Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

29 novembro, 2020

Esta é 9ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto).

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  Como o SARS-CoV-2 se propaga à boleia dos nossos comportamentos habituais mais arreigados

José Catarino Soares

 

1. Introdução

Este artigo é um complemento do anterior: “A chave do êxito no combate à pandemia, até estar disponível uma vacina segura e eficaz, está a montante da rede hospitalar do SNS”, publicado neste blogue em 17 de Novembro último.

Nesse artigo, lembrei e comentei as cinco medidas básicas de autodefesa individual e preventiva que podemos e devemos adoptar para impedir a propagação do vírus SARS-CoV-2 e a doença que ele provoca (a COVID-19), [1] até estar disponível uma vacina segura e eficaz (ou várias vacinas seguras e eficazes) e até estar concluída a vacinação em massa do grosso da população, começando pelos grupos de maior risco. São elas:  

1. Manter um distanciamento físico de 2 metros das pessoas com quem não coabitamos, quer se esteja em pé ou sentado, a andar ou parado, dentro ou fora de casa.

2. Uso de máscara de protecção respiratória cobrindo o nariz e a boca, em todos os espaços públicos fechados (como autocarros, metro, comboios, restaurantes, cafés, lojas, centros comerciais, cinemas, teatros, escolas, politécnicos, universidades, empresas, repartições públicas, etc.) e em todos os espaços públicos abertos, mas com muita gente aglomerada e onde não seja respeitada, ainda que temporariamente, a distância mínima (esplanadas, miradouros, praças apinhadas, anfiteatros ao ar livre, trilhos e percursos pedestres, pontes pedonais, passadiços, estádios de futebol, etc.).

3. Uso de viseira ou de óculos-viseira, como complemento da máscara.

4. Etiqueta respiratória (espirrar e tossir para um lenço de papel descartável que cubra a boca e o nariz ou para a dobra do braço, oposta ao cotovelo).

5. Lavagem frequente das mãos com água e sabão ou – à falta de água e sabão (que é sempre a melhor solução) – com gel desinfectante cuja concentração alcoólica varie entre 60% e 80%. 

O propósito deste artigo é responder à seguinte questão (Q):

Q: Porque é que é (aparentemente) tão difícil fazer o que parece ser tão fácil — cumprir escrupulosa e consistentemente estas cinco medidas básicas de autodefesa preventiva contra a infecção pelo vírus SARS-CoV-2?

A pergunta é pertinente, tendo em vista os milhares de novas pessoas infectadas com o vírus SARS-CoV-2, as centenas de pessoas hospitalizadas e as dezenas de óbitos por COVID-19 que todos os dias são registadas em Portugal desde Outubro.

O presidente da República, o governo e os partidos com assento parlamentar repetem amiúde o elogio ao «comportamento exemplar dos portugueses» perante esta pandemia. Mas este diagnóstico não tem correspondência com os factos. Há, certamente, muitos portugueses que se comportam exemplarmente neste particular. Mas há também, certamente, muitos que o não fazem. Se assim não fosse os números da propagação da pandemia não seriam o que são e são muito maus [2].

Não sei (e julgo que ninguém saberá) quantificar quantos portugueses se comportam exemplarmente (cumprindo as 5 medidas de autodefesa preventiva supramencionadas) e quantos o não fazem. Mas isso também não é o que mais importa para o caso em apreço. O que verdadeiramente importa ter bem presente é este facto iniludível: seja qual for o número dos portugueses (e estrangeiros residentes em Portugal) que não cumprem as 5  regras básicas, são suficientes para provocar o descalabro que todos conhecemos da situação pandémica e para  manter os que cumprem reféns das medidas de recolher obrigatório e de encerramento obrigatório selectivo de algumas actividades económicas que a  imprevidência dos incumpridores suscita e justifica.

Daí, não só a pertinência, mas também a importância prática da questão Q.

2. Foco

Vou pôr de parte, neste artigo, (i) as pessoas que negam a existência do vírus SARS-CoV-2 e a doença COVID-19 que ele provoca; (ii) as que desvalorizam a sua gravidade (“é uma gripezinha”, “é um vírus como tantos outros”, etc.) e (iii) as que vêem em ambos (no vírus e na doença associada) o resultado de uma tenebrosa conspiração urdida por potestades malévolas e todo-poderosas. 

As crenças destas pessoas e o comportamento que tais crenças induzem merecem uma análise específica, necessariamente demorada, que ficará para outra oportunidade. Aqui ocupar-me-ei apenas das pessoas que estão cientes da existência pandémica deste vírus e da gravidade da doença que ele provoca e que, apesar disso, não só não cumprem escrupulosa e consistentemente as medidas necessárias para combater esta pandemia, como também não sentem rebates de consciência por esse incumprimento.  

3. O condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações perigosas

O linguista Benjamin Lee Whorf, prematuramente falecido com 44 anos, vítima de cancro, deixou-nos, há quase um século, uma chave teórica para compreender este paradoxo.

Benjamin Lee Whorf (1897-1941)

3.1. Um linguista na pele de um inspector de incêndios

Whorf era um engenheiro químico e ganhava a sua vida como inspector de incêndios numa companhia de seguros em Hartford, a capital do Estado americano de Connecticut, Nova Inglaterra, EUA. Era nas horas vagas que se dedicava à linguística de alma e coração. Num dos seus ensaios mais originais, The Relation of Habitual Thought and Behavior to Language (1939) [“A relação do pensamento e do comportamento habituais com a linguagem”], apoiou-se na sua experiência de inspector de incêndios para fazer uma observação do maior interesse para o assunto deste artigo.

Whorf leu e analisou centenas de relatórios sobre as circunstâncias que envolviam o deflagrar de incêndios e, em muitos casos, de explosões. De início, a análise de Whorf concentrou-se nas condições puramente físicas, tais como instalações eléctricas defeituosas, presença ou falta de espaços arejados entre tubos de metal e peças de madeira, etc. e apresentava os resultados dessa maneira. Na verdade, a análise de Whorf era feita sem que alguma vez lhe tivesse passado pela cabeça que outros significados pudessem ser revelados. Porém, à medida que o tempo foi passando, tornou-se evidente para Whorf que não só a situação física como tal, mas o significado dessa situação para as pessoas era, por vezes, um factor, através do comportamento das pessoas, no começo de um incêndio ou na ocorrência de uma explosão. E este factor de significado era mais claro quando se tratava de um significado linguístico vinculado ao nome ou à descrição linguística comummente aplicada à situação.

Assim, por exemplo, à volta de um armazém do que se designava por “tambores de gasolina” o comportamento tendia a ser de um certo tipo – isto é, as pessoas tendiam a agir com grande cuidado – ao passo que à volta de um armazém do que se designava por “tambores de gasolina vazios” o comportamento tendia a ser diferente — descuidado, com pouca inibição de fumar ou de atirar beatas para o chão. No entanto, os tambores “vazios” são talvez os mais perigosos porque contêm vapor explosivo. Do ponto de vista físico, a situação era perigosa, mas a sua análise linguística, em conformidade com a analogia vulgar, levava as pessoas a empregarem a palavra “vazio”, a qual inevitavelmente sugere a ausência de perigo.

3.2. Vazio -> inofensivo

A palavra “vazio/vazia” é usada em duas acepções linguísticas: (1) como um sinónimo virtual de “nulo e desocupado, negativo, inerte”; (2) aplicado a situações físicas sem ter em conta a natureza do que está ou esteve no contentor — e.g., vapor, vestígios de líquido ou lixo esparso. A situação é nomeada numa acepção (2) e é em seguida transposta e vivenciada de maneira a fazer jus à outra (1).

Esta é a fórmula geral ou o mecanismo do condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações perigosas — uma descoberta de Whorf. O seu artigo dá muitos outros exemplos ilustrativos, mas julgo que este será suficiente para se entender o seu teor e alcance.

4. Como o SARS-CoV-2 se propaga à boleia dos nossos comportamentos mais arreigados

Na esteira de Whorf, conjecturo que o factor determinante no êxito do SARS-CoV-2 em se propagar de pessoa para pessoa não é apenas a sua extrema pequenez, mas o condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais dos seres humanos em situações extremamente propícias à sua propagação e que são, por conseguinte, as mais perigosas. Vejamos então separadamente estes dois aspectos.

4.1. O tamanho dos viriões do SARS-CoV-2

Os viriões do SARS-CoV-2 são partículas esféricas demasiado pequenas para poderem ser vista a olho nu. Não podem sequer ser vistas num microscópio óptico. Só podem ser vistas com a ajuda de um potente microscópio electrónico de varrimento ou de transmissão. A razão para isso é o seu diâmetro, que varia entre os 60 nm (nanómetros) e os 140 nm, ou, equivalentemente, entre os 0,06 μm (micrómetros) e os 0,14 μm. O diâmetro médio de um virião é de aproximadamente 125 nm (0,125 μm). Um nanómetro é uma unidade de medida de comprimento do sistema métrico, correspondente a 1×10−9 metro ou 0,000000001 metro (um milionésimo de milímetro ou um bilionésimo de metro).

O coronavírus SARS-CoV-2

O seguinte exemplo poderá ajudar a ter uma ideia mais concreta do nanómetro como unidade de medida e do tamanho do novo coronavírus medido em nanómetros. O fio de cabelo humano (do cabelo liso, para simplificar) tem geralmente 60 a 120 micrómetros de diâmetro (vulgo, espessura). Um micrómetro equivale a 1.000 nanómetros. Um fio de cabelo tem, portanto, entre 60.000 e 120.000 nanómetros de diâmetro. Por conseguinte, precisaríamos de cortar esse fio 1.000 vezes no sentido do comprimento para fazer um fio que tivesse o tamanho de um virião de SARS-CoV-2.

Outro exemplo: uma formiga mede 5.000 micrómetros (= 5 milhões de nanómetros). Ora, a entidade material mais pequena que podemos ver a olho nu mede 40 micrómetros (= 40.000 nanómetros). Assim, para todos os efeitos práticos, no nosso quotidiano, os viriões do SARS-CoV-2 são invisíveis.

4.2. Invisível -> incorporal -> inofensivo

É bem conhecida a sinonímia virtual que o senso comum estabelece entre a invisibilidade e a incorporalidade (ou imaterialidade). O que é invisível é incorporal (imaterial). Por outro lado, o senso comum considera que o que distingue as entidades materiais (vulgo, coisas) – como, por exemplo, pedras, montanhas, florestas, cães, pássaros, pessoas, famílias, livros, escolas, fábricas, astros – das entidades imateriais (ou ideacionais) – como, por exemplo, mitos, construtos (conceitos, noções, proposições, teorias), significados, entes matemáticos (números, figuras geométricas, equações diferenciais, etc.) – é que as primeiras têm massa e as segundas não. Mas isso não é verdade.

Por isso, convém esclarecer várias coisas antes de prosseguirmos.

A primeira é que toda a entidade material, excepto o caso do Universo ou Cosmo no seu todo, é uma componente de um sistema. A segunda é que qualquer sistema composto de entidades materiais, é também material [3], desde o núcleo interno da Terra até à crosta terrestre, desde a biosfera à sociedade, desde a Terra como um todo ao Universo (passando pelo sistema solar, a Via Láctea, os aglomerados de galáxias, os enxames ou superaglomerados galácticos, as grandes muralhas de superaglomerados galácticos). A terceira é que ‘matéria’ e ‘massa’ são noções bem distintas. A massa é, sem dúvida, uma propriedade de muitas entidades materiais (vulgo, coisas). Mas há muitas entidades materiais que são desprovidas de massa e isso sucede na própria física. Por exemplo, os campos electromagnético e gravitacional, os fotões, os gluões, os neutrinos e os hipotéticos gravitões são entidades materiais sem massa.

O senso comum opera com a noção de materialidade (corporalidade) da física clássica — da física pré-relativista e pré-quântica. Na física clássica é material (corporal) o que possui massa e, frequentemente também, extensão, forma e mobilidade. É verdade que a mecânica clássica emprega o conceito de ponto material (ou massa puntiforme), o qual tem massa, embora infinitesimal. Mas isso sempre foi entendido como um modelo simplificado de um corpo material extenso [4] — como, por exemplo, quando se representa a Terra como um ponto na sua trajectória em torno do Sol, ou a Lua na sua trajectória em torno da Terra. De 1750 em diante, até aos anos 1910, os líquidos e os gases, embora não fossem sólidos, eram encarados como sendo constituídos por partículas sólidas – átomos ou moléculas – uma ideia que a experiência de Rutherford de 1911 veio refutar: os átomos são penetráveis e em grande medida ôcos porque a sua massa concentra-se no núcleo. 

Na concepção do senso comum, (1) o que é invisível é incorporal, imaterial, e (2) o que é imaterial não constitui uma ameaça séria para a nossa saúde ou para a nossa existência, (3) porque só as entidades materiais (ou seja, dotadas de massa) nos podem magoar. Contraste-se, por exemplo, o ar que respiramos com uma zaragatoa enfiada no nariz, se quisermos ter uma ideia mais concreta do género de entidades envolvidas em (1) e (3), respectivamente, neste tipo de raciocínio.

Para simplificar esta cadeia de inferências — mas tornando mais fácil memorizá-la — podemos anotá-la assim (onde M= mecanismo):

(M1): invisível -> incorporal -> inofensivo

Dada a sua pequenez, o vírus SARS-CoV-2 beneficia, como vimos, de uma invisibilidade assegurada que o habilita, por sua vez, a participar no mecanismo de condicionamento linguístico do comportamento habitual em situações perigosas caracterizada pela conjugação de (1), (2) e (3) — três proposições todas elas falsas.  

4.3. Família, amigos, colegas -> zona de confiança mútua -> segurança

Este mecanismo, porém, não é suficiente por si só para dar uma resposta plausível à questão Q enunciada na Introdução. Isto, porque há seguramente pessoas que estão cientes de que o vírus é perigoso — ou pelo menos que admitem teoricamente que ele pode ser perigoso, sem necessariamente entenderem as razões da sua perigosidade — apesar de ser invisível a olho nu e que, no entanto, não cumprem, em muitas circunstâncias, algumas das regras básicas de autodefesa preventiva contra a infecção pelo SARS-CoV-2, principalmente as regras 1 e 2 (cf. Introdução), sem terem rebates de consciência.

Deverá haver, portanto, conjecturo, outro mecanismo de condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações perigosas que opere conjuntamente com o mecanismo identificado na secção 4.2. de modo a fornecer-nos uma resposta plausível à questão Q.

Suponho que esse segundo mecanismo seja o seguinte:

(1) Quando estamos com pessoas da nossa família que nos querem bem, com amigos e mesmo com colegas de escola/trabalho com quem nos damos bem, (2) estamos numa zona de confiança mútua, (3) logo de segurança (sanitária ou outra), (4) onde nada temos a temer. (5) Podemos, pois, relaxar as medidas de autoprotecção preventiva contra o novo coronavírus.

Note-se que as proposições (1) e (2) não levantam problemas de veracidade vs falsidade. Mas isso já não acontece com as proposições (3), (4) e (5), cuja veracidade depende do preenchimento de múltiplos requisitos, da realização concomitante de múltiplas condições. Se esses requisitos não estiverem preenchidos, se essas condições não estiverem realizadas, a cadeia de inferências (1), (2), (3), (4), (5) rompe-se e os seus elos dispersam-se.

Para simplificar esta cadeia de inferências — mas tornando mais fácil por outro lado a sua memorização — podemos anotá-la assim (onde M= mecanismo):

(M2): família, amigos, colegas -> zona de confiança mútua -> segurança

4.4. Comportamentos arreigados

Julgo que são estes dois mecanismos (M1 e M2) que operam conjugadamente para levar ao incumprimento (sem rebates de consciência) das 5 medidas básicas de autodefesa preventiva contra a propagação SARS-CoV-2.  E eles operam tanto mais eficazmente quanto estão em causa os nossos comportamentos arreigados.

O jornal Público fez três excelentes reportagens sobre três surtos de infecção — numa obra de construção civil, numa fábrica e num lar para pessoas idosas — com a ajuda e com os dados que lhe foram fornecidos pelas equipas de saúde pública das admnistrações regionais de saúde. Vou aqui deter-me no caso da obra de construção civil (“Raio-x a três surtos: as boleias e o convívio espalharam a COVID-19 nesta obra”. Público, 11 de Novembro de 2020), visto que permite ilustrar muito bem o modus operandi dos dois mecanismos (M1 e M2).

Tratou-se de uma obra de remodelação de um hotel de um concelho de Lisboa, em Maio. Pela remodelação desse hotel passaram 119 trabalhadores de diferentes ofícios, 45 dos quais foram infectados, antes da obra ser encerrada, 19 dias depois do primeiro caso ter sido confirmado.

Lembremo-nos de que o uso de máscara respiratória começou a ser obrigatório em locais fechados e movimentados no mês de Abril. Porém — segundo informou o médico Vítor Veríssimo, do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Lisboa Central, que acompanhou de perto este surto — muitos trabalhadores desta obra, que decorreu em Maio, não respeitavam esta regra. «Tinham indicação da parte da Medicina do Trabalho para o fazer, mas não as usavam regularmente

Tudo começou por um trabalhador infectado que foi trabalhar, apesar de já ter sintomas da COVID-19, e que infectou outros, que por sua vez infectaram outros e assim por diante até perfazer 45 trabalhadores infectados. As causas explicativas desta cadeia de infecções, segundo as autoridades de saúde, são três: (1) desleixo no uso de máscara respiratória, (2) partilha de boleias em carros e carrinhas, (3) refeições tomadas em conjunto (com conversa à mistura) sem respeitar o distanciamento físico de segurança.

24 de Março de 2020, fábrica Donfeng de viaturas de passageiros, na cidade de Wuhan, província de Hubei, China. Trabalhadores tomam uma refeição respeitando escrupulosamente o distanciamento físico de dois metros de distância uns dos outros. Foto Xinhua.

Além de, em certos casos, a utilização de máscara não ser respeitada, o distanciamento também não o era, principalmente nas pausas para almoços. “Apesar de o espaço ser bastante arejado e de os trabalhadores estarem dispersos por vários espaços do edifício, quase que simulando um ambiente ao ar livre, vários funcionários juntavam-se para as pausas de almoço e do lanche”, descreve o médico [Vítor Veríssimo].

Outra das razões apontadas pelo médico é que o ambiente de trabalho, por ser aparentemente arejado, muitas das vezes ao ar livre ou com poucas janelas, aliado ao facto de poder existir uma “menor literacia para a saúde neste grupo” (quando comparado, por exemplo, com um surto num lar ou numa empresa), “facilita o alívio das medidas preventivas previstas, como a utilização regular da máscara”.

Eis alguns exemplos concretos que os serviços de medicina do trabalho/ saúde ocupacional conseguiram reconstituir nessa obra:

Dois profissionais responsáveis pela condução das empilhadoras (ao ar livre) que partilharam horários de refeição. Cinco elementos de uma equipa que, apesar de não trabalharem no mesmo piso nem partilharem horário de refeição, iam para a obra no mesmo carro. Nove pedreiros de diferentes pisos que almoçavam juntos.

A explicação do dr. Vítor Veríssimo e dos médicos de medicina do trabalho/saúde ocupacional foi retomada pela ministra da Saúde:

Foi precisamente esta a explicação dada pela ministra da Saúde, na altura em que os surtos em obras de construção civil e grandes empresas, principalmente na região de Lisboa e Vale do Tejo, se multiplicavam. “Há algum relaxamento nos momentos que não são de trabalho formal — almoço, mudas de roupa, eventual utilização de meios de transporte coletivos, que não transportes públicos”, afirmou Marta Temido a 23 de Maio.

5. Uma campanha eficaz contra os comportamentos de risco

Não há nada de errado nesta descrição. Todavia, ela enferma das mesmas limitações explicativas do que os relatórios de Benjamin Lee Whorf sobre as causas dos incêndios e das explosões, antes do mesmo Whorf ter descoberto, como vimos, o mecanismo do condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações de risco.

Isto porque uma explicação satisfatória consiste em identificar a causa ou as causas dos comportamentos de risco, do tal «relaxamento» das regras básicas de autodefesa preventiva contra a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 «nos momentos que não são de trabalho formal». Sem identificar essas causas não é possível desenvolver uma campanha de esclarecimento público destinada a erradicá-las.

Julgo que a explicação reside na operação conjugada dos dois mecanismos descritos mais acima:

(M1): invisível -> incorporal -> inofensivo

(M2): família, amigos, colegas -> zona de confiança mútua -> segurança

Assim sendo, uma campanha eficaz para a promoção das 5 medidas básicas de autoprotecção individual contra infecção pelo vírus SARS-CoV-2 passa por alertar para a perigosidade dos comportamentos habituais e arreigados à boleia dos quais o vírus se propaga e que são precisamente os comportamentos que estão subjacentes a cada um dos vectores ->  das fórmulas gerais M1 e M2.

Esses comportamentos habituais e arreigados, mas que são hoje, no contexto da pandemia de SARS-CoV-19 comportamentos de alto risco, são (i) as refeições tomadas em conjunto por colegas (de escola ou de trabalho) e por familiares não-coabitantes sem respeitar o distanciamento físico necessário e com muita conversa à mistura; (ii) o não uso de máscara e o não respeito pelo distanciamento físico no convívio com amigos, colegas e familiares não coabitantes; (iii) o não uso de máscara nas viagens em viatura (carro ou carrinha) privada com colegas, amigos e familiares não-coabitantes.

A banda desenhada seguinte (cujo autor e cuja origem infelizmente desconheço) é um bom exemplo do que poderia ser uma tal campanha. Mostra de uma maneira muito directa e simples que os comportamentos mais  habituais e arreigados da nossa conduta no dia-a-dia – comportamentos que nos habituámos a encarar (e com razão) como sendo inofensivos em condições normais – se convertem em comportamentos de alto risco no contexto da actual pandemia de SARS-Cov-2.

Temo, porém, que não haja ninguém no Ministério da Saúde – em particular na Direcção Geral de Saúde e nas Administrações Regionais de Saúde – convencido da necessidade de desenvolver uma tal campanha e em posição de conseguir levá-la por diante com a urgência e o vigor necessários.

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Notas

[1] No presente artigo, por razões de economia argumentativa,  deixo de lado as medidas de autodefesa preventiva, mas de âmbito colectivo, contra a propagação do vírus SARS-CoV-2, cuja adopção e implementação  incumbem aos poderes públicos (orgãos do poder político e autoridades de saúde pública) e que também mencionei no meu artigo anterior, mas que omitirei neste. Raciocinarei, portanto, como se o actual descalabro da situação pandémica não fosse de modo nenhum imputável a falhas e incumprimentos dos poderes públicos. É claro que não é isso que se passa na realidade. As cláusulas como se” são, como se sabe, artifícios lógicos destinados a realçar um determinado aspecto da realidade que se pretende examinar em pormenor. Por isso, peço aos leitores que levem esta advertência em consideração ao lerem este artigo. 

[2] Os resultados registados hoje, domingo, dia 29 de Novembro de 2020 são os seguintes: mais 64 óbitos por COVID-19; mais 4.093 pessoas infectadas com o vírus SARS-CoV-2; 3.245 pessoas hospitalizadas com COVID-19 (+90 do que no dia anterior), das quais 536 em unidade de cuidados intensivos (+ 7 do que no dia anterior), um novo máximo desde o início da pandemia; 80.838 casos activos (+770 do que no dia anterior).

[3] Convém distinguir “matéria” e “entidade material”. A matéria é uma colecção — a colecção de todas as entidades materiais (efectivas ou possíveis) passadas, presentes e futuras. Uma entidade material é uma entidade que pode mudar de estado. Dizer que uma entidade é material é o mesmo que dizer que pode estar em pelo menos dois estados (v. Mario Bunge. Matter and Mind — a philosophical inquiry. Springer: Dordrecht, Heidelberg, London, New York. 2010, p.273). Uma colecção é um construto, um conceito. Por conseguinte, a matéria (um conceito) é imaterial (como são todos os conceitos).

[4] Mario Bunge, ibidem, p.25.


17 novembro, 2020


 Esta é 8ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto).

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A chave do êxito no combate à pandemia, até estar disponível uma vacina segura e eficaz, 
está a montante da rede hospitalar do SNS 

José Catarino Soares


1. Introdução

A evolução da pandemia de SARS-CoV-2 em Portugal nas últimas cinco semanas (de 12 de Outubro a 15 de Novembro de 2020) pode ser sintetizada da seguinte maneira:

                                    (1)                        (2)                                (3)                              (4)

semanas

Média diária de novos casos

Média diária de internados

Média diária* nos cuidados intensivos

Média diária de óbitos

12 Out.-18 Out.

1.892

   980

140

14

19 Out.-25 Out.

2.682

1.356

197

19

26 Out.-1 Nov.

3.665

1.867

267

33

2 Nov.-8 Nov.

4.998

2.381

335

50

9 Nov.-15 Nov.

5.425

2.785

395

69

       Fonte: Direcção-Geral de Saúde (DGS)                            * valor arredondado às unidades 

O número de casos diários de infecção pelo novo coronavírus na região Norte – a região do país onde a situação pandémica é actualmente mais grave – nos últimos 14 dias (término em 12 de Novembro) é de 1.126 casos por 100 mil habitantes. Este número ultrapassa mais de quatro vezes o limite estipulado pelo governo para as medidas restritivas da liberdade de circulação que vigorarão entre 9 e 23 de Novembro (240 casos por 100 mil habitantes, em 14 dias). Os dados da Direção-Geral da Saúde (DGS) indicam que a taxa de incidência média de casos nos últimos 14 dias em Portugal continental é a seguinte:

Região Norte – 1.126 casos/100 mil habitantes

Região Centro – 449,9 casos/100 mil habitantes

Lisboa e Vale do Tejo – 466 casos/100 mil habitantes

Alentejo – 252,9 casos/100 mil habitantes

Algarve – 251,2 por cada 100 mil habitantes

Portugal – 655,2 novos casos/100 mil habitantes

Como se constata, todas as regiões de Portugal continental ultrapassam a taxa de incidência de novos casos por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias que determina as medidas restritivas de liberdade de circulação e de negócio previstas no Decreto do Presidente da República n.º 51-U/2020 (“estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, a vigorar por 15 dias, de 9 a 23 de Novembro, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei”).

1.1. Portugal no panorama europeu

A média diária de novos casos nos 33 países do Espaço Económico Europeu (EEE) + Reino Unido (RU) é de 580 casos por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias. Portugal tem agora mais casos de COVID-19 por cada 100 mil habitantes nos últimos 14 dias (término em 12 de Novembro) do que países como a Bélgica, Espanha, Reino Unido, Alemanha ou, do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos da América. Portugal ocupa agora a 10ª pior posição no conjunto dos países do EEE+ RU. 

1.2. Duas comparações

Em 30 de Setembro, os pacientes com Covid-19 internados em Portugal eram 666, dos quais 105 estavam em cuidados intensivos. Foram registados nesse dia 8 óbitos. Em 15 de Novembro esses números eram 2.929, 415 e 76, respectivamente.

A título de comparação num intervalo temporal ainda maior, vale a pena lembrar que o máximo de casos confirmados de infecção num só dia, durante a chamada “primeira vaga”, foi alcançado no dia 10 de Abril (1.516 casos). O máximo de óbitos por COVID-19 num só dia, durante o mesmo período, foi alcançado no dia 3 de Abril (37 óbitos). O máximo de internados num só dia, durante esse período, foi alcançado em 16 de Abril (1.073 pessoas hospitalizadas) e o máximo de pessoas internadas nos cuidados intensivos foi alcançado no dia 7 de Abril (271 pessoas hospitalizadas nos cuidados intensivos). 

E convém não esquecer que – embora não haja tratamento específico nem (pelo menos por enquanto) vacina segura e eficaz contra a COVID-19 – os médicos, hoje em dia, têm à sua disposição alguns fármacos com efeito mitigador desta doença nalgumas situações [1] e os médicos intensivistas, em particular, sabem modular melhor os processos de ventilação dos doentes com COVID-19 ao seu cuidado. O panorama médico neste particular é, por conseguinte, melhor do que era durante a chamada primeira vaga, quando o desconhecimento médico-farmacêutico sobre a doença era quase total. Se assim não fosse, o número de mortes por COVID-19 seria ainda muito maior.

1.3. Projecções

Dado o aumento do número de internados com COVID-19 nas unidades de cuidados intensivos, o número médio de dias de internamento em unidades de cuidados intensivos que têm como desfecho o óbito (14 dias) e a taxa de letalidade nestas unidades, é muito plausível que o número de óbitos  dê um pulo, nas próximas semanas, para 80 óbitos por dia [2].

Há projecções ainda mais sombrias do que estas que apontam, se nada mudar no modo como a população e as autoridades de saúde pública se comportam, em média, para os 10.000 novos casos de infecção diário, na primeira semana de Dezembro, 100 óbitos diários, em meados de Dezembro, e 500-530 internados em unidades de cuidados intensivos na terceira semana de Dezembro, se o rácio de transmissibilidade [Rt] – ou velocidade de contágio no tempo (que era 1.11 em 13 de Novembro) – não descer de forma sustentada [3].

P.S. Uma parte destas projecções, no que diz respeito ao número de óbitos, já foram ultrapassadas ontem, dia 16 de Novembro, dia em que foram registados 91 óbitos por COVID-19, um novo máximo. Tudo indica que a projecção de 100 óbitos diários, em média, na primeira semana de Dezembro será atingida antes dessa data.

1.4. A situação pandémica vai piorar

A situação pandémica em Portugal é, pois, má, pior do que era em Março e Abrilsalvo na taxa de letalidade – que é bem menor (1,61% em 9 de Novembro) do que em meses anteriores (9 de Abril: 2,93%; 9 de Maio: 4,11%; 9 de Junho: 4,23%; 9 de Julho: 3,62%; 9 de Agosto: 3,33%; 9 de Setembro:3,00%; 9 de Outubro:2,46%) [4]  embora o número de óbitos em termos absolutos tenha aumentado muito, em função do grande crescimento do número de pessoas infectadas, do número de pessoas internadas e do número de pessoas nos cuidados intensivos. E a situação pandémica vai piorar.

Como procurarei mostrar mais adiante, as medidas restritivas da circulação e de negócio impostas pelo novo Estado de Emergência são apenas um paliativo, não vão à raíz do problema. Seja como for, uma coisa é certa: se não surtirem o efeito desejado, o SNS vai entrar a breve trecho em ruptura. Para atender os doentes COVID-19, sobretudo os internados e os que estão em unidades de cuidados intensivos, terá de deixar para trás, temporariamente, muitos doentes com outras doenças que não inspirem tantos cuidados imediatos. E não é certo que consiga atender todos os doentes que necessitem de internamento em cuidados intensivos, onde a média de estadia é de 12 dias. Não há serviço nacional de saúde por melhor que seja – e o SNS português, apesar de muito depauperado nos últimos 12 anos, ocupava mesmo assim, em Outubro de 2019, a posição honrosa de 20.º melhor do mundo, num universo de 195 países [5] – que aguente uma pressão tão brutal sem abrir fissuras e rebentar por algum lado.

 


1.5. Propósito deste artigo

Neste artigo, proponho-me identificar e explicar a causa única do aumento destes números pandémicos e o modo de a erradicar. 

O modo de a erradicar NÃO é, adianto desde já, o de decretar sucessivos Estados de Emergência, entrecortados por outros tantos sucessivos períodos de “deixa-andar, deixa-fazer”, como preconiza o poder político  (governo, Presidente da República, Assembleia da República, autarquias locais) com o apoio explícito ou tácito, ou com a oposição para os noticiários, de todos os partidos com assento parlamentar, das centrais patronais, das centrais sindicais, da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Enfermeiros, dos sindicatos dos médicos e dos enfermeiros e, por último mas não menos importante, das directorias da maioria dos meios de comunicação social (escrita, falada e televisionada). 

De caminho, refutarei, dissiparei e desmontarei algumas das falsidades, cortinas de fumo e manobras de diversão que todos os dias são criadas para esconder o que é perfeitamente óbvio.

N.B. Por “apoio explícito” entendo o voto a favor, na Assembleia da República, dos decretos presidenciais que declararam, já por duas vezes, o Estado de Emergência como forma de combater a pandemia de COVID-19. Por “apoio tácito” entendo a abstenção aquando da votação desses decretos na Assembleia da República. Por “oposição para os noticiários” entendo o voto contra esses decretos e as suas consequências práticas (ou o protesto contra elas por qualquer outro meio para além do voto) com o objectivo de ganhar tempo de antena nas estações de rádio e de televisão, sem, todavia, propor nenhuma política pública alternativa capaz de resolver os problemas bem reais que a política oficial não é capaz de resolver e que, em muito casos, agrava.   

2. Não há mistério nem magia

Não há qualquer magia no modo como o novo coronavírus SARS-CoV-2 se propaga no seio da população humana, infectando-a. Este vírus é um vírus respiratório que se transmite, se tiver ocasião para isso, por meio de viriões – partículas virais completas – de forma esférica, que se transmitem principalmente através das mucosas do nariz, boca e olhos. Os viriões do SARS-CoV-2 são partículas muitíssimo pequenas, com um diâmetro que varia entre os 60 nm (nanómetros) e os 140 nm, ou, equivalentemente, entre os 0,06 μm (micrómetros) e os 0,14 μm.  O diâmetro médio de um virião é de aproximadamente 125 nm (0,125 μm) [6].

Coronavírus SARS-CoV-2


Somos nós, seres humanos, se estivermos infectados, que expelimos esses viriões sob a forma de gotículas de saliva (que transportam os viriões de maior tamanho a uma distância de 1 a 2 metros) e de aerossóis (que transportam os viriões de menor tamanho a uma distância maior, que pode atingir 7-8 metros, ou que os mantêm em suspensão no ar durante horas em recintos fechados onde a renovação do ar é deficiente), quando falamos, cantamos, tossimos e espirramos. E somos nós, seres humanos, que ficamos infectados com esses viriões se tivermos a pouca sorte de inalarmos ou absorvermos as gotículas e aerossóis que os transportam até às mucosas do nosso nariz, da nossa boca ou dos nossos olhos. Esta é a via directa de transmissão do vírus, que se junta a uma outra, também directa, que é a do contacto de pele entre pessoas (beijos, apertos de mão, abraços, etc.) quando uma delas tem as mãos ou outra parte do corpo contaminada por via aérea ou por contacto com matéria fecal. A via indirecta é através do contacto das mãos com uma superfície ou objeto contaminado com SARS-CoV-2 e, em seguida, com a boca, o nariz ou os olhos [7].

3. Não há “ondas” nem “vagas” de vírus em formação de combate

Não há, pois, mistério nenhum nem magia nenhuma no modo como este vírus se transmite. Não somos vítimas do ataque de hordas de vírus em formação de combate que desabam sobre nós em “ondas” ou “vagas” sucessivas como no canhão da Nazaré. O vírus não faz nem se transmite por “ondas” ou “vagas”. As “ondas” e as “vagas” são expressões metafóricas inventadas por nós para nos auto-iludirmos; para iludirmos o facto de que somos nós, seres humanos, os únicos responsáveis por sucessivos aumentos no número de infectados e no número de óbitos, que somos nós que os produzimos através de alguns dos nossos comportamentos mais arreigados, mas que o vírus converte em boomerangs, virando-os contra nós (voltarei num próximo artigo a este ponto crucial que não pode ser desenvolvido aqui com o vagar que merece).

Repito: o vírus não se transmite sozinho, sem ajuda. Precisa de nós para se transmitir. Precisa de alguns dos nossos comportamentos mais arreigados para se poder propagar de pessoa para pessoa. Sem a nossa prestimosa colaboração, o vírus não se propaga. Por isso, no começo da pandemia em Portugal, quando, no dia 2 de Março, foi registado o primeiro caso confirmado desta doença, éramos ainda quase todos, nós portugueses, aliados potenciais deste novo coronavírus, por inerência da nossa condição humana e por ignorância profunda e quase total das suas características fisiológicas e biomecânicas.

Hoje em dia, a situação não é de todo a mesma. Graças a milhares de cientistas dedicados (virologistas, imunologistas, fisiólogos, físicos, químicos atmosféricos, farmacologistas, epidemiólogos, sociólogos) e de milhares de médicos (especialmente infecciologistas, pneumologistas e intensivistas) atentos  e com bom olho clínico, espalhados por esse mundo fora, sabemos hoje muito mais sobre este vírus, sobre o modo como ataca o nosso organismo e, muito em particular, sobre o modo como se propaga de pessoa para pessoa. Sabemos como nos podemos defender dele, como podemos evitar que se propague à nossa revelia, mas à custa de alguns dos nossos comportamentos.

4. A escolha a que todos estamos confrontados

Por essa razão, podemos escolher o nosso campo nesta pandemia. Podemos decidir qual o papel que queremos desempenhar nesta pandemia até estar disponível – como há boas razões para acreditar que ocorrerá durante o ano de 2021 [8]  uma vacina segura e eficaz que nos proteja e até estar terminada (o que levará muitos meses) uma vacinação em massa da população, começando pelos grupos de maior risco. 

Só há dois campos que podemos ocupar, só há dois papéis que podemos desempenhar: o papel de agentes de transmissão do vírus, se nos situarmos no  campo dos aliados (ou até dos amigos do peito) do vírus, ou o papel de agentes de saúde pública, se nos situarmos no campo dos  inimigos figadais do vírus.

Ao contrário do que se passa nas guerras, não é possível desertar para um país neutro, não é possível invocar o estatuto de objector de consciência, não é possível ficar de fora, no papel de mero observador ou de repórter neutro ou de paparazzi. Não há escapatória, porque uma pandemia não é uma guerra onde seja possível fazer a distinção entre os beligerantes e os não beligerantes, os combatentes armados e a população desarmada. Numa pandemia ninguém consegue fica de fora. Todos são abrangidos por ela e nela só há dois campos: ou se está num campo ou se está no outro, volens nolens. Não há meio termo, não há terra de ninguém.

Porém, como já foi dito, temos a liberdade de escolher o campo em que nos queremos situar — o que raramente acontece nas guerras. Essa escolha não depende da Organização Mundial de Saúde (OMS), não depende da Direcção-Geral de Saúde (DGS) e das demais autoridades nacionais de saúde pública, não depende de nenhum governo, de nenhum partido, de nenhum sindicato, de nenhuma igreja, de nenhum clube. É uma escolha individual e exclusivamente nossa.

5. As medidas básicas preventivas de autodefesa individual para combater a transmissão do vírus e conseguir reduzi-la para zero

Se escolhermos o campo dos que combatem contra a propagação do vírus, essa escolha implica um modo de conduta congruente que se traduz por cinco comportamentos muito simples de autodefesa individual preventiva:

1. Manter um distanciamento físico de 2 metros das pessoas com quem não coabitamos, quer se esteja em pé ou sentado, a andar ou parado, dentro ou fora de casa.

2. Uso de máscara de protecção respiratória cobrindo o nariz e a boca, em todos os espaços públicos fechados (como autocarros, metro, comboios, restaurantes, cafés, lojas, cinemas, teatros, escolas, empresas, etc.) e em todos os espaços públicos abertos, mas com muita gente aglomerada e em que não seja respeitada, ainda que temporariamente, a distância mínima (esplanadas, miradouros, praças apinhadas, anfiteatros ao ar livre, trilhos e percursos pedestres, pontes pedonais, passadiços, estádios de futebol, etc.).

Ponte pedonal suspensa sobre o Rio Paiva


3
. Uso de viseira ou de óculos-viseira, como complemento da máscara.

4. Etiqueta respiratória (espirrar e tossir para um lenço de papel descartável que cubra a boca e o nariz ou para a dobra do braço, oposta ao cotovelo).

5. Lavagem frequente das mãos com água e sabão ou – à falta de água e sabão (que é sempre a melhor solução) – com gel desinfectante cuja concentração alcoólica varie entre 60% e 80%.  

5.1. Informações complementares às medidas básicas

Sobre a medida 2

Existem basicamente três tipos de máscara: máscaras filtrantes (também conhecidas por respiradores de partículas), máscaras cirúrgicas e máscaras comunitárias (também conhecidas por máscaras sociais).

As máscaras filtrantes (ou respiradores de partículas) distribuem-se por três níveis (de acordo com a norma EN 149:2001+A1:2009) designados pelas siglas FFP1, FFP2 e FFP3. As duas últimas são similares às americanas N95 e N98 — ou seja, filtram 94% e 99%, respectivamente, de partículas e gotículas. Estas máscaras foram concebidas para filtrar o ar inalado do ambiente externo (daí o seu nome), mas também para proteger os outros das exalações do próprio utente. Na sua primeira função, oferecem protecção das vias respiratórias contra partículas sólidas, gotículas e aerossóis. Estas máscaras podem ser descartáveis (uso único) ou reutilizáveis. Neste último caso, a reutilização terá de ter em conta o processo de descontaminação.

Máscaras filtrantes (as 3 primeiras) e máscara cirúrgica (a última)
                              

As máscaras cirúrgicas (de acordo com a norma EN 14683 tipo II ou superior IIR) foram concebidas e são utilizadas para impedir que o utente espalhe o agente infeccioso por meio da fala, do canto, de espirros e de tosse. No entanto, garantem também alguma protecção das vias de entrada faciais (boca, nariz e tracto respiratório) contra gotículas e partículas de maior tamanho, mas não contra aerossóis. Embora tenham sido concebidas para profissionais de saúde, podem ser igualmente usadas pelos cidadãos comuns. Estas máscaras são descartáveis (de uso único), não reutilizáveis, e por isso não necessitam de processos de descontaminação.

As máscaras comunitárias também se distribuem por níveis: nível 1nível 2 e nível 3. Mas talvez seja mais fácil distingui-las se as dividirmos em dois grupos que designarei, à falta de termo técnico consagrado, por monodireccionais e bidireccionaisAs máscaras comunitárias monodireccionais cumprem funções semelhantes às das máscaras cirúrgicas — ou seja, a sua função principal é proteger os outros das exalações do próprio utente. As máscaras comunitárias bidireccionais (como aquela que é exibida na figura) cumprem funções semelhantes às de uma máscara filtrante — ou seja, protegem tanto o utente dos agentes infecciosos transmissíveis por outrem, como protegem os outros dos agentes infecciosos transmissíveis pelo próprio utente. As máscaras comunitárias tanto podem ser de uso único como reutilizáveis. Neste último caso, a reutilização terá de ter em conta o processo de descontaminação. 

Máscara comunitária bidireccional 

O uso da máscara cirúrgica é uma medida de protecção fundamentalmente altruísta, porque permite ao seu utilizador proteger as pessoas que o rodeiam e o ambiente. Isto aplica-se também às máscaras comunitárias monodireccionais. O uso de máscaras filtrantes e de máscaras comunitárias bidireccionais é uma medida de protecção simultaneamente egoísta e altruísta. Se, todavia, toda a gente usar máscara, seja de que tipo for, todos se protegem mutuamente, todos se comportam como se fossem simultaneamente egoístas e altruístas.

Convém compreender porquê. O poder de filtração das máscaras varia muito consoante o seu tipo e subtipo. Por exemplo, as máscaras filtrantes protegem-nos da inalação de partículas com 0,023 micrómetros (=23 nanómetros) de diâmetro ou menos – no caso das máscaras FFP3 e N98 – e de 0,3 micrómetros (=300 nanómetros) de diâmetro ou menos – no caso das máscaras FFP2 e N95. Pelo seu lado, as máscaras cirúrgicas permitem a contenção de gotículas com 2 micrómetros (=2000 nanómetros) de diâmetro médio.

No entanto, e por sorte nossa, o tamanho dos viriões do SARS-CoV-2 não desempenha um papel crítico na protecção conferida pelas máscaras, porque os viriões estão contidos em gotículas ou partículas aerossolizadas de 5 a 10 micrómetros (= 5000 a 10.000 nanómetros). Ora, como vimos no parágrafo anterior, as máscaras filtrantes filtram mais de 95% das partículas com um diâmetro médio de 300 nanómetros ou menos, e as máscaras cirúrgicas impedem a passagem para o exterior de mais de 95% das partículas com um tamanho médio de 2000 nanómetros ou menos. Quanto às máscaras comunitárias bidirecionais e reutilizáveis de nível 3, que são as direcionadas para a população em geral, têm uma capacidade de retenção de partículas no mínimo de 70% [9].

Destarte, seja qual for o tipo de máscara que usarmos, estamos a protegermo-nos uns aos outros, desde que todos o façamos de um modo escrupuloso e consistente. A recomendação principal neste particular é esta: perante outras pessoas que não coabitem connosco, nunca se deve retirar a máscara para falar ou cantar.

— Sobre a medida 3

A viseira ou os óculos-viseira são apetrechos de protecção individual que complementam a utilização de máscara. Servem para proteger o utente das partículas e gotículas expelidas por outras pessoas na proximidade. Protegem os olhos e o rosto, mas não conferem protecção respiratória eficaz. 

5.2. Uma aplicação para inglês ver

Para as pessoas que tenham um telemóvel 4G (um artefacto muito difundido, mas que ainda não está ao alcance de todas as bolsas) e acesso à Internet em casa (o que muitas pessoas não têm), há ainda uma sexta medida preventiva recomendável: o uso da aplicação StayAway Covid.

No sítio electrónico onde se pode descarregar esta aplicação (https://stayawaycovid.pt/) colhe-se a seguinte informação:

A STAYWAY COVID é uma aplicação para telemóveis iOS ou Android que tem como objetivo auxiliar o país no rastreio da COVID-19. A aplicação permite, de forma simples e segura, que cada um de nós seja informado sobre exposições de risco à doença, através da monitorização de contactos recentes. A aplicação é de utilização voluntária e gratuita e, em momento algum, tem acesso à sua identidade ou dados pessoais.

Uma vez instalada a aplicação, o telemóvel anuncia a sua presença a todos os dispositivos próximos usando identificadores aleatórios que não revelam identidades pessoais. A informação partilhada entre dispositivos permite à STAYAWAY COVID saber de que telemóveis esteve perto, quão perto e por quanto tempo. A Organização Mundial de Saúde sugere que, contactos a menos de 2 metros e por mais de 15 minutos com alguém portador de COVID-19 sejam considerados com elevado risco de contágio.

A aplicação é simples de utilizar e tem apenas três passos.

Chegados a este ponto, a prosa do sítio electrónico da aplicação Stayaway Covid torna-se arrevezada, pelo que vou dizer por palavras minhas em que consistem esses três passos.

1. Se não tivermos contactos de proximidade (menos de 2 metros de distância) com alguém a quem foi diagnosticado infecção pelo vírus SARS-CoV-2, a aplicação informa-nos periodicamente dessa feliz circunstância.

2. Se essa circunstância se alterar recebemos um alerta, aconselhando-nos a isolarmo-nos e a contactarmos a linha de Saúde 24.

3.  Se tivermos um resultado positivo no teste diagnóstico à infecção pelo SARS-CoV-2, recebemos um código numérico. Se inserirmos esse código numérico na aplicação,  isso permitirá alertar todos aqueles que possamos ter contagiado, mesmo antes de terem sintomas, Nunca é revelada a identidade de ninguém, nem a nossa, nem a daqueles que recebem o alerta.

O nome da aplicação é Inglês, como se fosse este o idioma dos portugueses ou como se estes fossem súbditos de Sua Majestade Britânica. Porquê em Inglês? Porque não, por exemplo, Alerta Covid ou Vade Retro Covid ou Afasta-te da Covid ? Não sei responder a estas perguntas. Conjecturo, porém, que os conceptores desta aplicação se têm na conta de uma “elite” e viverão numa bolha muito própria e muito estreita onde a palavra “povo” significa “pacóvios-deploráveis-que-nem-sequer-sabem-falar-Inglês-a-língua-do- capitalismo-globalizado-e-hipercomercializado-nosso-senhor-nas-alturas”. Essa seria uma explicação lógica para a sua sobranceria [10].

Seja como for, a expressão inglesa StayAway Covid que foi escolhida como nome desta aplicação é, só por si, contraditória com a apregoada intenção de a tornar de uso universal. O governo, que a encomendou e a autorizou (e que a quis tornar obrigatória), não se poderá queixar se ela não vier a ter a adesão popular que poderia ter se não fosse este tiro que deu no próprio pé.

6. As medidas básicas preventivas de autodefesa colectiva para combater a transmissão do vírus e conseguir reduzi-la para zero

Às cinco (ou seis) medidas de autodefesa individual somam-se sete medidas de auto-defesa colectiva que incumbem às autoridades de saúde pública. São elas:

A. Distribuição gratuita à população de máscaras de boa qualidade (máscaras filtrantes, máscaras cirúrgicas e máscaras comunitárias bidireccionais) nos estabelecimentos de ensino, nos locais de trabalho, nas estações de metro e de comboios, nos centros comerciais, nos supermercados, nas farmácias [11].

B. Medição da temperatura corporal sem contacto, três vezes ao dia, com termómetros digitais infravermelhos, no acesso aos estabelecimentos de ensino, locais de trabalho, transportes públicos, espaços comerciais, culturais e desportivos.

C. Testes de diagnóstico (testes de oximetria de pulso, testes de detecção de antigénio e testes moleculares de amplificação dos ácidos nucleicos, consoante os casos) nas instituições de apoio ou acolhimento a populações mais vulneráveis – nomeadamente nas Estruturas Residenciais para Idosos (ERPI), Unidades da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), Instituições Sociais de Acolhimento e/ou Apoio Social e Centros de Acolhimento de Migrantes e Refugiados –, em estabelecimentos de saúde, em estabelecimentos de ensino, na entrada e saída do território continental ou insular por via aérea, ferroviária, marítima e rodoviária (autocarro, automóvel e mota), nos estabelecimentos prisionais e noutros locais, por determinação da DGS.

D. Quarentena (também denominada “isolamento profiláctico”) das pessoas que se pressupõe serem saudáveis, mas possam ter estado em contacto com um doente infectado com COVID-19, enquanto não forem testadas.

E. Isolamento no domicílio (ou em local apropriado no caso do domicílio não ter condições) das pessoas doentes com COVID-19, para que, através do isolamento, não contagiem outras pessoas, seguido do seu eventual internamento hospitalar se a sua situação clínica assim o exigir. 

F. Rastreio e triagem dos contactos próximos das pessoas em quarentena e em isolamento.

G. Vigilância clínica e epidemiológica das pessoas em quarentena e seguimento clínico das pessoas em isolamento domiciliar e em auto-cuidados.

A medida B é, tal com as demais desta série, uma medida de âmbito colectivo que não depende exclusivamente, ou sequer principalmente, da iniciativa individual da pessoa interessada. Todavia, se ela não for tomada por omissão ou negligência dos poderes públicos, podemos sempre transformá-la numa medida de autodefesa individual, através da automonitorização da temperatura corporal, com abstenção do trabalho ou da frequência de estabelecimento de ensino e reporte à linha de Saúde 24, caso surjam sintomas sugestivos de COVID-19 febre ( ≥ 38º C), dificuldade respiratória, tosse, dor de garganta, cansaço, dores musculares, dores de cabeça, rinite, dispneia, anorexia/náuseas/vómitos, diarreia, perda do olfato, perda do paladar, alteração do estado mental (World Health Organization. “Public health surveillance for COVID-19 Interim guidance”. 7 August 2020).

Alguns dos sintomas mais frequentes da COVID-19


A medida
C compreende não apenas Testes Moleculares de Amplificação dos Ácidos Nucleicos (TAAN) [12] e Testes Rápidos de Antigénio (TRAg)  [13] para a detecção do vírus, mas também a realização da oximetria de pulso (testes de saturação de oxigénio) [14] em todos os pacientes com diagnóstico suspeito ou confirmado de COVID-19, com imediato encaminhamento se o resultado for SpO2 < 95% (Saturação de Oxigénio menor que 95%).

Note-se que os testes de saturação de oxigénio não estão previstos na norma conjunta 019/2020 da DGS relativa à Estratégia Nacional de Testes para SARS-CoV-2 que entrou em vigor em 9 de Novembro de 2020. Mas fazem parte da estratégia de combate à COVID-19 do Serviço Nacional de Saúde (NHS) do Reino Unido, de Singapura e da India, e foram recomendados pela OMS, pela Pan American Health Organization (PAHO) e pela Thoracic Society of Australia and New Zealand (TSANZ) Guidelines.

7. Medidas drásticas e de último recurso

As 12 (ou 13) medidas preventivas enunciadas nas secções 5 e 6 deste texto são suficientes para combater eficazmente a propagação do vírus SARS-CoV-2 e para reduzir a sua transmissão a zero (sim, zero), com a condição de serem escrupulosa e consistentemente adoptadas e implementadas por todos os cidadãos e por todas as autoridades de Saúde Pública e similares.

Se assim for, não serão necessárias medidas drásticas como o recolher obrigatório (Ingl. curfew; Fr. couvre-feu) das pessoas no seu domicílio durante um certo número de horas diárias; o confinamento geral e obrigatório (Ingl. lockdown; Fr. confinement) das pessoas no seu domicílio e o encerramento obrigatório (Ingl. shutdown; Fr. fermeture), geral ou selectivo, de estabelecimentos como, por exemplo, infantários, escolas, universidades, politécnicos, repartições públicas, lojas com porta aberta para a rua, centros comerciais, restaurantes, cafés, fábricas, escritórios, cinemas, teatros, estádios, etc.

O recolher obrigatório, o confinamento geral e obrigatório e o encerramento obrigatório (geral ou selectivo) são, todas elas, medidas drásticas e de último recurso na luta contra uma pandemia. Podem (e devem) ser tomadas por duas ordens de razões: A) para corrigir uma política sanitária laxista e errática e mitigar ex post facto as suas consequências desastrosas, ou B) para evitar preventivamente a ocorrência de um descontrolo desastroso de uma situação pandémica ou epidémica.

O confinamento obrigatório e o encerramento selectivo obrigatório que foram instituídos em Portugal, em Março e Abril deste ano, enquadram-se nas medidas de tipo B.  A justificação racional para essas medidas drásticas, embora se afigure muito pífia quando analisada retrospectivamente, é inteiramente atendível à luz das circunstâncias vigentes à época em que foram tomadas. Essa justificação reside exclusivamente na ignorância geral e profunda que então grassava sobre o novo coronavírus SARS-CoV-2 e sobre a eficácia das 12 medidas básicas de autodefesa preventiva contra a pandemia por ele provocada.

De resto, essa ignorância ficou bem patente através da oposição inicial da Organização Mundial de Saúde (OMS), do Centro Europeu de Prevenção e Controlo da Doença (CEPCD) e da Direcção-Geral de Saúde (DGS) de Portugal ao uso obrigatório de máscara, das tergiversações que se lhe seguiram e que levaram estas organizações a passarem da oposição aberta à recomendação relutante deste apetrecho de protecção mútua, para, finalmente, se renderem à necessidade imperiosa da sua utilização universal.   

Se soubéssemos em 18 de Março o que sabemos hoje, o confinamento geral obrigatório e o encerramento obrigatório de estabelecimento de ensino de ensino, lojas, restaurantes, etc. que esteve em vigor entre 18 de Março e 2 de Maio (e o Estado de Emergência com que o Presidente da República, o governo e a Assembleia da República o quiseram ungir) não teriam qualquer justificação racional, salvo no caso das discotecas, clubes nocturnos, casas de fado, saunas, dojos, clubes de dança e similares [15].

O recolher obrigatório à noite, durante a semana e aos fins de semana, nos 121 concelhos mais afectados pela pandemia; a limitação de circulação na via pública nesses 121 concelhos, entre as 23h e as 5h durante a semana e ao fim-de-semana a partir das 13h até às 5h do dia seguinte, e o encerramento selectivo obrigatório de alguns negócios, com particular destaque para os restaurantes e afins, são medidas que estarão em vigor de 9 a 23 de Novembro (e que poderão ser renovadas), ao abrigo do novo estado de emergência decretado pelo Presidente da República a pedido dos governo e aprovado pela Assembleia da República em 6 de Novembro [16].

Estas medidas enquadram-se nas medidas de tipo A. Se não vejamos. Elas carecem totalmente da justificação que as suas congéneres de Março e Abril estavam no direito de invocar. Já não são medidas cautelares ditadas pela ignorância quase total sobre um vírus praticamente desconhecido e motivadas pelo propósito de evitar uma situação de descalabro, como eram as anteriores. São, isso sim, uma resposta correctiva musculada ao descalabro actual da situação pandémica descrita na introdução. E esse descalabro resulta, por sua vez, do incumprimento reiterado das 12 (ou 13) medidas de autodefesa preventiva contra o vírus.

As medidas que estarão em vigor entre 9 e 23 de Novembro não seriam necessárias se as autoridades de saúde pública, o governo, o Presidente da República, a Assembleia da República, as autarquias locais, os partidos com assento parlamentar, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Enfermeiros, os sindicatos (a começar pelos sindicatos dos profissionais de Saúde), as centrais sindicais, as centrais patronais, os meios de comunicação social promovessem o cumprimento escrupuloso e consistente das 12 (ou 13) medidas de autodefesa preventiva mencionadas nas secções 5 e 6, ou as cumprissem escrupulosamente mesmo que não lhes caiba promovê-las.

Para o fazerem, teriam, no primeiro caso, de promover uma campanha diária, permanente, de divulgação das 12 (ou 13) medidas básicas acima mencionadas, utilizando todos os meios de comunicação e todos os suportes ao seu dispor. Os cineastas, os actores, os humoristas, os pintores e os fotógrafos, por exemplo, teriam um papel importante numa campanha desse género. Por outro lado, o governo e as autoridades de Saúde Pública (DGS, INSA, INFARMED, Conselho Nacional de Saúde) teriam de elaborar e difundir um plano com as medidas de saúde pública a tomar e os comportamentos a adoptar automaticamente em função dos quatro níveis de alerta da situação pandémica, como o que foi feito, com tão bons resultados, na Nova Zelândia.

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Alert levels are cumulative – each level includes the restrictions of the level below it. The levels are as follows [16]

       No.

    Name

                                        Description and Measures

         1

Prepare

COVID-19 is uncontrolled overseas. The disease is contained in New Zealand and there are sporadic imported cases, but isolated household transmission could be occurring.

·       Border entry measures to minimise risk of importing COVID-19 cases.

·       Intensive testing for COVID-19.

·       Rapid contact tracing of any positive case.

·       People arriving in New Zealand without symptoms of COVID-19 go into a managed isolation facility for at least 14 days.

·       People arriving in New Zealand with symptoms of COVID-19 or who test positive after arrival go into a quarantine facility and are unable to leave their room for at least 14 days.

·       Mandatory self-isolation may be applied.

·       Schools and workplaces are open, and must operate safely.

·       No restrictions on personal movement or gatherings.

·       Stay home if you are sick, report flu-like symptoms.

·       Wash and dry hands, cough into elbow, do not touch your face.

·       No restrictions on domestic transport – avoid public transport or travel if sick.

·       Businesses and public transport must display QR codes to allow for contact tracing.

          2

Reduce

The disease is contained, but the risk of community transmission remains. Household transmission could be occurring, and there are single or isolated cluster outbreaks.

·       People can connect with friends and family, go shopping, or travel domestically, but should follow public health guidance.

·       Physical distancing of two metres from people you do not know when out in public is recommended, with one metre physical distancing in controlled environments like workplaces unless other measures are in place.

·       No more than 100 people at indoor or outdoor gatherings (subject to any lower limit, e.g. fire regulations).

·       Sport and recreation activities are allowed, subject to conditions on gatherings, contact tracing, and – where practical – physical distancing.

·       Public venues can open but must comply with public health measures.

·       Health and disability care services operate as normally as possible.

·       Businesses can open to the public, but must follow public health guidance including in relation to physical distancing and contact tracing. Alternative ways of working encouraged where possible (e.g. remote working, shift-based working, physical distancing, staggering meal breaks, flexible leave).

·       Schools, early childhood education and tertiary education providers can open with appropriate public health measures in place.

·       People at higher risk of severe illness from COVID-19 (e.g. those with underlying medical conditions, especially if not well controlled, and seniors) are encouraged to take additional precautions when leaving home. They may work, if they agree with their employer that they can do so safely.

·       Face coverings are required on public transport and aircraft, but not school buses or Cook Strait ferries. children under 12 are exempt along with passengers in taxis or rideshare services and people with disabilities or mental health conditions.

         3

 Restrict

There is a high risk the disease is not contained. Community transmission might be happening. New clusters may emerge but can be controlled through testing and contact tracing.

·       People instructed to stay home in their support bubble other than for essential personal movement – including to go to work, school if they have to or for local recreation.

·       Physical distancing of two metres outside home (including on public transport), or one metre In controlled environments like schools and workplaces.

·       People must stay within their immediate household bubble, but can expand this to reconnect with close family / whānau, or bring in caregivers, or support isolated people. This extended bubble should remain exclusive.

·       Schools (years 1 to 10) and Early Childhood Education centres can safely open, but will have limited capacity. Children should learn at home if possible.

·       People must work from home unless that is not possible.

·       Businesses can open premises, but cannot physically interact with customers.

·       Low risk local recreation activities are allowed.

·       Public venues are closed (e.g. libraries, museums, cinemas, food courts, gyms, pools, playgrounds, markets).

·       Gatherings of up to 10 people are allowed but only for wedding services, funerals and tangihanga. Physical distancing and public health measures must be maintained.

·       Healthcare services use virtual, non-contact consultations where possible.

·       Inter-regional travel is highly limited (e.g. for essential workers, with limited exemptions for others).

·       People at high risk of severe illness (older people and those with existing medical conditions) are encouraged to stay at home where possible, and take additional precautions when leaving home. They may choose to continue to work.

         4

Eliminate

It is likely the disease is not contained. Sustained and intensive community transmission is occurring, and there are widespread outbreaks and new clusters.

·       People must stay at home (in their bubble) other than for essential personal movement.

·       Safe recreational activity is allowed in local area.

·       Travel is severely limited.

·       All gatherings cancelled and all public venues closed.

·       Businesses closed except for essential services (e.g. supermarkets, pharmacies, clinics, petrol stations) and lifeline utilities.

·       Educational facilities closed.

·       Rationing of supplies and requisitioning of facilities possible.

·       Reprioritisation of healthcare services.

                                                Os quatro níveis de alerta na Nova Zelândia

7. A chave do êxito está a montante dos hospitais, não nos hospitais e muito menos nas unidades de cuidados intensivos

Mas não é isso que se passa. Pelo contrário, os órgãos do poder político – Presidente da República, Governo, Assembleia da República, autarquias locais, partidos com assento parlamentar – as centrais patronais, as centrais sindicais, as Ordens Profissionais da saúde, os sindicatos dos profissionais de saúde, a grande maioria dos meios de comunicação social, todos se esforçam, cada um(a) à sua maneira, por persuadir a população, e se persuadirem a si mesmos, de que a chave do êxito do combate ao vírus SARS-CoV-2 (enquanto não houver uma vacina segura e eficaz) não está a montante dos hospitais, mas dentro deles.

Todos se esforçam todos os dias por apregoar  que a chave do êxito na luta contra a pandemia do SARS-CoV-2 NÃO reside fundamentalmente  no comportamento auto-defensivo e preventivo, individual e colectivo, dos cidadãos e das autoridades de Saúde Pública, na sua capacidade de discernimento, na sua vontade de agirem com conhecimento, determinação, autodisciplina e lucidez no cumprimento escrupuloso e consistente das 12 (ou 13) medidas básicas de auto-defesa preventiva contra a transmissão do vírus que foram enunciadas nas secções 5 e 6 deste artigo.

Para uns, a chave do êxito no combate ao novo coronavírus reside fundamentalmente na capacitação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), para outros na capacitação do sistema de saúde no seu todo (SNS + sector privado + misericórdias). A capacitação do SNS é entendida, por sua vez, não na sua dupla vertente, como (i) capacidade de testar, isolar, rastrear, seguir e vigiar os casos suspeitos e confirmados de infecção pelo SARS-CoV-2 independentemente da eventual necessidade de internamento hospitalar de uma parte deles, e como (ii) capacidade de acolher e tratar os doentes com COVID-19 que necessitem de internamento hospitalar, mas tão-somente nesta última vertente.

A linha de raciocínio subjacente a esta política sanitária foi exemplarmente formulada em duas tiradas bombásticas de uma comentadora televisiva.

(i) Isto [a pandemia] vai atingir um pico, quer se confine quer não se confine.

(ii) Quando esta pandemia começou em Março, a Alemanha tinha 5 ou 6 vezes mais camas de cuidados intensivos do que nós. E todo o problema está aí. Todo o problema está em que não somos nós que temos de salvar o SNS, mas o SNS que tem de nos salvar a nós (Raquel Varela. RTP3. Programa “O Último Apaga a Luz”, 13-11-2020).

Esta comentadora ignora que não há (ainda) uma vacina segura e eficaz nem um tratamento específico para a COVID-19; ignora as elevadas taxas de letalidade desta doença, em particular nas faixas etárias mais avançadas, e ignora que esta doença deixa sequelas profundas e prolongadas em muitos dos que lhe sobrevivem [18].

Ignora, por isso, que tudo deve ser feito (incluindo, se preciso for, o confinamento) para impedir novas infecções e novas hospitalizações decorrentes desta doença. A prevenção é a única maneira que temos de proteger eficazmente a saúde e de salvar vidas ameaçadas por esta pandemia. Ignora também que o internamento em unidades de cuidados intensivos não é um bom prognóstico, mas o pior prognóstico possível para um doente com COVID-19. As unidades de cuidados intensivos são unidades de fim de linha no tratamento médico, um último, escasso e caríssimo recurso para evitar in extremis a morte de um doente [19]. E não há, nem sequer na Alemanha – a potência que manda no euro e na União Europeia e que mais tem lucrado com estes dois arranjos institucionais oligárquicos – unidades de cuidados intensivos que cheguem para tentar salvar doentes graves de COVID-19, se os números de infectados e de hospitalizados com esta doença continuarem a aumentar em flecha.

Por último e em resumo, não parece ter ocorrido a esta comentadora a ideia – no entanto, bem simples de compreender na actual situação pandémica – de que somos nós, cidadãos, que temos de salvar o SNS, para que o SNS nos possa salvar a nós, se necessário for. E temos uma forma simples de medir o êxito ou o malogro das políticas sanitárias que queiram ser congruentes com este lema. Quanto menos pessoas o SNS tiver de seguir clinicamente no seu domicílio, quanto menos pessoas tiverem de ser hospitalizadas no SNS, quando menos pessoas tiverem de ser internadas em unidades de cuidados intensivos, quanto menos óbitos houver por COVID-19 nas unidades de cuidados intensivos ou nas enfermarias dos hospitais do SNS, mais perto estaremos de ganhar a luta pela redução a zero da transmissão do vírus SARS-CoV-2. Quanto mais pessoas estiverem nessas situações e quanto mais óbitos houver por COVID-19 mais pesadamente estaremos de perder essa luta.

O esforço para obscurecer estas realidades tem sido muito grande. Todos os dias um chorrilho de invectivas, lamentos, acusações, denúncias, apelos, insinuações, opiniões e especulações é posto a circular pelos canais de televisão, pelas estações de rádio, pelos jornais, pelas redes sociais sobre as reais e inventadas debilidades, lacunas e limitações do SNS para cumprir as missões para que foi construído e, muito em particular, para acolher e tratar os doentes com COVID-19 nos hospitais públicos.

Uma série impressionante de corifeus repetem o mantra: “São precisos mais médicos, mais enfermeiros, mais camas de enfermaria, mais camas de cuidados intensivos, mais ventiladores, mais unidades de cuidados intensivos mais, mais, mais, sempre mais, porque os doentes COVID-19 são em número cada vez maior”. Mas os mesmos que fazem estas exigências, como se os recursos disponíveis fossem infinitos ou (como, por exemplo, os médicos intensivistas) se pudessem fazer sair da cartola por um passe de mágica, nunca se perguntam por que razão há cada vez mais doentes COVID-19 e como se poderá travar e reverter esse crescimento desmesurado que assoberba os centros de saúde e os hospitais do SNS e os profissionais de saúde que nele trabalham.

Há uma verdadeira campanha na comunicação social para gerar alarmismo sobre a resposta do SNS e das autoridades públicas de saúde à segunda vaga pandémica, não para melhorar essa resposta, mas para os privados da saúde aumentarem os seus lucros (Sandra Monteiro, “Requisição Civil”. Monde Diplomatique-Edição Portuguesa. Novembro 2020).  

Um exemplo disso foram as rondas de reuniões promovidas pelo Presidente da República que serviram, entre outras coisas, para dar voz aos sectores ligados ao negócio da saúde, seja no espaço de opinião dos jornais, seja no comentário televisivo.

«A mensagem repete-se», escreve Sandra Monteira, directora do Monde Diplomatique-Edição Portuguesa, no mesmo artigo.

Acusações de não terem sido ouvidos; críticas a um suposto atraso nas negociações para a mobilização dos meios e serviços privados, insinuações de que as autoridades públicas estariam dispostas a deixar os doentes sofrer só para não activar os privados, por puro enviesamento ideológico, etc.

Os media não se limitam as oferecer-lhes espaço para passar estas mensagens: os jornalistas incorporam-nas como válidas e repetem-nas. Basta folhear os jornais ou ligar a televisão para deparar com exemplos disto, inclusive em jornalistas com grandes responsabilidades editoriais, como Bernardo Ferrão, subdirector da SIC, que ainda recentemente insistia em acusar a Ministra da Saúde, Marta Temido, pelas tais «opções ideológicas». Também o director de Informação da RTP, António José Teixeira, repetiu numa recente entrevista ao presidente da República quase todos os tópicos desta campanha, a propósito da possibilidade de a proposta de decreto do Estado de Emergência incluir um ponto destinado, nas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa, a «criar condições acrescidas para utilizar meios e recurso do sector privado e no sector social e cooperativo». Perguntou o jornalista: «Porque é que o governo, o Estado, o Ministério da Saúde, não concertou, não planeou atempadamente com o sector privado e social essa resposta do Outono e do Inverno que já prevíamos antes? Até agora não houve qualquer negociação acabada, tirando algumas experiências, nomeadamente regionais, a Norte, com o sector privado». Para concluir (o jornalista): «Não houve precaução suficiente». E a seguir perguntou: «Houve preconceito ideológico no Ministério da Saúde, como alguns disseram?»

8. Os procuradores da medicina baseada no lucro

Neste âmbito, a carta aberta que seis bastonários da Ordem dos Médicos – o actual bastonário (Miguel Guimarães) e cinco dos seus predecessores (Pedro Nunes, José Manuel Silva, Germano de Sousa, Gentil Martins, Carlos Ribeiro) – dirigiram à Ministra da Saúde em 14 de Outubro de 2020 é um modelo de refinada hipocrisia na defesa dos interesses da medicina baseada no lucro. Começa por afirmar o seguinte:

É bom não esquecer que, além da grave paragem de parte significativa da saúde não-COVID, o lockout decretado em abril pelo Governo para tentar evitar ao máximo os contágios pôs as nossas vidas totalmente em suspenso. Essa paragem súbita, potencialmente fatal para a economia e que, paralelamente, fez disparar as listas de espera, criou um escudo artificial que não podemos correr o risco de repetir. Nesta segunda fase da pandemia, o SNS sofrerá toda a pressão da procura sem esta proteção, o que ameaça ter consequências dramáticas para os doentes confrontados com um SNS sem mãos a medir.


Este trecho merece alguns comentários. Contém três flagrantes falsidades. Não foi o governo que decretou, mas o Presidente da República e a Assembleia da República que decretaram, em 18 Março, e não em Abril, aquilo que os seis bastonários designam, por lhes escassear o vocabulário, por lockout. É também falso que a vida dos médicos portugueses tenha ficado «totalmente em suspenso» em virtude desse decreto. Pelo contrário, nunca, porventura, a vida dos médicos portugueses que trabalham no SNS foi tão intensa, chamados que foram a tratar os doentes COVID-19 que entravam às catadupas pelas portas dos hospitais públicos. O mesmo vale dizer dos enfermeiros, dos assistentes operacionais, dos técnicos de diagnóstico-e-terapêutica e dos técnicos superiores de saúde.

Os bastonários afirmam em seguida que, para defender a saúde dos portugueses gravemente infectados pelo novo coronavírus, se desferiu um golpe «potencialmente fatal para a economia» e se fez, paralelamente, «disparar as listas de espera» para outras doenças. Fica-se na dúvida sobre o que pretenderam os senhores bastonários dizer. Deveríamos, então, para salvar a economia e não aumentar as listas de espera, fechar as portas dos hospitais do SNS aos doentes COVID-19? Não? Então qual era a alternativa que os senhores bastonários entendem que deveria ter sido adoptada naquela emergência? Eles não a revelam. Mas lá vão dizendo que, na «segunda fase da pandemia» (aquela em que nos encontramos actualmente) não podemos proteger outra vez o SNS da pressão da procura, porque isso seria péssimo para a economia. Deveria ser dada a oportunidade para o vírus se propagar livremente na população, afirmam por subentendido (porque “não podemos correr o risco de erigir outra vez um escudo artificial em torno do SNS”). É a mesma ideia, repare-se, que a comentadora Raquel Varela veio exprimir; só que esta o fez sem punhos de renda. Assim sendo, o SNS terá de aguentar com toda a pressão da procura e, sem mãos a medir, só poderá entrar em colapso vaticinam os senhores bastonários. 

Tranquilizem-se, porém, as almas timoratas. Os senhores bastonários dramatizaram a situação para melhor nos fazerem compreender o valor do Ás de Ouros que tinham mantido em reserva para o lance final do seu Tarot divinatório. São os hospitais privados, vejam só, que vão salvar o SNS.   

As semanas e os meses que se aproximam vão, por isso, exigir uma capacidade de resposta muito superior à que hoje existe no SNS. (..) Os sectores de saúde sociais [leia-se, as misericórdias] e privados podem ser mais envolvidos no esforço COVID e não-COVID para que a capacidade instalada seja efetivamente usada em vez de desperdiçada.(…) É o momento do SNS liderar uma resposta global, envolvendo, de acordo com as necessidades dos doentes, os setores privado e social, que permita aumentar o acesso a todos os cuidados de saúde com uma resposta inequívoca a todos os doentes (COVID, não-COVID e gripe sazonal) e, através de programa excecional alargado, recuperar as listas de espera e os potenciais doentes “perdidos”.

9. Não se pode esperar dos hospitais privados que troquem o lucro pela solidariedade com os doentes e necessitados de cuidados médicos

No seu afã de procuradores da medicina baseada no lucro os senhores bastonários omitiram, na sua carta aberta, duas coisas importantes. A primeira é o comportamento dos hospitais privados durante a primeira fase da pandemia (Março-Abril-Maio). Vale a pena lembrar o que os senhores bastonários parecem ter-se já esquecido:

— Em Março e Abril, muitos hospitais de grupos privados começaram a adiar para as calendas gregas muitas consultas, exames e intervenções cirúrgicas programadas.

— Logo em Março, houve hospitais privados – como, por exemplo, a CUF, a Luz Saúde e os Lusíadas – que começaram a cobrar aos utentes das consultas mais simples uma abusiva “taxa Covid” de 10 a 20 euros, que podia ir às centenas de euros no caso de uma cirurgia. Esta taxa servia até para pagar equipamentos de proteção, banais e baratos, como máscaras e gel desinfectante das mãos (https://sicnoticias.pt/especiais/ coronavirus/2020-04-21-CUF-cobra-a-utentes-protecao-para-profissionais-de-saude; https://magg.sapo.pt/atualidade/artigos/doentes-tem-de-pagar-taxas-extra-nos-hospitais-privados-pelos-equipamentos-de-protecao-dos-medicos).

— Treze hospitais privados, clínicas privadas e misericórdias decidiram suspender as convenções com o Ministério da Saúde, no período de 16 de Março a 24 de Abril, até então a fase mais difícil da pandemia do novo coronavírus, deixando de dar apoio ao Serviço Nacional de Saúde quando este mais precisava. Lembremos os nomes desses hospitais e unidades de saúde que os senhores bastonários parecem ter esquecido:

Hospital da Cruz Vermelha; Hospital da Luz, S.A. (estabelecimento Torres de Lisboa); Clínica Parque dos Poetas; CLISA  (Clínica Stº António); Hospital da Confraria de Nossa Senhora da Nazaré; Hospital da Ordem Terceira de S. Francisco da Cidade ; Hospital de Jesus (Venerável Ordem Terceira da Penitência de São Francisco a Jesus); Hospor (Hospitais Portugueses, SA) – Hospital de Santiago e Hospital da Misericórdia de Mealhada –; Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal; CSC (Associação de Socorros Mútuos de Empregados no Comércio de Lisboa); Santa Casa da Misericórdia de Leiria–Hospital Dom Manuel de Aguiar; Santa Casa da Misericórdia de Benavente (fonte: Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e agência Lusa, 5 de Maio de 2020).

— Há que referir ainda o caso mais escandaloso entre os hospitais privados: o do hospital do Serviço de Assistência Médico-Social (SAMS) do Sindicato dos Bancários, cujo Conselho de Administração decidiu encerrar pura simplesmente as portas em 23 de Março, abandonando os seus doentes, transferindo para o SNS a resolução e recepção de todos os seus utentes, independentemente de estarem em regime de ambulatório ou internamento. Ao mesmo tempo, o Conselho de Administração do SAMS suspendeu os contratos de trabalho e requereu o auxílio do Orçamento de Estado através do layoff simplificado para pagar uma parte dos salários dos seus 120 médicos, 200 enfermeiros e demais pessoal ao seu serviço — auxiliares de acção médica, técnicos de fisioterapia, técnicos de análises e administrativos.


— Em Setembro, foi notícia o facto de os hospitais privados recusarem fazer partos e transferirem para o SNS grávidas com partos programados que tenham teste positivo à COVID-19, sem terem avisado disso as grávidas que, durante a fase de acompanhamento da gravidez, iam às consultas médicas nesses hospitais. Foi o que fizeram as maternidades da CUF Descobertas (em Lisboa e Porto), e os hospitais do grupo Lusíadas, na maternidade do Porto e na Clínica de Santo António, na Amadora. Só a maternidade Lusíadas Lisboa realiza partos a todas as grávidas com COVID-19. O Grupo Luz Saúde também garante partos agendados a mulheres infectadas apenas no Hospital da Luz em Lisboa (https://www.publico.pt/2020/09/10/sociedade/noticia/ gravidas-testem-positivo-covid19-recusadas-hospitais-privados-1930949).  

— Em Setembro também, a Entidade Reguladora da Saúde teve de emitir um comunicado, depois de receber várias queixas de utentes, a pedir aos hospitais privados que recusam doentes com COVID-19 para avisarem antecipadamente os utentes dessa decisão. (Alerta de Supervisão n.º 13/2020. Entidade Reguladora da Saúde, 25 de Setembro de 2020). 

Perante estes factos, o trecho citado dos seis bastonários suscita vários reparos, entre os quais os seguintes, bem formulados pelo jornalista Pedro Tadeu:

Em primeiro lugar, tal afirmação [de que os sectores privados da saúde devem ser mais envolvidos], para ser eticamente irrepreensível, deveria ser acompanhada por uma declaração de interesses de cada um dos seis bastonários subscritores do texto sobre as suas ligações à medicina privada — e aparentemente (basta uma busca na Internet para o comprovar) todos têm essa ligação, desde o nível básico de dar consultas num hospital ou num consultório privado, até ao mais complexo de ter o seu nome como marca de uma rede de laboratórios.

Em segundo lugar, a afirmação dos bastonários ignora uma questão de fiabilidade, dado o comportamento desolador, largamente documentado, dos hospitais privados assim que começou a pandemia: poderemos confiar neles para nos ajudarem nesta segunda fase da doença?

Em terceiro lugar, há a conta do contribuinte: no final do dia sai mais barato ao Estado pagar a privados para prestarem serviço público ou a gastar dinheiro em reforço dos seus meios humanos e técnicos? Ao longo de décadas inúmeros relatórios do Tribunal de Contas põem largas dúvidas sobre a vantagem da relação Estado-privados na Saúde.

E vou ignorar neste artigo a questão da corrupção, seja a puramente criminal, seja a institucionalizada e aceite como “normal” e até “recomendável”, que as várias vertentes do negócio da Saúde no século XXI comportam: desde os preços dos medicamentos impostos pelos grandes conglomerados da indústria farmacêutica até à promiscuidade do exercício profissional da medicina, simultaneamente, no setor público e privado (“Podemos confiar nos hospitais privados?” Diário de Notícias, 21 de Outubro de 2020).

10. Requisição civil dos hospitais privados

A segunda coisa que os senhores bastonários da Ordem dos Médicos omitiram na sua carta aberta diz respeito ao modo como os poderes públicos (as autoridades de saúde pública e o poder político) devem agir numa situação de emergência sanitária com a gravidade de uma pandemia ou de uma epidemia.  

Obviamente que se for necessário usar os hospitais dos grupos privados e os hospitais das misericórdias para tratar e salvar a vida de doentes com COVID-19 se deve fazê-lo — e já. Mas para isso o governo não precisa de pedir a ajuda “privada” desses hospitais, como sugerem os seis bastonários. Também não deve fazê-lo, porque, de qualquer modo, esses hospitais já mostraram sobejamente que não se pode contar com eles para lutar contra esta pandemia.

Pedir-lhes que o façam por sua livre iniciativa é o mesmo que pedir a um tigre que arranque os dentes ou que se livre das suas listras. Só aceitarão dar um chouriço se lhes for dado um porco, como já alguém disse e muito bem. O governo só entrará nesse negócio de dar um porco para receber em troca um chouriço se quiser, porque tem à sua disposição a prerrogativa da requisição civil.   

A requisição civil compreende o conjunto de medidas determinadas pelo Governo necessárias para, em circunstâncias particularmente graves, se assegurar o regular funcionamento de serviços essenciais de interesse público ou de sectores vitais da economia nacional (número 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 637/74, de 20 de Novembro)”.

A lei de Bases da Saúde, Lei n.º 95/2019, prevê a requisição civil.  

Base 34

2 — Para defesa da saúde pública, cabe, em especial, à autoridade de saúde:

(…)

d) Proceder à requisição de serviços, estabelecimentos e profissionais de saúde em casos de epidemias graves e outras situações semelhantes.

3 — Em situação de emergência de saúde pública, o membro do Governo responsável pela área da saúde toma as medidas de exceção indispensáveis, se necessário mobilizando a intervenção das entidades privadas, do setor social e de outros serviços e entidades do Estado.

O decreto n.º51-U/2020 do presidente da República que instaura o Estado de Emergência de 9 a 23 de Novembro prevê que «podem ser utilizados pelas autoridades públicas competentes os recursos, meios e estabelecimentos de prestação de cuidados de saúde integrados nos sectores privado, social e cooperativo». Isso parece referir-se aos artigos 2.d e 3 da base 34 da Lei de Bases da Saúde (lei nº 95/2019). Mas essa interpretação não colhe, porque o Presidente determina que isso deve acontecer «preferencialmente por acordo» e «mediante justa compensação, em função do necessário para assegurar o tratamento de doentes com covid-19 ou a manutenção da actividade assistencial relativamente a outras patologias».

Desta forma, o presidente da República procurou enfraquecer de antemão a prerrogativa da requisição civil, tornando-a numa sombra de si própria, uma faca sem gume.

Trata-se, assim, de uma espécie de requisição civil mitigada, pois não atribui ao Governo o poder absoluto de requisitar serviços, nem de determinar o preço a pagar por eles. Vai ao encontro das preocupações das entidades do sector da saúde que o Presidente ouviu nas duas últimas semanas (Leonete Botelho, Público, 5 de Novembro de 2020).   

A contratualização pelo Ministério da Saúde de serviços a adquirir aos hospitais dos grupos privados e das misericórdias não é uma requisição civil mitigada. É uma maneira de anular na prática a requisição civil [19]. A deputada Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, clarificou bem as diferenças entre a contratualização e a requisição civil:

No caso da contratualização, o sector privado diz o que está disposto a contratualizar e a que preço. No caso da requisição civil, o Estado [entenda-se, o Ministério da Saúde] verifica a capacidade instalada, prevê a capacidade que é precisa, articula-a com a resposta do SNS e fixa um preço administrativo que seja justo. Só esta solução defende o interesse público, não só do ponto de vista financeiro, mas também da articulação e planificação da resposta de saúde do nosso país (Jornal Económico, 2 de Novembro de 2020),

A contratualização com os grupos privados da saúde dos recursos que estes estão dispostos a alocar para o combate à pandemia de COVID-19 se o contrato lhes trouxer lucros apreciáveis é, como se compreenderá, a proposta que os seis bastonários da Ordem dos Médicos sugeriram na sua carta aberta à ministra da Saúde e que o Presidente da República acolheu no seu decreto sobre o Estado de Emergência  a vigorar entre 9 e 23 de Novembro.

Os signatários da declaração “A saúde é um direito” explicaram muito bem qual será o teor dessa contratualização:

Ao que parece, conforme notícias que circulam veiculadas pelo próprio Ministério da Saúde, os privados vão ter doentes não-COVID e o SNS doentes COVID. Na gíria popular, podemos então afirmar que “enquanto uns comem a carne os outros roem os ossos” (Público, 7 de Novembro de 2020).

11. Conclusão

Há actualmente em Portugal (e não apenas em Portugal) uma tremenda confusão de ideias sobre o modo como nos devemos comportar perante esta pandemia. São muitos inclusivamente os que negam a sua existência, enquanto outros a desvalorizam como sendo “uma gripezinha” e outros ainda vêem nela o resultado de uma conspiração de obscuras potestades malévolas e todo-poderosas. Foi essa confusão que me esforcei por dissipar, para tornar visível a via de saída desta situação sanitária e social aflitiva saída que não apresenta (hoje em dia) dificuldades de maior. Espero tê-lo conseguido.

Nada do que foi dito nas secções anteriores relativamente ao que deve ser feito para combater com êxito esta pandemia constitui uma novidade, muito menos o produto de uma elaboração original da minha lavra — muito pelo contrário. Limitei-me a estudar o assunto com todo o cuidado necessário e a formular um destilado das melhores propostas e práticas existentes, adaptando-o à especificidade da situação portuguesa.

As 12 (ou 13) medidas formuladas nas secções 5 e 6 deste artigo para combater a pandemia do SARS-CoV-2 até o grosso da população ficar imunitariamente protegida por uma vacina eficaz e segura, são isso mesmo. Têm uma robustez muito grande, que lhes é conferida exclusivamente por muito do que de melhor a comunidade científica internacional aprendeu durante estes últimos dez meses.   

Se o leitor quiser ser um agente de saúde pública, cabe-lhe pô-las em prática na parte que lhe compete e divulgá-las na medida das suas possibilidades. Se gostou deste artigo, uma das maneiras de as divulgar é recomendar a sua leitura, visto que o seu único propósito é esse mesmo: contribuir para que cada cidadão se assuma como um agente de saúde pública esclarecido e autónomo. 

………………………………………………………………………….

Notas

[1] Esses progressos podem ser sintetizados como segue:

— Agentes antivirais. O Remdesivir mostrou ser capaz de diminuir a duração da hospitalização [*]

— Agentes imunossupressores. Corticosteroides – e.g., a dexametasona – têm um efeito abrangente de amortecimento do sistema imunitário e mostraram ser capazes de reduzir o número de mortes por COVID-19 quando a administração de oxigénio é requerida.

— Oxigénio. É administrado para manter as saturações do oxigénio acima de 94%.

— Medicamentos para impedir a formação de coágulos de sangue. Estes medicamentos são administrados para prevenir coágulos de sangue durante a hospitalização. O risco individual e a mobilidade são avaliados pelos médicos quando são usados depois do doente ter tido alta.

— Plasma de convalescentes. O plasma – a porção líquida do sangue – de pessoas que tiveram COVID-19 e recuperam contém anticorpos que podem diminuir a severidade de uma infecção ou prevenir um paciente de ficar doente. Este plasma só está disponível através de ensaios clínicos, os quais são necessários para compreender melhor a sua acção.  

— Anticorpos monoclonais. Estes anticorpos fabricados laboratorialmente, que estão na fase de ensaios clínicos, poderão também reduzir a severidade da doença ou encurtar o seu curso.

(Cf. Marto, Natália & Emília C. Monteiro (2020). “Medicines for the Treatment of COVID-19: Awaiting the Evidence /Fármacos para Tratamento Da COVID-19: À Espera da Evidência”. Acta Med Port 2020 Jul-Aug;33(7-8):500-504, https://doi.org/10.20344/amp.13908; Harvard Health Publishing (2020). “Treatments for COVID-19: what helps, what doesn’t, and what’s in the pipeline”. Updated: November 10, 2020, https://www.health.harvard.edu/diseases-and-conditions/treatments-for-covid-19; National Institutes of Health (2020). “Therapeutic Management|COVID-19: Treatment Guidelines”. Last Updated: October 9, 2020. https://www.covid19treatmentguidelines.nih.gov/therapeutic-management/).

P.S. [20 de Novembro 2020] Um painel de peritos internacionais, especialistas de todo o mundo que fazem parte de um grupo de desenvolvimento de linhas orientadoras da OMS, desaconselhou, dia 19 de Novembro,  o uso do medicamento Remdesivir em doentes hospitalizados com COVID-19, estejam ou não em situação grave, por falta de provas de que influencie a sobrevivência ou a necessidade de ventilação. A recomendação agora divulgada (Rochwerg, Ram et al. (2020).A living WHO guideline on drugs for covid-19”BMJ 2020;371:m3379, http://dx.doi.org/10.1136/bmj.m3379) baseia-se numa nova revisão de provas, comparando os efeitos de vários medicamentos contra a COVID-19, e inclui dados de quatro ensaios internacionais que envolveram mais de 7.000 pessoas hospitalizadas com covid-19. Após uma revisão exaustiva das provas o painel de peritos concluiu que o Remdesivir «não tem qualquer efeito significativo na mortalidade ou noutros resultados importantes para os doentes, como a necessidade de ventilação ou a rapidez nas melhoras».

[2] Estas projecções não são minhas, mas do matemático Henrique Oliveira, professor do Instituto Superior Técnico. Foram divulgadas pelo jornal Público em 6 de Novembro de 2020 e também numa entrevista ao canal de televisão SIC-Notícias que foi para o ar, se a memória não me falha, no mesmo dia.   

[3] Estas projecções não são minhas, mas do epidemiólogo Manuel Carmo Gomes, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Foram expostas em 10 de Novembro 2020, na SIC Notícias.

[4] Fonte: Escola Nacional de Saúde Pública. Universidade Nova de Lisboa. https:// barometro-covid-19.ensp.unl.pt/epidemiologia-da-covid-19/letalidade-e-mortalidade-das-regioes-em-portugal/. A taxa de letalidade é obtida através da divisão do número de óbitos pelo total de casos diagnosticados, relativamente a uma determinada doença. Dá-nos uma ideia da gravidade da doença, uma vez que nos indica a percentagem de mortes causadas especificamente por essa doença (mortalidade específica).

[5] Esta foi a posição que foi atribuída a Portugal no índice GHS de 2019 (v. Global Health Security Index: Building Colective Action and Accountability. October 2019. © Nuclear Threat Initiative 2019). Este índice, baseado em 6 categorias ou factores-chave, 34 indicadores e 85 subindicadores é o mais completo e fiável instrumento de avaliação dos sistemas de saúde construído até à data. Abrange 195 países do mundo, tantos quantos os que estão representados na ONU, mais do que não seja como observadores (Palestina e Vaticano). Desta lista não constam Taiwan, as ilhas Cook e Niue, que não são reconhecidos como Estados independente e soberanos pela ONU.

[6] Um nanómetro é uma unidade de medida de comprimento do sistema métrico, correspondente a 1×10−9 metro ou 0,000000001 metro (um milionésimo de milímetro ou um bilionésimo de metro). O seguinte exemplo poderá ajudar a ter uma ideia mais concreta do nanómetro como unidade de medida e do tamanho do novo coronavírus medido em nanómetros. O fio de cabelo humano (cabelo liso) tem geralmente 60 a 120 micrómetros de diâmetro (vulgo, espessura). Um micrómetro equivale a 1.000 nanómetros. Um fio de cabelo tem, portanto, entre 60.000 e 120.000 nanómetros de diâmetro. Por conseguinte, precisaríamos de cortar esse fio 1.000 vezes no sentido do comprimento para fazer um fio que tivesse o tamanho de um virião de SARS-CoV-2. Ver também Cuffari, Benedette (2020). “The Size of SARS-CoV-2 Compared to Other Things”. https://www.news-medical.net/health/The-Size-of-SARS-CoV-2-Compared-to-Other-Things.aspx 1/5

[7] Zhang, Renyi et al. (2020). “Identifying airborne transmission as the dominant route for the spread of COVID-19”. PNAS June 30, 2020 117 (26) 14857-14863; first published June 11, 2020; Abkarian, Manouk et al. (2020). “Speech can produce jet-like transport relevant to asymptomatic spreading of virus”. PNAS October 13, 2020 117 (41) 25237-25245; first published September 25, 2020; Morawska, Lidia & Donald K. Milton (2020). “It Is Time to Address Airborne Transmission of Coronavirus Disease 2019 (COVID-19)”. Clinical Infectious Diseases® 2020;XX(XX):1–4; Fennelly, Kevin P. (2020). “Particle sizes of infectious aerosols: implications for infection control”. Lancet Respir Med 2020; 8: 914–24 Published Online July 24, 2020.

[8] Poland, Gregory A. et al. (2020). “SARS-CoV-2 Vaccine Development: Current Status.” Mayo Clin Proc. 2020;95(10):2172-2188; Krammer, Florian (2020). “SARS-CoV-2 vaccines in development.” Nature. Published on line 23 September 2020. https://doi.org/10.1038/s41586-020-2798-3.

[9] Sommerstein, Rami et al. (2020). Risk of SARS-CoV-2 transmission by aerosols, the rational use of masks, and protection of healthcare workers from COVID-19”. Antimicrobial Resistance & Infection Control volume 9, Article number: 100 (2020). Robertson, Paddy (2020). “Can Masks Capture Coronavirus Particles?”. https://smartair filters.com/en/blog/can-masks-capture-coronavirus/; Talhelm, Thomas (2020). “N95 Masks vs. Surgical Masks — Which Is Better at Preventing the Coronavirus? https://smartairfilters.com/en/blog/n95-mask-surgical-prevent-transmissioncoronavirus/?rel=1. Ueki, Hiroshi et al. (2020). “Effectiveness of Face Masks in Preventing Airborne Transmission of SARS-CoV-2”. mSphere 5:e00637-20.https://doi.org/10.1128/mSphere.00637-20; CDC (2020). “Scientific Brief: Community Use of Cloth Masks to Control the Spread of SARS-CoV-2”. Updated Nov. 10, 2020. https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/more/masking-science-sars-cov2.html; Sandle, Tim (2020). “Essential Science: Why face masks can prevent coronavirus spread”. August 10, 2020. www. digitaljournal.com/tech-and-science/science/essential-science-why-face-masks-can-prevent-coronavirus -spread/article/576113; Asadi, Sima et al. (2020). “Efficacy of masks and face coverings in controlling outward aerosol particle emission from expiratory activities”. Scientific Reports (2020) 10:15665. https://doi.org/10.1038/s415 98-020-72798-7; Fangueiro, Raul et al. (2020). Máscaras de Protecção. Fibrenamics; Marisa Sousa & Sofia Gersão (2020). Argumentação e Evidência Científica para o uso generalizado de Máscaras pela População Portuguesa. Conselho de Escolas Médicas Portuguesas; Paul Edelstein, Lalita Ramakrishnan (2020), Report on Face Masks for the General Public - An Update. DELVE Addendum MAS-TD1. 7 July 2020. https://rs-delve.github.io/addenda/2020/07/07/masks-update.html.

[10] A minha conjectura não é arbitrária. Tem uma base factual. Se não atente-se, por exemplo, nestas declarações de Carla Nunes, directora da Escola Superior de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa.

A Escola Nacional de Saúde Pública acaba de lançar o projecto “The Gate – Public Health Knowledge Centre”. Em que consiste?

É um centro de conhecimento em saúde pública. É uma ideia que surgiu antes da COVID-19 e que visa criar um museu vivo baseado em ciência. Em inglês diz-se life research museum

 […]

No evento do lançamento do “The Gate” [na semana passada] tivemos cinco ex-ministros da Saúde, Maria de Belém, Correia de Campos, Fernando Leal da Costa, Adalberto Campos Fernandes e Paulo Macedo. E quatro destes foram ou são ainda professores na escola. Mas nós não contratamos ex-ministros. Correia de Campos e Adalberto Campos Fernandes já eram nossos professores antes de serem ministros e Maria de Belém foi nossa aluna antes de ser ministra. Nós formamos as elites, não contratamos as elites. Esta é a grande marca da escola. (Público, 5 de Outubro de 2020) [destaque a traço grosso acrescentado por mim]

[11] Recentemente, Henrique Oliveira (cf. nota 2), defendeu também esta medida, argumentando que as pessoas que trabalham “não têm dinheiro para andar a comprar máscaras novas todos os dias”. Público, 6 de novembro 2020. Não acho que este argumento seja válido e entendo mesmo que prejudica a defesa correcta da medida correcta que procura justificar. Ninguém tem de comprar máscaras todos os dias. Pode comprá-las, no número necessário, de uma só vez, semanalmente ou mensalmente. As máscaras, como toda gente sabe, vendem-se avulso, à peça, ou em lotes de dezenas ou centenas. Não é verdade também que todas as pessoas que trabalham não tenham dinheiro para comprar máscaras. Os professores universitários, por exemplo, ganham mais do que o suficiente para arcar com essa despesa suplementar. A distribuição grátis à população de máscaras justifica-se por ser uma medida universal de saúde pública, ao mesmo título, por exemplo, dos testes diagnóstico do SARS-CoV-2 que são gratuitos (quando efectuados por prescrição de um médico do SNS), apesar de serem muitíssimo mais caros do que as máscaras. O custo de tais medidas deve ser consignado nas verbas para a saúde do Orçamento de Estado, as quais são financiadas pelo dinheiro dos impostos. 

[12] Os testes moleculares TAAN, conhecidos em Inglês como testes RT-PCR, verificam se o vírus SARS-CoV-2, que provoca a doença conhecida como COVID-19 está presente numa amostra. Para o fazer é pesquisado material genético (ácido ribonucleico, ARN) do vírus. Caso seja identificado ARN do vírus numa amostra isso significa que o vírus está presente e, portanto, que havia uma infecção ativa quando a amostra foi obtida. RT significa reverse transcriptase, ou, em Português, transcriptase reversa, e PCR significa polimerase chain reaction, ou, em Português, reação em cadeia da polimerase. Estes testes servem, em suma, para a pesquisa do ácido nucleico do vírus por transcrição reversa, seguida de reação em cadeia da polimerase em tempo real. A amostra para estes testes do vírus SARS-CoV-2 é o exsudado nasal (nasofaríngeo) colhido com uma zaragatoa (que se assemelha a um bastonete comprido). A recolha correcta das amostras é determinante, nomeadamente para não se obterem resultados falsos negativos por ter sido recolhida uma amostra insuficiente.

[13] Os testes TRAg de pesquisa de antigénio permitem detectar as proteínas do coronavírus SARS-CoV-2, que causa a doença respiratória denominada COVID-19. Contrariamente aos testes moleculares TAAN, que têm sido vulgarmente utilizados para detectar material genético do vírus, os testes TRAg não implicam o recurso a um laboratório, visto que utilizam equipamento portátil, e podem dar resultados num intervalo entre 10 e 30 minutos, mas têm uma sensibilidade inferior, podendo gerar mais “falsos positivos”. Inversamente, os testes TAAN, apesar de terem muito maior fiabilidade, têm de ser realizados em laboratórios e requerem pessoal e equipamento especializado, tornando o diagnóstico de casos e o rastreamento de contactos mais moroso (os resultados dos testes só ficam disponíveis de 24 a 72 horas depois, na actual conjuntura laboratorial portuguesa), complicado e dispendioso. De acordo com a norma Norma N.º 019/2020, de 26/10/2020, da DGS, relativa à Estratégia Nacional de Testes para SARS-CoV-2, que entrou em vigor em 9 de Novembro, os testes TRAg estão indicados para:

— Pessoas com sintomas e indicação para vigilância clínica e isolamento no domicílio nos primeiros cinco dias (inclusive) de doença;

— Pessoas assintomáticas que tiveram ou mantêm contacto de alto risco (por exemplo, profissionais de saúde) com algum caso confirmado de Covid-19, se o teste molecular não estiver disponível ou não permitir a obtenção do resultado em menos de 24 horas;

— Surtos em escolas, lares e outras instituições, sob coordenação das equipas de saúde pública;

— Doentes sintomáticos com indicação para internamento, mas antes de serem admitidos, nos casos em que o teste molecular não esteja disponível ou não permita obter resultados em tempo útil;

— Pessoas sem sintomas e sem contacto de alto risco com caso confirmado, no contexto da admissão hospitalar, em estruturas residenciais para idosos, em unidades da rede nacional de cuidados continuados integrados e em instituições de acolhimento social, entre outras.

Em todos estes casos, o uso de testes rápidos de detecção de antigénio visa prevenir ou limitar a incidência da COVID-19 na população (a começar pelos grupos mais vulneráveis) e mitigar o seu impacto no SNS.

[14] Um oxímetro é um dispositivo usado para monitorizar a quantidade de oxigénio que é transportado pelo corpo. Esse dispositivo não invasivo conecta-se sem dor à ponta do dedo, ou a um lóbulo da orelha, enviando dois comprimentos de onda de luz através do dedo para medir a nossa taxa de pulso e quanto oxigénio há no nosso sistema vascular. Uma vez terminada a sua avaliação, o oxímetro exibirá no seu mostrador a percentagem de oxigénio no sangue proveniente do coração, bem como a taxa de pulso no momento. Ver, a este propósito,  Xie, Jiang et al.  (2020). “Association Between Hypoxemia and Mortality in Patients With COVID-19”. Mayo Clin Proc. June 2020;95(6):1138-1147. https://doi.org/10.1016/j.mayocp.2020.04.006; Pan American Health Organization & World Health Organization (2020).  “Technical and Regulatory Aspects of the Use of Pulse Oximeters in Monitoring COVID-19 Patients” 7 August 2020. www.paho.org; Shenoy, Nirah et al. (2020). “Considerations for target oxygen saturation in COVID-19 patients: are we under-shooting?”. BMC Medicine (2020) 18:260. https://doi.org/10.1186/s12916-020-01735-2.

[15] O projecto de decreto-lei do Presidente da República que declarou o Estado de Emergência em Portugal entre 23 de Março e 1 de Maio de 2020 foi aprovado, em 18 de Março, na Assembleia da República, sem nenhum voto contra. PS, PSD, BE, CDS, PAN e Chega votaram a favor. PCP, PEV, IL e a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira abstiveram-se.

[16] O projecto de decreto-lei do Presidente da República que declarou o Estado de Emergência em Portugal entre 9 e 23 de Novembro foi aprovado na Assembleia da República em 6 de Novembro, com os votos a favor do PS, PSD, CDS e da deputada não inscrita Cristina Rodrigues. Bloco de Esquerda, PAN e Chega abstiveram-se, enquanto PCP, PEV, Iniciativa Liberal e a deputada não inscrita Joacine Katar Moreira votaram contra.

[17] “COVID-19 Alert System in New Zealand”.https://covid19.govt.nz/alert-system/about-the-alert-system/

[18] Ghandi, Rajesh T. et al. (2020). “Mild or Moderate Covid-19”. N. Engl J Med 383;18 October 29, 2020. nejm.org ; Alwan, Nisreen A. (2020). “Surveillance is underestimating the burden of the COVID-19 pandemic.” The Lancet, Vol 396, Issue 10252, E24, 5 September. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20) 31823-7; BMJ (2020). “Long Covid: how to define it and how to manage it.” 370 doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m3489 (Published 07 September 2020); Ahmed, Hassaan et al.(2020). “Long-term clinical outcomes in survivors of coronavirus outbreaks after hospitalisation or ICU admission: a systematic review and meta-analysis of follow-up studies.” medRxiv 2020.04.16.20067975; doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.16.20067975; Mahese, Elisabeth (2020). “Covid-19: What do we know about “long covid?” BMJ 2020; 370:m2815 http://dx.doi.org/ 10.1136/bmj.m2815; Nature (2020). “Editorial: Long COVID: let patients help define long-lasting COVID symptoms.” Nature. 2020; 586:170; Suett, Jake et al. (2020). “From Doctors as Patients: A manifesto for Tackling Persistent Symptoms of COVID-19.” BMJ 2020; 370 doi: https://doi. org/10.1136/bmj.m3026- (Published 11 August 2020).

[19] Custo do internamento de doentes COVID-19 em unidades de cuidados intensivos: 6.036 euros por cada doente até 96 horas de ventilação; 8.431 euros, para mais de 96 horas. Estes números foram divulgados pela ministra da Saúde, Marta Temido, na conferência de imprensa de atualização dos números da COVID-19 no país realizada em 13 de Novembro de 2020.

[20] «O líder do CDS-PP, Francisco Rodrigues dos Santos, afirmou hoje que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lhe garantiu na audiência de segunda-feira que “não está equacionada uma requisição civil” na saúde no âmbito do estado de emergência» (MadreMedia/Lusa, 3 de Novembro de 2020).