Esta é 10ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto).
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O
“Dia da Liberdade” no Reino Unido
(ou,
quando a realidade imita a ficção romanesca)
José Catarino Soares
1. A situação pandémica no Reino Unido
O Reino Unido teve, até à data de ontem (20 de Julho de 2021), mais de 5
milhões e meio de pessoas (5.519.602) infectadas com o novo coronavírus
SARS-CoV-2.
Dessas, 128.823 morreram com Covid-19 (a doença provocada por esse vírus) e
cerca de 2 milhões sofrem ou sofreram de “Covid de
longa duração” — o nome dado às sequelas prolongadas e por vezes muito
graves e debilitantes dessa doença. Uma delas é a dra. Natalie MacDermott, de
38 anos. “Costumava correr todos os dias, agora só consigo
andar 200 metros”, declarou à BBC. O seu esclarecedor depoimento a esta
estação de radiotelevisão britânica pode ser visto clicando na seguinte
hiperligação https://www.bbc.com/news/health-57584295.
Dia 20 de Julho de 2021 estavam 4.577 pessoas hospitalizadas com Covid-19 no SNS britânico, das quais 611 se encontravam em unidades de cuidados intensivos. Morreram nesse dia 96 pessoas de Covid-19 (houve um aumento de mortes causado por esta doença de 60,6% nos últimos 7 dias). No sábado, dia 17 de Julho, o Reino Unido registou 54.674 novas infecções pelo SARS-CoV-2; no domingo, 18 de Julho, registou 48.168 novas infecções, e na segunda-feira, dia 19 de Julho, registou 46.558 novas infecções [1]. O próprio ministro da Saúde, Sajid David, admite que o número de novos casos diários de infecção atinja os 100.000 em poucas semanas.
68,8% da população adulta do Reino Unido está vacinada com duas doses contra a Covid-19 e 88% ainda só foi vacinada com uma dose [1]. Olhando de forma mais alargada para a população em geral, ou seja, incluindo os menores de 18 anos, verifica-se que apenas 54% tem o esquema vacinal completo.
Este facto é tanto mais preocupante quanto a variante delta deste vírus, agora predominante, tem infectado maioritariamente a população do sexo masculino dos 15 aos 40 anos. Na última semana de Junho, 59% das mortes por Covid-19 no Reino Unido foram de homens, segundo o Office of National Statistics desse país. Na semana anterior, os indivíduos do sexo masculino constituiam mais de 70% de todas as mortes por Covid-19. Pela primeira vez, verifica-se «uma notória discrepância» entre os dois sexos no modo como são afectados por esta doença, observaram, preocupados (veremos mais adiante porquê), os analistas do Deutsche Bank numa nota aos investidores divulgada na segunda feira passada, dia 19 de Julho [2].
3 Julho 2020. Reabertura dos bars e pubs no Reino Unido. Na foto só se vê uma pessoa com máscara. Ninguém respeita a distância física de segurança (2 metros). |
Mas não é tudo. O número de pessoas em isolamento profiláctico
– coloquialmente chamado quarentena em Portugal
e pingdemic no Reino Unido – causou graves
transtornos na Inglaterra, uma vez que 1 milhão e 730 mil pessoas estão em
isolamento “pingdémico”, segundo o centro de investigação Adam Smith Institute.
Esta circunstância deixou os transportes públicos e várias firmas com falta de
pessoal, tendo muitos estabelecimentos tido de encerrar portas, o que provocou,
por sua vez, carências de produtos e falhas no atendimento ao público.
Foi o que sucedeu, por exemplo, na cadeia de supermercados Iceland (que tem mais de 1.000 dos seus 30.000 trabalhadores em quarentena e teve de fechar muitas lojas), na cadeia de ginásios PureGym (que tem 25% do seu pessoal em quarentena e teve de fechar muitos ginásios) ou na cadeia de “pubs” Greene King (que teve de fechar 33 estabelecimentos pela mesma razão) [3]. O número de pessoas em quarentena poderá subir para 5 milhões e 200 mil pessoas em meados de Agosto, declarou o já referido Adam Smith Institute.
2. Boris Johnson volta a fazer das suas
Então, a pandemia já foi vencida no Reino Unido? Perante estes números, é
evidente que não.
Mas isso não impediu Boris Johnson de remover, na segunda-feira passada, dia
19 de Julho, todas as medidas de protecção contra a propagação do SARS-CoV-2
(salvo a vacinação).
Uma profissional de saúde comentou ironicamente:
Todo o pessoal do Serviço Nacional de Saúde que esteve a
noite passada a trabalhar nos cuidados intensivos está radiante por saber que a
pandemia acabou à meia-noite. [4]
Numa carta publicada em 7 de Julho último na revista médica The Lancet,
120 cientistas tinham advertido que essa anunciada decisão era «perigosa e prematura», bem como «destituída de ética e de lógica». [5] Eis
alguns dos seus argumentos:
# A
ligação entre infecções e mortes foi enfraquecida pela campanha de vacinação,
mas não foi quebrada e a infecção ainda pode causar uma morbilidade substancial
tanto em doença aguda como prolongada;
# A
livre transmissão do vírus vai afectar sobretudo os mais jovens, que ainda não
estão vacinados, e que já foram muito afectados pela pandemia, podendo
inclusivamente criar grandes transtornos ao nível do ensino;
# Esta
estratégia corre o risco de deixar uma geração com problemas de saúde crónicos,
além do facto de o impacto económico e até pessoal poder perdurar durante
décadas;
# Há
ainda que considerar o impacto significativo deste desconfinamento no Serviço
Nacional de Saúde , cujos profissionais, ainda exaustos, não tiveram tempo de
recuperar das vagas anteriores;
# Por
fim, os dados sugerem que o desconfinamento britânico cria um território fértil
para o surgimento de novas variantes do vírus mais infecciosas e/ou mais
resistentes às vacinas, o que deixaria todos em maior risco, dentro e fora do
Reino Unido.
A carta foi, entretanto, subscrita por mais 1000 cientistas à escala internacional, o que é compreensível porque nem o vírus nem as preocupações que ele suscita conhecem fronteiras. Dada a “relação especial” com os EUA que o Reino Unido se gaba de ter e a posição que este país ocupa como placa giratória central para os 51 países que foram outrora possessões do ex-império britânico e que são hoje (excepto os EUA) membros da Commonwealth of Nations (Comunidade das Nações), a situação pandémica no Reino Unido tem repercussões no mundo inteiro.
3. O “Dia da Liberdade” (ou “É a economia, estúpido”)
Mas Boris Johnson e o seu governo Tory não lhes deram ouvidos e levaram a
sua decisão avante. A hipocrisia de Boris Johnson neste particular pede meças
ao mais descarado. Quando anunciou pela primeira vez a sua decisão de 19 de
Julho, Johnson observou a respeito dos seus efeitos previsíveis: «Nós sempre dissemos que haveria uma terceira vaga». E
acrescentou: «Temos, por muito triste que isso seja,
de nos reconciliar com mais mortes» [2].
Os órgãos de comunicação social britânica que fazem coro com a turbamulta
que nega ou desvaloriza a existência do SARS-CoV-2 e que é contra as vacinas,
as máscaras, o distanciamento físico de segurança, as medidas de confinamento
(como a quarentena [= isolamento profiláctico], o isolamento), etc.,
rejubilaram e chamaram-lhe “O Dia da Liberdade”.
Ironia das ironias – porque o vírus tem por hábito
estragar os planos a toda a gente – Boris Johnson e o ministro das Finanças,
Rishi Sunak, estão em isolamento profilático no
“Dia da Liberdade”, depois de terem tido contacto com um caso
positivo de Covid-19, nomeadamente com o ministro da Saúde britânico, Sajid Javid
[7].
Convém notar a este propósito que a política de Boris Johnson está longe de
obter a unanimidade das classes dominantes — as quais, no Reino Unido, incluem,
além dos capitalistas-rentistas e dos gestores de topo das sociedades
comerciais, uma classe de grandes proprietários fundiários.
«O índice FTSE 100 acelerou [a sua descida] à medida que as fortes
correntes subterrâneas de incerteza da COVID foram inundando os mercados
financeiros», escreve Susannah Streeter, analista sénior de
investimentos e mercados da Hargreaves Lansdown. «Longe
de dar aos investidores um abanão de confiança, o Dia da Liberdade viu-a
evaporar-se, uma vez que as taxas de infecção em forte aumento perturbam os
negócios em todo o Reino Unido»[8].
As considerações que o banco de investimento Deutsche Bank fez, como vimos
mais acima, sobre a discrepância que se verifica no Reino Unido entre os dois sexos
nas infecções pelo SARS-CoV-2 e nas mortes por Covid-19, vão no mesmo sentido.
Traduzem os receios dos investidores que confiam neste banco de que a final do
Campeonato Europeu de Futebol que opôs a Itália e o Reino Unido possa vir a
resultar em novos surtos de infecção por esse vírus e num avanço concomitante
da Covid-19 em consequência de milhões de adeptos masculinos do futebol se
terem juntado, sem máscaras nem distância física de segurança, para ver essa
final. Ora, se isso acontecer, alerta o Deutsche Bank, é muito mau para o “business as usual” — para certos ramos do “business”, bem entendido, porque não se pode
agradar a todos e ao mesmo tempo.
Com o seu “Dia da Liberdade”, o senhor Boris Johnson parece, pois, estar a conduzir uma política “sanitária” (passe a incongruência) que agrada sobremaneira e que é favorável (pelo menos na aparência e no curto prazo) àquela miríade de pequenos e grandes negócios que precisam de muita gente aglomerada durante várias horas (se possível muitas horas) em espaços confinados para poderem funcionar com lucro: bares, pubs, restaurantes, clubes nocturnos, discotecas, cabarets, casinos, hotéis, ginásios, estádios de futebol, concertos de rock, etc.
4. Quando a realidade imita a ficção
Seja como for, Boris Johnson e o seu partido aprenderam bem a lição do “Irmão-mais-Velho” do romance “Mil Novecentos e Oitenta e
Quatro” de George Orwell. Não basta inventar falsas notícias e fazer
promessas falsas. É preciso também deturpar e, sempre que possível, inverter o
sentido das palavras para que tudo tenha uma aparência de coerência e
racionalidade. Lembram-se de qual era o lema do “Partido”
no romance de Orwell? “Guerra é Paz”, “Liberdade é Escravidão”, “Ignorância
é Força”.
Agora o “Partido” inventou mais uma palavra
de ordem e mais uma narrativa especialmente adaptadas às actuais circunstâncias
do Reino Unido :
Dia 19 de Julho de 2021 é (foi) o primeiro “Dia da Liberdade”. Liberdade é o direito que cada pessoa adulta tem (esteja ou não esteja vacinada) de se poder infectar com um vírus perigoso (sem ter de vir a pagar a conta do hospital) e de poder infectar as outras pessoas (sem vir a ser incriminada por homicídio qualificado).
O Dia da Liberdade para o novo coronavírus tornar a poder propagar-se à vontade [9] |
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P.S. [escrito em 24-12-2021]. Até ontem, 23 de Dezembro de 2021, tinham ocorrido 11.769.921 infecções e 147.720 mortes no Reino Unido causadas pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 desde o início da pandemia. Mas ontem foi um dia especial porque o Reino Unido atingiu o seu maior número de novas infecções por Covid-19 desde o início da pandemia: 122.000 em 24 horas. As infecções por Covid-19 no Reino Unido atingiram também o pico este mês — que registou a maior média diária — agora em 96.010 novas infecções (https://graphics.reuters.com/world-coronavirus-tracker-and-maps/pt/countries-and-territories/united-kingdom/), devido também a uma nova variante, mais contagiosa, do vírus, denominada omicron. É certo que “infecção” não é sinónimo de “doença” e muito menos de “doença grave”, a necessitar de hospitalização. Muitas infecções são actualmente, como dizem os epidemiologistas, «casos inaparentes», infecções assintomáticas. Devido à grande percentagem de vacinados no Reino Unido (82,4% da população com mais de 12 anos) a situação pandémica, em termos de hospitalizações em enfermaria e em unidades de cuidados intensivos, é hoje muito melhor do que era há um ano, ou mesmo há seis meses. Número de pessoas hospitalizadas: 23 de Dezembro 2021 (1.366); 23 de Dezembro 2020 (21.222). Número de doentes em unidades de cuidados intensivos: 23 de Dezembro de 2021 (840); 23 de Dezembro de 2020 (1.554). Número de mortes por Covid-19: 23 de Dezembro de 2021 (102), 23 de Dezembro de 2020 (565). Em todo o caso, o número actual de novas infecções SARS-CoV-2, de doentes hospitalizados, de doentes com doença grave e de óbitos no Reino Unido revela bem o significado demagógico do “Dia da Liberdade” (19 de Julho de 2021) de Boris Johnson. Nada que não fôsse, afinal, perfeitamente previsível, como se disse, neste mesmo lugar, há seis meses.
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Notas
[1] Fontes destes dados: https://coronavirus.data.gov.uk/;
https://www.worldometers.info/coronavirus/country/uk/
[2] Sophie
Mellor, “In England, concerns grow about a ‘notable gender split’ in Delta
infections”, Fortune, 19 de Julho de 2021.
[3] Joe Gammie, “What is ‘pingdemic’ and do
people pinged by the Covid app have to isolate”, Evening Standard, 20 de Julho
de 2021; Ben Stevens, “Iceland becomes first UK supermarket to shut stores amid
‘pingdemic’ crisis”, Charged (Retail Tech News), 19 de Julho de 2021.
[4] Inês F. Alves, “O que é o ‘Freedom Day’ e como é que isto pode tramar as contas da covid-19 no Reino Unido e na Europa”, SAPO 24, 19 de Julho de 2012 (https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/o-que-e-o-freedom-day-e-como-e-que-isto-pode-tramar-as-contas-da-covid-19-no-reino-unido-e-na-europa)
[5] Deepti Gurdasani, John Drury,Trisha Greenhal et al., “Mass infection is not an option: we must do more to protect our young”. Publicado na Internet em 7 de Julho de 2021 (https://doi.org/10.1016/S0140-6736(21)01589-0).
[6] Sophie Mellor, Loc.cit.
[7]
Inês F. Alves, Loc. cit.
[8] Sophie Mellor, Loc.cit.
[9] Há pessoas que conseguem captar num ápice, através de uma única frase ou de um desenho, o sentido mais profundo de um acontecimento, sobretudo quando se trata de uma decisão que afecta milhões de pessoas. Foi o que sucedeu com o autor (cuja identidade infelizmente desconheço) deste desenho satírico sobre o “Dia da Liberdade” decretado por Boris Johnson.