Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

07 maio, 2017

Tema 2


2ª volta das eleições presidenciais francesas:
o ponto de vista de Audrey Vernon


Audrey Vernon, nascida em 1980, é uma talentosa comediante, humorista, encenadora e dramaturga francesa. Entre outras actividades, mantém uma crónica semanal (Le billet de Audrey Vernon) na France Inter, a principal estação pública francesa de radiodifusão.

                              Audrey Vernon. Foto da Agences Artistiques

Na antevéspera da 2ª volta das eleições presidenciais francesas, Audrey Vernon leu, aos microfones da France Inter, um bilhete público intitulado : Joyeux Anniversaire, Karl Marx [Feliz Aniversário, Karl Marx]. É um pequeno primor radiofónico  tem uma duração oral de 2 minutos e poucos segundos  que merece ser divulgado, ainda que não seja no canal e no idioma originais. É o que se fará aqui, mais abaixo. A tradução é minha (J.M.C.S), assim como os parênteses rectos. 

As palavras inglesas das primeiras duas linhas do texto não foram traduzidas. Só faria sentido fazê-lo se representassem uma manifestação dessa forma pedante de servilismo, muito em voga, que consiste em salpicar o que se diz com algumas palavras em inglês para se dar a entender que se apoia a "globalização" made in USA de alma e coração. Mas não é esse o caso.

Pelo contrário, essas palavras obedecem, na economia de meios do texto (um bilhete público), a objectivos precisos. Com a forma de tratamento («Dear»+Karl) e os votos de parabéns («Happy Birthday») em inglês, a autora quis evocar o facto de Karl Marx, embora tivesse nascido e sido educado na Prússia (hoje Alemanha), ter vivido a maior parte da sua vida, como apátrida, em Inglaterra, sempre em Londres. Foi nesse país que encontrou refúgio depois de ter sido expulso da França, da Bélgica e da própria Prússia, e foi nessa cidade que viveu dos 31 anos de idade (1849) até à sua morte (1883) com 65 anos. Por outro lado, com a expressão «Old Nick» (designação jocosa do diabo em inglês), a autora quis lembrar-nos, o que poucos saberão, que era essa a alcunha que Marx dava a si próprio quando escrevia às suas três filhas  cartas, bilhetes, dedicatórias em fotografias, etc. Presumo pois que, ao dirigir-se a Marx dessa forma carinhosa e tão íntima, Audrey Vernon quis fazer-nos saber que se considera também, de certa maneira, uma sua filha. 

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Paris, 5 de Maio de 2017

Dear Karl, hoje é o teu aniversário, terias 199 anos…

Happy Birthday, Old Nick.

Escrevo-te de Paris, onde estiveste refugiado em 1844 e 1845.

Bom, não estarias muito contente se andasses hoje por este mundo. Ainda há muitas crianças que dormem nas ruas e que não comem o suficiente para matarem a fome. Mas, por outro lado, ao contrário do que sucedia na tua época, a carência objectiva já não existe  — quer dizer, a Terra poderia alimentar 12 mil milhões de pessoas, mas isso não acontece porque continuamos a ser idiotas.

Daqui a dois dias, vai-se decidir qual será o membro da classe dirigente que irá representar e espezinhar o povo [francês]. Está bem dito? Bem, a frase é tua, em La guerre civile en France ["A guerra civil em França", um livro escrito por Marx, em Maio de 1871 e em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, para analisar, defender e divulgar os feitos da Comuna de Paris que tinha acabado de sucumbir à repressão].

Não conseguimos ainda livrarmo-nos desse bricabraque, dessa superstição como tu dizes, que é o Estado. Não sei como é que fazemos para conseguir que o Estado, que deveria ser em princípio o nosso servidor, acabe sempre por se transformar no nosso amo. Este ano temos a escolha entre um banqueiro e uma nacionalista. Não vai ser o bodo para os pobres e os oprimidos.

Somos 65 milhões [de franceses] e, no fim de contas, temos sempre a escolha entre duas pessoas de que ninguém gosta verdadeiramente. Talvez seja porque, no fundo, detestamos ser governados.

Seja como for, obrigado, Karl. Foste tu que escreveste O Capital. Claro, eu sei que sabes que foste tu quem escreveu O Capital. Mas saberás tu que O Capital se tornou o capital, a palavra mais importante da nossa época? Toda a gente acredita que és o pai do comunismo, apesar de o comunismo existir muito antes de ti. Não, tu és o pai do capitalismo. Foste tu quem baptizaste o nosso sistema económico. Ao escreveres O Capital, tu descobriste esse sistema da mesma maneira que Cristovão Colombo descobriu a América. Aliás, é estranhíssimo que, quando hoje se quer criticar o teu pensamento, se contem os mortos do comunismo, mas que ninguém pense em homenagear-te contando os mortos do capitalismo.

Tudo o que escreveste se verifica hoje, chega mesmo a repetir-se, como uma farsa. Por exemplo, neste momento na Whirlpool [entenda-se, na sucursal francesa, em Amiens, desta multinacional americana, o maior fabricante mundial de electrodomésticos], as pessoas batem-se para continuar a fabricar secadores de roupa [os trabalhadores da Whirlpool-Amiens entraram em greve, em 24 de Abril, contra o fecho anunciado desta fábrica]. Mas, no fundo,  estão-se nas tintas para o fabrico de secadores de roupa. O que elas querem, e é legítimo, é um salário. E os capitalistas que possuem a empresa também se estão nas tintas para os secadores de roupa. O que desejam, e que é legítimo do ponto de vista que é o deles, é a mais-valia extraída do trabalho das pessoas que fabricam os secadores de roupa. Dessa forma, transforma-se tudo e mais alguma coisa em objectos de que mais ninguém tem necessidade. Deitam-se ao mar contentores cheios de secadores de roupa, tudo isso para poder continuar a fabricá-los, só para se extrair deles a mais-valia (outro conceito da tua lavra). É a alquimia mais imbecil do mundo.

Obrigado, Karl. Deste-nos as palavras necessárias para compreendermos o que se passa, este mal-estar que avassala a população, porque tudo isto, no fundo, não tem nenhum sentido e toda a gente o sente.

Feliz aniversário, Karl Marx.

Audrey Vernon