TERTÚLIA ORWELLIANA

Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

12 janeiro, 2024

Tema 3

Provas da intenção genocida do Estado de Israel

contra a população palestiniana da Faixa de Gaza

José Catarino Soares

«O Grito de Gaza», gravura de Omar Esstar (artista tunisino)

Está em curso um genocídio da população palestiniana da Faixa de Gaza (23.708 mortos até ontem, incluindo mais de 10.000 crianças), acompanhado da destruição completa das suas infraestruturas e do seu parque habitacional. Foram ambos (genocídio e destruição material) meticulosamente planeados pelas mais altas instâncias do Estado de Israel — o seu governo, o estado-maior das suas forças armadas. Estão ambos a ser executados há mais de três meses, com a maior frieza exterminadora, pelas suas forças armadas, com a aprovação da quase totalidade dos deputados do Knesset e o apoio directo dos EUA — que fornecem as armas e munições utilizadas por Israel.

As provas da intenção genocida do Estado de Israel foram compiladas pela República da África do Sul (RAS). Constituem a secção D da «Solicitação de instauração de um processo judicial em nome da República da África de Sul (“África do Sul”) contra o Estado de Israel (“Israel”)» apresentada ao Tribunal Internacional de Justiça em 28 de Dezembro de 2023, cujo julgamento começou hoje. Traduzi essa secção do documento da RAS, que pode ser lida aqui:

https://estatuadesal.com/2024/01/11/processo-judicial-em-nome-da-africa-de-sul-contra-o-estado-de-israel/

O documento da RAS, na sua versão original e na sua integralidade, pode ser consultado e/ou obtido aqui:

https://www.icj-cij.org/node/203394

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Sobre George Orwell

O homem cuja fotografia (tirada aos 43 anos, com o seu filho adoptivo, Richard Blair, ao colo) aparece no cabeçalho deste blogue, é George Orwell, pseudónimo literário de Eric Arthur Blair (1903-1950). Foi um grande escritor que nos deu, entre outros escritos notáveis, duas obras-primas do romance : Animal Farm: A Fairy Story (A Quinta dos Animais: um conto de fadas ou [se se preferir] uma história de encantar) — diversamente traduzido em Portugal por O Porco Triunfante, O Triunfo dos Porcos, e A Quinta dos Animais, e no Brasil por A Revolução dos Bichos — e Nineteen Eighty-Four (publicado em Portugal com o título 1984), assim como o mais sóbrio, genuíno e eloquente testemunho da guerra civil de Espanha: Homage to Catalonia (também traduzido em Portugal : Homenagem à Catalunha). Foi também um cidadão autónomo, tão íntegro quanto intrépido. Apesar de ter morrido com apenas 46 anos, vítima de tuberculose, a sua importância para o século XXI decorre da extraordinária relevância dos temas que tratou (a tirania do medo e da fome, a desinformação, a mentira organizada, a propaganda embrutecedora, a linguagem enganosa, o conformismo e a subserviência [Étienne de La Boétie diria, "a servidão voluntária"], armas de eleição de todas as oligarquias e de todas as tiranias), aos quais foi fiel e que nunca abandonou. Eram, para ele, assuntos indissociáveis do combate pelos direitos dos trabalhadores e pelas liberdades civis, «contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrático, tal como o entendo», uma vez que entendia que «o verdadeiro objectivo do socialismo não é a felicidade. A felicidade sempre foi uma espécie de subproduto e, tanto quanto sabemos, é provável que sempre assim seja. O verdadeiro objectivo do socialismo é a fraternidade humana. É isto o que as pessoas em geral pensam, embora não seja dito habitualmente, ou pelo menos suficientemente alto» (G. Orwell. Ensaios Escolhidos. Lisboa: Relógio d' Água Editores. 2016, p.331 e p.152).

Daí o seu estatuto de figura histórica para além de literária. Em consequência disso, «usamos vulgarmente o termo "orwelliano" numa de duas acepções. Descrever um estado de coisas como sendo "orwelliano" é subentender uma tirania esmagadora, medo e conformismo. Descrever um escrito como sendo "orwelliano" é reconhecer que a resistência humana a tais terrores é imarcescível» (Christoffer Hitchens. A Vitória de Orwell. Lisboa: Verbo. 2012, p.18).

Sobre o criador deste blogue

«No nosso tempo, é impossível "mantermo-nos afastados" da política. Todos os nossos problemas são políticos e a política em si é um amontoado de mentiras, subterfúgios, tolices, ódio e esquizofrenia» (G. Orwell. Ensaios Escolhidos. Lisboa: Relógio d'Água Editores. 2016, p.253).

Orwell refere-se aqui à política que podemos qualificar de «oligocrática» (ou «oligárquica»), aquela que tem como credo o princípio da "liderança" de Platão — i.e. a ideia de que o poder político deve ser entregue nas "melhores mãos", sejam as de certos indivíduos com características incomuns, sejam as de certos grupos de indivíduos com características comuns. Uma vez admitido este princípio é impossível evitar que as "melhores mãos" sejam definidas de mil e uma maneiras: as dos "mais carismáticos", dos "mais sábios", dos "mais competentes", dos "mais valentes", dos "mais velhos", dos "mais empreendedores", dos "mais devotos", dos "mais ricos", da "vanguarda do proletariado", etc. Feita essa selecção, fica aberto o caminho para que a autoproclamada "elite" possa oprimir o resto da população em nome da sua alegada e sacrossanta superioridade.

Há, porém, outra acepção de «política», diametralmente oposta, que podemos qualificar de «democrática.» Consiste em conceber, construir e aperfeiçoar continuamente, em todas as áreas onde tem de haver decisões colectivas, instituições, práticas, leis e políticas públicas que garantam a todos os cidadãos (A) o direito de exercerem, em pé de igualdade (i.e. seja por sorteio e/ou por rotatividade no desempenho de funções e tarefas públicas que não necessitem, ou não necessitem de imediato, a deliberação de todos os interessados, seja por votação por sufrágio universal [uma pessoa, uma opinião, um voto] de toda a população), todos os poderes republicanos (o poder legislativo, o poder executivo e o poder judiciário), assim como (B) o direito à posse cooperativa e à gestão igualitária das empresas em que trabalham, e (C) o direito à gestão igualitária dos serviços de âmbito universal (escolas, universidades, hospitais, centros de saúde, etc.) pelos seus trabalhadores e utentes. Por outras palavras, por «política democrática» entendemos a actividade que consiste em conceber, construir e aperfeiçoar continuamente instituições, em todos os domínios — sociopolítico, socioeconómico, socioambiental, sociobiótico e sociocultural — em que todos possam alternadamente governar e serem governados sem capitis diminutio, em que todos possam cooperar livremente em prol da autonomia, da segurança e do bem-estar de cada um(a).

Se a política oligocrática e a chamada "ciência económica" pudessem ser postas entre parênteses, ficaria satisfeito por ocupar-me apenas de outros assuntos, como, por exemplo, a linguística. Esta é, para mim, uma actividade mil vezes mais interessante, estimulante e enriquecedora do que a economia política e a análise política. Mas isso não é possível, mesmo nos regimes de oligocracia electiva liberal (v. nota*), se quisermos ser cidadãos e não apenas trabalhadores e "consumidores". Os assuntos políticos e económicos, tal como são normalmente tratados pela oligocracia (liberal, iliberal, liberticida ou totalitária), ganham assim uma importância particular, não por serem especialmente apelativos do ponto de vista intelectual, mas porque deles depende a nossa autonomia individual e colectiva. Na fase histórica em que nos encontramos, esses assuntos, encarados de um ponto de vista democrático e no que respeita pelo menos à preservação da nossa capacidade crítica e ao exercício lúcido da nossa cidadania, «consistem essencialmente», como disse bem o linguista Noam Chomsky, «em desmascarar as mentiras e as falsidades, em evidenciar os factores determinantes e em rejeitar aqueles que não têm senão um interesse marginal, em construir uma representação racional das questões pelas quais todos se interessam e submetê-las à prova da realidade. (...) Mas não é muito enriquecedor em termos intelectuais. É simplesmente importante» (Duas Horas de Lucidez. Mem Martins: Editorial Inquérito. 2002, p.193).

José Catarino Soares

Nota*

Regimes de oligocracia (ou oligarquia) electiva liberal: «oligocracia» (Gr. oligos, "os poucos" + kratos, "poder") porque uma classe social privilegiada bem definida e pouco numerosa, domina economicamente a sociedade e, em grande medida, também a dirige politicamente, através de uma sua camada muito restrita, cujos membros são em grande parte eleitos por voto popular e que se auto-intitula amiúde de elite ; «liberal» porque essa oligocracia convive tant bien que mal (como diriam os franceses), melhor ou pior (como nós diríamos), com um certo número de liberdades, direitos, garantias jurisdicionais e instituições sociais que são o resultado e o sedimento de lutas emancipadoras travadas durante séculos pelos cidadãos comuns e que não terminaram. (Sobre os regimes de oligocracia liberal e a democracia ver Cornelius Castoriadis, «Quelle démocratie?», em Les Carrefours du Labyrinthe. Paris: Éditions du Seuil. 1999. Vol.6).

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