malevolência inimaginável» [1]

Na Galícia, por exemplo, massacraram aldeias inteiras de residentes polacos, incluindo mulheres e crianças, alegando que estavam associados aos guerrilheiros soviéticos.  Além disso, a Divisão Galícia das Waffen SS esteve envolvida noutros casos de violência genocida. Por exemplo, participou na repressão da revolta antinazi na Eslováquia e também na repressão brutal e violenta do movimento de guerrilha antinazi na Jugoslávia. Em Março de 1945, passou a chamar-se Primeira Divisão Ucraniana do Exército Nacional Ucraniano, antes de se render às forças britânicas dois meses mais tarde, em Maio de 1945 [2].

2. O parlamento canadiano ovaciona de pé um SS ucraniano

Yaroslav Hunka recebeu uma ovação de pé do parlamento canadiano «por ter combatido contra os russos durante a 2.ª Guerra Mundial» (sic). A foto foi tirada quando Hunka agradecia os aplausos numa galeria do parlamento canadiano. Isto aconteceu em 22 de Setembro de 2023, depois do discurso que Zelensky proferiu nesse parlamento nesse dia.Ver aqui:

https://twitter.com/UnityNewsNet/status/1705841969845403788?Fbclid=Iw AR1LcOunxaf8EA3_4nET2ylLLKzKbBSyGPWCuwzd5RQZQ4h0wtrTCfPKKC0

No dia seguinte, a SIC Notícias informava que:

O presidente da Câmara dos Comuns no Canadá [Anthony Rota] pediu desculpa após ter convidado e proporcionado uma ovação no parlamento a um antigo combatente ucraniano da II Guerra Mundial que lutou ao lado de tropas nazis. Anthony Rota desconhecia a pertença de Yaroslav Hunka na organização paramilitar nazi Waffen-SS. Na passada sexta-feira, Volodymyr Zelensky foi discursar no parlamento canadiano e, após isso, houve uma homenagem a Yaroslav Hunka de 98 anos, com todos os membros da Câmara de pé a aplaudir. No entanto, após este acontecimento viral, muitos grupos judaicos alertaram que Hunka pertenceu a uma organização paramilitar nazi Waffen-SS entre 1943 e 1945. A organização seria [“seria” não, era, J.C.S.] uma unidade estrangeira criada pela SS em países sob ocupação nazi. Oriundo da Ucrânia, mas residente no Canadá, Yaroslav foi apresentado como «um herói da luta pela independência da Ucrânia contra a Rússia». Um erro crasso que levou ao pedido de desculpas de Anthony Rota, presidente da Câmara dos Comuns.

3. Erro crasso, mas inocente?

Como podemos constatar, a SIC Notícias (à semelhança dos demais órgãos do sistema mediático dominante de comunicação social) apresentou a homenagem do parlamento canadiano ao SS ucraniano Yaroslav Hunka como tendo sido “um erro crasso”, mas inocente. O presidente do parlamento canadiano, Anthony Rota, desconheceria o verdadeiro passado de Hunka. Pensava que Hunka era um herói ucraniano e, afinal, descobriu que ele era, de facto, um nefando SS.

Esta é a foto de Yaroslav Hunka, quando era membro da 14.ª Divisão de granadeiros da Waffen SS
(1.ª Divisão Ucraniana ou Divisão Galícia). A foto foi descoberta e fornecida pelo professor Ivan Katchanovski [@I_Katchanovski, Twitter ou X] — um politólogo ucraniano que ensina na Universidade de Otava (Canadá). 
 

É uma desculpa esfarrapada. Quem pode acreditar que o presidente do parlamento canadiano (ou, o que para o caso vem a ser o mesmo, o seu quadro de assessores) e o primeiro-ministro do Canadá (ou, o que para o caso vem a ser o mesmo, os serviços secretos de informações do governo federal do Canadá) desconheciam a identidade de Hunka ‒ o seu convidado de honra (para além de Zelensky) ‒ e das demais pessoas autorizadas a entrar no parlamento num dia tão especial como aquele, em que Zelensky tinha sido convidado a discursar no parlamento pelo primeiro-ministro Justin Trudeau e por Anthony Rota?

«Temos aqui na Câmara, hoje, um canadiano de origem ucraniana, um veterano de guerra, da Segunda Guerra Mundial, que lutou contra os russos pela independência da Ucrânia e continua a apoiar as tropas [da Ucrânia], apesar de já ter 98 anos. O seu nome é Yaroslav Hunka. /…/ É um herói ucraniano e um herói canadiano e nós estamos-lhe gratos por todo o serviço que prestou» — disse Rota, em guisa de apresentação. Ao ouvirem estas palavras, os deputados canadianos levantaram-se todos ‒ assim como Trudeau, Zelensky e a esposa de Zelensky ‒ e brindaram Yaroslav Hunka com uma prolongada ovação.

É óbvio que Rota sabia perfeitamente quem era Hunka, o seu convidado de honra.

Nesta foto, Karina Gould, do Partido Liberal, ministra dos Assuntos Parlamentares [“leader of the government in the House of Commons of Canada”], e Anthony Rota, presidente do Parlamento canadiano [“speaker of the House of Commons”] e membro do mesmo partido (à direita), dão as mãos a Yaroslav Hunka, depois da homenagem de que este foi alvo durante a sessão plenária extraordinária desse parlamento dedicada a Volodymyr Zelensky. Não consegui identificar o indivíduo do meio, que enverga uma camisa ucraniana e que esteve sempre ao lado de Hunka na galeria do parlamento. Foto: @karinagould [publicada antes do escândalo da identidade de Hunka ter rebentado]. 

Em vez de lapsos de memória e falhas de segurança conducentes a um “erro crasso” (mas inocente), parece-me, pois, mais plausível admitir que Rota ‒ ou Trudeau e Rota de comum acordo, tanto mais que são do mesmo partido, o Partido Liberal ‒ tenha(m) decidido fazer um brilharete para agradar a Zelensky e ao influente “lobby” ucraniano-canadiano que, no Canadá, tem apoiado os sucessivos governos (Yatsenyuk, Poroshenko e Zelensky) saídos do golpe de Estado violento e inconstitucional de 22 de Fevereiro de 2014.

A foto seguinte, publicada pela neta de Yaroslav Hunka, abona em favor desta conjectura. Nela, a senhora Theresa Hunka informa-nos que a foto foi tirada quando o seu avô aguardava na recepção que Trudeau e Zelensky o viessem cumprimentar. E sabemos pelo chefe do grupo parlamentar do Partido Conservador (o principal partido da oposição), Pierre Poilievre, que esse encontro teve lugar [3]. Deve, portanto, haver fotos desse encontro, embora não tenham vindo a público. Não é de excluir, aliás, que tenham, entretanto, sido destruídas num “buraco da memória”, atendendo ao embaraço que produziriam se fossem publicadas.  


4. Um brilharete com um devastador efeito de boomerang

Seja como for, uma coisa é certa. Trudeau prometeu a Zelensky que o seu governo lhe daria mais 650 milhões de dólares canadianos em ajuda militar nos próximos três anos. Esta quantia vem somar-se aos 8.000 milhões de dólares canadianos já entregues desde 24 de Fevereiro de 2022, dos quais 1.500 milhões em ajuda militar.

Se a homenagem a Hunka foi, como conjecturo, um brilharete que Rota e Trudeau quiseram fazer para celebrarem da melhor maneira o apoio incondicional a Zelensky e à continuação da guerra na Ucrânia até ao último soldado ucraniano, então, temos de concluir que foi um brilharete que teve um devastador efeito de boomerang.

Compreende-se facilmente porquê. O Canadá contribuiu com mais de 1 milhão de homens (a esmagadora maioria dos quais eram voluntários) para o combate contra a Alemanha nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Convém recordar que o Canadá tinha, na altura, apenas 11 milhões de habitantes (actualmente tem 38,2 milhões). Mais de 45 mil soldados canadianos morreram na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo no desembarque nas praias da Normandia e na campanha da Normandia, e cerca de 55.000 ficaram feridos.

Por isso, para os veteranos canadianos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, para os sobreviventes judeus, polacos, ucranianos russófonos e russos vítimas das matanças das Waffen SS, e para os cidadãos canadianos cujos pais, avós e bisavós combateram contra o nazismo (ou que foram vítimas das suas atrocidades), o espectáculo insólito dos deputados da Câmara dos Comuns do Canadá a erguerem-se em bloco, todos sem excepção, para homenagear uma relíquia viva do nazismo, deve ter sido, presumo, insuportável e não pode ter deixado de gerar uma grande comoção e revolta.

Zelensky exultante e de punho fechado saúda Yaroslav Hunka na galeria do parlamento canadiano, ladeado pela sua esposa e por Justin Trudeau que aplaudem de pé Yaroslav Hunka. Foto: Politico.com

Como foi isso possível?

Um facto importante a ter em conta é este: antes do início da segunda guerra na Ucrânia (24.02.2022), 4% dos canadianos eram de origem ucraniana. Muitos deles são orgulhosos descendentes dos correligionários de Stepan Bandera e dos combatentes da 14.ª Divisão das Waffen SS ‒ como Yaroslav Hunk e como o já falecido Dmytro Dontsov (o mentor ideológico de Stepan Bandera) ‒ que fugiram da Europa para o Canadá no fim da Segunda Guerra Mundial, para não serem julgados pelos seus crimes de guerra [4].

Segundo o historiador Irving Abella (presidente do Canadian Jewish Congress de 1992 a 1995 e presidente da Canadian Historical Association de 1999 a 2000) mais de 2.000 criminosos de guerra e colaboradores nazis da 2.ª Guerra Mundial foram acolhidos no Canadá, apesar da oposição e da indignação do Congresso Judaico Canadiano [5]. «Se há uma palavra para descrever as atitudes do Canadá [perante os criminosos de guerra nazis] nos últimos 50 anos é “apatia”» — declarou Abella em 1997 [6].

Uma prova disso é o relatório final da “Comissão de Inquérito sobre criminosos de guerra” (relacionados com as actividades da Alemanha nazi) de Dezembro de 1986, presidida pelo juiz Jules Deschênes. Nesse seu relatório, a Comissão limita-se, por exemplo, a compilar estimativas diversas do número de criminosos de guerra que encontraram refúgio no Canadá e a opinar que muitas delas são exageradas.

Dois exemplos mais. A Comissão Deschênes, embora tenha sido oficialmente constituída para apurar toda a verdade sobre o tema que lhe deu origem, passou uma esponja sobre o cadastro da 14.ª Divisão das Waffen SS, alegando ter falta de legislação adequada e de provas para incriminar os seus membros. Acresce que a segunda parte do relatório final da Comissão, que dizia respeito a alegações contra indivíduos específicos, permanece confidencial e nunca foi tornada pública.

O “lobby” dos orgulhosos descendentes canadianos dos correligionários de Dontsov e Bandera inclui a vice-primeira-ministra (e também ministra das finanças) do Canadá, Christina Freeland. O seu avô materno, Mikhail Khomiak (mais tarde, no Canadá para onde fugiu, mudou o nome para Michael Chomiak), que ela defende com determinação, foi o editor-chefe do jornal anti-semita, anti-russo e antipolaco, “Krakivski Visti”, financiado pelo regime nazi e publicado em Cracóvia (Polónia) durante a ocupação nazi (1940-1945)

5. Russofobia

É óbvio que os parlamentares canadianos tinham obrigação de saber que os ucranianos que «combateram a Rússia na Segunda Guerra Mundial» pertenciam ou às Waffen SS ou à Organização dos Nacionalistas Ucranianos [OUN, no acrónimo ucraniano] chefiado pelo filonazi Stepan Bandera.

Mas admitamos ‒ só para podermos raciocinar ‒ que não sabiam, que os 338 membros do parlamento canadiano constituem um selecto grupo de ignorantes encartados que nada sabem sobre a Segunda Guerra Mundial. Qual seria, então, a sua motivação para se levantarem todos de supetão e dispensarem uma prolongada ovação a um homem que lhes foi apresentado como “um veterano de guerra que combateu os russos”? Pois, eu só vejo uma, que dá pelo nome de “russofobia” — uma variedade de ódio étnico muito em voga na Ucrânia pós-1991 e que aumentou brutalmente de intensidade e letalidade depois do golpe de Estado de Fevereiro de 2014 que instalou o regime actualmente vigente na Ucrânia. 

Quando a russofobia se alia com os interesses estratégicos da potência hegemónica dominante, os EUA, os resultados podem ser (e têm sido) muitos e diversos, mas sempre desastrosos. Um deles foi o insólito e grotesco macrossurto de russofobia que ocorreu no parlamento canadiano no dia em que Zelensky o visitou.

6. Controlar os danos, se possível com um buraco da memória

Apesar da notícia da SIC Notícias que transcrevi mais acima, não esperemos que os deputados canadianos e o governo canadiano venham a reconhecer que a russofobia e o alinhamento completo com os interesses estratégicos hegemónicos do seu vizinho americano foram as reais motivações da sua entusiástica ovação de pé a Yaroslav Hunka.

Pelo contrário, para salvar a face e fazer esquecer o seu vergonhoso comportamento, os deputados canadianos e o governo canadiano tentam agora sacudir a água do capote e controlar os danos.

A primeira coisa que fizeram foi arranjar um bode expiatório e um único. “A culpa do que se passou é toda de Rota, o presidente do parlamento”, afirmou, em substância, a ministra dos Assuntos Parlamentares, a senhora Karina Gould, com voz doce. Perante isto, o homem não teve outro remédio senão demitir-se, como aliás lhe competia e como lhe exigia não só a oposição, mas também (e publicamente) o seu próprio partido. Esse acto era necessário para prevenir e deflectir o pedido de demissão do primeiro-ministro Trudeau — que até agora ainda não surgiu e que é duvidoso que venha surgir do principal partido da oposição.

A segunda coisa que fizeram foi mais criativa, embora também possa ser considerada, de um outro ponto de vista, como um exemplo perfeito do apotegma: «a Vida imita a arte bem mais do que Arte imita a vida» [7].

É que se trata de uma iniciativa que parece ter sido congeminada no “Ministério da Verdade” do romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de Georges Orwell. Se não vejamos. A mesma senhora Karina Gould, pediu, na segunda-feira, dia 25 de Setembro, a aprovação unânime no parlamento canadiano de uma moção que propõe que «se apague da acta dos debates da Câmara dos Comuns» e de «qualquer registo multimédia da Câmara» tudo o que se passou relativamente à homenagem a Yaroslav Hunka: as palavras de elogio do ex-presidente da Câmara dos Comuns, a ovação unânime e de pé de todos os deputados, assim como de Trudeau, Zelensky e sua esposa; os gestos de agradecimento de Hunka nas galerias do parlamento, etc. [8]. Em resumo, doravante todos fariam de conta que esses acontecimentos nunca ocorreram, para paz e sossego das suas consciências.  

A espantosa moção de Karina Gould, se fosse aprovada [não foi, diga-se de passagem] seria, de facto, um perfeito “buraco da memória” saído direitinho do mundo ficcional de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro para o mundo político actual [9].

Notas e referências

[1] Daniel Otis, “How was veteran Yaroslav Hunka's military unit linked to the Nazis?.” CTVNews.ca, September 26, 2023.

[2] Ivan Katchanovski, “The Politics of World War II in Contemporary Ukraine.” Journal of Slavic Military Studies, 27:210–233, 2014.

[3] https://twitter.com/PierrePoilievre/status/1706047009747038709

[4] Na nota 25 do meu livro “Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal” (editora Primeiro Capítulo. Agosto de 2023), elucido brevemente quem foram os filonazis ucranianos Dontsov e Bandera e dou alguns exemplos da sua extraordinária influência na Ucrânia contemporânea.

[5] https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/irving-abella.

[6] Anthony Depalma, “Canada Called Haven for Nazi Criminals.” New York Times, February 3, 1997.

[7] O apotegma é de Oscar Wilde, no seu ensaio de 1891: “A decadência da mentira: uma reflexão” (editora Guerra e Paz. Maio de 2022).

[8] https://www.youtube.com/watch?v=_65-VMhNIis

[9] Um “buraco da memória” no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é um dispositivo de apagamento e silenciamento dos factos de um tipo ainda mais grave do que a censura, pois tem como objetivo reescrever a história de modo a torná-la completamente alinhada com as necessidades e os caprichos dos detentores do poder.

22 setembro, 2023

 Temas 2 e 3

Afinal, o míssil que atingiu

o mercado de Kostiantynivka

era ucraniano…

José Catarino Soares 

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8.º artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

 

1. O ataque ao mercado de Kostiantynivka

Em 6 de Setembro de 2023, ocorreu um ataque com um míssil ao mercado de Kostiantynivka, uma cidade controlada pelos ucranianos no Leste da Ucrânia. A carga de fragmentos de metal do míssil que atingiu o mercado dessa cidade, perfurou janelas e paredes, matou 15 civis e feriu mais de 30 outros, ficando alguns deles desfigurados.

Menos de duas horas depois, o Presidente Volodymyr Zelensky culpou os «terroristas russos» pelo ataque, e muitos orgãos mediáticos de comunicação social do chamado “Ocidente alargado” seguiram-lhe na peugada. O costume.

2. As crenças de Helena Ferro Gouveia apresentadas como notícia

Um deles foi a CNN Portugal, pela boca da senhora Helena Ferro Gouveia, que é apresentada por esta estação de televisão como uma comentadora “especialista de relações internacionais”. Esta comentadora, confortavelmente instalada em Lisboa, declarou peremptoriamente (antes de qualquer investigação idónea feita in loco por peritos militares) que tinham sido os russos e, mais ainda, que o tinham feito para ameaçar e amedrontar Antony Bliken, ministro dos Negócios Estrangeiros (“State Department”) dos EUA, de visita a Kiev nesse dia.


Manchete, foto e legenda da CNN Portugal

3. A culpa é sempre dos russos

Durante três dias seguiu-se uma intensa campanha do sistema mediático dominante de comunicação social em que os russos foram alvo de todos os vitupérios.

Contudo, rapidamente, alguns genuínos especialistas -- como o major-general Carlos Branco (em Portugal) ou o major Scott Ritter (nos EUA) -- trataram de apontar algumas suspeitas sobre a origem desse míssil que a senhora Helena Ferro Gouveia e centenas de outros comentadores da sua igualha nunca comtemplaram.

«Através de imagens de videovigilância, soava estranho que as pessoas olhassem para o som do projéctil que vinha da direcção da Ucrânia antes de rebentar no mercado. Claro que o major-general [Carlos Branco], como tantos outros, foram acusados, uma vez mais, de estarem a seguir a narrativa russa apenas por desmentirem a versão ucraniana, que é tantas vezes repetida cegamente pelos órgãos de comunicação social sem qualquer verificação» — observou o jornalista independente português Bruno Amaral de Carvalho, sediado na Donbass, no seu canal do Telegram (18 de Setembro 2023).

Nos dias seguintes, o caso iria mudar radicalmente de figura, no sentido apontado pelo major-general Carlos Branco e pelo major Scott Ritter (este no próprio dia do ataque). Seis jornalistas do New York Times estudaram relatos de testemunhas oculares, recolheram fragmentos do míssil, observaram vestígios do seu impacto no solo, examinaram as imagens das câmaras de vigilância e chegaram a conclusões diametralmente opostas às da senhora Helena Ferro Gouveia e dos seus émulos.

4. O New York Times vs. Helena Ferro Gouveia

Segundo um artigo publicado no New York Times em 18 de Setembro, imagens de câmaras de vigilância mostram que o míssil atingiu Konstiantynivka vindo de território controlado pela Ucrânia, e não de áreas ocupadas pelo exército russo. Esta suposição baseia-se no facto de que, no momento da aproximação do míssil, pelo menos quatro transeuntes se voltam simultaneamente para a câmara, ou seja, na direcção do território controlado pela Ucrânia. Além disso, pouco antes da explosão, o reflexo do míssil é visível em dois carros estacionados, indicando a direcção de deslocamento do noroeste, tal como o major-general Carlos Branco já tinha sugerido.

New York Times, 18 de Novembro de 2023

As autoridades ucranianas tentaram impedir que alguns dos jornalistas do New York Times autores da investigação tivessem acesso aos destroços do míssil e à área de impacto, mas os jornalistas acabaram por conseguir chegar ao local, entrevistar testemunhas e recolher os restos das munições utilizadas. Segundo escrevem no seu artigo de 18 de Setembro de 2023, eles têm provas de que poucos minutos antes da explosão no mercado, os militares ucranianos lançaram dois mísseis terra-ar em direção à linha de frente a partir da cidade de Druzhkovka, situada a 15 quilómetros a noroeste de Konstantynivka. Em Druzhkovka, havia repórteres do jornal que ouviram sons de lançamentos de mísseis às 14h. A explosão em Konstantynivka ocorreu quatro minutos após o lançamento dos mísseis. A informação sobre o lançamento de dois mísseis foi confirmada em entrevista ao jornal por um militar ucraniano que pediu o anonimato.

5. Na guerra, a verdade é sempre a primeira vítima

Em resumo, agora, é o próprio New York Times que põe em causa a versão ucraniana e admite ter sido um míssil ucraniano que falhou o seu alvo (russo) a atingir letalmente o mercado de Kostiantynivka.

«Pontualmente, ao contrário do primeiro ano da guerra, a imprensa norte-americana, por vezes até bem mais do que a europeia, destapa as verdades incómodas de um conflito em que não há inocentes. Será o New York Times também putinista?», pergunta Bruno Amaral de Carvalho no mesmo bilhete público.

É óbvio que não. Se o New York Times pode ser apodado de alguma coisa relativamente às guerras na Ucrânia será de “bidenista” ou “zelenskysta” ou coisa semelhante.

Será que a senhora Helena Ferro Gouveia e os seus émulos se vão retractar e pedir desculpa aos espectadores das suas acusações infundadas e caluniosas? É óbvio que não. São pessoas como ela que mantêm vivo e sempre actual o aforismo que serve de título a esta secção. Numa guerra, a verdade é a vítima de eleição de tais comentadores e a procura da verdade a sua última preocupação.