Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

12 abril, 2021

 tema 3

Ainda não sabem que são fascistas 

José Catarino Soares

 

1. Introdução

 

José Sócrates foi primeiro-ministro do governo português entre 2005 e 2009, depois do seu partido, o Partido Socialista (PS), ter obtido uma maioria absoluta no parlamento (121 deputados, 52%) com 2.588.312 votos (45% dos votos expressos) nas eleições legislativas de 2005.  Foi a primeira e única vez, até à data, que o PS conseguiu uma maioria absoluta.

Em 2009, José Sócrates e o PS tornaram a obter a maioria, mas desta vez relativa, nas eleições legislativas, com 2.077.238 votos (36,6% dos votos expressos), que lhes deram 91 deputados (42,17%) no parlamento.

Em Março de 2011, José Sócrates pediu a demissão e o seu governo caíu. Nas eleições legislativas antecipadas realizadas em Abril desse ano, o PS perdeu a maioria relativa em favor do PSD, o qual, juntamente com o CDS, formou um governo de coligação, maioritário em votos (50,4% dos votos expressos) e deputados (132 deputados, 57,9 %). Perante esta derrota, José Sócrates demitiu-se de secretário-geral do PS na noite das eleições.

 

2. Operação Marquês

 

Em 21 de Novembro de 2014, José Sócrates foi detido aparatosamente no Aeroporto de Lisboa, à sua chegada de Paris, com ampla cobertura em directo de uma estação de televisão (Correio da Manhã) do Grupo Cofina, indiciado por crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais, corrupção e tráfico de influências, no âmbito da chamada Operação Marquês. Três dias depois e após ter sido interrogado pelo juiz Carlos Alexandre, este optou por colocar o ex-primeiro ministro em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Évora, instalação de alta segurança inaugurada durante o seu mandato. Esteve preso 288 dias em prisão preventiva e mais 42 em prisão domiciliária. Em 6 de Outubro de 2015, foi-lhe aplicada a medida de coacção denominada “Termo de Identidade e Residência”, com proibição de contactar os restantes arguidos do processo Operação Marquês e de sair do país sem autorização prévia.

Em Janeiro de 2019 deu-se início à fase instrutória do processo no Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa. Em 9 de Abril de 2021, o juiz Ivo Rosa leu a súmula da decisão instrutória da Operação Marquês. A decisão implica que José Sócrates será julgado por seis crimes: três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos.

9 de Abril de 2021. O juiz Ivo Rosa lê durante mais de 3 horas uma súmula da decisão instrutória do processo Operação Marquês. Foto de Mário Cruz. Lusa. Pool


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Um crime de branqueamento de capitais de José Sócrates por utilização de contas bancárias junto do Montepio Geral da arguida Inês do Rosário, em coautoria com Carlos Santos Silva;

# Um crime de branqueamento de capitais de José Sócrates, em coautoria com Carlos Santos Silva, relativamente ao uso das contas bancárias do arguido João Perna;

# Um crime de branqueamento de capitais de José Sócrates envolvendo 167.402,5 euros com origem no arguido Carlos Santos Silva no interesse do arguido José Sócrates;

# Um crime de falsificação de documentos de José Sócrates, em coautoria com Carlos Santos Silva, relativo à produção de documentação do arrendamento de um apartamento em Paris;

# Um crime de falsificação de documentos de José Sócrates, em coautoria com Carlos Santos Silva, referente a contratos de prestação de serviços da RMF Consulting e envolvendo figuras como Domingos Farinho;

# Um crime de falsificação de documentos de José Sócrates em coautoria com Carlos Santos Silva relativo a contratos de prestação de serviços da RMF Consulting e envolvendo figuras como António Manuel Peixoto e António Mega Peixoto

Quanto aos restantes crimes imputados a José Sócrates (e Carlos Santos Silva), «profere-se decisão de não pronúncia», disse Ivo Rosa. Ou seja, José Sócrates não vai ser julgado por nenhum dos crimes de corrupção de que era acusado pelo Ministério Público.

A tese do procurador do Ministério Público, Rosário Teixeira, é a de que José Sócrates recebeu cerca de 34 milhões de euros, entre 2005 e 2015, a troco de favorecer interesses de Ricardo Salgado no Grupo Espírito Santo (GES) e na Portugal Telecom (PT), de favorecer interesses de Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa para garantir a concessão de financiamento da Caixa Geral de Depósitos ao empreendimento imobiliário Vale do Lobo, no Algarve, e de favorecer negócios, nomeadamente fora do país, do Grupo Lena.

O juiz Ivo Rosa concluiu que o Ministério Público não apresentou provas que sustentassem esses crimes de corrupção e que os indícios apresentados pelo Ministério Público na sua acusação padeciam de «incoerência total», «fantasia e especulação» ou eram «inócuos». Todavia, o juiz Ivo Rosa formou a convicção, baseada em indícios e elementos de prova carreados pelo Ministério Público que considerou consistentes, de que José Sócrates foi corrompido pelo seu amigo Carlos Santos Silva. Na tese do juiz Ivo Rosa, Carlos Santos Silva não era o testa de ferro para o dinheiro que José Sócrates teria recebido  – a tese do Ministério Público – antes um corruptor.

Segundo Ivo Rosa, os 1,7 milhões de euros das contas de Carlos Santos Silva que serviram para pagar – ora em dinheiro vivo, ora directamente – viagens ou as despesas, de amigas e ex-mulher de Sócrates e do próprio, não configuram um crime. Porém, a forma como o dinheiro era feito chegar a Sócrates e as despesas pagas indiciam «um mercadejar do cargo» (sic) e um certo «clima» de utilização do cargo de primeiro-ministro, tendo em conta os montantes. «O facto de ser primeiro-ministro conduzia a essas entregas», disse o juiz, para quem «Carlos Santos Silva era pago pelo Grupo Lena para abrir portas»Por isso, transferindo verbas para o seu amigo José Sócrates, podemos estar, concluiu o juiz, perante a prática de actos que configuram um «crime de corrupção activa e passiva sem demonstração de acto concreto».  

Todavia, já se deu uma prescrição desse crime. Apesar de ter considerado que esse crime de corrupção já prescreveu, o juiz de instrução considerou que o mesmo podia relevar para efeitos da imputação de outros crimes, nomeadamente de lavagem de dinheiro sujo. E por isso decidiu levar José Sócrates e Carlos Santos Silva a julgamento pelos seis crimes já referidos.

9 de Abril de 2021, Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. José Sócrates escuta a leitura da súmula da decisão instrutória sobre o processo Operação Marquês. 

 3. Reacções

A decisão instrutória do juiz Ivo Rosa é um documento com 6.728 páginas. Para a ler com a devida atenção e olho crítico são necessárias várias semanas. Quem queira refutá-la precisará no mínimo de 120 dias tantos quantos requereu o procurador do Ministério Público Rosário Teixeira para a poder contestar.

No entanto, isso não impediu que a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa tivesse desencadeado imediatamente uma enxurrada de juízos muito severos por parte da grande maioria dos comentadores das estações de televisão, de rádio e dos jornais e uma onda de insultos e invectivas ressumando ódio e fúria nas redes sociais. 

Foram também muitos os que vieram rasgar as vestes em público e fazer prova de uma sapiência jurídica que até agora ninguém lhes conhecia. Por exemplo, o editor (ele prefere dizer publisher) e colunista do Observador, José Manuel Fernandes, afirmou, do alto da sua cátedra em direito criminal, que a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa «não foi um erro da Justiça. Foi um insulto ao país» (Observador, 10 de Abril de 2021)Outro grande jurista ignoto, o jornalista João Miguel Tavares, não hesitou em afirmar que «Ivo Rosa não salvou José Sócrates. Salvou o sistema que o alimentou e que ele próprio promoveu» (Público, 9 de Abril de 2012). O director do Público, Manuel Carvalho – que nos informa, no seu CV, ser «licenciado em História» e «escrever sobre tudo um pouco, principalmente nas áreas da economia associadas ao desenvolvimento regional, à indústria e à agricultura» – sentenciou no mesmo dia em que Ivo Rosa leu a sua decisão instrutória : «Esta sexta-feira, tivemos um juiz que preferiu investir-se de um papel de guardião da análise textual, em vez de privilegiar a lógica dos indícios ou dos factos. O juiz preferiu vestir a toga do burocrata em detrimento da sua função de promotor da Justiça» (A corrupção nunca existiu”, Público, 9 de Abril de 2021). Um ex-candidato à presidência da República, Henrique Neto, chegou a dizer que «Ivo Rosa é uma espécie de OVNI do sistema de justiça português» (TVI24, 10 de Abril de 2021). 

O ex-secretário de Estado, ex-ministro, ex-deputado, ex-chefe do grupo parlamentar e ex-presidente do PSD, conselheiro de Estado e comentador da SIC, Marques Mendes, foi ainda mais longe ao afirmar: «Este juiz [Ivo Rosa] ou é ingénuo ou faz-se de ingénuo ou vive num mundo à parte. Em qualquer dos casos, um homem assim é um perigo à solta» (SIC, 11 de Abril de 2021). Em 18 de Abril, na mesma estação de televisão, Marques Mendes voltou à carga, desta vez para qualificar a alegada ingenuidade de Ivo Rosa de «ingenuidade delirante», acrescentando que a sua decisão instrutória «foi um arraso na confiança dos cidadãos na justiça». Por seu turno, o ex-dirigente estudantil do PCP, ex-secretário de Estado do VI governo provisório, ex-deputado constituinte do PS, ex-ministro do PS no 1º Governo constitucional, ex-reformador da AD [Aliança Democrática:coligação formada pelo PSD, CDS, PPM e Movimento dos Reformadores], ex-deputado do PS, ex-presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, António Barreto, declarava, em tom tétrico, sobre a decisão instrutória do Tribunal de Investigação Criminal relativa ao processo Operação Marquês: «Nunca imaginei que fosse possível assistir, em directo, ao quase suicídio de uma instituição. O que se passou nesta última semana andou muito perto disso, de um gesto sacrificial ou de uma descida aos infernos. A Justiça portuguesa nunca conseguirá, antes de muitos anos, recuperar uma parcela do prestígio perdido, que já era pouco, mas parecia recuperar gradualmente. Este espectáculo indecoroso foi na verdade o último acto de um folhetim» (Escombros”, Público, 17 de Abril de 2021). [ver Nota] 

O expoente máximo desta onda de “histeria colectiva” e de “tiro ao juiz”, como a qualificou um professor da faculdade de direito da Universidade do Porto (André Lamas Leite, “A Histeria Colectiva”, Público, 11 de Abril de 2021), foi uma petição redigida por um cidadão que dá pelo nome de Vítor Manuel de Magalhães Miranda Neves, dirigida ao «Exmo Senhor Presidente da Assembleia da República», ao «Exmo Senhor Provedor de Justiça» [os peticionários desconhecem que este cargo é actualmente exercido por uma mulher daí “o senhor”] e ao «Exmo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça». A petição solicita «o afastamento do Sr. Juiz Ivo Nelson de Caires Batista Rosa de toda a Magistratura», «face à sua parcialidade e consecutivos erros judiciais lesivos ao Estado e à Nação Portuguesa», alegando ainda que ele «não tem perfil, rigor e equidade para exercer tal cargo».

No momento em que escrevo (dia 12 de Abril de 2021, 17h23), a petição já tinha recolhido 177.860 assinaturas.

 

4.  Montesquieu  

 

Há, porém, um pequeno e um grande problema com esta petição, de que os seus subscritores não parecem ter a mínima consciência.

O pequeno problema é que as entidades a quem a petição é dirigida não têm qualquer competência para satisfazer a sua pretensão. A Constituição da República Portuguesa em vigor estabelece  a independência dos tribunais (artigo 203.º) e que os juízes não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei (artigo 216.º).

A Constituição estabelece também (artigo 111.º) a separação entre o chamado poder executivo (vulgo, o governo e o Presidente da República), o poder legislativo (vulgo, o parlamento) e o poder judiciário (vulgo, os tribunais). Nenhum destes poderes, designados na Constituição por “órgãos de soberania”, se pode sobrepor aos demais; nenhum deles pode interferir no funcionamento quotidiano dos demais, a não ser pelas vias legais.

Este princípio da separação dos poderes foi claramente formulado por Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu, na sua obra De l’Esprit des Lois (1748) [Sobre o Espírito das Leis]. Mas a verdade é que esse princípio já tinha sido proposto por Aristóteles no seu tratado A Política escrito talvez entre 343-335 a.C., o período em que foi preceptor de Alexandre O Grande. O mesmo princípio foi ulteriormente retomado por Nicolau Maquiavel em O Príncipe (1515) e por John Locke no Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1680). Ambos influenciaram Montesquieu.

Capa da edição original (1748) do livro Sobre o Espírito das Leisde Montesquieu.
«Loix» era a grafia antiga de «lois» [leis].   


Podemos, pois, presumir, relativamente ao senhor Vítor Manuel de Magalhães Miranda Neves e aos seus 177.859 compinchas, que, de duas uma: ou (i) nunca ouviram falar de Montesquieu, ou sequer da separação dos três poderes políticos, ou (ii) estão-se borrifando para essa separação. Provavelmente, estes peticionários distribuem-se pelos dois grupos: (i) e (ii).

 

5. Fascistas que ainda não sabem que o são

 

O grande problema com esta petição é que o que os peticionários pedem  sejam eles do grupo (i) ou do grupo (ii)  só pode ser atendido por um regime fascista. É no fascismo que os três poderes se amalgamam no “princípio do chefe” (Al. Führerprinzip), segundo o qual “a palavra e a vontade do chefe estão acima das leis escritas e todas as políticas públicas, todas as decisões administrativas, todas as decisões judiciais, todos os cargos públicos devem trabalhar para a realização desse desiderato”. 

Depois da “Noite dos Longos Punhais” (30 de Junho de 1934) – quando assassinou e mandou assassinar Ernst Röhm e dezenas de “camisas castanhas” (o nome coloquial dos membros do SA, uma milícia paramilitar do seu partido) e prender milhares de outros camisas castanhas”,  para assim agradar ao comando da Reichswehr (as Forças Armadas alemãs)  Adolf Hitler ilustrou bem esse princípio ao declarar no Reichstag (o parlamento alemão que o regime nazi transformou numa câmara de eco de Hitler), em 13 de Julho de 1934: «Nessa hora, eu era responsável pelo destino da nação alemã e era, por conseguinte, o juíz supremo do povo Alemão!».

Ernst Röhmer, comandante do Sturmabteilung (SA)[Destacamento Tempestade, usualmente traduzido como “Secções de Assalto”], uma das milícias paramilitares do partido nazi, cujos membros eram conhecidos como os Camisas Castanhas. 13 de Agosto de 1933. Bundesarchiv_Bild_102-15282A. 


João Bernardo (J.B.) publicou há uns anos (2014), na revista electrónica brasileira Passa Palavra, um excelente estudo, em 5 partes, intitulado Ainda não sabiam que eram fascistas, que passou a ser a versão ampliada e actualizada das páginas 390-419 do seu livro Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (Porto: Afrontamento, 2003). Nesse estudo se mostra quem foram e como actuaram os pioneiros do fascismo na Europa, mas que ainda não sabiam que eram fascistas porque, como diz J.B., «na história, os actores, ou autores, desconhecem
[o mais das vezes] o enredo em que participam, ou que julgam escrever» (o parêntese entre colchetes foi intercalado por mim).

Esta observação aplica-se também à petição para afastar o juíz Ivo Rosa. Na sua maioria, os seus subscritores são fascistas que ainda não sabem que o são.

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Declaração de interesses. Nunca falei nem nunca me cruzei com José Sócrates. Nunca votei nele nem no PS, o seu ex-partido. Não tenho nenhum apreço pelas suas ideias políticas. Também não conheço nem nunca falei com o juíz Ivo Rosa. Mas não alinho com nenhuma “caça às bruxas”, seja qual for o nome das pretensas bruxas: José Sócrates, Ivo Rosa ou outro qualquer.

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[Nota] Todo este parágrafo que começa por “O ex-secretário de Estado, ex-ministro...” e termina em  Público, 17 de Abril de 2021”, foi acrescentado por mim em 19 de Abril de 2021. Nessa data, às 11h,14m, a petição para afastar o juíz Ivo Rosa já tinha recolhido 193.401 assinaturas.