Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

08 novembro, 2016

Tema 3

7 de Novembro de 2016


Schäuble volta a atacar


A notícia reproduzida em anexo (no fim deste artigo) merece alguns comentários porque tem como protagonista  um senhor alemão que anda de cadeira de rodas, mas que é muito, mas muito perigoso para a grande maioria de nós, cidadãos portugueses — e não apenas portugueses, como se verá. É que o referido senhor está convencido que merecemos ser duramente castigados se não cumprirmos as suas ordens. 

Falo do sr. Schäuble, do partido União Democrata-Cristã, oficialmente ministro das Finanças de Alemanha desde 2005 e, não oficialmente, o patrão do Euro, razão pela qual a imprensa financeira o chama carinhosamente “tesoureiro da Europa”.

Foi ele que gizou o plano de fazer da Grécia um exemplo inesquecível para todos os povos ‘mal comportados’. Primeiro, propôs a sua expulsão da zona Euro, logo após a eleição do Syriza, exactamente com o mesmo argumento que agora utilizou contra o governo PS (v. notícia no fim deste artigo). A ideia não foi avante porque a França (Hollande) se opôs — os seus bancos eram os mais expostos à dívida grega e temiam ficar a ver navios se a Grécia fosse expulsa do euro e se o seu governo recém-eleito, para sobreviver, repudiasse (= considerasse impagável) a dívida contraída pelos governos anteriores do Pasok e da Nova Democracia. Em seguida, gizou um segundo plano, em que a França (Hollande) alinhou.  A encenação do plano coube ao chamado Eurogrupo, uma instituição fantasmagórica, porque não tem existência legal à luz dos tratados vigentes, que é fundamentalmente o instrumento que permite a Schäuble impor a sua vontade aos ministros das finanças dos países do euro.  Não tem precisado de se esforçar muito, porque os ditos ministros são quase todos membros de partidos nacionais, como o de Schäuble, filiados no PPE (Partido popular Europeu) — a força política maioritária do Parlamento Europeu e na Comissão Europeia — e os que o não são, como, por exemplo, o sr. Jeroen Dijsselbloem, ministro das finanças da Holanda, membro do Partido do Trabalho desse país e presidente do Eurogrupo, têm basicamente a mesma ideia da economia e do mundo.

O plano de Schäuble consistia em (i) recusar a dilatação até Junho do prazo de pagamento do empréstimo (que expirava em Fevereiro, mês em que o novo governo grego tomou posse) feito ao governo anterior da Nova Democracia, um partido filiado, como o de Schäuble, no PPE; dilatação necessária para o governo não ficar imediatamente sufocado antes mesmo de poder começar a actuar; (ii) recusar qualquer medida proposta pelo governo grego ao Eurogrupo e à troika (Varoufakis apresentou-lhes dois planos pormenorizados, por sinal muito moderados) para regenerar a economia grega e as finanças públicas gregas; (iii) recusar qualquer acordo de renegociação da monstruosa dívida grega (315 mil milhões de euros em Fevereiro de 2015), que uma comissão internacional independente de peritos, formada por iniciativa do parlamento grego, tinha concluído ser, na sua maioria, ilegal e ilegítima; (iv) recusar o pagamento de 162 mil milhões de euros da Alemanha à Grécia a título de reparação pelo empréstimo (476 milhões de marcos à data, 54 mil milhões de euros, em paridades de poder de compra de 2010) que esta foi forçada a conceder-lhe no tempo de Hitler e pelos crimes de guerra — destruições, pilhagens e atrocidades (40 mil civis mortos só em Atenas) — cometidos pelos seus exércitos durante a sua ocupação da Grécia. Recorde-se que a Itália pagou integralmente as reparações de guerra exigidas pela Grécia pela ocupação dos exércitos de Mussolini, mas a Alemanha só pagou uma pequena parte (115 milhões de marcos) dessas reparações, em 1960, no tempo de Adenauer, acrescidos de 20 milhões de euros em 2003, ou seja, 1,67% do total devido; (v) declarar o ministro das finanças grego (Varoufakis) persona non grata, nomeadamente por este divulgar publicamente as suas intervenções no Eurogrupo e ter proposto que este grupo passasse a ter actas pormenorizadas das suas reuniões e que estas fossem acessíveis ao público; (vi) cortar toda a liquidez do BCE aos bancos gregos, de modo a (vii) a suscitar uma corrida aos bancos (o que veio a acontecer: 45 mil milhões de euros de depósitos foram levantados entre Março e Junho de 2015) e uma gigantesca fuga de capitais (o que também veio a acontecer, em montantes ainda mais elevados) que levasse o governo grego a fechar temporariamente os bancos (o que veio a acontecer na semana do referendo convocado pelo governo grego) e (viii) que obrigasse Tsipras a retirar todos os poderes negociais a Varoufakis e a capitular perante as exigências da troika de um novo e mais duro plano de ‘austeridade’, traindo o mandato que o povo grego lhe deu por duas vezes (o que também acabou por acontecer).

A Grécia foi invadida pela Alemanha nazi em 1941. Na foto, soldados alemães hasteiam a bandeira nazi na Acrópole. A Grécia perdeu 14% da sua população durante a ocupação nazi — homens, mulheres e crianças baleados ou vítimas da fome organizada pelas pilhagens e destruições feitas pelo exército nazi. 1600 aldeias foram incendiadas e muitos habitantes civis assassinados em 87 cidades, vilas e aldeias, com particular destaque para Atenas.

Foi magistral. A sua execução primorosa excedeu as expectativas dos mais cépticos.  Por exemplo, cá no burgo, o sr. José Manuel Fernandes, do Observador, escreveu um artigo intitulado Estou farto do choradinho dos desgraçadinhos dos gregos (14/2/2015) onde expressava os seus receios do seguinte modo: 

Não há dúvida que quando a troika chegou a Atenas [em 2010] cometeu muitos erros de abordagem, alguns dos quais até corrigiria depois na Irlanda e em Portugal. Houve medidas de uma imensa brutalidade — basta recordar que enquanto em Portugal se preservou e até se actualizaram as pensões mais baixas, na Grécia nem prestações na casa dos 300 euros escaparam. (…)

[JMF esqueceu-se de dizer que, para fazer essa actualização, o governo tirou a uns (que pouco tinham) para dar a outros (que também pouco tinham). O cúmulo da demagogia.  Concretamente, o governo PSD-CDS alterou, em Janeiro de 2013, a legislação sobre o complemento solidário para idosos, diminuindo o valor de referência desta prestação — ou seja, o “valor limite” fixado como rendimento mínimo do idoso para ter direito a este complemento, que passou de 5022 euros anuais (418 euros mensais) para 4909 (409 euros mensais) — o que implicou que idosos que a tinham perderem-na, e outros que se candidataram, e que com as anteriores regras poderiam recebê-la, não a conseguirem obter. Entre Dezembro de 2011 e final de 2015, o número de pessoas a receber o complemento solidário para idosos passou de 235.726 a 160.982, sofrendo portanto uma redução de um terço dos seus beneficiários (75 mil ), enquanto a pobreza nessa população aumentava de 14,7% para 17%. Se isto não é brutalidade, o que é então brutalidade?]

Não surpreende assim que a espiral recessiva que tantos previram para o nosso país e que não se materializou, tenha na Grécia provocado uma queda de 25% do PIB. (…) [De facto, a queda foi de 27%]

A vitória do Syriza pode ter a virtude de quebrar, pelo menos em parte, estas lógicas ancestrais, lógicas que se entrelaçam com a corrupção e a fuga aos impostos. Mas, em contrapartida, pode fazer regredir o pouco que, apesar de tudo, tinha evoluído na abertura da economia. Basta recordar que, antes do resgate, a Grécia mantinha centenas de empresas nacionalizadas na década de 1980, quando na Europa já se privatizava, o que fazia com que o Estado empregasse directamente 45% da população activa.

Pelo seu lado, o doutor Vasco Pulido Valente, num  artigo entitulado A Grécia ? («Público». 26-06-2015), aconselhava:

Se Bruxelas quisesse fazer alguma coisa por aquela triste terra, em vez de exibir os seus sentimentos democráticos, devia ajudar a construir um Estado capaz de reger e ordenar o caos reinante — uma espécie de colonização sem o nome e com dinheiro.

O sr. Schäuble teria gostado de os ler, se soubesse português, pois estaria habilitado a dizer-lhes:

Não, meus caros, não há razão para os vossos receios. A abertura da economia grega continua. As taxas de juro da dívida pública alemã a dez anos arrancaram, no ano de 2010, acima dos 3,3% e agora estão em 0,7%, ainda que já tenham chegado a mínimos históricos de 0,049%. À Grécia aconteceu-lhe exactamente o contrário: enquanto a taxa de juro da sua dívida a dez anos andava à volta dos 5,7% no início de 2010, agora move-se acima de 9%. E a poupança no custo de financiamento das nossas empresas não foi o único ganho para a Alemanha com a crise grega. O meu país aproveitou o terceiro resgate para impor aos gregos a necessidade de venderem  os seus activos mais valiosos para o pagarem. E tratámos de arranjar uma maneira para os obrigar mesmo a fazê-lo, em vez de arrastarem os pés. A privatização das empresas públicas gregas (portos, marinas, aeroportos, refinarias de petróleo, OTE [a equivalente à vossa ex-Portugal Telecom], ELTA [o equivalente aos vossos CTT antes de Passos Coelho e Portas os terem privatizado], rede de caminhos de ferro, rede eléctrica, rede de distribuição de água, rede de distribuição de gás, EAV [indústria aeronáutica], ELVO [indústria automóvel],  estradas portajadas, transportes públicos de Atenas [metropolitano e autocarros], Centro Olímpico de Atenas, etc.) está agora sob a supervisão de um novo organismo criado por nós, “Mecanismo de Estabilidade Europeia”, a que chamámos Privatization Fund [Fundo de Privatização] ou simplesmente The Fund, sobre o qual o governo grego não tem qualquer poder de decisão. O valor estimado dos activos deste fundo é de 70 mil milhões de euros. Mas, claro, o seu valor real é muito maior, porque a estimativa é feita tendo em conta a grande depreciação que estes bens públicos sofrerem com a nossa intervenção. Tudo o que valer a pena vai ser privatizado, e, sempre que possível, leiloado. Só deixámos de fora os monumentos nacionais, as estações arqueológicas, os espaços públicos de recreio (como praias e parques) e as instalações militares e policiais *. O dinheiro apurado pelas privatizações e pelas concessões de gestão será utilizado pelo governo grego para nos pagar os empréstimos que lhe fizemos. E esperamos ser nós, alemães, os principais beneficiários dos leilões, porque somos nós (com os chineses) quem tem mais dinheiro e somos nós, portanto, a ditar o preço de venda. Por exemplo, um terço do porto do Pireu já está há vários anos nas mãos de uma empresa estatal chinesa, a China Cosco, mas, em Agosto de 2015, a empresa alemã Fraport ficou com a gestão dos 17 aeroportos regionais helénicos. Assim, ganhamos nos dois tabuleiros. Emprestamos à Grécia o dinheiro que ela precisa para nos pagar as dívidas que os seus governos contraíram para financiar a fundo perdido a sua oligarquia doméstica (como vocês fizeram com os vossos BES, BPN, BPP, BANIF, CGD e com as vossas Parcerias Público-Privadas) e o governo actual, tal como os anteriores, paga-nos o que nos deve vendendo-nos e alugando-nos por tuta-e-meia os activos mais valiosos do seu povo. E de caminho desacreditamos o governo actual que proclamava que nos faria frente com unhas e dentes. Em resumo, a colonização (sem o nome) dessa triste terra está a ser feita e com dinheiro, muito dinheiro, a fluir da Grécia para a Alemanha.

Em suma, o doutor Schäuble tem todas as razões para se sentir orgulhoso. Conseguiu, apenas com um livro de cheques, fazer à Grécia o que Hitler não conseguiu com um exército.

Há, no entanto, uma pergunta com interesse político que se pode (e se deve) fazer a este propósito. O partido de Schäuble tem por ideário a doutrina social e económica da Igreja Católica. Por isso se auto-apelida de democrata-cristão. A pergunta é: a actuação de Schäuble relativamente à Grécia está em conformidade com os preceitos dessa doutrina? Ou, posta de outra maneira: a actuação de Schäuble terá a aprovação do papa Francisco, o representante máximo e o intérprete mais abalizado dessa doutrina? Há boas razões para crer que a resposta seja negativa.

A mim, que não tenho crenças religiosas, mas que respeito quem as tem e que (também por isso) li a Bíblia, parece-me que a conduta de Schäuble é um exemplo acabado de conduta farisaica. Para quem nunca leu a Bíblia, convém informar que os fariseus eram um grupo de judeus ultraconservadores que acusavam Cristo de apostasia, de violar as leis de Deus e as tradições dos antepassados. O Novo Testamento narra muitos episódios da perseguição que moveram a Cristo e que levou à sua crucificação. Os seus encontros com os discípulos de Cristo nunca eram pacíficos. Eis um exemplo:

Encontrando-se Jesus à mesa na Sua casa, numerosos publicanos e pecadores vieram e sentaram-se com Ele e Seus discípulos. Os fariseus, vendo isto, diziam aos discípulos: «Como é que o vosso Mestre come com os publicanos e os pecadores?» Jesus ouviu-os e respondeu-lhes: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide aprender o que significa: ‘Prefiro a misericórdia ao sacrifício’. Porque não vim chamar os justos, mas os pecadores  (Mateus 9: 11‒13. Bíblia Sagrada. Versão portuguesa preparada a partir dos textos originais pelos Rev.os Padres Capuchinhos com o imprimatur do Cardeal-Patriarca. Verbo. 1982). 

Cristo acusou-os com palavras severas de serem hipócritas e de viverem uma religiosidade de fachada.

Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, formosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos  e de toda a espécie de imundície. Assim também vós, por fora, pareceis justos aos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e de iniquidade (Mateus 23: 27-28, o.cit.)

A Bíblia cristã, cujos ensinamentos Schäuble diz professar, relata também numerosas parábolas de Cristo, entre as quais a seguinte:

O  reino dos céus é semelhante a uma rede que, lançada ao mar,  apanha toda a espécie de peixes. Logo que ela se enche, os pescadores puxam-na para a praia, sentam-se e escolhem os bons para as canastras e os ruins deitam-nos fora. Assim será no fim do mundo. Saiarão os anjos e separarão os maus do meio dos justos e lançá-los-ão na fornalha ardente: Ali haverá choro e ranger de dentes  (Mateus 13:47‒50, o.cit.).

A esta luz, presumo que Schäuble terá razões de sobra para se apoquentar quanto a saber a que espécie de peixe pertence.

                                      Junho de 2015. A Alemanha volta a subjugar a Grécia, desta vez com um livro de cheques

Seja como for, as preocupações mundanas do sr. Schäuble são, agora, com Portugal, onde ele vê um perigo semelhante ao da Grécia, embora, como toda a gente sabe, o governo PS e o seu primeiro-ministro nunca tenham tido sequer as veleidades do Syriza e de Tsipras e se declarem cumpridores das metas do tratado orçamental que ele inventou.
26 de Outubro de 2016. O ministro das finanças alemão declara: “alertei o nosso colega português”, “disse-lhe que se for por esse caminho [não fazer o que ficou combinado com o governo do PSD-CDS] iria assumir um grande risco, e eu não assumiria tal risco”.

Porém, a situação, hoje, já não é a mesma de há um ano. Muita coisa mudou. Por exemplo, (1) o sr. Draghi e a actual Comissão Europeia têm, cada qual considerado de per si, agendas próprias que nem sempre coincidem uma com a outra, nem com a de Schäuble; (2) Durão Barroso, outro proeminente membro do PPE, saíu da presidência da Comissão Europeia para ir direitinho trabalhar, agora às claras, para a Goldman Sachs, o seu verdadeiro patrão, provocando a revolta dos próprios funcionários da UE que fizeram uma petição com mais de 150 mil assinaturas pedindo que lhe fosse, pelo menos, suspensa a pensão de aposentação; (3) houve o terramoto político do  Brexit, e, agora, (4) o sr. Hollande não resistiu a contar a dois jornalistas que o entrevistaram longamente, durante meses, com vista a escreverem um livro laudatório dos seus grandes dotes de estadista, que a França aldrabou sempre os seus orçamentos, que nunca cumpriu o chamado Tratado Orçamental, tudo com o conhecimento e o consentimento de Barroso e de Schäuble, entre outros. Milhões de europeus podem hoje constatar como é o verdadeiro funcionamento da UE, a quem beneficia e a quem prejudica.

Por estas e outras razões, a margem de manobra de Schäuble diminuiu muito em apenas um ano (o que é bom para nós, portugueses). Mas o homem é perigoso e obstinado. Não podendo agir directamente contra nós, como o fez contra a Grécia (Centeno não é Varoufakis, o PS não é, nem nunca foi, o que foi o Syriza), dirige-se aos famosos mercados financeiros para que nos apertem o garrote. Sucede, porém, que os mercados financeiros são agregados instáveis de milhares de grandes especuladores que perseguem objectivos de lucro que muitas vezes se entrechocam. Mais, os mercados financeiros acreditam numa versão particular do Vodu, que, para eles, tem a forma de algoritmos matemáticos, elaborados por economistas semi-letrados, que lhes sussurram ao ouvido quais são os activos que devem comprar e os que devem vender, onde e quando. Não é certo, pois, que reajam como carneiros bem alinhados à voz de comando de Schäuble. Uma prova disso foi a agência de notação financeira canadiana DBRS (que se diz à boca cheia agir em concerto com o sr. Draghi) que manteve a cotação de Portugal acima do lixo. Veremos, pois, quais são os próximos lances do sr. Schäuble, se os mercados financeiros não se assustarem com os seus vaticínios.

Costuma dizer-se que a frase «Que possas viver tempos interessantes!» é uma maldição chinesa, em que “interessantes” significaria “atribulados” ou “conturbados”. Mas a frase não é chinesa (ninguém sabe a sua origem exacta), como explicou o historiador Pacheco Pereira numa crónica sua há uns 5 anos, onde nos lembrava que não há razão para lamentarmos o que nunca tivemos. A normalidade (seja lá o que isso for) não existia antes da grande crise financeira e económica que estalou em 2008, não existe e não existirá no horizonte temporal que podemos vislumbrar. Todo o século 20 foi atribulado (nunca morreu tanta gente em guerras, nem nunca emigrou tanta gente como no século passado). Em Portugal, tivemos uma ditadura que durou 48 anos, uma guerra em África que durou 13 anos, e uma revolução. E agora, além da desintegração em curso da UE e dos efeitos e choques múltiplos da chamada globalização, temos as consequências previsíveis (e imprevisíveis) das alterações climáticas.

A única conclusão que se pode tirar é que vivemos mesmo tempos conturbados. Só se tornam interessantes se estivermos alerta para não sermos apanhados desprevenidos com as suas mudanças repentinas e se soubermos compreender as suas fontes de conturbação para podermos agir sobre elas do modo que considerarmos mais apropriado em cada momento. Caso contrário, somos como palhinhas arrastadas na torrente.

José Manuel Catarino Soares


Notas

* Não se julgue que há qualquer exagero neste relato. É o que está escrito preto no branco no memorando de entendimento entre o “Mecanismo de Estabilidade Europeia”  e o governo grego (MEMORANDUM OF UNDERSTANDING BETWEEN THE EUROPEAN COMMISSION ACTING ON BEHALF OF THE EUROPEAN STABILITY MECHANISM AND THE HELLENIC REPUBLIC AND THE BANK OF GREECE, 8 September 2015). No seu ponto 4.4 (Privatisation) pode ler-se:

Privatisation can help to make the economy more efficient and to reduce public debt. While the privatisation process has come to a standstill since the beginning of the year, the Government has now committed to proceed with an ambitious privatisation program and to explore all possibilities to reduce the financing envelope, through an alternative fiscal path or higher privatisation proceeds. To preserve the on-going privatisation process  and maintain investor interest in key tenders, the Hellenic Republic commits to proceed with the on-going privatisation programme. (…) In line with the statement of the Euro Summit of 12 July 2015, a new independent fund (the “Fund”) will be established and have in its possession valuable Greek assets. The overarching objective of the Fund is to manage valuable Greek assets; and to protect, create and ultimately maximize their value which it will monetize through privatisations and other means.

Os anexos 1 e 2 deste memorando, assim como o documento intitulado Greece: technical memorandum of understanding (16 de Junho de 2016), pormenorizam todos os activos cuja privatização já estava em curso à data da assinatura do primeiro memorando (isto é, aqueles que vinham do governo anterior) e os que estão previstos no curto-médio prazo após a sua assinatura. Num dos pontos (How public assets ought to be utilised) de um projecto de memorando de Maio de 2015, pode ler-se ainda:

Bundling of assets that can be potentially envisaged as non-public into a central holding company to be separated from the government administration and to be managed as a private enterprise entity with the goal of maximising the value of its underlying assets. The Greek state will be the sole shareholder, but will not guarantee its liabilities or debt.
• Assets will include: ports, airports, land, real estate, energy assets, utilities assets e.g. water, gas, electricity grid, traffic infrastructure, licenses, offshore and onshore mining rights (gas, oil, and metals etc.), state owned companies and all other assets which can potentially be put to private management. Exceptions from this list would be only those assets relevant for the country’s security, public amenities, and its cultural heritage sites.
• The total value of these assets is currently estimated to be in excess of 70 billion euros – taking into account the depressed nature of all asset prices in Greece due to the ongoing crisis/negotiation.

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ANEXO:Notícia publicada pelo Diário de Notícias

 OE 2017
Schäuble. Portugal estava a ir bem até vir o Governo PS
           Diário de Notícias. Luís Reis Ribeiro 26.10.2016 / 18:08
        Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças da Alemanha.Fotografia: EPA/UWE ANSPACH

Ministro das Finanças alemão repete ataque ao governo. Já o tinha feito, em fevereiro, quando a crise do Deutsche Bank se agudizou.

Portugal foi muito bem-sucedido até ao novo Governo. Depois das eleições (…), [o novo Governo] declarou que não iria respeitar aquilo que tinha sido acordado pelo anterior”, declarou o ministro da Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, nesta quarta-feira, durante uma visita à Roménia. De acordo com o jornal online Eco, que cita a Bloomberg, o ministro alemão (da CDU, partido da direita cristã conservadora alemã) volta a atacar Portugal e o atual governo de forma contundente.

Já o anda a fazer, aliás, há algum tempo. A 12 de fevereiro, a margem de uma reunião do Ecofin (ministros das Finanças da UE), no mesmo dia em que os graves problemas financeiros do Deutsche Bank começaram a deitar por fora, fazendo afundar de forma aguda as ações da banca europeia. Nessa altura, desviou as atenções do caso Deutsche Bank, e disse que estava era preocupado com Portugal e que o país tinha “de fazer tudo para contrariar a incerteza nos mercados financeiros”. O governo do PS apoiado pelos partidos à esquerda (CDU e BE) apresentara há poucos dias (5 de fevereiro) o seu primeiro orçamento (OE2016). 

Mais tarde, no final de junho, o ministro alemão regressaria em força. Na altura disse que Portugal iria precisar de um novo programa de resgate, mas mais tarde acabou por corrigir ou suavizar as declarações iniciais, dizendo que se o país não cumprisse as regras é que necessitaria de um novo programa de ajustamento financiado pela Europa. 

Hoje, quarta-feira, 26 de outubro (e outra vez poucos dias após a apresentação no novo OE, neste caso o de 2017), Schäuble volta a atacar. Em declarações a vários jornalistas internacionais à margem de um evento em Bucareste, disse que já transmitiu a Mário Centeno, o ministro português, as suas preocupações relativamente à falta de garantias políticas e financeiras por parte do governo de António Costa no prosseguimento das políticas definidas pelo anterior governo de Pedro Passos Coelho em coordenação com a troika.

Ainda segundo o Eco.pt, o ministro alemão declarou: “alertei o nosso colega português”, “disse-lhe que se for por esse caminho [não fazer o que ficou combinado com o governo do PSD-CDS] iria assumir um grande risco, e eu não assumiria tal risco”. 

As declarações de Schäuble surgem um dia depois de a Comissão Europeia ter levantado dúvidas sobre o esboço do OE2017, mas no mesmo dia em que o comissário europeu, Pierre Moscovici (do PS francês), suavizou as críticas da véspera (que ele próprio abaixo-assinou), referindo que o OE parece estar conforme as regras europeias. “Parece estar dentro dos critérios que nós procuramos através das regras”, disse numa conferência de imprensa na capital belga. O governo tem até quinta-feira 27 de outubro para mandar mais informação à Comissão de forma a desfazer as dúvidas que ainda possam subsistir. Em meados de novembro, Bruxelas irá revelar a avaliação que faz ao novo OE (de Portugal e dos restantes países do euro) e passar um caderno de encargos (novas medidas) para corrigir os problemas que venha a detetar. Schäuble e Centeno voltam a encontrar-se a 7 de novembro (Eurogrupo) e 8 de novembro (Ecofin), em Bruxelas.

Esta semana Portugal foi visado duas vezes por autoridades alemãs. Depois de Schäuble foi a vez do diretor do fundo de resgate da União Europeia, o alemão Klaus Regling, a dizer que “o único país com que estou preocupado é Portugal”.

25 junho, 2016

Tema 3

Justiça Poética


Numa nota de um livro que estou a escrever, escrevi o seguinte:

Afirmamos que o inglês se converteu em língua franca, mas não neutral, da alta finança, dos negócios, da diplomacia, da tecnologia e até, infelizmente, da ciência à escala mundial, pelas seguintes razões. O latim alcançou uma posição semelhante nos séculos XVI e XVII, mas muito mais limitada, visto que se confinava à diplomacia e às disciplinas cognoscitivas (ciência inclusive) no chamado mundo ocidental e só se manteve nessa posição até aos inícios do século XIX. Era, porém, uma língua neutral, tanto do ponto de vista psicológico como do ponto de vista sociológico, visto que não conferia privilégios especiais a quem a tivesse como língua materna. Nessa altura, o latim já tinha cessado há muito de ser a língua materna de quem quer que fosse. Era, como se costuma dizer, uma língua «morta». Além disso, o latim alcandorou-se a essa posição peculiar de língua franca internacional precisamente na altura em que as línguas vernáculas da Europa conquistavam o direito de ombrearem com ela em todos os domínios. Em Portugal, esse processo inicia-se muito cedo, no fim do século 13, com o rei D. Dinis, e está já bem consolidado no fim do século XVI. O uso do latim como língua franca internacional implicava, portanto, um esforço comum de aprendizagem a todos os seus utentes. Não é o caso do inglês, que é a língua materna de centenas de milhões de pessoas, que assim se vêm dispensadas de aprender outras línguas se quiserem fazer-se entender por pessoas e povos com outros idiomas. Embora imensurável nos seus múltiplos efeitos, é difícil imaginar maior privilégio de casta do que este nos dias que correm.

Agora, o economista António Bagão Félix, no seu comentário sobre o Brexit, chama a atenção para um pormenor (que é, de facto, um ‘pormaior’) ligado a este acontecimento:

Uma curiosidade: a língua inglesa, língua franca de hoje, vai deixar de estar representada na UE (haverá a relativa excepção da Irlanda cujo verdadeiro idioma é o gaélico)! E esta hein? (28 menos 1 (R.U.) não é o mesmo que 27. Público. 24.06.2016)

Eu vejo nisto um caso auspicioso de justiça poética. Os britânicos (e muito em particular os ingleses) recuperaram a soberania do seu parlamento em Westminster. Em contrapartida, perderam uma parte considerável do privilégio de casta que lhes conferia o “direito” de não terem de aprender línguas estrangeiras para se fazerem entender quando saiem da sua ilha e atravessam o canal da Mancha, continuando a comportar-se quase como se estivessem em casa.

14 fevereiro, 2016

TEMA 3


Democratizar a Europa ou 

democratizar a União Europeia?


Foi criado em 9 de Fevereiro de 2016, um movimento pan-europeu para a democratização da União Europeia, intitulado DIEM25. Este movimento foi criado a partir de uma ideia lançada por Yanis Varoufakis, professor de economia política na Universidade de Atenas e, durante alguns meses, ministro das finanças do 1º governo do Syriza, antes da capitulação deste governo perante os ditames do Eurogrupo e da Troika. 

Julgo ser necessário e urgente democratizar a Europa, mas não creio ser possível democratizar a União Europeia (UE), uma instituição burocrática, radicalmente anti-democrática, irreformável. Assim sendo, a alternativa que é formulada num dos títulos do manifesto deste movimento (a democratização da UE ou a sua desintegração) exprime uma ilusão que a experiência, esperemos, se encarregará de dissipar. A única coisa que se pode afirmar é bem diferente: se o movimento para a democratização da Europa tiver êxito, terá como efeito abrir uma saída positiva à desintegração da UE.

Malgrado a debilidade teórica apontada, vale a pena conhecer e discutir as ideias do DIEM25, dado o seu inusitado carácter pan-europeu, razão pela qual reproduzo aqui, mais abaixo, a tradução portuguesa do Manifesto deste movimento, tal como foi publicada  no sítio electrónico www.diem25.org (pressionar neste link).



P.S. (2 de Janeiro de 2019). Acabo de ter conhecimento, com muito atraso, de um livro da autoria do filósofo grego Takis Fotopoulos, intitulado The New World Order in ActionGlobalization, the Brexit Revolution and the "Left"- Towards a Democratic Community of Sovereign Nations (Volume 1), 354 páginas. San Diego: California. Progressive Press, 2ª edição (16 Dezembro de 2016). Além de muitos outros temas de interesse, este livro contém, no seu capítulo 7, uma crítica cerrada e devastadora do DIEM25.


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A União Europeia será democratizada ou desintegrar-se-á!



DEMOCRACIA NA EUROPA

MOVIMENTO 2025

               (DiEM 25 : Democracy in Europe, Movement 2025)


UM MANIFESTO PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DA EUROPA


Apesar de todas as suas preocupações com a competitividade global, os fluxos migratórios e o terrorismo, só uma perspectiva apavora verdadeiramente os Poderes da Europa: a Democracia! Eles falam em nome da democracia mas só para a recusar, exorcizar e suprimir na prática. Eles procuram cooptar, evitar, corromper, mistificar, usurpar e manipular a democracia, para quebrar o seu ânimo e paralisar as suas possibilidades.

Porque o poder do povo, o governo do demos, é o pesadelo compartilhado:

pela burocracia de Bruxelas (com os seus mais de 10.000 lobistas)

pelas brigadas dos seus serviços de inspecção e da Troika que formaram conjuntamente com tecnocratas não eleitos de instituições europeias e internacionais

pelo poderoso Eurogrupo que não tem existência em qualquer lei ou tratado

pelos banqueiros dos bancos salvos da falência com o dinheiro dos contribuintes, os gestores de fundos e as oligarquias ressurgentes perpetuamente desdenhosas da arraia-miúda e da sua expressão organizada

pelos partidos políticos que fazem apelo ao liberalismo, à democracia, à liberdade e à solidariedade para traírem os seus princípios mais básicos quando chegam ao governo

pelos governos que alimentam uma desigualdade cruel ao desenvolverem uma austeridade autodestrutiva

pelos magnatas da comunicação social que transformaram a sua propaganda do medo numa forma de arte e numa magnífica fonte de poder e lucro

pelas empresas em conluio com agências públicas sigilosas que investem no mesmo medo para promover o secretismo e uma cultura de intimidação que verguem a opinião pública às suas imposições.

A União Europeia foi uma realização excepcional, que juntou pacificamente povos europeus que falam línguas diferentes e estão imersos em culturas diferentes, provando que era possível criar um quadro comum em todo um continente que ainda não há muito tempo era um albergue do chauvinismo mortífero, do racismo e da barbárie. A União Europeia poderia ter sido o conhecido « farol na escarpa »  que mostrasse ao mundo como é que a paz e a solidariedade podem ser salvas das goelas de séculos de conflito e fanatismo.

Lamentavelmente, hoje, uma burocracia comum e uma moeda comum dividem os povos europeus que tinham começado a unir-se, apesar das suas línguas e culturas diferentes. Uma confederação de políticos míopes, de funcionários eivados de uma concepção simplória da economia e de peritos financeiros incompetentes submetem-se servilmente aos decretos dos conglomerados industriais e financeiros, alienando os Europeus e acirrando uma perigosa reacção antieuropeia. Povos orgulhosos estão a ser virados uns contra os outros. O nacionalismo, o extremismo e o racismo estão de novo a ser despertados.  

No cerne da nossa União Europeia em desintegração reside um embuste e é ele o culpado: um processo decisório opaco, altamente político e que procede de cima para baixo é-nos apresentado como sendo “apolítico”, “técnico”, “processual” e “neutro”. O seu propósito é impedir que os Europeus exerçam o seu controlo democrático sobre o seu dinheiro, as suas finanças, as suas condições de trabalho, o seu meio ambiente. 

O preço a pagar por este embuste não é apenas o fim da democracia, são também políticas económicas medíocres. 

As economias da Eurozona têm vindo a abeirar-se a passo de marcha do abismo da austeridade competitiva cujo resultado é uma recessão permanente nos países mais fracos e um investimento diminuto nos países nucleares

Os Estados membros da UE que estão fora da Eurozona estão desorientados, procurando inspiração e parceiros em lugares suspeitos, onde são por via de regra acolhidos jubilosamente com tratados opacos e coercivos de comércio livre que minam a sua soberania

Uma desigualdade sem precedentes, uma esperança em declínio e a misantropia florescem por toda a Europa.

Duas medonhas opções dominam tudo:

o recuo para o casulo protector dos nossos Estados-nações
ou a rendição à zona imune à democracia de Bruxelas 

Tem de haver outro caminho. E há!

É o caminho ao qual a Europa oficial resiste com todas as fibras da sua mentalidade autoritária.

Um surto de democracia!

O nosso movimento, DiEM25, procura suscitar esse surto.

A força motivadora do DiEM25 é uma ideia simples e radical :

Democratizar a Europa! Porque, de duas uma: ou a UE será democratizada, ou desintegrar-se-á!

O nosso objectivo de democratizar a Europa é realista. Não é mais utópico do que foi a construção inicial da União Europeia. Na verdade, é menos utópico do que a tentativa de manter viva a actual União Europeia antidemocrática e em fragmentação. 

O nosso objectivo de democratizar a Europa é extremamente urgente, porque, sem um começo rápido, pode ser impossível neutralizar em tempo útil a resistência institucionalizada a este propósito, antes de a Europa chegar ao ponto de não retorno. Damos-lhe uma década, até 2025.

Se não formos capazes de democratizar a Europa no prazo máximo de uma década, se os poderes autocráticos da Europa conseguirem paralisar a sua democratização, então a Europa desmonorar-se-á sob o peso da sua hubris [arrogância que leva aos excessos fatais], estilhaçar-se-á e a sua queda causará inenarráveis provações em toda a Europa − e não apenas na Europa.

POR QUE É QUE A EUROPA ESTÁ A PERDER A SUA INTEGRIDADE E A SUA ALMA?


Nas décadas que se seguiram ao fim da 2ª guerra mundial, durante as quais a Europa foi inicialmente construída, as culturas nacionais foram revitalizadas num espírito de internacionalismo, de esbatimento das fronteiras, de prosperidade partilhada e de elevação dos padrões de vida que aproximaram os Europeus uns dos outros. Mas o ovo da serpente estava no âmago do processo de integração. 

De um ponto de vista económico, a União Europeia  começou como um cartel de indústrias pesadas (que cooptou mais tarde proprietários agrícolas), determinado a fixar os preços e redistribuir os seus lucros oligopolistas através da sua burocracia em Bruxelas. O cartel emergente e os seus admnistradores sediados em Bruxelas temiam o demos e desprezavam a ideia de governo-pelo-povo.

Paciente e metodicamente, instalou-se um processo de despolitização de toda a tomada de decisões, cujo resultado foi uma implacável deriva no sentido da expulsão do demos e da democracia e da opacidade crescente de todo o processo decisório, transformando-o num fatalismo pseudo-democrático avassalador. Os políticos nacionais foram generosamente recompensados pela sua aquiescência em tornar a Comissão Europeia, o Conselho da UE, o Ecofin, o Eurogrupo e o Banco Central Europeu em zonas imunizadas contra a política. Toda e qualquer pessoa que se opusesse a este processo de despolitização era rotulada de antieuropeísta e tratada como se fosse uma chocante nota dissonante. 

Assim nasceu o embuste que reside no cerne da União Europeia, alimentando um empenhamento institucional em políticas que geram resultados económicos depressivos e sofrimentos escusados. Entretanto, foram abandonados princípios simples que eram outrora compreendidos por uma Europa mais confiante. 

Regras que deveriam existir para servir os Europeus e não o inverso

Moedas que deveriam ser instrumentos e não fins em si mesmos

Um mercado único só é compatível com a democracia se tiver defesas comuns dos Europeus mais frágeis e do meio ambiente que sejam democraticamente escolhidas e construídas

A democracia não pode ser um luxo reservado aos credores mas recusado aos devedores

A democracia é essencial para limitar as piores tendências, autodestrutivas, do capitalismo e para abrir uma janela para novas visões de harmonia social e desenvolvimento sustentável.

Em resposta ao inevitável malogro da economia social da Europa cartelizada em conseguir sair da Grande Recessão pós-2008, as instituições da UE que causaram esse malogro têm vindo a recorrer a uma escalada de autoritarismo. Quanto mais elas asfixiam a democracia, menos legítima se torna a sua autoridade política, mais fortes se tornam as forças da recessão económica e maior se torna a sua necessidade de mais autoritarismo. Assim, os inimigos da democracia ganham um poder renovado ao mesmo tempo que perdem legitimidade e que confinam a esperança e a prosperidade a muito poucos (que só podem usufruir delas atrás dos portões e das paliçadas necessários para os escudar do resto da sociedade). 

Este é o processo opaco através do qual a crise da Europa está a virar uns contra os outros os povos dentro das suas fronteiras e a amplificar o chauvinismo e a xenofobia que já existiam. A privatização da ansiedade, o medo do “outro”, a nacionalização da ambição e a renacionalização da política trazem consigo a ameaça de uma desintegração tóxica dos interesses comuns, de que a Europa só pode ser a vítima. A deplorável reacção da Europa às crises da banca e da dívida, à crise dos refugiados, à necessidade de uma política comum em matéria de relações externas, migração e antiterrorismo, são outros tantos exemplos do que pode acontecer quando a solidariedade perde o seu significado.

O dano causado à integridade da Europa pelo esmagamento da primavera de Atenas e pela subsequente imposição de um programa de “reforma” económica que foi desenhado para falhar

A proverbial assunção segundo a qual, sempre que um orçamento de Estado deva ser reforçado ou um banco resgatado, são as pessoas de mais fracos recursos que devem pagar os desmandos dos rentistas mais ricos  

A constante tendência para mercantilizar o trabalho e expulsar a democracia dos locais de trabalho

O escandaloso lema “no nosso quintal é que não!” adoptado pela maioria dos Estados membros da UE em relação aos refugiados que desembarcam nas suas praias, ilustra o modo como um modelo falhado de governação incentiva o declínio ético e a paralisia política e mostra também que a xenofobia em relação aos não-Europeus é um sucedâneo da quebra da solidariedade intra-europeia.  

A expressão risível que obtemos quando juntamos as três palavras: “política”, “externa”, “europeia [Nota dos tradutores: as iniciais EFP (european foreign policy) constituem em inglês um acrónimo com um significado de cariz sexual]

A facilidade com que os governos europeus decidiram, depois dos horrendos atentados de Paris, que a solução está em reconstruir as fronteiras, quando a maioria dos atacantes eram cidadãos europeus − um outro sinal do pânico moral que se está a apoderar de uma União Europeia incapaz de unir os seus cidadãos para forjar respostas comuns a problemas comuns. 

O QUE É QUE TEM DE SER FEITO? O NOSSO HORIZONTE


O realismo exige que trabalhemos para atingir marcos definidos dentro de um período de tempo realista. É por isso que o DiEM25 se propõe levar a cabo quatro grandes mudanças, a intervalos regulares, no sentido de dar origem a uma Europa totalmente democrática e funcional por alturas de 2025.

Ora, hoje em dia, os Europeus sentem-se por toda a parte decepcionados com as instituições da União Europeia. De Helsínquia a Lisboa, de Dublin a Creta, de Leipzig a Aberdeen. Os Europeus sentem que se aproxima rapidamente uma escolha decisiva. A escolha entre a democracia autêntica e a desintegração insidiosa. Temos de nos decidir a unirmo-nos para garantir que a Europa faça a escolha óbvia: a democracia autêntica!

Quando questionados sobre aquilo que queremos e quando o queremos, respondemos:

NO IMEDIATO: Total transparência nos processos de decisão.

Transmissão em directo das reuniões do Conselho Europeu, do Ecofin, do ITF [imposto sobre as transacções financeiras] e do Eurogrupo

Publicação das Actas das reuniões do Conselho do Banco Central Europeu no prazo de poucas semanas após as reuniões terem tido lugar

Colocação na Rede Global de todos os documentos pertinentes em negociações cruciais (por exemplo, o APT [acordo de parceria transatlântica de comércio e investimento], empréstimos “de resgate”, o estatuto do Reino Unido) que afectem qualquer faceta do futuro dos cidadãos europeus

Registo obrigatório dos lobistas, incluindo os nomes dos seus clientes e respectivas remunerações, bem como um registo das reuniões com funcionários (tanto eleitos como não eleitos)

DENTRO DE DOZE MESES: abordar a crise económica em curso utilizando as instituições existentes e no seio dos Tratados da UE existentes

A crise em curso na Europa desenrola-se simultaneamente em cinco esferas:

Dívida pública
Banca
Investimento Inadequado 
Migração
Pobreza Crescente

As cinco esferas são actualmente deixadas nas mãos de governos nacionais impotentes para agir sobre elas. O DiEM25 apresentará propostas de políticas de europeização do conjunto das cinco esferas, limitando simultaneamente os poderes discricionários de Bruxelas e devolvendo o poder aos parlamentos nacionais, às assembleias regionais, às autarquias e às comunidades.

As políticas propostas serão dirigidas a reimplantar as instituições existentes (através de uma reinterpretação criativa dos tratados e dos quadros existentes), de modo a estabilizar as crises da dívida pública, do investimento inadequado e da pobreza crescente.

DENTRO DE DOIS ANOS: Assembleia Constituinte

Os povos da Europa têm direito a reflectir sobre o futuro da União e o dever de transformar a Europa (por volta de 2025) numa democracia de pleno direito, com um Parlamento soberano que respeite a autodeterminação nacional e partilhe o poder com os parlamentos nacionais, as assembleias regionais e as autarquias locais.

Para alcançar o proposto, é necessário convocar uma assembleia de representantes. O DiEM25 promoverá uma Assembleia Constituinte formada por representantes eleitos na base de listas transnacionais. Hoje em dia, quando as universidades se candidatam a fundos de investigação de Bruxelas, são obrigadas a formar alianças entre nações. De forma semelhante, a eleição para a Assembleia Constituinte deverá exigir listas de candidatos pertencentes a uma maioria de países europeus. A Assembleia Constituinte que daí resulte será empossada para decidir de uma futura constituição democrática que substitua todos os Tratados Europeus existentes dentro de uma década.

POR ALTURAS DE 2025: Ratificação das decisões da Assembleia Constituinte

QUEM TRARÁ A MUDANÇA ?


Nós, os povos da Europa, temos o dever de resgatar o controlo sobre a nossa Europa das mãos de “tecnocratas” irresponsáveis, políticos complacentes e instituições pardacentas.

Nós somos oriundos de todas as partes do continente e estamos unidos por diferentes culturas, línguas, sotaques, filiações partidárias, ideologias, cores de pele, identidades de género, credos religiosos e concepções de uma sociedade justa.

Nós formamos o DiEM25 no intento de nos afastarmos de uma Europa de “Nós somos os Governos” e “Nós somos os Tecnocratas” para uma Europa de “Nós, os povos da Europa”.

Os nossos quatro princípios:

Nenhum povo europeu pode ser livre enquanto a democracia de outro for violada

Nenhum povo europeu pode viver com dignidade enquanto ela for negada a outro

Nenhum povo europeu pode aspirar à prosperidade enquanto outro for empurrado para a insolvência permanente e a depressão

Nenhum povo europeu pode crescer sem bens de consumo básicos para os seus cidadãos mais vulneráveis, desenvolvimento humano, equilíbrio ecológico e a determinação de se libertar de combustíveis fósseis num mundo que mude os seus costumes – não o clima do planeta

Juntamo-nos a uma tradição magnífica de concidadãos europeus que lutaram durante séculos contra a “máxima” de que a democracia é um luxo e de que os fracos têm de sofrer porque sim.

Com os nossos corações, as nossas cabeças e as nossas vontades dedicados a estes compromissos, e determinados a fazer a diferença, declaramos:

O NOSSO COMPROMISSO


Apelamos os nossos concidadãos europeus a juntarem-se a nós daqui para a frente, a fim de criar o movimento europeu a que chamamos DiEM25.

Lutarmos juntos para democratizar a União Europeia, contra o situacionismo europeu que despreza profundamente a democracia

Acabar com a conversão de todas as relações políticas em relações de poder mascaradas de decisões meramente técnicas

Subjugar a burocracia da UE à vontade dos povos europeus soberanos

Desmantelar o habitual domínio do poder económico sobre a vontade dos cidadãos

Repolitizar as regras que regem o nosso mercado e a nossa moeda comuns 

Consideramos obsoleto o modelo dos partidos nacionais que formam alianças inconsistentes ao nível do Parlamento Europeu. Embora a luta pela democracia a partir das bases (a nível local, regional ou nacional) seja necessária, ela torna-se no entanto insuficiente se for conduzida sem uma estratégia internacionalista em direcção a uma coligação pan-europeia de democratização da Europa. 

Os democratas europeus têm de se juntar primeiro, forjar uma agenda comum e depois encontrar maneiras de a ligar às comunidades locais, tanto a nível regional como a nível  nacional.

O nosso mais vasto desígnio de democratização da Europa entrecruza-se com a ambição de promover o governo autónomo (económico, político e social) a nível local, municipal, regional e nacional; a abertura dos corredores do poder ao público; o acolhimento de movimentos sociais e cívicos; a emancipação de todos os níveis da governação relativamente ao poder burocrático e económico.

Somos inspirados por uma Europa da Razão, da Liberdade, da Tolerância e da Imaginação, tornada possível pela Transparência abrangente, a Solidariedade efectiva e a Democracia autêntica.

Aspiramos a:

Uma Europa Democrática, na qual toda a autoridade política resulte dos povos soberanos da Europa

Uma Europa Transparente, na qual todas as tomadas de decisão decorram sob o escrutínio dos cidadãos

Uma Europa Unida, cujos cidadãos tenham tanto em comum para lá das fronteiras nacionais como dentro delas

Uma Europa Realista, que se atribua a si própria a tarefa de executar reformas democráticas radicais, e todavia realizáveis

Uma Europa Descentralizada, que utilize o poder central para maximizar a democracia nos locais de trabalho, nas cidades, regiões e estados

Uma Europa Pluralista de regiões, etnias, credos, nações, línguas e culturas

Uma Europa Igualitária, que celebre a diferença e termine com a discriminação baseada em género, cor da pele, classe social e orientação sexual

Uma Europa da Cultura, que assegure a diversidade cultural dos seus povos e promova, não apenas a sua preciosa herança, mas também o trabalho dos artistas, músicos, escritores e poetas dissidentes

Uma Europa Social, que reconheça que a liberdade necessita, não apenas a ausência de interferência, mas também a posse de bens básicos que libertem da míngua e da exploração

Uma Europa Produtiva, que dirija o investimento no sentido de uma prosperidade partilhada e verde

Uma Europa Sustentável, que viva dentro dos limites dos recursos do planeta, minimizando o seu impacto ambiental e preservando tanto quanto possível os combustíveis fósseis na Terra

Uma Europa Ecológica, comprometida com a genuína transição verde no mundo todo

Uma Europa Criativa, que desencadeie os poderes inovadores da imaginação dos seus cidadãos

Uma Europa Tecnológica, que coloque as novas tecnologias ao serviço da solidariedade

Uma Europa com consciência histórica, que procure um futuro brilhante sem se esconder do passado

Uma Europa Internacionalista, que trate os não-Europeus como fins-em-si-próprios

Uma Europa de Paz que desagrave as tensões a leste e no Mediterrâneo, agindo como baluarte contra aos cantos de sereia do militarismo e do expansionismo

Uma Europa Aberta, que fervilhe com as ideias, as pessoas e a inspiração oriundas de todo o mundo, reconhecendo muros e fronteiras como sinais de fraqueza que espalham insegurança em nome da segurança

Uma Europa Libertada, em que o privilégio, o preconceito, a privação e a ameaça de violência murchem, permitindo aos Europeus nascerem para papéis menos estereotipados e gozarem de oportunidades iguais a fim de desenvolverem o seu potencial e terem maior liberdade na escolha de parceiros na vida, no trabalho e na sociedade.

       Carpe DiEM25     
                                                             
       www.diem25.org