O pseudoprémio Nobel
da paz
— edição de 2022
José Catarino Soares
1. O testamento de Alfred Nobel
Em 27 de Novembro de 1895, Alfred Nobel [1] assinou o seu terceiro e último testamento no Clube Sueco-Norueguês, em Paris. Quando, após a sua morte, em 1896, foi aberto e lido, o seu testamento causou muita controvérsia, tanto na Suécia como internacionalmente, visto que Alfred Nobel deixara a maior parte (94%) da sua enorme fortuna dedicada à criação de um avultado prémio anual em cinco áreas: Física, Química, Fisiologia ou Medicina, Literatura, Paz. A sua família opôs-se à criação do Prémio Nobel e os executores do seu testamento por ele nomeados recusaram-se a fazer o que ele tinha pedido no seu testamento. Passaram-se cinco anos até que o primeiro prémio Nobel pudesse ser atribuído, em 1901.
Alfred Nobel em 1885, aos 52 anos. Fotógrafo: desconhecido. |
Aqui, vou focar-me, exclusivamente,
no prémio Nobel da paz. Alfred Nobel queria que o prémio Nobel da paz fosse
dado
à pessoa
que fez mais ou melhor para fazer progredir a fraternidade entre as nações, a
abolição ou a redução dos exércitos permanentes e o estabelecimento e a
promoção de congressos da paz.
Isto foi o que deixou escrito
no seu testamento (https://www.nobelprize.org/alfred-nobel/alfred-nobels-will/).
Por outras palavras, o
prémio Nobel da paz é um prémio que foi concebido para galardoar quem se
distingue na luta contra o militarismo e o belicismo, pela desmilitarização das
sociedades, para prevenir ou extinguir as guerras e pela fraternidade entre as
nações. NÃO É um prémio que tenha sido concebido para galardoar quem se
distingue na luta pela defesa dos direitos humanos (por mais meritória que seja
essa luta), nem por actividades humanitárias ou de beneficência (por mais louváveis
que sejam essas actividades).
O prémio Nobel da paz
deste ano de 2022 foi atribuído a um indivíduo (Ales Bialiatski, da
Bielorrússia) e a duas organizações (Memorial, na Rússia, e Centro
para as Liberdades Civis, na Ucrânia) que nada ou pouco têm a ver com a
luta pela desmilitarização das sociedades, contra o militarismo e o belicismo, pela
prevenção e extinção das guerras, pela fraternidade entre as nações.
Por essa razão, o prémio
“Nobel da paz” de 2022 constitui uma fraudulenta
traição à memória e à última vontade de Alfred Nobel.
Não é primeira vez que o
comité norueguês encarregado de atribuir este prémio Nobel, comete esta
fraudulenta traição. Na verdade, é useiro e vezeiro em fazê-lo. Os casos mais
escandalosos mais recentes (porque mais desavergonhadamente fraudulentos e
traiçoeiros) são os de Henry Kissinger, prémio Nobel da paz em 1973, e de Barak
Obama, prémio Nobel da paz em 2009.
2. Como aviltar o prémio Nobel da paz e desrespeitar a memória do seu instituidor
Henry Kissinger, conselheiro
nacional de segurança e ministro dos Negócios Estrangeiros dos presidentes
Richard Nixon e Gerald Ford, foi galardoado com o prémio Nobel da Paz no
mesmo ano em que ele e Nixon deram ordens para a CIA apoiar a organização do
golpe de Estado chefiado pelo general Pinochet que derrubou o governo eleito de Salvador Allende no Chile. No
dia do golpe e nas 3 semanas seguintes, 40.000 pessoas foram presas pelos
militares de Pinochet e levadas para o estádio nacional em Santiago de Chile,
onde várias centenas foram fuziladas. Durante os 17 anos que durou o regime de
Pinochet, foram assassinadas 3.216 pessoas pelos militares e pela polícia do
regime, em muitos casos sem que se conheça onde param ou onde foram destruídos
os seus restos mortais (Comision Retti, 1996). 38.254 pessoas foram presas
durante o mesmo período, 94% das quais foram torturadas (Comision Valech,
2004).
Henry Kissinger (à direita) aperta a mão ao general Augusto Pinochet (à esquerda) em 1976, no Chile. Foto: Ministerio de Relaciones Exteriores de Chile. |
Kissinger foi também um
dos mentores da Operação Condor, iniciada em
1975 na América Latina, que incluiu o rapto, aprisionamento, tortura e
assassinato de centenas de opositores dos regimes oligárquicos liberticidas da
Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Brasil, Equador e Peru. A lista
das malfeitorias cometidas por Kissinger é muito maior e não pode ser aqui
devidamente escalpelizada sem nos desviarmos demasiadamente do tema deste
artigo. Cito apenas mais uma, pro memoria: o apoio à invasão e anexação
de Timor-Leste pelas tropas indonésias de Suharto de 1975 a 1981.
Barak Obama, presidente
dos EUA, foi galardoado «pelos seus esforços
extraordinários em reforçar a diplomacia internacional e a cooperação entre os
povos» (ipsi dixit pelo comité Nobel para o prémio da paz). Mas
foi o mesmo Obama quem (i) reforçou com 30.000 soldados a presença
militar dos EUA no Afeganistão, em 2009; (ii) adiou a retirada das
tropas dos EUA desse país até 2016; (iii) aprovou os ataques aéreos na
Líbia que levaram, em 2011, à transformação da Líbia de um país relativamente próspero
[2] num país
miserável, dominado por milícias tribais e grupos jihadistas que se digladiam
mutuamente; e (iv) voltou a envolver militarmente os EUA no Iraque, em 2014,
apesar de ter prometido, em 2011, a retirada das tropas dos EUA do país. Foi
também Obama quem deu carta branca à sua subsecretária de Estado dos Negócios
Estrangeiros, Victoria Nuland, para organizar (o que ela fez com êxito) o golpe
de Estado de 2014 que derrubou o governo eleito de Viktor Yanukovych na Ucrânia
— um golpe apelidado pelos golpistas de “revolução
Maidan,” “revolução Euromaidan” ou “revolução da dignidade” [3].
O próprio Obama ficou
surpreendido e embaraçado com o prémio Nobel que lhe foi atribuído, tendo
declarado, quando soube da notícia:
Para ser
honesto, não acho que mereça estar na companhia de tantas figuras
transformadoras que têm sido distinguidas com este prémio, homens e mulheres
que me inspiraram e inspiraram o mundo inteiro através da sua corajosa busca da
paz [4].
3. Outra traição dos depositários noruegueses do prémio
Nobel da paz
O cinismo do comité norueguês
que atribui o Nobel da paz radica, em grande medida, na sua composição.
Durante 116 anos (de 1901
a 2017) foi prática corrente que o comité norueguês do prémio Nobel da paz fôsse
composto basicamente por deputados do parlamento norueguês e que a sua
composição reflectisse a correlação de forças existente entre os diversos
partidos políticos noruegueses com assento parlamentar.
Seria considerado
bizarro, até por ele próprio, se um tal grupo decidisse quem são os galardoados
com o prémio Nobel para a física, a química, a fisiologia ou medicina, a
literatura! Bem entendido, ter sido eleito membro do parlamento também não
garante ao membro eleito nenhum conhecimento específico sobre os problemas da
paz e do desarmamento. Porém, os deputados do parlamento norueguês
consideraram-se perfeitamente habilitados a decidir, durante mais de um século,
quem eram os galardoados com o prémio Nobel da paz. O resultado, previsível,
foi desacreditar o prémio Nobel da paz.
As medidas entretanto
tomadas para mitigar esse descrédito não foram, nem poderiam ser, suficientes.
A partir de 1937, os membros do governo em funções deixaram de ser eleitos para
o comité Nobel (nada obstando a que pudessem ser ex-membros de um governo). A
partir de 1977, passou a ser prática corrente (mas não obrigatória) não eleger
para o comité Nobel deputados em funções. Em 2017, o parlamento norueguês
decidiu formalmente que nenhum deputado em funções poderia ser eleito para o
comité do Nobel da paz (nada obstando a que pudessem ser ex-deputados).
O que é extraordinário
nesta decisão é que chegou com 116 anos de atraso! No seu testamento, Alfred Nobel
deixou escrito explicitamente que a atribuição do prémio Nobel deveria ser
decidida
para campeões da paz, por um comité de cinco pessoas a serem seleccionadas pelo Stortinget [nome do parlamento norueguês] (https://www.nobelprize.org/alfred-nobel/alfred-nobels-will/).
Cinco pessoas seleccionadas
pelos membros do parlamento, não constituídas por eles! Esta usurpação,
durante 116 anos, do comité norueguês do prémio Nobel da paz pelos membros do
governo norueguês e pelos deputados do parlamento norueguês constituiu a
segunda e fraudulenta traição ao testamento de Alfred Nobel.
4. Dois pesos e duas medidas, mesmo vendendo gato
por lebre
A notícia dos nomes e
nacionalidades dos galardoados com o prémio Nobel de 2022 e dos motivos da sua
atribuição suscitou a Jan Olberg o seguinte comentário:
O Comité Nobel
deveria incluir um membro do governo dos EUA ou de outro país da OTAN — ou deveria
ser transferido para o Ministério dos Negócios Estrangeiros dos EUA [=
State Department na terminologia dos EUA, N.E.] ou para a OTAN [=NATO
no acrónimo inglês, N.E.]. Isso seria mais
honesto do que jogar estes joguinhos que, repetidamente e de forma flagrante,
violam os desejos de Alfred Nobel. Os nossos meios de comunicação social deveriam
ser capazes de ler três linhas sobre as intenções de Nobel [expressas no
seu testamento, N.E.], mas não é feita nenhuma
pesquisa para revelar a fraude. Seria considerado politicamente incorrecto
demais pelos EUA e a OTAN.
E sobre um dos três
laureados com o prémio Nobel da paz de 2022, acrescentou o seguinte:
/…/ O Comité
Nobel ‒ localizado na capital da Noruega, um país membro da OTAN ⎼ está numa missão política pró-militarismo. É impossível que ele não
conheça o conteúdo da página inicial do sítio electrónico do
seu laureado. Ou será que o comité está a receber
ordens ⎼ directa ou indirectamente ‒ dos círculos EUA/OTAN? Seja qual for a
explicação, é, sem dúvida, totalmente incompatível com as palavras e intenções
de Alfred Nobel [5]. [N.E.=
nota editorial].
O laureado do prémio
Nobel da Paz de 2022 a que Olberg se refere é o Center for Civil Liberties (CLL)
‒ Centro pelas Liberdades Civis ‒ da Ucrânia. A página do sítio
electrónico do CLL a que Olberg se refere é esta:[
O comentário de Olberg é
inteiramente pertinente. O CLL é financiado pelo Ministério dos Negócios
Estrangeiros dos EUA [State Department, na terminologia americana, N.E.],
pela Comissão Europeia e pelo National Endowment for Democracy (NED) — uma
organização financiada pelo Congresso dos EUA que canaliza o dinheiro com que a
CIA e o State Department financiam o CLL e muitos outros grupos congéneres
noutros países sob as rubricas dos “direitos
humanos” e da “democracia”.
Na página electrónica a
que Olberg se refere, encontra-se um texto, originalmente publicado na revista Newsweek,
de Oleksandra Matviichuk, dirigente do CLL. Nesse texto, essa senhora faz a
apologia da continuação das guerras na Ucrânia ‒ a que opõe as tropas ucranianas
às milícias das regiões russófonas de Donbass desde Maio de 2014 e a que opõe
as tropas russas às tropas ucranianas desde 24 de Fevereiro de 2022 ‒ até ao
último soldado ucraniano.
O seu
conteúdo, estilo e conceitos são essencialmente uma replicação das mensagens da
OTAN ou do State Department dos EUA [5].
Tendo em conta o
superarmamento (incluindo milhares de bombas atómicas) da OTAN e da Rússia (a
primeira com despesas militares 12 vezes superiores às da segunda e, no futuro,
talvez 20 vezes superiores), compreende-se a actualidade e radicalidade do
prémio Nobel da paz, tal como foi concebido pelo seu instituidor.
Nesse sentido, Jan Olberg
sugere que o prémio Nobel da Paz de 2022 poderia ter sido dado a alguém como,
por exemplo, Daniel Ellsberg (https://www.ellsberg.net/),
um economista americano, ex-comandante dos fuzileiros navais e ex-analista da Rand
Corporation e do State Department. Depois de divulgar (com grandes
riscos pessoais) os famosos Pentagon Papers (1971) ‒ documentos secretos da Rand
Corporation que revelaram o comportamento inconstitucional e as
malfeitorias dos governos americanos no Vietnam de 1945 a 1967 ‒ Ellsberg tem
dedicado a sua vida a informar o mundo sobre a loucura ritual, imoralidade, desumanidade
e perigos letais apocalípticos decorrentes do fabrico e uso de armas nucleares.
O seu livro The Doomsday Machine — Confessions of a Nuclear War Planner (2017)
[A Máquina do dia do Juízo Final — Confissões de um planeador da guerra
nuclear] é já um clássico sobre o assunto.
Daniel Ellsberg (actualmente com 91 anos) fotografado em Junho de 2020. Foto de Cmichel67. |
Uma outra opção para o prémio Nobel da Paz de 2022 teria sido, sugere Olberg, Yurii Sheliazhenko, investigador associado da faculdade de Direito da universidade Krok, em Kiev, jornalista e activista ucraniano, um dos dirigentes da organização World Beyond War — a global movement to end all wars [O Mundo para além da Guerra — um movimento global para pôr fim a todas as guerras] (https://worldbeyondwar.org). Em 1 de Março de 2022, Sheliazhenko deu uma interessante entrevista ao canal de televisão americano Democracy Now, que pode ser vista aqui: https://www.youtube. com/watch?v=YKUCFXlplww
Yurii Sheliazhenko em Kiev, no dia 2 Outubro de 2022 (Dia Internacional da Não-Violência). Foto: Facebook de Yurii Sheliazhenko. |
As sugestões de Jan
Olberg ‒ tal como aquela que foi sugerida, em 2021, por Fredrik Heffermehl (e
que especificarei mais adiante) ‒ fazem todo o sentido, embora contrariem
completamente a narrativa dominante dos poderes estabelecidos, veiculada também
pelo comité norueguês do prémio Nobel da paz.
Por exemplo, o presidente dos EUA, Joe Biden, deu os parabéns ao comité norueguês do Nobel da paz por «confrontar a intimidação e a opressão» na Bielorrússia e na Rússia — mas não na Ucrânia. Isto porque a Ucrânia é, como é bem sabido, um paraíso dos direitos humanos, sobretudo desde que Zelensky baniu 11 partidos políticos — todos menos o seu próprio partido Sluha Narodu [= Servidor do Povo] e os partidos neonazis (tais como a Vseukrainske obiednannia Svoboda [= União Pan-Ucraniana Liberdade], o Pravyi Sektor [= Sector Direito] e o Natsionalnyi Korpus [= Corpo Nacional], criado pelo Batalhão Azov [uma unidade da Guarda Nacional da Ucrânia]) que se reclamam do legado de Stepan Bandera e Roman Choukhevytch conhecidos, entre outras coisas, como os responsáveis pelos massacres de Volhynie (1942-1944). O Partido Comunista da Ucrânia já tinha sido banido em 2015, durante a presidência de Petro Poroshenko, o antecessor de Zelensky. Zelensly manteve essa proibição. Porquê? Valha-nos Deus, que pergunta descabida! Pela mesma razão da medida anteriormente descrita: mostrar o seu grande apreço pelos direitos humanos!
Ursula von der Leyen, presidente
da Comissão Europeia, elogiou o reconhecimento, pelo comité norueguês do prémio
Nobel da paz, «da excepcional coragem dos homens e
mulheres que se levantam contra autocracias» na Bielorrússia e na Rússia
— mas não na Ucrânia. Isto porque a Ucrânia é uma democracia resplandecente,
como é bem sabido, sobretudo desde que o presidente Zelensky, além da proibição
de 11 partidos políticos, (i) decretou também a proibição, durante cinco
anos, das emissões de três estações de televisão ‒ ZIK, NewsOne e 112 ‒, que
foram forçadas a encerrar em Fevereiro de 2022; (ii) fundiu todas as
estações de televisão existentes numa só, às ordens do seu governo, em Março de
2022; (iii) promulgou três leis antilaborais e antissindicais aprovadas
pelo parlamento ucraniano: a lei 2136 (em 23 de Março de 2022), a lei 5161 (em
19 de Julho de 2022) e a lei 5371, agora lei 2423 (em 17 de Agosto de 2022).
# A
lei 2136 tornou muito mais fácil para os patrões despedirem trabalhadores ou
alterarem as condições de trabalho, incluindo a extensão da semana de trabalho
a 60 horas, sem qualquer consulta.
# A
lei 5161 permite aos patrões contratar até 10% da mão-de-obra em regime “ocasional”: são os chamados contratos de “zero horas”. Os trabalhadores poderão ser contratados
apenas por 32 horas de trabalho por mês e estariam permanentemente disponíveis
ou “de plantão”.
# A
lei 5371 aboliu todos os direitos sindicais para os trabalhadores contratados
em empresas com 250 empregados ou menos. Concretamente, a
lei elimina os direitos à negociação colectiva e à contratação colectiva em
qualquer empresa com 250 trabalhadores ou menos, transformando os acordos
colectivos de trabalho em contratos individuais de trabalho. Os trabalhadores
podem: (a) ser despedidos dos seus empregos sem a possibilidade de
defesa pelo seu sindicato; (b) serem forçados a fazer trabalhos que não
constam dos seus contratos; (c) verem a sua semana de trabalho aumentada
de 40 para 60 horas; (d) verem o seu tempo de férias reduzido. Estas
mudanças afectarão mais de 70% dos trabalhadores assalariados ucranianos.
Mykhailo Volynets, dirigente
da Confederação
dos Sindicatos Livres da Ucrânia (KVPU), salientou que Zelensky tinha «ignorado o apelo de sindicatos nacionais e internacionais e
de organizações dos direitos humanos para vetar a lei [5371]»,
acrescentando que a sua organização «não tolerará uma
flagrante violação dos direitos dos trabalhadores, das suas garantias
constitucionais e das normas e padrões internacionais» [6].
Em resumo: o comité
norueguês do prémio Nobel da paz transformou, traiçoeira e fraudulentamente, o
prémio que Alfred Nobel quis que fôsse dado aos campeões da paz num prémio em
prol dos direitos humanos. Mas nem sequer isso conseguiu fazer com um mínimo de
coerência. Mesmo depois de atraiçoar o cumprimento da última vontade de Alfred
Nobel, o comité norueguês não deixou de fazer batota com a sua contrafacção (o
pseudoprémio Nobel da paz), aplicando-lhe a regra “dois
pesos e duas medidas.”
Biden e Ursula von der
Leyden estão sempre prontos a elogiar a “excepcional
coragem” dos defensores dos direitos humanos que confrontam “a intimidação e a opressão”, mas só em países como, por exemplo, a
Rússia e a Bielorrússia, nunca em países como, por exemplo, a Ucrânia e Israel. O comité
norueguês do pseudoprémio Nobel da paz tem a mesma atitude desses seus
mentores. Está sempre pronto para premiar a “excepcional
coragem” dos defensores dos direitos humanos que confrontam “a intimidação e a opressão”, mas só em países como por
exemplo, a Rússia e a Bielorrússia, nunca em países como, por exemplo, a
Ucrânia e Israel. Nunca se atreveria, por exemplo, a dar o seu pseudoprémio
Nobel da paz à Confederação dos Sindicatos Livres da Ucrânia.
5. Nunca ofender os EUA e, se possível,
agradar-lhes
O prémio Nobel da Paz ‒ tal
como o prémio Nobel da física, da química, da fisiologia ou medicina, da
literatura ‒ foi um legado de Alfred Nobel feito à humanidade. Isso mesmo está
patente no seu testamento, onde Nobel fez questão em afirmar:
É meu desejo expresso que, ao atribuir os prémios, não seja considerada a nacionalidade, mas que o prémio seja atribuído à pessoa mais merecedora, quer seja ou não escandinava [https://www.nobelprize.org/alfred-nobel/alfred-nobels-will/]
Nobel deixou também muito
claro no seu testamento quem deveria encarregar-se da atribuição desses
prémios.
Os prémios
para a física e a química serão atribuídos pela Academia Sueca das Ciências; o prémio
para a fisiologia ou para avanços médicos pelo Instituto Karolinska de
Estocolmo; o prémio para a literatura pela Academia de Estocolmo; e o prémio
para campeões da paz por um comité de cinco pessoas a seleccionar pelo Stortinget
[parlamento]
norueguês (https://www.nobelprize.org/alfred-nobel/alfred-nobels-will/).
As decisões respeitantes às
instituições encarregadas de atribuir os prémios Nobel da física e química, da fisiologia
ou medicina, e da literatura revelaram-se judiciosas e resistiram à prova do
tempo.
Mas o mesmo não sucedeu
com a instituição designada para atribuir o prémio Nobel da paz: o parlamento
norueguês. Não resistiu à prova do tempo e, na realidade, mostrou bem cedo a
sua inadequação, como veremos mais adiante.
Que razão ou razões terá
tido, então, Alfred Nobel para fazer essa escolha? O maior estudioso do
assunto, Fredrik Heffermehl, sugere duas razões.
[Alfred Nobel] deve ter gostado do facto de a Noruega, que era então o
parceiro júnior de uma união com a Suécia, não ter tido uma política externa.
Além disso, a Noruega tinha sido pioneira no apoio à principal organização de
paz de [Bertha von] Suttner [7].
Convém saber que a
escritora austríaca Bertha von Suttner foi, durante algum tempo, secretária de
Alfred Nobel, de quem se tornou amiga e confidente, e que o seu romance antimilitarista e antibelicista, Die Waffen
nieder! [Abaixo as Armas!] (1889), foi um campeão de vendas na sua
época. Mais ainda,
Ela inspirou
um grande movimento político e induziu um entusiasta Alfred Nobel a estabelecer
o seu prémio para «a abolição ou redução de
exércitos permanentes».
Perante estes factos, a decisão de Alfred Nobel de nomear o parlamento norueguês como instituição encarregada de seleccionar o júri do prémio Nobel da paz, afigura-se muito judiciosa.
Ora, como vimos, o
parlamento norueguês usurpou as próprias funções do júri encarregado de
atribuir esse prémio, ao cooptar os elementos do júri entre os seus próprios
membros. Destarte, o parlamento norueguês retirou qualquer independência ao
júri do prémio Nobel da paz e criou as condições permanentes (por meio do
comité Nobel norueguês) para transformar o prémio Nobel da paz num pseudoprémio
Nobel da paz, ao perverter as intenções de Alfred Nobel. Como explicar, então, tão
grande desaire a partir de uma decisão aparentemente judiciosa?
Fredrik
Heffermehl encontrou a resposta a esta pergunta.
No meu mais
recente livro sobre o prémio Nobel, Fama ou Vergonha (em
norueguês, Medaljens Bakside — a tradução inglesa
procura uma editora), descobri por que é que a escolha da Noruega se tornou um
erro fatal: no ano exacto em que Nobel fez o seu testamento, 1895, os políticos
noruegueses passaram do apoio à paz mundial à construção de uma força militar destinada
a uma saída potencialmente violenta da união [com a Suécia].
Assim, os
oradores do Parlamento não hesitaram em descartar o principal instrumento do
Nobel da paz, o desarmamento global, e torná-lo um prémio para a “paz” em
geral, ou seja, em desviar o prémio e usá-lo seja para o que for que lhes agradasse.
A intenção do
prémio Nobel [para a paz] que Nobel tinha
em mente nunca se realizou: os membros do comité norueguês optaram por nunca
conduzir a necessária interpretação profissional da intenção de Alfred Nobel. O
comité também nunca se pronunciou ‒ excepto em 1905 [quando o prémio foi
atribuído a Bertha von Suttner, N.E.] e 1910 [quando
o prémio foi atribuído ao Bureau International Permanent de la Paix, N.E.]
‒ a favor da visão de paz que Nobel desejava apoiar.
[Nas reuniões do comité norueguês
que atribui os prémios Nobel da paz] aplica-se o
sigilo total, nenhum membro pode revelar nada das discussões internas do
comité, mas os relatórios preparatórios em que o comité baseia as suas
discussões estão disponíveis e mostram que as suas deliberações nunca
contiveram um pingo de interesse na visão de paz do próprio Alfred Nobel.
Em vez disso,
há várias expressões de desprezo pelas pessoas e ideias de paz que Nobel
desejava que o comité apoiasse [8].
Heffermehl descobriu
também, nas suas aturadas pesquisas nos arquivos do comité Nobel norueguês, os critérios
de atribuição do pseudoprémio Nobel da paz deste comité.
O Comité Nobel
norueguês, com o seu prémio de 2021, mostra talvez o critério mais sólido na
sua política de prémios: nunca ofender os EUA e, se possível, agradar-lhes.
Isto começou com o prémio de 1906 para o Presidente Theodore Roosevelt e
continuou com os prémios para Woodrow Wilson, Frank Kellogg, George Marshall,
Henry Kissinger, Jimmy Carter e Barack Obama e outros — todos muito longe dos genuínos
protagonistas da paz e da não-violência que Alfred Nobel tinha em mente [destaque a traço grosso acrescentado por mim, JCS]
Outra
tendência consiste ‒ exceptuando um punhado de prémios antinucleares – em conferir
prémios a pessoas alinhadas com a política dos EUA e do Ocidente. Ou conferi-los
a oponentes embaraçosos [dos governos de países que os EUA e os
seus aliados estratégicos consideram como sendo seus inimigos geopolíticos ou,
tão-somente, aliados volúveis que precisam de ser admoestados, N.E.], como nos casos de Andrej Sakharov, Lech Walesa, Liu
Xiaobo, ou como nos prémios 2021 para Maria Ressa e para o russo Dmitry
Muratov. [destaque a traço grosso acrescentado por mim, JCS]
No seu anúncio de 2021, o comité declarou que desejava «proteger contra abusos de poder, mentiras e propaganda de guerra». Mas o comité perdeu uma formidável oportunidade de ser totalmente leal a Alfred Nobel e, ao mesmo tempo, servir a causa da liberdade de imprensa. Um dos candidatos nomeados para 2021 tinha feito um desafio único às forças que Alfred Nobel queria combater. A ameaça mais grave e mortal à liberdade de imprensa no mundo de hoje é a campanha dos EUA contra Julian Assange, o fundador da WikiLeaks, que merece os agradecimentos do mundo por ter dado a conhecer os crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão.
A liberdade
de imprensa russa é, no fim de contas, um problema local, mas o ataque dos EUA
a Assange irá dissuadir os meios de comunicação social em todo o mundo de se
pronunciarem de forma crítica sobre o abuso de poder dos EUA e sobre os seus crimes
em primeiro grau. Desde há dez anos até agora que Assange tem estado privado de
saúde e de liberdade. Está detido como prisioneiro político, em isolamento na
Prisão de Alta Segurança de Belmarsh, em Londres, sem acusação nem sentença,
enquanto se aguarda um recurso dos EUA contra a recusa de um tribunal britânico
em extraditá-lo [esta passagem já perdeu actualidade: o
governo dos EUA ganhou o seu recurso. Assange pode ser extraditado de um dia
para o outro, se falharem as derradeiras diligências legais para o proteger
desse destino, N.E.]
As suas
corajosas revelações têm sido “premiadas” com torturas que arruinaram a sua
saúde. A sua vida está em risco. Um comité fiel à visão de paz do Nobel poderia
ter ajudado a proteger Assange da extradição e da privação perpétua da
liberdade nos Estados Unidos.
Um grande
paradoxo é este: se a liberdade da imprensa crítica-do-poder que foi galardoada
com a atribuição do prémio Nobel da paz de 2021 tivesse funcionado relativamente
ao próprio comité Nobel e ao poderoso complexo militar-industrial — o Comité
Nobel da paz não teria tido êxito na sua traição ao cerne da visão de paz de
Alfred Nobel ao longo dos últimos 120 anos [8].
6. Conseguiremos restituir o prémio Nobel da Paz à
sua intenção original?
Posto isto, cabe
perguntar: conseguiremos restituir o prémio Nobel da paz à sua intenção original?
Para isso seria
necessário começar por retirar ao parlamento norueguês o poder de seleccionar
os membros do júri do prémio. Ora, isso é impossível, porque desrespeitaria o
testamento de Alfred Nobel. A alternativa seria esperar que o parlamento norueguês
seleccione um júri do prémio que (i) comungue dos valores e objectivos
que o seu criador lhe atribuiu e que (ii) seja competente para escolher
os campeões da paz mais merecedores do prémio. Dado o histórico do parlamento
norueguês nesta matéria, julgo que isso será muito difícil, para não dizer
impossível.
No entanto, não perdemos
nada em tentar, tanto mais que a iniciativa tem também como propósito
esclarecer o público sobre os requisitos e correlatos da paz: antimilitarismo,
antibelicismo, desmilitarização, desarmamento, redução e extinção dos exércitos
permanentes. Um passo nessa direcção é a petição que subscrevi e que traduzi do
Inglês (vai reproduzida em anexo, mais abaixo). Quem quiser subscrevê-la pode
fazê-lo clicando na seguinte hiperligação
………………………………………………………………………………………
Anexo: petição
Ao Parlamento norueguês
De: [O seu nome]
Pedimo-vos que facilitem o cumprimento da
vontade legalmente vinculativa de Alfred Nobel, seleccionando um comité dedicado às ideias antimilitaristas de paz de Alfred Nobel
através da cooperação, do direito e do desarmamento. O Parlamento deve
abandonar a sua rotina de selecção, que tem favorecido os políticos noruegueses
em vez da ideia visionária de Alfred Nobel.
Insistimos na ideia de que não incluam no
comité do Prémio Nobel da Paz pessoas que estejam dispostas a glorificar
criminosos de guerra como Henry Kissinger, que foi homenageado pelo actual
comité em Dezembro de 2016 [9].
A atribuição do Prémio Nobel da Paz de 2017
à Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares foi uma grande melhoria em relação aos prémios dos últimos anos em termos
de cumprimento da vontade de Alfred Nobel.
Cabe-vos agora, na renovação de Dezembro da
composição do comité, seleccionar os membros que irão cumprir o objectivo
global de desarmamento para o qual o prémio foi criado.
O prémio de paz pertence aos cidadãos deste
mundo, e deveis fazer com que pessoas dedicadas às ideias de paz de Alfred
Nobel fiquem encarregadas de atribuir o prémio mais importante do mundo. A
prosperidade e a segurança do mundo dependem disso.
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Notas e Referências
bibliográficas
[1] Alfred Nobel (1833-1896)
foi um engenheiro químico, inventor, gestor empresarial e capitalista industrial
sueco. Inventou a dinamite, a gelignita e a balistite; experimentou fazer
borracha sintética, couro sintético e seda artificial, entre muitas outras
coisas. Quando morreu, deixou registadas 355 patentes e uma enorme fortuna, a quase totalidade da qual seria dedicada, por sua expressa vontade, à criação de um
prémio anual em cinco áreas muito distintas: Física, Química, Fisiologia ou
Medicina, Literatura, Paz.
[2] A Líbia tem uma área de quase 1,8 milhões de quilómetros quadrados, o que faz dela o 4º. país mais extenso de África, e tinha, em 2015, uma população de 6,4 milhões de habitantes, com 140 tribos nómadas. De 1969 a 2011, graças às receitas do petróleo e apesar da corrupção endémica do regime oligárquico liberticida do coronel Muammar Gaddafi, a Líbia alcançou o mais alto Índice de Desenvolvimento Humano em África — uma proeza que foi alcançada a partir de 1977 e sem recorrer a empréstimos. Além disso, o rendimento per capita do país subiu para 11.000 dólares americanos, o mais elevado de África. Enquanto vigorou o regime de Gaddafi, as despesas com os serviços públicos de saúde representavam 3,88% do PIB do país em 2010 e a esperança de vida à nascença era de 74,9 anos em 2011 ‒ 72,4 anos para os homens e 77,5 anos para as mulheres. A educação básica, tal como a saúde eram gratuitas para todos os cidadãos — embora o serviço de saúde fôsse de qualidade medíocre comparativamente aos países europeus mais desenvolvidos, apesar das enormes verbas que lhe eram consagradas. Porém, a intervenção militar dos EUA e da OTAN na Líbia, ocorrida entre Março e Outubro de 2011, não serviu (nem poderia servir) para melhorar a vida do povo líbio em nenhum aspecto. Pelo contrário, destruiu não só o regime de Gaddafi como também o próprio país. A interminável guerra civil que se lhe seguiu, que já fez mais de 30 mil mortos, reduziu a Líbia a um campo de batalha entre milícias tribais e jihadistas que se digladiem mutuamente pelo controlo dos campos petrolíferos (v. Irae Baptista Lundin, “A intervenção militar na Líbia.” Tensões Mundiais, v. 7, n. 13, 2018).
[3] Sobre o golpe de Estado de 2014 na Ucrânia, ver José Catarino Soares, “Omissões, falsidades e mentiras sobre as guerras na Ucrânia. Parte 3.” Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue, 24 Setembro, 2022.
[4]
“President Obama’s Nobel
Reaction”, New York Times, 9 October 2009.
[5] Jan Olberg, “The 2022 NATO Nobel Human Rights Prize.” The
Transnational, October 8, 2022.
[6] Tomás Ó Flatharta, “Ukraine: Under the cover of Putin’s war, Zelensky tears up workers’ rights” (https://tomasoflatharta.com/2022/08/26/ukraine-under-the-cover-of-putins-war-zelensky-tears-up-workers-rights/)
[7] Fredrik Heffermehl, “The 2021 Nobel Peace Prize:
Freedom for the Press or for the US?”. The Transnational,
December 9, 2021.
[8] F. Heffermehl, op.cit.
[9] Em 2016, o actual comité norueguês para o prémio Nobel da paz decidiu realizar uma série de colóquios anuais que apelidou de Nobel Peace Prize Forum. Para o colóquio inaugural, que ocorreu em Dezembro de 2016, foram convidados como oradores Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski (outro notório belicista, já falecido, cuja vida foi toda ela dedicada a promover a supremacia mundial dos EUA por todos os meios, incluindo a guerra).