Tema 2
2ª volta das eleições presidenciais francesas:
o ponto de vista de Audrey Vernon
Audrey Vernon, nascida em 1980, é uma talentosa comediante, humorista, encenadora e dramaturga francesa. Entre outras actividades, mantém uma crónica semanal (Le billet de Audrey Vernon) na France Inter, a principal estação pública francesa de radiodifusão.
Audrey Vernon. Foto da Agences Artistiques
Na antevéspera da 2ª volta das eleições presidenciais francesas, Audrey Vernon leu, aos microfones da France Inter, um bilhete público intitulado : Joyeux Anniversaire, Karl Marx [Feliz Aniversário, Karl Marx]. É um pequeno primor radiofónico — tem uma duração oral de 2 minutos e poucos segundos — que merece ser divulgado, ainda que não seja no canal e no idioma originais. É o que se fará aqui, mais abaixo. A tradução é minha (J.M.C.S), assim como os parênteses rectos.
As palavras inglesas das primeiras duas linhas do texto não foram traduzidas. Só faria sentido fazê-lo se representassem uma manifestação dessa forma pedante de servilismo, muito em voga, que consiste em salpicar o que se diz com algumas palavras em inglês para se dar a entender que se apoia a "globalização" made in USA de alma e coração. Mas não é esse o caso.
Pelo contrário, essas palavras obedecem, na economia de meios do texto (um bilhete público), a objectivos precisos. Com a forma de tratamento («Dear»+Karl) e os votos de parabéns («Happy Birthday») em inglês, a autora quis evocar o facto de Karl Marx, embora tivesse nascido e sido educado na Prússia (hoje Alemanha), ter vivido a maior parte da sua vida, como apátrida, em Inglaterra, sempre em Londres. Foi nesse país que encontrou refúgio depois de ter sido expulso da França, da Bélgica e da própria Prússia, e foi nessa cidade que viveu dos 31 anos de idade (1849) até à sua morte (1883) com 65 anos. Por outro lado, com a expressão «Old Nick» (designação jocosa do diabo em inglês), a autora quis lembrar-nos, o que poucos saberão, que era essa a alcunha que Marx dava a si próprio quando escrevia às suas três filhas — cartas, bilhetes, dedicatórias em fotografias, etc. Presumo pois que, ao dirigir-se a Marx dessa forma carinhosa e tão íntima, Audrey Vernon quis fazer-nos saber que se considera também, de certa maneira, uma sua filha.
As palavras inglesas das primeiras duas linhas do texto não foram traduzidas. Só faria sentido fazê-lo se representassem uma manifestação dessa forma pedante de servilismo, muito em voga, que consiste em salpicar o que se diz com algumas palavras em inglês para se dar a entender que se apoia a "globalização" made in USA de alma e coração. Mas não é esse o caso.
Pelo contrário, essas palavras obedecem, na economia de meios do texto (um bilhete público), a objectivos precisos. Com a forma de tratamento («Dear»+Karl) e os votos de parabéns («Happy Birthday») em inglês, a autora quis evocar o facto de Karl Marx, embora tivesse nascido e sido educado na Prússia (hoje Alemanha), ter vivido a maior parte da sua vida, como apátrida, em Inglaterra, sempre em Londres. Foi nesse país que encontrou refúgio depois de ter sido expulso da França, da Bélgica e da própria Prússia, e foi nessa cidade que viveu dos 31 anos de idade (1849) até à sua morte (1883) com 65 anos. Por outro lado, com a expressão «Old Nick» (designação jocosa do diabo em inglês), a autora quis lembrar-nos, o que poucos saberão, que era essa a alcunha que Marx dava a si próprio quando escrevia às suas três filhas — cartas, bilhetes, dedicatórias em fotografias, etc. Presumo pois que, ao dirigir-se a Marx dessa forma carinhosa e tão íntima, Audrey Vernon quis fazer-nos saber que se considera também, de certa maneira, uma sua filha.
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Paris, 5 de Maio de 2017
Dear Karl, hoje é o teu aniversário, terias 199 anos…
Happy Birthday, Old Nick.
Escrevo-te de Paris, onde estiveste refugiado em 1844 e 1845.
Bom, não estarias muito contente se andasses hoje por este mundo. Ainda há muitas
crianças que dormem nas ruas e que não comem o suficiente para matarem a fome.
Mas, por outro lado, ao contrário do que sucedia na tua época, a carência
objectiva já não existe — quer dizer, a Terra poderia alimentar 12 mil milhões de
pessoas, mas isso não acontece porque continuamos a ser idiotas.
Daqui a dois dias, vai-se decidir qual será o membro da classe dirigente que
irá representar e espezinhar o povo [francês]. Está bem dito?
Bem, a frase é tua, em La guerre civile
en France ["A guerra civil em França", um livro escrito por Marx, em Maio de 1871 e em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores, para analisar, defender e divulgar os feitos da Comuna de Paris que tinha acabado de sucumbir à repressão].
Não conseguimos ainda livrarmo-nos desse bricabraque, dessa superstição
como tu dizes, que é o Estado. Não sei como é que fazemos para conseguir que o
Estado, que deveria ser em princípio o nosso servidor, acabe sempre por se
transformar no nosso amo. Este ano temos a escolha entre um banqueiro e uma
nacionalista. Não vai ser o bodo para os pobres e os oprimidos.
Somos 65 milhões [de franceses] e, no fim de contas, temos sempre a escolha entre duas
pessoas de que ninguém gosta verdadeiramente. Talvez seja porque, no fundo,
detestamos ser governados.
Seja como for, obrigado, Karl. Foste tu que escreveste O Capital. Claro, eu sei que sabes que foste tu quem escreveu O Capital. Mas saberás tu que O Capital se tornou o capital, a palavra
mais importante da nossa época? Toda a gente acredita que és o pai do
comunismo, apesar de o comunismo existir muito antes de ti. Não, tu és o pai do
capitalismo. Foste tu quem baptizaste o nosso sistema económico. Ao escreveres O Capital, tu descobriste esse sistema da mesma maneira que
Cristovão Colombo descobriu a América. Aliás, é estranhíssimo que, quando hoje se
quer criticar o teu pensamento, se contem os mortos do comunismo, mas que
ninguém pense em homenagear-te contando os mortos do capitalismo.
Tudo o que escreveste se verifica hoje, chega mesmo a repetir-se, como uma
farsa. Por exemplo, neste momento na Whirlpool
[entenda-se, na sucursal
francesa, em Amiens, desta multinacional americana, o maior fabricante mundial de
electrodomésticos], as pessoas
batem-se para continuar a fabricar secadores de roupa [os trabalhadores da Whirlpool-Amiens entraram em greve, em 24 de Abril, contra o fecho anunciado desta fábrica]. Mas, no fundo, estão-se nas tintas para o fabrico de secadores de roupa. O que elas querem, e
é legítimo, é um salário. E os capitalistas que possuem a empresa também se estão
nas tintas para os secadores de roupa. O que desejam, e que é legítimo do
ponto de vista que é o deles, é a mais-valia extraída do trabalho das pessoas
que fabricam os secadores de roupa. Dessa forma, transforma-se tudo e mais alguma coisa em
objectos de que mais ninguém tem necessidade. Deitam-se ao mar contentores
cheios de secadores de roupa, tudo isso para poder continuar a fabricá-los, só
para se extrair deles a mais-valia (outro conceito da tua lavra). É a
alquimia mais imbecil do mundo.
Obrigado, Karl. Deste-nos as palavras necessárias para compreendermos o que se
passa, este mal-estar que avassala a população, porque tudo isto, no fundo, não
tem nenhum sentido e toda a gente o sente.
Feliz aniversário, Karl Marx.
Audrey Vernon