Temas 4 e 2
Economia política da “transição
digital”
e da “transição energética”
José
Catarino Soares
«A literatura ecológica é silenciosa quanto ao problema da
exploração do trabalho», escrevia João Bernardo há 42 anos (O inimigo
oculto. Ensaio sobre a luta de classes. Manifesto antiecológico. Porto.
Afrontamento, 1979), quando ainda ninguém sonhava, nem sequer os seus
progenitores, com o aparecimento da menina Greta Thunberg como ícone político mundial
do movimento ecologista.
Greta Thunberg e o seu pai. |
1. Ecologismo
O movimento ecologista ou ecologismo (termos mais usados na Europa continental), também chamado movimento ambientalista ou ambientalismo (termos mais usados no Reino Unido e nos países de língua inglesa), é um variado movimento político, social e económico que defende a conservação da Natureza, que considera estar a ser destruída pelos seres humanos através da poluição e do esgotamento dos recursos naturais, e que, mais recentemente – a partir, grosso modo, do fim dos anos 1980 –, combate pela mitigação das alterações climáticas, atacando-as na origem, alegadamente toda ela antropogénica e toda ela maléfica nos seus efeitos.
O ecologismo compreende, esquematicamente, duas grandes correntes: o “ecologismo raso” (ou superficial) e o “ecologismo profundo” [1].
As diferenças conceituais entre as diversas políticas e estratégias abrangidas pelo ecologismo profundo podem variar das preocupações estéticas (criação de reservas naturais com propósitos recreativos, como, por exemplo, a pesca e a caça desportivas, ou a defesa de paisagens ameaçadas pela industrialização capitalista, pela especulação imobiliária e pelo turismo de massas) ou preocupações sanitárias (como a melhoria das condições de higiene e salubridade habitacional das classes trabalhadoras urbanas, alojadas em slums/bairros de lata/favelas/“ilhas” e pardieiros, focos de propagação de doenças e epidemias) dos primeiros conservacionistas e higienistas (século 19), até ao ecofascismo ou ecobrutalismo de Garret Harbin, Pentti Linkola e David Foreman, passando pelos “limites do crescimento” [da produção e do consumo] do relatório Meadows (1972), patrocinado pelo Clube de Roma, e dos seus avatares (“o crescimento zero” e “o decrescimento”) e por propostas teoricamente mais sofisticadas, como as da Hipótese Gaia de James Lovelock e da economia ecológica de Nicholas Georgescu-Roegen. Porém, um traço comum entre elas é o ecocentrismo: a submissão dos aspectos económicos e sociais das actividades humanas à preservação dos ecossistemas naturais ou tidos como tais.
Do mesmo modo, apesar de haver diferenças conceituais entre as diversas políticas e estratégias abrangidas pelo ecologismo raso ou superficial, um traço comum entre elas é a noção de “desenvolvimento sustentável” proposta pelo Relatório da Comissão Brundtland, de 1987, documento final da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD, 1991), criada em 1982 pela ONU. O “desenvolvimento sustentável” – que foi definido como «aquele [desenvolvimento] que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades» – tenta conciliar os interesses de longo prazo da expansão do capitalismo com a solução dos problemas da degradação ambiental e do fosso entre ricos e pobres que ele acarreta [2].
2. Desenvolvimento sustentável
O conceito de “desenvolvimento sustentável” emergiu no processo de difusão, muito para além das fronteiras japonesas, do toyotismo como alternativa ao fordismo (duas formas muito diferentes de organizar os processos de trabalho nas empresas para a extracção da mais-valia) e entre os seus postulados está o de não abrir mão do crescimento económico como forma de combater a “estagnação secular” (v. nota 10).
Assim, entre os defensores da conciliação da protecção ambiental com o crescimento económico propagou-se a ideia de que só com crescimento económico se conseguiria vencer a crise ambiental, por meio de investimentos em alternativas tecnológicas e energéticas que, por sua vez, propiciariam a recuperação das taxas de lucro com aumento de produtividade, em função da utilização de menos insumos e menos mão-de-obra, devendo a remanescente ser altamente qualificada e versátil (v. nota 25).
Da mesma forma, tinham (e continuam a ter) a convicção de que a turbulência social e a pobreza, bem como a crise ambiental, seriam (serão) automaticamente vencidas quando se atingisse (atingir) um determinado nível de rendimento per capita. Com efeito, os adeptos dessa tese sentiram-se muito incentivados por estudos como os de Grossman e Krueger que, ao examinarem a relação entre rendimento per capita de um país e indicadores de degradação ambiental, concluíram que, a partir de um certo nível de rendimento per capita, estimado por eles em oito mil dólares, ocorreria uma reversão da degradação ambiental (Gene M. Grossman & Alan B. Krueger, “Economic Growth and the Environment”, The Quarterly Journal of Economics Vol. 110, Nº. 2 [May, 1995], pp. 353-377).
Em 1992, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada em Junho de 1992 no Rio de Janeiro, marcou um ponto de viragem no ecologismo. Essa reunião, que ficou conhecida como Rio-92, Eco-92 ou Cimeira da Terra [ou Cúpula da Terra, como se diz no Brasil] – que aconteceu 20 anos depois da primeira conferência do género que teve lugar em Estocolmo, Suécia – juntou delegações de 175 países. Inúmeras ONGs reuniram-se também num fórum paralelo nas mesmas datas. Foram aprovados cinco documentos oficiais: três convenções (Biodiversidade, Desertificação e Mudanças Climáticas), uma declaração de princípios e a Agenda 21. Os países ricos declararam a sua intenção (nunca cumprida) de contribuir com 0,7% do seu PIB para ajudar os países em desenvolvimento e foi decidida a criação de um fundo especial para financiar programas ambientais nos países pobres, o Global Environmental Fund (GEF). Os países reunidos nessa cimeira adoptaram o conceito de desenvolvimento sustentável como sendo o eixo central das suas políticas.
Desde então, o termo desenvolvimento sustentável tem vindo a ser constantemente reiterado nas cimeiras e convenções internacionais sobre o meio ambiente e o desenvolvimento, como, por exemplo, a 3ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP3) que foi realizada em Quioto, Japão, em 1997, a Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável ou Cimeira da Terra 2, realizada em Joanesburgo (2002), ou a 21ª Conferência das Partes das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP21), realizada em Paris (2015). É repetido exaustivamente, qual mantra, nos documentos oficiais e inserido na formulação de políticas públicas por esse mundo fora. E foi invocado, uma vez mais, na COP26, que decorreu este mês, em Glasgow [3], com 22.000 delegados registados, 14.000 observadores e 4.000 jornalistas [4].
Manifestantes em Glasgow, durante a COP26, pedem aos participantes de 196 países (mais a União Europeia) presentes nessa conferência que salvem a “Mãe-Natureza”. |
As indústrias dos combustíveis fósseis são apontadas como sendo os maiores emissores de CO2 e de outros gases com efeito de estufa, e estes, por sua vez, são vistos como o factor fundamental responsável pelo aquecimento global. Mas não se pense que os capitalistas e gestores
associados às indústrias dos combustíveis fósseis são os inimigos jurados do desenvolvimento sustentável, ou que lhe sejam
sequer hostis. Bem pelo contrário. O maior segredo de Polichinelo da COP26 é
este: estiveram presentes na COP26 mais delegados associados às indústrias de
combustíveis fósseis do que os delegados de qualquer país (a maior delegação oficial
de um país foi a do Brasil com 479 delegados) como mostra o gráfico seguinte.
3. Ecologismo e capitalismo
Os ecologistas encaram o capitalismo como se
fosse um pressuposto inquestionável da vida social e confundem-no com a
indústria em geral. Indústria, porém, é qualquer sistema de aplicação metódica de máquinas à produção, que poderá
servir em vários regimes económicos. A organização da maquinaria assumirá esta
ou aquela forma e produzirá estes ou aqueles efeitos segundo o sistema de
trabalho e as relações sociais prevalecentes, mas continuando a existir como
indústria.
O capitalismo é muito mais do que a indústria em geral. É um sistema industrial onde uns trabalham, produzem e são explorados por outros, que possuem e gerem os meios sociais de produção, que controlam o tempo de trabalho e os processos de trabalho alheios, e que se apropriam dos seus resultados.
Este sistema conseguiu, nos últimos quarenta anos, transnacionalizar-se — i.e., fraccionar e dispersar, por esse mundo fora, diferentes fases e processos de produção, interligando-as e integrando-os em cadeias de produção (/valor) de âmbito mundial, mas passando por cima das fronteiras nacionais como cão por vinha vindimada. A Nestlé, a Nike e a Apple, que toda gente conhece, são três bons exemplos dessas firmas transnacionais [5].
A Nestlé, sediada na Suíça, é a maior produtora mundial de alimentos processados. Tem 447 fábricas espalhadas por 5 continentes, actua em 83 países e emprega cerca de 273.000 pessoas. É também uma das principais accionistas da Oréal, a maior fabricante mundial de cosméticos.
A Nike, sediada no Oregon (EUA), é a maior produtora mundial de calçado, vestuário e equipamento desportivo. Tem uma rede de 533 fábricas (todas subcontratadas) espalhadas por 41 países que empregam 1.100.00 pessoas.
A Apple, sediada na Califórnia (EUA) é um dos maiores produtores mundiais de computadores pessoais, telemóveis e outros aparelhos electrónicos de uso individual. Em 2020 foi considerada a firma mais valiosa do mundo. Emprega directamente 147.000 pessoas, mas muitas mais indirectamente. Compra componentes para o fabrico dos seus produtos a 809 fornecedores subcontratados em 43 países espalhados por cinco continentes.
As três fábricas da Hon Hai Precision Industry Co. Ltd (uma firma subcontratada da Apple, também conhecida globalmente como Foxconn, que tem a sua sede em Taiwan e emprega 1,2 milhões de trabalhadores) onde os iPhones da Apple são submetidos à montagem final em 90 linhas de produção, testados e empacotados, situam-se em Zhengzhou, uma cidade com 9,5 milhões de habitantes na China e empregam entre 300.000 (em regime normal) e 350.000 trabalhadores (durante os períodos de picos de produção). A Hon Hai tem outra fábrica em Shenzhen, uma cidade chinesa com mais de 11 milhões de habitantes, onde os iPhones são também montados, testados e empacotados, e que emprega 200.000 trabalhadores.
O sistema capitalista conseguiu também, durante o mesmo período, hipercomercializar todos os aspectos da vida quotidiana, incluindo os que outrora faziam parte da chamada privacidade pessoal e familiar. Um exemplo disso é o modo como uma gigantesca firma multinacional, a Facebook, conseguiu persuadir centenas de milhões de pessoas a ceder-lhe, voluntária e gratuitamente, os seus álbuns de retratos pessoais e de família e os seus vídeos caseiros, que alimentam permanentemente um dos negócios mais lucrativos do mundo [6].
Mas são, sem dúvida, o comércio de órgãos, e de tecidos, células e fluidos regeneráveis do corpo humano vivo (plasma sanguíneo, esperma, óvulos, sangue, leite materno e cabelo), assim como o negócio das barrigas de aluguer, que fornecem os exemplos extremos dessa hipercomercialização da vida quotidiana, visto que implicam vender ou alugar partes ou produtos naturais do corpo humano vivo. O tráfico de órgãos humanos é, aliás, o segundo crime mais lucrativo a seguir ao tráfico de armas [7].
Um exemplo patético dessa hipercomercialização de partes do corpo humano
vivo, é o de Tim Steiner. Em 2006, este homem começou por ceder as suas costas
(não sei se gratuitamente ou não) para serem tatuadas por um conceituado mestre,
Wim Delvoye, que as transformou na representação de uma Madonna (Virgem Maria), mas sem o menino Jesus, coroada por um
crânio de estilo mexicano, com raios amarelos a emanar da sua auréola. A tatuagem
comporta também andorinhas, rosas vermelhas e azuis, e na base das costas de Steiner podem
ser vistos duas carpas ornamentais (nishikoi) de estilo japonês,
montadas por crianças, a nadar por entre flores de lótus. Em 2008, um coleccionador de arte alemão, Rik Reinking, interessou-se pela
obra, intitulada TIM, e propôs a compra do corpo de Steiner. Devido à proibição
legal da escravatura, não foi possível concretizar a compra. No entanto, ficou legalmente
acordado que Reinking compraria a obra por 150.000 euros e que Steiner receberia
um terço dessa soma. O que foi feito. Ficou igualmente acordado, como parte do
seu contrato, que Steiner tem de exibir a tatuagem (em troca de um ordenado que
não é conhecido), sentado em tronco nu, numa galeria de arte ou num museu, pelo
menos três vezes por ano. Faz também parte do contrato uma cláusula segundo a qual, quando Steiner
morrer, as suas costas serão esfoladas e a pele emoldurada permanentemente, passando a ocupar um lugar na colecção de arte pessoal de Reinking. «A minha pele pertence agora ao Rik Reinking», explicou
Steiner. «As minhas costas são a tela, eu sou a
moldura temporária» [8].
Apesar dessas duas grandes proezas – transnacionalização da produção e hipercomercialização de todos os aspectos da vida quotidiana – o capitalismo globalizado e hipercomercializado que reina actualmente no planeta enfrenta uma crise prolongada de produtividade, sem fim a vista. Essa crise de produtividade é também uma crise de lucratividade, uma vez que a massa e a taxa de lucro se mostram insuficientes para assegurar uma acumulação crescente do capital [9] (excepto nas empresas e nos sectores oligopolistas e transnacionais), condição necessária do funcionamento capaz do sistema capitalista [10].
O objectivo da corrente ecológica consiste em descobrir uma maneira de ultrapassar a crise da produtividade, mantendo-se, porém, no quadro das relações sociais básicas que definem o capitalismo. Por isso não coloca os verdadeiros problemas de fundo e absolutiza a crise da produtividade, pretendendo encontrar-lhe a origem nas relações entre a totalidade do sistema económico e a natureza (Bernardo, ibidem).
4. As alterações climáticas
Insere-se aqui o conhecido tema das alterações climáticas, entre as quais figura, em lugar de destaque, o aquecimento global da superfície terrestre (incluindo o ar), e as suas efectivas e potenciais consequências, em particular para a humanidade — e.g., derretimento do gelo oceânico do Árctico, dos mantos de gelo da Gronelândia e da Antárctida (o maior reservatório de gelo terrestre), degelo do pergelissolo (Ingl. “permafrost”) árctico e boreal, recuo dos glaciares, aquecimento e acidificação dos oceanos (causada pela absorção de dióxido de carbono), redução do oxigénio das suas águas, subida do nível médio do mar.
Estes temas levantam questões científicas e tecnológicas muito complexas e melindrosas sobre as quais já se escreveram centenas de milhares ou milhões de páginas. Não seria possível resumi-las sequer aqui, ainda que muito sucintamente. Direi apenas o seguinte.
O 6º e último relatório, Climate Change 2021.The Physical Science Basis, do 1º grupo de trabalho do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC, na sigla inglesa) [12] foi publicado no passado mês de Agosto. Está disponível na internet. Este documento é, pois, salvo melhor informação, a expressão mais recente do consenso alcançado entre 117 peritos [13] em ciências físicas sobre o «nível da compreensão do estado actual do clima, incluindo como está a mudar e o papel da influência humana, o estado do conhecimento sobre os possíveis futuros climáticos, informação climática relevante para regiões e sectores, e a limitação das alterações climáticas induzidas pela actividade humana» (p.4, minha tradução). É interessante, por isso, notar cinco aspectos.
1º) A definição de alterações climáticas do IPCC é a seguinte:
[Alteração climática é] uma alteração no estado do clima que pode ser identificada (ex.: por meio de testes estatísticos) através de alterações na média e/ou na variabilidade das suas propriedades e que persiste durante um longo período de tempo, tipicamente décadas ou mais. A alteração climática pode dever-se a processos internos naturais ou a forçamentos externos [14], tais como modulações dos ciclos solares, erupções vulcânicas e alterações antropogénicas persistentes na composição da atmosfera ou na utilização dos solos. É de sublinhar que a Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC [na sigla inglesa]), no seu Artigo 1, define alteração climática como: “uma alteração no clima que é atribuída, directa ou indirectamente, à actividade humana que altera a composição da atmosfera global e que é, além da variabilidade natural do clima, observada ao longo de períodos comparáveis.” Assim, a Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas faz uma distinção entre alterações climáticas atribuíveis às actividades humanas que alteram a composição atmosférica e a variabilidade do clima atribuível a causas naturais. (6º Relatório de Avaliação do 1º grupo de trabalho do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas, p. AVII-11, minha tradução).
Salvo melhor opinião, parece-me que a definição de “alteração climática” do IPCC e a definição da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC) são completamente diferentes. A definição da UNFCCC atribui todas as alterações climáticas, directa ou indirectamente, a causas antropogénicas — ou seja, às actividades humanas. A definição do IPCC, pelo contrário, divide as causas das alterações climáticas em dois grupos: alterações «antropogénicas persistentes na composição da atmosfera ou na utilização dos solos» e alterações não antropogénicas, as quais se subdividem, por sua vez, em alterações internas apelidadas de «naturais» e em forçamentos externos, tais como as modulações dos ciclos solares, as erupções vulcânicas e as variações na órbita terrestre. As consequências destas duas definições em termos de políticas públicas são obviamente muito diferentes no que respeita, nomeadamente, à extensão respectiva e à combinação de medidas de mitigação e de adaptação [15].
2º) A informação de que «Pela primeira vez num relatório do IPCC, as avaliações das mudanças futuras na temperatura global da superfície, no aquecimento dos oceanos e no nível do mar foram construídas combinando projecções multimodelo com constrangimentos observacionais baseados na simulação do aquecimento no passado, bem como a avaliação AR6 da sensibilidade climática. Para outras quantidades, tais métodos robustos ainda não existem para limitar as projecções (p.4, nota 4, minha tradução) [o destaque a traço grosso foi acrescentado por mim, J.C.S.]».
Isso significa que devemos encarar com muita circunspecção e olho crítico não só todas as projecções do mesmo teor feitas nos relatórios anteriores, mas também aquelas que, no presente relatório, dizem respeito a outras variáveis para além da temperatura global da superfície, do aquecimento dos oceanos e do nível do mar.
E convém lembrar que projecções não são previsões. Os próprios peritos do IPCC reconhecem que «uma projecção é uma potencial evolução futura de uma quantidade ou conjunto de quantidades, muitas vezes calculada com a ajuda de um modelo. Ao contrário das previsões, as projecções estão condicionadas a pressupostos relativos, por exemplo, a futuros desenvolvimentos socioeconómicos e tecnológicos que podem ou não ser realizados». A previsibilidade é o modo como os estados futuros de um sistema podem ser previstos com base no conhecimento de estados actuais e passados do dito sistema. No entanto, como «o conhecimento do passado e do estado actual do sistema climático são geralmente imperfeitos, tal como os modelos que utilizam este conhecimento para produzir uma previsão climática, e como o sistema climático é intrinsecamente não linear e caótico, a previsibilidade do sistema climático é inerentemente limitada. Mesmo com modelos e observações arbitrariamente exactos, pode haver ainda limites para a previsibilidade de um sistema não-linear deste tipo »[16].
3º) A informação de que «Com base na compreensão científica, as principais descobertas podem ser formuladas como [i] enunciados factuais ou [ii] associadas a um nível avaliado de confiança que é indicado utilizando a linguagem calibrada do IPCC» (p.4, minha tradução). [as letras [i] e [ii] foram acrescentados por mim]
Isto significa que os autores do 6º relatório do 1º grupo de trabalho do IPCC fazem questão em distinguir [i] enunciados factuais (“statements of fact”, no original) e [ii] enunciados «associados a um nível avaliado de confiança», a que chamarei enunciados de expectabilidade (statements of likelihood), sujeitando estes últimos a uma “calibração”.
4º) «Cada descoberta é fundamentada numa avaliação das provas subjacentes e na concordância». Esta frase não é clara. Que género de concordância? Presumo, no entanto, com base na continuação da frase citada (que reproduzo a seguir, onde se esclarece em que consiste a linguagem calibrada de avaliação do IPCC), que ela se refira ao acordo entre os peritos que elaboraram o relatório e não à concordância entre provas de índole diferente.
É expresso um nível de confiança [no grau de certeza dos resultados da avaliação] utilizando cinco qualificativos: muito baixa, baixa, média, alta e muito alta, e grafado em itálico, por exemplo, confiança média. Os seguintes termos foram utilizados para indicar a expectabilidade [likelihood] avaliada de um resultado ou um resultado: praticamente certo, 99-100% de possibilidade-de-acontecer [probability], muito possível-de-acontecer 90-100%, possível-de-acontecer 66-100%, tão possível como impossível-de-acontecer 33-66%, impossível-de-acontecer 0-33%, muito impossível-de-acontecer 0-10%, excepcionalmente impossível-de-acontecer 0-1%. Termos adicionais (extremamente possível-de-acontecer 95-100%, mais possível-de-acontecer do que impossível-de-acontecer >50-100%, e extremamente impossível-de-acontecer 0-5%) podem também ser utilizados quando for apropriado. A expectabilidade avaliada é grafada em itálico, por exemplo, muito possível-de-acontecer» (Box SPM-4, nota 4, minha tradução).
Ou seja, houve um extremo cuidado, por parte dos autores do 6º relatório do1º grupo de trabalho do IPCC, em não fazer afirmações peremptórias – a não ser que fôssem consideradas enunciados factuais – e em “calibrar” (matizar) os enunciados de expectabilidade. Esse esforço (que já vem de anteriores relatórios) é de louvar tendo em conta o modo tremendista como o ecologismo se apropria de tudo o que possa caucionar a sua mundivisão, sobretudo quando enuncia e propagandeia as suas mensagens (v. secção 5).
A outra observação a fazer é que a noção de likelihood empregada no relatório do IPCC não deve ser traduzida por “probabilidade” (Ingl. “probability”), mas sim por expectabilidade, para evitar confusões. Pela mesma razão, a noção de probability, empregada nesse mesmo relatório, não deve ser traduzida por “probabilidade”, mas sim por possibilidade-de-acontecer. Não se trata, aqui, de “probabilidade” (no sentido objectivo do termo), que só é válida para eventos aleatórios (eventos ao acaso) como, por exemplo, a tiragem dos números premiados do Euromilhões ou o decaimento radioactivo natural, que têm uma possibilidade-de-acontecer definida. Eventos ao acaso são possíveis ou não possíveis-de-acontecer neste ou naquele grau; as suas possibilidades-de-acontecer são iguais às suas probabilidades (objectivas).
Porém, a assessed likelihood (expectabilidade avaliada) mencionada no relatório do IPCC remete-nos para a “probabilidade subjectiva” (uma noção do senso comum) que se refere ao grau de crença na verdade de uma proposição (no teor de um enunciado declarativo), ou seja, à sua credibilidade. Sendo subjectivos, os graus de crença (ou, se se preferir, os graus de certeza) que diferentes indivíduos atribuem à mesma proposição do tipo “o evento X ocorre(rá) desta ou daquela maneira”, são possivelmente diferentes, ainda que com a mesma base de conhecimento, como no caso dos peritos do IPCC. Por conseguinte, as probabilidades subjectivas não são dados científicos, são apenas avaliações de expectabilidade da possibilidade-de-acontecer deste ou daquele evento. No caso em apreço, exprimem um grau de crença maior ou menor dos peritos do IPCC neste ou naquele enunciado de expectabilidade. Esse grau de crença tem tanto mais valor informativo para os “decisores” e para o grande público quanto maior for o conhecimento científico desses peritos. Por outro lado, se os enunciados em causa forem plausíveis (como se espera que sejam enunciados de peritos), podem ser corrigidos ou abandonados à luz de futura informação. O seu interesse resume-se nestes dois pontos.
5º) Desafortunadamente, não é possível encontrar no 6º relatório do 1º grupo de trabalho do IPCC qualquer informação sobre as qualificações científicas, as competências e os vínculos institucionais dos seus autores. O relatório divulga apenas os seus nomes e os países que representam. Por exemplo, «Irina V. Gorodetskaya (Portugal/Bélgica/ Federação Russa)» [17]. Também nada nos é dito no relatório sobre a representatividade estatística dos seus 117 autores relativamente à comunidade de investigadores dos diferentes ramos da ciência física que praticam. Seria muito útil sabê-lo, para que pudéssemos avaliar em que medida as posições expressas no relatório são compartilhadas pela maioria da comunidade científica a que pertencem os seus autores.
5. Um cavalo de Tróia actual
Posto isto, o ponto que pretendo salientar é a narrativa que os movimentos ecologistas construíram para explicar as alterações climáticas e as suas consequências. Grosso modo, é a seguinte: «as alterações climáticas e as catástrofes que elas acarretam, e que acarretarão cada vez mais se não arrepiarmos caminho (e já vamos tarde!), são a vingança da Natureza [apelidada de Mãe-Natureza, por alguns, e de Gaia, por outros] pelos desmandos reiterados cometidos pela humanidade que, na sua ânsia desmedida de comodidade, conforto e prazer, violou todos os equilíbrios naturais com uma predação e uma poluição desenfreadas e um consumo excessivo de recursos naturais.»
Na COP26 estiveram presentes 100 firmas de combustíveis fósseis, bem como 30 associações comerciais desse sector, entre as quais a Internacional Emissions Trading Association, que se apresentou com 103 delegados, 3 dos quais da gigante petrolífera BP (fonte: Global Witness). Mas isso não dissuadiu a jovem manifestante da foto de perguntar ingenuamente aos participantes inscritos na COP26: «Se não forem vocês, quem será? Se não for agora, quando será? Participantes da COP26 actuem agora!» Foto de Jane Barlow, PA via AP. |
Esta narrativa é a narrativa de Greta Thunberg e dos seus milhões de seguidores da geração Z que invectivam os governos e as firmas que levam a sério a sua “responsabilidade social” (entenda-se: as firmas das indústrias de combustíveis fósseis [carvão, gás natural e petróleo] que se fizeram representar em força na COP26) a tomarem as medidas necessárias para salvarem a humanidade dos efeitos das alterações climáticas [18]. É também a narrativa dos partidos Verdes ou Ecologistas na Europa e nos outros continentes.
Como nenhum ideólogo, movimento ou partido ecologista põe em causa o capitalismo [19], o grande ausente desta narrativa, «o capitalismo procura hoje converter todas as formas de contestação em movimentos ecológicos exteriores às relações de trabalho, porque só eles são admissíveis no sistema», escrevia mais recentemente o autor que citámos logo no início deste artigo (João Bernardo, “Post-scriptum: contra a ecologia. 8) oportunidades de investimento e agravamento da exploração”. Passa Palavra. 18-10-2013).
A menina
Greta Thunberg bem pode estar intimamente convencida (e não há motivo para
duvidar da sua sinceridade) que a sua luta é para salvar o planeta. Na prática,
porém, tudo o que faz e tudo o que diz consiste em publicitar e popularizar o
programa de acção da corrente dos gestores da indústria capitalista que
desenvolveram as formas mais sofisticadas da ideologia ecologista.
Esse programa consiste em reduzir fortemente os bens comuns [20] e o mercado dos bens de consumo e canalizar um volume enormíssimo de investimentos (privados e públicos) [ver Post-Scriptum] para o sector que decide da produtividade: o sector das condições gerais de produção
— (i) infra-estruturas como portos, aeroportos, caminhos-de-ferro, auto-estradas, barragens, conversores de (a) energia das ondas, turbinas de (b) energia eólica, estações de (c) energia solar fotovoltaica [todas elas – (a), (b), (c) – fontes de energia limpa e renovável, mas intermitente e de baixa densidade, com o inconveniente suplementar, nos casos (b) e (c), de só poderem ser obtidas à custa de uma enorme ocupação do solo e de uma exploração tremendamente voraz e poluente de matérias-primas escassas e metais raros, como o lítio, para poderem ser armazenadas em baterias de iões de lítio (v. alínea iv mais adiante)], centrais de fusão nuclear (uma fonte muito mais promissora de energia limpa, de alta densidade e ilimitada) e centrais de fissão nuclear baseada em reactores de 4ª geração, como, por exemplo, os reactores de neutrões rápidos, ou os reactores que exploram o tório e usam sal fundido como refrigerante [21];
— (ii)
serviços económicos de interesse geral como correios, telecomunicações, redes
energéticas, transportes (marítimos, aéreos, ferroviários, rodoviários,
fluviais);
— (iii)
indústria de maquinaria;
— (iv) mineração, isolamento e processamento de elementos químicos (e.g., lítio, paládio, cobalto, platina, nióbio, níquel, germânio, estrôncio, boro, cobre, gálio, índio, berílio, grafite, háfnio, vanádio, tungsténio [também conhecido como volfrâmio]) e metais de terras raras (e.g., disprósio, neodímio, praseodímio, escândio) que são matérias-primas essenciais para várias indústrias e tecnologias de ponta — equipamentos de ressonância magnética; satélites; ecrãs DEL [díodos emissores de luz; LED no acrónimo inglês), turbinas eólicas; conversores de energia das ondas; motores síncronos de ímanes permanentes e motores de indução para veículos de tracção eléctrica e veículos híbridos; baterias de iões de lítio; pilhas (também chamadas células) de combustível; conversores catalíticos; tecnologias fotovoltaicas; lasers; ímanes supercondutores; condensadores, tecnologias integradas, materiais e regimes físicos necessários para a produção comercial de electricidade baseada na fusão nuclear (tais como aquecimento, controlo, diagnóstico, criogenia e manutenção remota); reactores de 4.ª geração para a produção de electricidade baseada na fissão nuclear; redes e telemóveis 5G; robótica; drones; impressão 3D; Internet-das-coisas; armazenamento das energias renováveis intermitentes e de baixa densidade; automóveis, autocarros, camiões e aviões movidos a hidrogénio.
Na terminologia da elite dos gestores da economia capitalista que elaboraram este programa alegadamente de “desenvolvimento sustentável”, ele resume-se em duas palavras de ordem para uso propagandístico/jornalístico: “transição energética” e “transição digital”.
6. Pacto ecológico, crescimento zero e decrescimento
Teoricamente, este programa económico, suscitado pela baixa da taxa de produtividade e pela baixa da taxa de lucro do capital, pode ser realizado de duas maneiras:
a) por meio de uma guerra (“fria”
ou “quente”) de grande envergadura entre potências económicas rivais [22] – por
exemplo, EUA (com os demais países da OTAN a reboque) e Rússia; ou EUA (com o
Reino Unido, a Austrália, a Alemanha e o Japão a reboque [23])
e China – que acelere brutalmente a “transição
energética” e a “transição digital” [24]. Esta
opção tem, todavia, o grave inconveniente, para os seus conceptores, dos seus
resultados serem muito incertos e potencialmente devastadores para todos os
beligerantes envolvidos se a “guerra fria” (corrida aos armamentos, bloqueios
navais, embargos, sanções económicas, ameaças de uso de armas de destruição maciça, provocações,
fanfarronadas) escalar, de repente, para uma “guerra quente” [25];
b) ou por meio de uma
estratégia que visa, entre outras coisas, instaurar uma estagnação ou uma baixa
de longa duração dos salários reais (e pensões reais do regime contributivo) dos
trabalhadores nos países capitalistas mais desenvolvidos; uma redução das
prestações sociais e dos serviços públicos de interesse geral (saúde, educação,
segurança social, protecção civil) – diminuindo a sua abrangência, aumentando o
seu preço e degradando a sua qualidade – e um aumento do endividamento das
famílias, com o concomitante rebaixamento das condições de vida socialmente
admitidas como médias [26].
Esta é uma estratégia mais promissora, porque não colide com a agenda
dos movimentos ecologistas. Além disso, uma parte do programa que esta
estratégia visa realizar foi já aprovada pela Comissão Europeia em Dezembro de
2019, com o nome de “European Green Deal” (Pacto
Ecológico Europeu), e tem o beneplácito dos movimentos ecologistas. Estes
invocam até o mérito de serem os seus mentores, por terem sido os autores, em
2008, no Reino Unido, do que denominam carinhosamente “The
Green New Deal” (O Novo Pacto Ecológico),
em homenagem ao “New Deal” (1933-1939) do
presidente Franklin D. Roosevelt dos EUA [27].
Mas não é tudo. O «crescimento zero» e, mais ainda, o «decrescimento» apregoados
pelas correntes mais fanáticas do ecologismo profundo implicam também, entre
outras coisas, a manutenção de grandes diferenças de nível de vida entre os
países industrializados e os países exportadores de matérias-primas,
conservando-se essas vastas regiões na situação de dependência tecnológica e
económica.
Nos países industrializados, o «crescimento zero» e, mais ainda, o «decrescimento» implicam uma redução drástica do nível de vida da população trabalhadora, resumida no fotomontagem abaixo.
O programa ecológico é, assim, a mais extremada
manifestação contemporânea do imperialismo. Apresenta-se o baixíssimo nível de
vida dos países exportadores de matérias-primas como modelo a impor ao
proletariado dos países industrializados. A elite dos gestores que encabeça as
correntes ecológicas tece o elogio de formas de exploração pré-capitalistas,
delas pretendendo reproduzir os hábitos de vida e o nível do consumo. Supremo
cinismo, só igualado pelos capitalistas de outrora, quando o escravo era
apontado ao proletário como exemplo de obediência, padrão de consumo, modelo de
virtudes (Bernardo 1977).
“O único crescimento sustentável é o decrescimento”, lê-se nesta pichagem. |
Post-Scriptum: «A transição energética em Portugal vai custar cerca de 25 mil milhões de euros», declarou António Costa, 1.º ministro do governo de Portugal e secretário geral do PS, no debate televisivo com a porta-voz do PAN, em 8 de Janeiro de 2022.
…………………………………………………………………………………………….
Notas
[1] Os termos
desta distinção são de Arne Naess, um dos pontífices do ecologismo profundo
(Arne Naess [1972], “The Shallow and the Deep, Long-Range Ecology Movement. A
Summary”, Inquiry, 16, 95-100).
[2] O conceito de “sustentabilidade” (Nachhaltigkeit em alemão) ou de “uso sustentável dos recursos naturais” não foi uma criação da comissão Brutland. Ele remonta a Hans Carl von Carlowitz (1645-1714), um administrador das minas da corte saxónica de Freiberg (cidade mineira hoje incluída na Alemanha) que o formulou muito claramente no seu tratado sobre florestação intitulado Sylvicultura Oeconomica, oder haußwirthliche Nachricht und Naturmäßige Anweisung zur wilden Baum-Zucht (1713) [Sivilcultura eEconómica ou Notícias históricas caseiras e instruções naturais sobre o cultivo de árvores selvagens]. O conceito de sustentabilidade foi ampliado pelo conceito de “desenvolvimento sustentável”.
[3] Logo no primeiro considerando do Glasgow Climate Pact, o principal documento oficial aprovado na COP26, pode ler-se: «Reconhecendo o papel do multilateralismo na abordagem das alterações climáticas e na promoção da cooperação regional e internacional, a fim de reforçar a acção climática no contexto do desenvolvimento sustentável e dos esforços para erradicar a pobreza» ([minha tradução, destaque a traço grosso acrescentado por mim] Draft decision entitled “Glasgow Climate Pact” proposed under agenda item 2(f) of the Conference of the Parties at its twenty-sixth session. United Nations. Framework Convention on Climate Change).
[4] Estes
dados são da UNFCCC (United Nations Framework Convention on Climate
Change), Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, o
departamento da ONU que organiza as negociações sobre o clima.
[5] As fontes dos números que a seguir se apresentam são as seguintes: https://www.nestle.com/ask-nestle/our-company/ ;https://sourci.com.au/blog/nike-products-are-manufactured-in-over-41-countries;https://www.lifewire.com/where-is-the-iphone-made-1999503;https://www.investopedia.com/articles/investing/090315/10-major-companies-tied-apple-supply-chain.asp;https://www.globaltimes.cn/page/20217/1229458.shtml;https://focustaiwantw/business/202110110015; SneakSaver; Statista.
[6] A Facebook é uma firma
detentora de uma rede social com 2.800 milhões de utilizadores activos. O valor
monetário da Facebook em bolsa era de
1.219 biliões de dólares em Agosto de 2021. Mark Zuckerberg, director
executivo, presidente do conselho de administração e o maior accionista da Facebook, é actualmente o 5º homem mais rico
do mundo.
[7] Em muitos países, incluindo os que fazem parte da União
Europeia e da EFTA, há legislação que proíbe a comercialização de órgãos,
tecidos e células do corpo humano vivo, cuja doação não pode, em nenhuma
circunstância, ser remunerada. Em Portugal, por exemplo, a colheita de órgãos e
tecidos de uma pessoa viva só pode ser feita com o consentimento do dador e no
interesse terapêutico do receptor e só se não estiver disponível qualquer órgão
ou tecido adequado colhido de dador post mortem e não exista outro
método terapêutico alternativo de eficácia comparável. Além disso, no caso de
dádiva e colheita de órgãos ou tecidos não regeneráveis, a respectiva
admissibilidade fica dependente de parecer favorável, emitido pela Entidade de
Verificação da Admissibilidade da Colheita para Transplante (EVA). São sempre
proibidas a dádiva e a colheita de órgãos ou de tecidos não regeneráveis
quando envolvam menores ou outros incapazes. A dádiva e a colheita de órgãos,
de tecidos ou de células regeneráveis que envolvam menores ou outros
incapazes só podem ser efectuadas quando se verifiquem os seguintes requisitos
cumulativos: a) Inexistência de dador capaz compatível; b) O
receptor ser irmão ou irmã do dador; c) A dádiva ser necessária à
preservação da vida do receptor .O procedimento terá, em todos estes casos, de
ser realizado em estabelecimentos de saúde públicos ou privados credenciados,
assim como por equipas médicas especializadas (cf. Lei
n.º 12/93, de 22 de Abril [colheita e transplante de órgãos]). Todavia, estas
tímidas disposições legais de 1993 não são de molde a impedir o tráfico de
órgãos humanos, que só passou a constituir um crime tipificado no Código Penal
e no Código de Processo Penal em 2019 (Lei n.º 102/2019, de 6 de Setembro). A
criminalização do tráfico de órgãos humanos é uma medida tardia que se destina
a acautelar os objectivos humanitários da doação benévola de órgãos e tecidos
do corpo humano vivo, e a fazê-lo de maneira a não poderem dar inadvertidamente
cobertura a que o preceito que estipula que o corpo humano (vivo ou cadáver) e
as suas partes são bens extra commercium [não
comercializáveis] possa ser infringido com a maior das facilidades. O caso não
é para menos, dadas as dimensões do problema. «O Global
Observatory on Donation and Transplantation [Observatório Global de
Doações e Transplantação] informou que em 2013
existiam cerca de 118.127 órgãos sólidos transplantados globalmente, indicando
que se tratou de um aumento de cerca de 2,98% em comparação até 2012 e que o
número de transplantes pode ter atingido apenas cerca de 10% ou menos de as
necessidades globais. Na região de Eurotransplant (ver também 1.1), no
final de 2012, mais de 10.000 pacientes foram registados na lista de espera
para um órgão. De acordo com a Comissão Europeia, em 2007, havia 65.000
pacientes à espera de um transplante de rim na União Europeia; 25.000
transplantes foram lugar anualmente, 120.000 pacientes estavam em diálise dos
rins. Isto resultou numa espera tempo de 3-5 anos, com uma taxa de mortalidade
de até 30%. Nos Estados Unidos, de acordo com o Departamento de Saúde e
Serviços Humanos dos Estados Unidos, lá eram, a partir de 6 de Janeiro de 2014,
120.999 candidatos à espera de órgãos (77.073 dos quais são candidatos activos
em lista de espera), mas apenas 10.587 doadores registados nos E.U.A. como de
Março desse ano. Nestas
circunstâncias de grave escassez de órgãos, pacientes desesperados podem
procurar estratégias para obter órgãos ilegalmente, fora das estruturas legais
de transplante. Com um aumento da procura de órgãos vem o seu aumento potencial
de rentabilidade, alimentando o desejo de algumas pessoas de negociar e vender.
Como resultado, ao lado de sistemas altruístas de abastecimento de órgãos,
coexiste um mercado negro para satisfazer a procura que os sistemas altruístas
não satisfazem» (Trafficking in
Persons for the Purpose of Organ Removal. Assessement
toolkit. United Nations Office on Drugs and Crime.United Nations. Vienna. 2014, pp.10-11) De facto, é notório o crescimento
de pessoas e grupos que se dedicam a este tipo de comércio macabro com o
objectivo do lucro — primum movens [o primeiro motor] do sistema
capitalista. Isso acontece não só relativamente aos tecidos e células
regeneráveis e a certos órgãos duplos (rins, testículos, ovários), mas também a
outros órgãos, não duplos, cuja colheita pode, amiúde, acarretar a morte do
dador (fígado, estômago, intestino delgado, pâncreas) ou só ser possível
mediante o assassinato do “dador” (coração, pulmões, cérebro). «A OMS [Organização Mundial de Saúde] estimou, em 2007, que cerca de 5-10 % de todos os
transplantes de rins e fígado realizados a nível mundial são conduzidos com
órgãos obtidos ilicitamente e/ou “doadores” comerciais. Isto equivale, pelo
menos, a 5 000 transplantes ilegais e este número parece estar a aumentar».
(Trafficking in
Human Organs. A study by the Directorate-General for External Policies. Policy Department. European Parliament. 2015, p.8). O
relator de uma comissão do Parlamento Europeu, citado por Leo Pessini e
Christian de Paul de Barchifontaine, escreveu: «O
tráfico organizado de órgãos existe, da mesma forma que o tráfico de drogas...
Envolve a matança de pessoas para remover órgãos que podem ser vendidos para
obter lucro. Negar a existência de tais atividades seria negar a existência de
fornos e câmaras de gás durante a Segunda Guerra Mundial» (Problemas atuais de Bioética, 7ª.ed.
rev. e ampl., São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Edições Loyola, 2005,
p.346). Por tudo isto, não admira que o tráfico de órgãos esteja,
segundo a ONU, entre os crimes mais cometidos no mundo em 2015 e seja o segundo
crime mais lucrativo. Estes dados forma apresentados no seminário “Tráfico de
órgãos humanos” que decorreu na Assembleia da República [parlamento português] em
15 de Maio de 2018 e que reuniu especialistas da área da saúde e da justiça. «Entre 5% e 10% dos transplantes renais, por exemplo, são
realizados através do comércio de órgãos. O preço varia entre os 62 mil euros e
os 140 mil euros», disse, nesse seminário, Ana Pires da Silva [representante
portuguesa numa rede de pontos focais para o combate ao tráfico de órgãos que
integra peritos de 32 países], ressalvando que «o
tráfico de órgãos é um capítulo negro da história da transplantação» (“Tráfico
de órgãos é o segundo crime mais lucrativo a seguir às armas”. Lusa.
15 de Maio de 2018).
[8] Harry
Low. “The man who sold his back to an art dealer.” BBC World Service. 1 February 2017.
[9] O consumo do capitalista e a acumulação de capital têm
uma mesma origem: o excedente produzido pelo trabalho não pago ou mais-valia.
Teoricamente, o capitalista pode dar três destinos à mais-valia: acumular,
consumir ou entesourar. Praticamente, porém, estas três opções não se
equivalem. Em O Capital Marx salientou que, uma vez obtida a mais-valia,
esta teria de transformar-se, na sua quase totalidade, em acumulação de
capital, como uma condição de sobrevivência do capitalismo e do capitalista. O
capitalista não é apenas aquele que acumula capital usando o lucro, mas também
o que lucra para acumular capital. A sua poupança e a sua acumulação não são um
sacrifício, nem uma perspectiva de lucros maiores no futuro, mas uma
necessidade em si mesma. A acumulação, portanto, não é necessária para o
capitalista só porque, dessa forma, ele pode aumentar o seu volume de lucros
graças ao maior capital acumulado, ou porque acumulando capital ele consegue
manter-se em dia com o progresso tecnológico. Estas são formas indirectas
através das quais o capitalista toma boa nota do lucro. Além disso, porém, ele
garante directamente o seu lucro não entesourando, mas investindo para acumular
e manter assim um nível adequado de procura efectiva. A taxa de lucro está, portanto, no centro do sistema
capitalista. Não é apenas o seu indicador mais fidedigno, mas também o seu
motor (Luiz Carlos Bresser-Pereira, “A Acumulação de Capital, Lucros e Juros.” Texto
para Discussão do Departamento de Análise e Planejamento Economico da EAESP/FGV,
Nº.4, Fevereiro 1991, https://www.bresserpereira.org.br/index.php/other-types-of-works/academic-papers/7878-1406). Nas palavras de Marx: «A
taxa de lucro é a força motriz da produção capitalista. Não se produz senão o
que pode ser produzido com lucro... o que inquieta Ricardo é que a taxa de
lucro, aguilhão da produção capitalista, e ao mesmo tempo condição e motor da
acumulação, esteja ameaçada peplo próprio desenvolvimento da produção» (O Capital [1894],
Livro III, Volume I, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 [primeira
edição alemã, 1867], p.271). Dado o volume absoluto da mais-valia, a acumulação
de capital será maior ou menor, dependendo da taxa de lucro.
[10] O crescimento da produtividade nos países industrialmente
mais desenvolvidos, em particular os EUA, tem sido mais lento nas cinco décadas
que decorreram desde os inícios da década de 1970 do que no século anterior (ou
um pouco menos) que as precedeu. Só na década de 1995 e 2005, a difusão da
tecnologia dos computadores se reflectiu nos dados da produtividade. Esta
problemática constitui um sério motivo de preocupação para proeminentes
economistas insuspeitos de serem adversários ou críticos do capitalismo, tais
como, por exemplo, Robert Gordon, Larry Summers e Paul Krugman (Secular
Stagnation: Facts, Causes and Cures. Edited by Coen Teulings &
Richard Baldwin. London: © CEPR Press, 2014). Tem mesmo direito a uma
denominação específica: “estagnação secular”.
«O conceito de “Estagnação Secular” originalmente
formulado pelo eminente economista da era da Depressão Alvin Hansen, tem
conhecido um renascimento desde o meu discurso de Novembro de 2013 sobre o tema»
(Larry Summers http://larrysummers.com/category/secular-stagnation/).
«Estagnação Secular – um
período prolongado em que um crescimento satisfatório só pode ser alcançado por meio de condições financeiras insustentáveis – pode ser o desafio macroeconómico
determinante do nosso tempo» (idem). Por “condições financeiras insustentáveis”, Summers entende designar
taxas reais de juro negativas ou muito baixas, uma taxa de inflação baixa e um
limite inferior zero para as taxas de juro nominais. É verdade que Summers é
responsável por ter reintroduzido e actualizado o termo “estagnação secular” na gíria dos economistas. Mas já em 2012 Robert Gordon afirmava: «as inovações não terão mais, no futuro, o mesmo potencial
em termos de crescimento do que no passado». O seu prognóstico era,
portanto, muito pessimista: «O crescimento futuro
do PIB per capita será inferior à que foi desde o fim do século 19, e o
crescimento do consumo real por habitantes será ainda mais lento para os 99%
que têm rendimentos mais baixos» (Robert J. Gordon [2012], «Is U.S.
Economic Growth Over? Faltering
innovation confronts the six headwinds”,», CEPR, September). O mesmo
autor voltou à carga em 2015: «A nação [os
EUA] enfrentou em 1938 uma crise de procura
agregada terrivelmente inadequada, porque a taxa do crescimento de
produtividade no fim dos 1930 era mais rápida do que em qualquer outra altura
da história económica dos EUA. Em contraste, no início de 2015, o hiato do
produto [output gap] é pequeno e está a
encolher, enquanto o crescimento da produtividade nos últimos cinco anos tem
sido só uma fracção da taxa de crescimento alcançada no fim dos anos 1930. […] Este artigo atribui o declínio do crescimento da
produtividade aos rendimentos decrescentes da revolução digital, taxa que
atingiu o pico do seu efeito mais forte no negócio dos computadores, dos
programas informáticos e nas melhores práticas no fim dos anos 1990, mas que
poucas mudanças tiveram nesse método ao longo da última década» (Robert
J. Gordon [2015.] “Secular Stagnation: A Supply-Side View.” American
Economic Review, 105 (5): 54-59. Minha tradução.) Em The rise and
fall of American growth: The U.S. Standard of Living since the Civil War (2016)
Gordon desenvolve e aprofunda a sua tese. É um livro grande (784 páginas), para o qual ele contou
com o apoio de uma equipe de auxiliares de investigação. O seu subtítulo, “O nível de vida
americano desde a Guerra Civil”, deixa claro que ele entende
desenvolvimento económico como aumento do nível de vida e que vê sinais fortes
de estagnação porque o nível de vida nos Estados teria deixado de aumentar. Que
o crescimento tenha diminuído desde meados dos anos 1970, não há qualquer
dúvida. Mas é possível falar em estagnação secular? Sobre este assunto controverso
e assuntos conexos ver também Luiz Carlos Bresser-Pereira, “Afinal, a estagnação
secular do capitalismo?” [Resenha de Robert J. Gordon. The rise and
fall of American growth. Princeton
(NJ), Princeton University Press, 2016. 784 pp]. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, Vol.33, Nº 96.
[11] v. “Permafrost: a bomba-relógio das mudanças climáticas”, Diário de Notícias, 25 Outubro 2021.
[12] O IPCC é uma organização intergovernamental de países que
são membros das Nações Unidas ou da OMM. Criado em 1988 pela Organização
Meteorológica Mundial (OMM) e pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente
(PNUA), o objectivo do IPCC é fornecer aos governos, a todos os níveis, informações
científicas que possam utilizar para desenvolver políticas climáticas.
[13] O número total de peritos envolvidos nos três grupos de trabalho do IPCC como autores do seu 6º relatório (2021) foi de 743. Fonte: IPCC FACTSHEET. How does the IPCC select its authors? Revised in July 2021.
[14] «Forçamento externo. Forçamento externo refere-se a um agente forçador fora do
sistema climático que cause uma mudança no sistema climático. Erupções
vulcânicas, variações solares e mudanças na órbita da Terra, bem como
alterações antropogénicas na composição da atmosfera ou no uso da terra são
forçamentos externos» (IPCC, 2021: Annex VII: Glossary [Matthews, J. B. R.,
J. S. Fuglestvedt, V. Masson-Delmotte, V. Möller, C. 36 Méndez, R. van Diemen,
A. Reisinger, S. Semenov (ed.)]. In: Climate Change
2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth
Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press. In Press) [minha tradução].
[15] «Mitigação (das alterações climáticas): Uma intervenção humana para
reduzir as emissões ou aumentar os sumidouros de gases com efeito de estufa. Adaptação:
Nos sistemas humanos, o processo de adaptação ao clima real ou
esperado e aos seus efeitos, a fim de moderar os danos ou explorar
oportunidades benéficas. Nos sistemas naturais, o processo de ajustamento ao
clima real e aos seus efeitos; a intervenção humana pode facilitar o
ajustamento ao clima esperado e aos seus efeitos» (IPCC, 2021:
Annex VII: Glossary [Matthews, J. B. R., J. S. Fuglestvedt, V.
Masson-Delmotte, V. Möller, C. Méndez, R. van Diemen, A. Reisinger,
S. Semenov (ed.)]. In: Climate Change 2021: The Physical Science Basis.
Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental
Panel on Climate Change. Cambridge University Press. In Press). [minha tradução].
[16] cf. as entradas Projection e Predictibility em IPCC, 2021: Annex VII: Glossary [Matthews, J. B. R., J. S. Fuglestvedt, V. Masson-Delmotte, V. Möller, C. Méndez, R. van Diemen, A. Reisinger, S. Semenov (ed.)]. In: Climate Change 2021: The Physical Science Basis. Contribution of Working Group I to the Sixth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. Cambridge University Press. In Press). [minha tradução]
[17] Procurei saber, através do Google, quem era esta
representante de Portugal (a única deste país que aparece listada na lista dos
autores-redactores e dos autores-contribuintes do 6º relatório do 1º grupo de
trabalho do IPCC) e descobri que é investigadora auxiliar, desde 2016, no
Departamento de Física (Grupo de Investigação: Atmospheric Processes &
Modelling) da Universidade de Aveiro e do Centro de Estudos do Ambiente e do
Mar (CESAM), uma das unidades de investigação desta Universidade, com o
estatuto de Laboratório Associado desde 2005. Doutorou-se em 2008 em Ciências
da Terra e do Ambiente na Columbia University da cidade de Nova Iorque.
[18] «A geração Z (pessoas
nascidas entre 1996 e 2012) é uma das que mais tem saído à rua para exigir
mudanças e medidas para mitigar as alterações climáticas. Um estudo da Amnistia
Internacional concluiu que as alterações climáticas são o que mais preocupa a
geração Z e é essa mesma preocupação com o planeta que tem estado na génese das
greves climáticas estudantis, que aconteceram um pouco por todo o mundo. Foi de
uma destas greves que saiu a activista climática sueca Greta Thunberg: começou
por faltar às aulas e sentou-se com cartazes em frente ao Parlamento sueco
todas as sextas-feiras. Desde aí, tornou-se célebre e tem pedido que se dê
ouvidos à ciência, lamentando que os jovens activistas do clima “não estejam a
ser levados a sério” pelos líderes mundiais». Cláudia Carvalho Silva,
“Do Antropocénico à curva de Keeling: o glossário do clima para entender a
COP26”, Público, 30 Outubro 2021.
[19] Salvo melhor informação, só conheço uma excepção: a da Murray Bookchin (Murray Bookchin, “Social Ecology versus “Deep Ecology”: A Challenge for the Ecology Movement”.Green Perspectives: Newsletter of the Green Program Project, Nos. 4-5 [summer 1987]; M. Bookchin, Social Ecology and Communalism. Oak Press, 2006). Antes de Bookchin, talvez se possa citar René Dumont, mas não li o seu livro (René Dumont, Seule une écologie socialiste, Paris, Robert Laffont, 1977).
[20] Sobre o que são bens comuns, ver Jean-Marie Harribey, Pour une conception matérialiste des biens communs, blogue Sítio com Vista (https://sitewithaview.ovh/pour-une-conception-materialiste-des-biens-communs-jean-marie-harribey/).
[21] Estima-se que o tório seja três a quatro vezes mais
abundante no planeta do que o urânio e sabe-se que tem uma eficiência
energética claramente superior: uma tonelada de tório produz a mesma energia
que 250 toneladas de urânio ou três milhões e meio de toneladas de carvão. Além disso, ao contrário do urânio, que contém apenas
0,7% de material fissionável, o tório não necessita de enriquecimento para ser
utilizado em reactores nucleares. Por outro lado, a
reacção nuclear que usa sais fundidos – principalmente fluoreto de
lítio-berílio e fluoreto de lítio – como refrigerante primário, a baixa
pressão, combinado com tório, contém menos elementos radioactivos e, por isso,
o “lixo nuclear” resultante é incomparavelmente menor em volume e massa do que o
“lixo” produzido em reactores convencionais à base de urânio, minimizando desta
forma a toxicidade e os problemas com o decaimento destes materiais. E como
esse tipo de processo não requer água, como nas centrais nucleares que utilizam
urânio-235, o reactor de sal fundido de fluoreto com tório pode ser construído
em regiões áridas ou em locais remotos e, assim, evitar ou minimizar qualquer
possível risco à população, como vimos em Chernobyl ou Fukushima (para mais
pormenores, ver “Can Using Thorium Instead of Uranium Make Nuclear Energy
Safer?” https://www.nhpr.org/nhpr-blogs/2011-11-27/can-using-thorium-instead-of-uranium-make-nuclear-energy-safer;
João Pedro Martins Vilares, Reactores a tório — O futuro da energia nuclear de fissão,
Instituto de Engenharia de Lisboa. Área Departamental de Engenharia de Sistemas
de Potência e Automação, Dezembro de 2015; Jason Ting, “Thorium Energy Viability”,
large.stanford.edu/courses/2015/ph240/ting1/; Smriti Mallapaty, “China
prepares to test thorium-fuelled nuclear reactor”, Nature, 9 September
2021).
[22]
Durante o século 19 e a primeira
metade do século 20, o processo de acumulação capitalista nunca cessou, mas, de
tempos a tempos, uma parte do capital acumulado era destruída por grandes
crises económico-financeiras, como as de 1873 e de 1929, ou então por grandes
guerras (guerras de âmbito mundial ou pluricontinental), como a de 1914-18 e a
de 1939-45. Ora, desde 1945 tivemos muitas guerras territorialmente
circunscritas, mas não tivemos grandes guerras, e tivemos muitas crises
económico-financeiras circunscritas, mas não tivemos grandes crises
económico-financeiras, crises globais. Não tivemos, portanto, as grandes “destruições criativas” de capital [a expressão é
de Joseph Schumpeter] que «o conduzem violentamente
de regresso ao ponto em que é capaz [de continuar] a utilizar plenamente os
seus poderes produtivos sem cometer suicídio» (Karl Marx (1993) [1857], Grundrisse:
Foundations of the Critique of Political Economy (rough draft). Translated
by Martin Nicolaus (1973). Harmondsworth, UK: Penguin. p. 750). «A crise financeira global de 2008 poderia ter sido uma
grande crise, poderia ter sido um episódio de eliminação de capitais [em
particular, de capitais fictícios, N.E.], se
não houvesse ocorrido a forte resposta contracíclica keynesiana, que limitou
sua extensão. Existe, assim, um imenso excedente de poupança, um savings
glut, na expressão de Ben Bernanke (2005), em busca de oportunidades de
investimento que não [se] materializam»
(Luiz Carlos Bresser-Pereira, Afinal, a estagnação secular do
capitalismo? RBCS Vol. 33 n° 96/2018).
[23] cf.
“Aukus: UK, US and Australia launch pact to counter China”. BBC,
September 9, 2021; Helen Davidson, “Japan urges Europe to speak out against
China’s military expansion”. Guardian, September 21, 2021; Mary
Yamaguchi “German navy chief vows long-term commitment to Indo-Pacific”. Associated Press, November 9, 2021.
[24] O discurso de 31 de Agosto de 2021 de Joe Biden é
elucidativo quanto a essa opção.
«A obrigação fundamental de um Presidente, na
minha opinião, é defender e proteger a América — não contra as ameaças de 2001,
mas contra as ameaças de 2021 e de amanhã.(…) A ameaça do terrorismo mantém-se
e mantém a sua natureza perniciosa e maligna. Mas ele mudou, alastrou a outros
países. Também a nossa estratégia tem de mudar.
Iremos manter a luta contra o terrorismo no Afeganistão e
noutros países. Só que não precisamos de travar uma guerra terrestre para o
fazer. Temos aquilo a que se chama capacidades de sobre-horizonte [ou seja, drones e aviões furtivos, N.E.],
o que significa que podemos, se necessário, atacar os terroristas e alvos sem
termos soldados americanos no terreno ou tendo muito poucos. (…) Como
Comandante-em-Chefe [das Forças Armadas dos EUA],
acredito firmemente que o melhor caminho para manter a nossa protecção e a
nossa segurança reside numa estratégia dura, implacável, direccionada e precisa
que vai atrás do terrorismo onde ele está hoje, e não onde estava há duas
décadas atrás. É isso que é do nosso
interesse nacional.
E há uma coisa que é fundamental compreender: o mundo está a mudar. Estamos empenhados numa competição séria com a China. Enfrentamos desafios com a Rússia em múltiplas frentes. Confrontamo-nos com ciberataques e proliferação nuclear. Temos que apoiar a competitividade americana para enfrentar estes desafios na competição pelo século XXI. Podemos fazer ambas as coisas: combater o terrorismo e enfrentar novas ameaças que apareceram agora e continuarão no futuro. E nada poderia agradar mais à China ou à Rússia nesta competição do que manter os Estados Unidos atolados no Afeganistão por mais uma década» (Joe Biden, presidente dos EUA, Observações do Presidente Biden sobre o fim da guerra no Afeganistão, 31 de Agosto de 2021). Minha tradução. O destaque a traço grosso é meu [N.E. = nota editorial].
[25] «Que os Estados Unidos já
escolheram a sua principal opção estratégica para as próximas décadas, ninguém
tem dúvida. O objectivo é conter a China e preservar o estatuto como “número
um” mundial. Isso exigirá uma dura e permanente competição com a China em todos
os domínios, evitando ao mesmo tempo que se transforme em conflito [militar
declarado, N.E.]. Um desafio tremendo. […] Ambos sabem, e o
mundo também sabe, que o século XXI será moldado por esta competição. Ambos, no
entanto, insistem em que não se trata de uma nova Guerra Fria, o que, segundo
Xi, seria “uma calamidade” – “nem blocos, nem divisões ideológicas”.» Teresa de Sousa, “EUA e China: à procura de uma nova
“détente”?” O Mundo de Hoje. Público, 16-11-2021 [N.E.= nota
editorial]
[26] A substituição de trabalhadores por máquinas com vista a
expandir e acelerar os mecanismos da mais-valia relativa, em vez de tornar a produção apenas mais capital-intensiva (por meio do aumento do capital fixo), torna-a também crescentemente conhecimento-intensiva (por meio do aumento .das qualificações da força de trabalho). Esse
processo favorece, em primeiro lugar, as remunerações dos vários agentes que
asseguram a gestão do trabalhador colectivo – quer no processo de produção,
quer fora dele – e do conjunto de operações das firmas em nome do capital. Refiro-me (A) aos gestores de
topo (directores executivos, administradores, consultores, auditores) que
se ocupam quotidianamente da direcção e administração da actividade empresarial
nas suas diversas facetas; (B) aos facilitadores que planeiam,
formulam, aprovam, executam ou mandam executar as leis, convenções colectivas e políticas públicas necessárias à
promoção dos interesses globais dos capitalistas e dos gestores de topo;
(C) aos justificadores, doutrinadores e propagandistas que
fazem a publicidade das mercadorias e a apologia das alegadas virtudes e
benesses do sistema capitalista mundial; e (D) aos guardiões armados das camadas sociais
anteriormente mencionadas, que se encarregam de garantir a sua segurança
colectiva contra actuais ou potenciais ameaças de substituição do sistema
capitalista pela associação dos produtores livres e iguais. Só em
segundo lugar é que esse processo favorece os salários dos trabalhadores
necessários ao manuseio da nova maquinaria e aos novos processos de trabalho.
Esses trabalhadores beneficiam da escassez relativa das suas qualificações,
pelo menos durante algum tempo. Quanto à massa salarial dos trabalhadores
empregados nos sectores onde prevalecem os mecanismos da mais-valia absoluta,
essa tende a subir muito menos do que a produtividade, a estagnar ou mesmo a
declinar.
[27] Thomas Friedman, o jornalista do New York Times a quem se deve a expressão New Green Deal, que criou num editorial que escreveu em 2007 (A Warning From the Garden, New York Times, 19 de Janeiro de 2007), escreveu recentemente: «Mas o que é o Green New Deal [Novo Pacto Ecológico] ? O meu está focado na inovação. Creio que só há uma coisa tão grande como a Mãe Natureza, e que é o Pai Ganância — também conhecido como mercado. Eu sou um capitalista verde. Penso que só conseguiremos a escala de que precisamos se moldarmos o mercado.[…] Quem acredita que a América pode continuar a ser um grande país e não chefiar a próxima grande indústria global? Eu não. Um Green New Deal [Novo Pacto Ecológico] por outras palavras, é uma estratégia para a segurança nacional americana, para a resiliência nacional, segurança natural e chefia económica americanas no século XXI. Certamente que alguns conservadores o podem apoiar» (The Green New Deal Rises Again, New York Times, 9 de Janeiro de 2019).