Temas 2 e 3
A única questão importante
da guerra na Ucrânia que continua em aberto
José Catarino Soares
1. A névoa não dura
sempre
A
segunda guerra na Ucrânia (a que começou em 24 de Fevereiro de 2022) trouxe à
luz do dia vários factos da maior importância para a compreensão (i) do
modo como está estruturado o “Ocidente alargado”
[1] e (ii) da natureza da sua relação com os demais países do mundo, que são a grande
maioria.
Esses
factos estavam escondidos do grande público pela espessa névoa artificial de
imagens, sons, acções e palavras criada pela “comunicação
estratégica” [2] para alcançar os seus objectivos,
frequentemente inconfessáveis.
Lisboa. Cristo-rei e ponte 25 de Abril envoltos em névoa. Fonte: Pinterest. |
O desenrolar da guerra na Ucrânia ⎼ a partir do momento (9 de Abril de 2022) em que se converteu numa guerra feroz e sem quartel entre a Rússia e o “Ocidente alargado”, travada por interposta Ucrânia ⎼ dissipou, aqui e ali, essa névoa que encobria as articulações fundamentais do “Ocidente alargado”. Pelas brechas assim abertas, o grande público pôde, então, aperceber-se de certos factos de primeira grandeza mantidos até então bem longe da sua vista.
2. Obediência, com
temor e respeito
A
lista completa desses factos é demasiadamente grande para poder ser apresentada
aqui. Vou limitar-me a indicar dois deles, sem os aprofundar. Ambos fazem
lembrar uma passagem da Carta [de São Paulo] aos Efésios [3]:
«Servos,
obedecei aos vossos senhores temporais com temor e respeito, na sinceridade do
vosso coração» /…/
Um desses factos é o completo alinhamento que a grande maioria dos governos (tanto de “direita” como de “esquerda”) dos Estados-membros da União Europeia (incluindo os mais poderosos: Alemanha, França e Itália), mas também do Reino Unido, da Noruega e até ‒pasme-se ‒ da neutral Suíça, com os interesses e a política belicista dos EUA contra a Rússia, desenvolvida por interposta Ucrânia [4].
É
uma política que prejudica profundamente os interesses e o bem-estar dos povos
europeus. Mas é também uma política, note-se, que prejudica muito seriamente ⎼ e este é o aspecto susceptível
de causar perplexidade, como veremos dentro de alguns instantes ⎼ os lucros das empresas e
as contas bancárias dos oligarcas que controlam a parte do leão da indústria transformadora na Europa. Naturalmente, excluo desta observação os fabricantes
de armas de guerra: Rheinmetall e quejandos.
Esse
completo alinhamento belicista entre os governos dos Estados europeus e o
governo dos EUA contra um alegado inimigo comum (ainda por cima longínquo para
muitos deles) teve precedentes já no século XXI — por exemplo, aquando da
invasão do Afeganistão para derrubar o regime dos talibãs, em 2001. Mas teve também
um grande revés. Aquando da invasão do Iraque
pelos EUA, em 2003, para derrubar Sadam Hussein, a França (representada pelo
seu presidente de então, Jacques Chirac) e a Alemanha (representada pelo seu
chanceler de então, Gerhard Schröeder), opuseram-se, juntamente com a Rússia
(representada pelo seu então novo presidente, Vladimir Putin), a essa invasão,
sem nunca claudicarem.
O
“Blob” americano
[5] não se
esqueceu dessa dissidência, que encarou com uma afronta intolerável à hegemonia
dos EUA. Condoleezza Rice, conselheira para a Segurança Nacional e, mais tarde, ministra
dos Negócios Estrangeiros do presidente Bush (filho), anunciou logo a seguir:
«É preciso punir a
França, ignorar a Alemanha e perdoar a Rússia» [6].
Desde
então, ficámos a saber que a Rússia não foi nem nunca será “perdoada”; que a
França não foi (com Sarkozy e Hollande) nem será (com Macron) “punida” [“para quê punir quem nos apoia?” terão raciocinado os
sucessores de Condoleezza Rice] e que a Alemanha foi tudo menos “ignorada” — como
veremos mais adiante.
O
outro facto, ainda mais espantoso, foi aquele a que aludi mais acima
indirectamente. Refiro-me ao completo alinhamento dos proprietários e gestores
empresariais das indústrias de transformação dos países europeus (incluindo, em
primeiro lugar, as da Alemanha, o Estado mais poderoso da União Europeia) pelos
interesses e objectivos do complexo militar-industrial e do Blob dos EUA, oficialmente
representados pelo governo de Joe Biden.
O
exemplo mais acabado da subserviência total dos oligarcas do capitalismo
industrial no âmbito europeu relativamente ao governo americano e aos
interesses que ele representa é o completo silêncio e a completa submissão dos proprietários
e gestores das indústrias da Alemanha mais dependentes das importações de gás
natural russo ⎼ indústria
química, siderurgia, metalurgia, automóvel, máquinas-ferramenta, papel, cerâmica
⎼ perante a destruição do
gasoduto Nord Stream 2 (duas condutas, ambas destruídas) e do gasoduto Nord
Stream 1 (duas condutas, uma destruída) pelo governo dos EUA [7].
Ora,
para se entender o que tem de espantoso esta atitude de submissão do grande
capital alemão aos ditames do governo, do Blob e do complexo militar-industrial dos EUA é
preciso ter em conta o seguinte.
A
indústria alemã, a
mais desenvolvida da Europa aquém da Rússia, representava, em 2022, 29,3% do
valor acrescentado total, 19% dos postos de trabalho directos e cerca de 50% do
consumo total de energia desse país. A lucratividade
do sector industrial da Alemanha assentou, em grande medida, nos últimos 30
anos, sobre o aprovisionamento de petróleo russo, carvão russo e, sobretudo, a partir
de 2012, de gás natural russo, abundantes e baratos. Em 2022, a Alemanha
importava da Rússia 55% do seu gás natural e o gás natural constituía mais de 60%
do consumo de energia na Alemanha.
Na
decorrência das sanções económicas aplicadas à Rússia pela União Europeia (UE),
o governo alemão teve uma epifania. “Descobriu”, subitamente, que a
prosperidade e o conforto material da Alemanha dependiam, em grande medida, do
gás natural russo. E “descobriu” também que isso era intolerável aos olhos do
seu patrono americano, tal como este, pela boca do próprio Joe Biden, fez questão
de deixar ficar bem claro, ao avisar que iria destruir e, depois, ao destruir
mesmo, com potentes cargas explosivas, o gasoduto Nord Stream 2 e
danificar o gasoduto Nord Stream 1.
Perante
este acto de guerra do seu patrono na OTAN(/NATO), tão insólito quanto brutal, o
governo alemão fez então o que não lembraria a ninguém. Em vez de denunciar este
acto de guerra furtivo e traiçoeiro, pedir a sua condenação na Assembleia Geral
da ONU, exigir uma indemnização aos EUA pelos estragos e prejuízos causados e apresentar
um caso contencioso contra os EUA no Tribunal Internacional de Justiça, decidiu
fingir que nada tinha ocorrido. Em seguida, tomou a decisão “heróica” de substituir
a dependência relativamente ao gás natural russo pela dependência relativamente
ao gás natural importado da Noruega e ao gás natural liquefeito importado dos
EUA — mas a preços muito mais elevados!
O
preço do gás natural na Alemanha é agora cerca de duas vezes mais alto do que
em 2021, prejudicando as empresas que necessitam dele para, por exemplo, manter vidro fundido ou metal fundido 24 horas por dia, e para a fabricação de revestimentos
de cerâmica, de papel e de metal utilizados em edifícios e automóveis.
Outro
exemplo do efeito boomerang das sanções económicas contra a Rússia é o
da indústria química. Trata-se de uma indústria que era também uma grande
consumidora de gás natural russo, não só como fonte de energia fabril, mas também
―
(i) como matéria-prima ‒ por exemplo, na produção de amoníaco, ingrediente de
base no fabrico de adubos ‒
e
― (ii) como combustível de veículos automóveis nos carros com motor de combustão a amoníaco, que se presume poderem garantir uma redução de 90% nas emissões de monóxido de carbono e de dióxido de carbono, comparativamente com motores a gasolina ou gasóleo.
Esta
indústria, onde avultam empresas gigantes (BASF, Bayer, Covestro, Evonik, etc.),
teve ano passado uma queda de 8% da sua produção e de 12% dos seus investimentos
produtivos. O fecho de unidades de produção desta indústria e a deslocalização de
outras para a China e para os EUA começaram em 2023.
Por estas causas (e outras, menos determinantes, que não vêm agora ao caso), a
economia alemã fechou o ano de 2023 em recessão, depois do PIB (Produto Interno
Bruto) alemão ter encolhido 0,3%. O ano de 2024 apresenta-se também sombrio. O ifo ‒ Instituto Leibniz para a
Investigação Económica (sediado em Munique) previu que a actividade económica
continuará a diminuir neste primeiro semestre de 2024 e que o PIB cairá para
0,2%.
«A
economia alemã está num impasse. O estado de espírito das empresas e das
famílias é mau e a incerteza é elevada» — afirmou o Instituto ifo [Al.
“Information und Forschung”] nas suas previsões da primavera.
Nada disto, porém, impede o governo alemão de
continuar a ajudar o governo ucraniano
com tudo o que pode ⎼ carros de
combate Leopard; veículos blindados Marder; sistemas de defesa aérea Skynex;
mísseis para os sistemas antiaéreos Iris-T SLM ou Patriot; radares TRML-4D;
sistemas de detecção de “drones” [aeronaves não tripuladas]; sistemas
antiaéreos autopropulsados Gepard; carregadores de munições de artilharia de
vários calibres, etc. ⎼ a fim de
que ele possa prosseguir a guerra contra a Rússia… até ao último soldado ucraniano.
«Em
2023, as exportações de armas da Alemanha atingiram um recorde de 13,35 mil
milhões de dólares (12,19 mil milhões de euros, à taxa de câmbio atual). A
Ucrânia foi o principal destinatário de armas da Alemanha, no total 4,82 mil
milhões de dólares (4,4 mil milhões de euros)» (Expresso, 4 de Janeiro de 2024).
3. Uma questão crucial
ainda em aberto na guerra na Ucrânia
Por
estas razões, o contraste não poderia ser maior entre a obediência reverencial
das classes dirigentes europeias às iniciativas e aos planos belicistas do seu
patrono do outro lado do Atlântico, e o desassombro de um magnata dessas
bandas, Elon Musk, que faz questão de pensar geopoliticamente pela sua própria
cabeça e dizer o que pensa sem temer represálias.
São
suas estas sábias palavras:
«Foi um
trágico desperdício de vidas para a Ucrânia atacar um exército maior que tinha
defesa em profundidade, campos minados e artilharia mais forte, quando a
Ucrânia não tinha blindagem nem superioridade aérea! Qualquer idiota poderia
ter previsto isso.
A minha recomendação, há
um ano, era que a Ucrânia se entrincheirasse e aplicasse todos os recursos na
defesa. Mesmo assim, é difícil manter um território que não tem fortes
barreiras naturais.
Não há qualquer hipótese
de a Rússia tomar toda a Ucrânia, uma vez que a resistência local seria extrema
na parte ocidental, mas a Rússia ganhará certamente mais terreno do que tem
actualmente.
Quanto mais tempo durar
a guerra, mais território a Rússia ganhará até atingir o Dniepre, que é difícil
de ultrapassar. No entanto, se a guerra durar o tempo suficiente, Odessa também
cairá.
Se a Ucrânia perde ou
não todo o acesso ao Mar Negro é, a meu ver, a verdadeira questão que resta.
Recomendo uma solução negociada antes que isso aconteça» (Elon Musk, X, 30 de Março
de 2024). [realce a traço grosso acrescentado ao original]
Creio que qualquer analista sério concordará com este
diagnóstico. Acrescentarei apenas o seguinte, para prevenir possíveis
mal-entendidos.
A questão (ainda em aberto) de saber se a Rússia ocupará ou não os oblasti de Micolaíve e Odessa, fechando desse modo o acesso da Ucrânia ao Mar Negro, não tem uma motivação (de conquista) territorial, mas de segurança. A ocupação desses dois oblasti ‒ assim como, na direcção oposta, do oblast de Carcóvia ‒ só teria (/terá) racionalidade para a Rússia se fosse (/for) considerada um meio indispensável de aumentar a profundidade estratégica da Crimeia e da Donbass.
Este é, porém, um assunto que só analistas com uma formação militar muito avançada (não é o meu caso) e, também, naturalmente, possuidores de grande competência e argúcia, poderão deslindar e desenvolver cabalmente. Há alguns em Portugal que reunem esses requisitos, além, bem entendido, da indispensável integridade intelectual. Esperemos que nos brindem com uma análise aprofundada desta questão.
4. Forças e fraqueza
do plano de paz de Musk
Não
é a primeira vez que Musk se pronuncia sobre a guerra na Ucrânia de um modo certeiro
e completamente em contracorrente não só daquele que prevalece entre os membros
da sua classe social (a dos grandes capitalistas e dos gestores empresariais ao
seu serviço) aquém e além Atlântico, mas também daquele que prevalece no governo
e no Blob
dos EUA, no Conselho Europeu, na Comissão Europeia e na OTAN (/NATO).
No
dia 3 de Outubro de 2022, Elon Musk publicou a seguinte plano de paz no Twitter
(hoje X):
A Paz entre a Ucrânia e
a Rússia [passa por, n.e.]:
1) ― Repetir
as eleições nas regiões anexadas [pela Rússia: Lugansk, Donetsk, Quérson,
Zaporíjia, n.e.] sob a supervisão da ONU. A
Rússia abandona o país se essa for a vontade do povo.
2) ― A Crimeia faz
formalmente parte da Rússia, como tem sido o caso desde 1783 (até ao erro de
Khrushchev).
3) ― O abastecimento de
água à Crimeia é assegurado.
4) ― A Ucrânia mantém-se
neutral.
A
numeração das propostas foi acrescentada por mim (para facilitar a remissão ao
seu teor), assim como as notas entre colchetes [n.e.= nota editorial],
para clarificar o seu teor.
O artigo 1) do plano de paz entre a Ucrânia e a Rússia proposto por Musk contém um erro, que tem todo o ar de ser um lapsus linguae. Não se trataria de “repetir eleições”, mas “referendos”.
A
este respeito convém recordar o seguinte. Nos dias 23 a 27 de Setembro de 2022,
foram realizados referendos nos quatro oblasti
ocupados pelas tropas russas. Como esses oblasti não
tinham todos o mesmo estatuto político-jurídico aos olhos da Federação Russa, a
pergunta feita em cada um deles não foi exactamente a mesma, nem as línguas
utilizadas para as formular foram exactamente as mesmas.
Os
referendos realizados na República Popular de Donetsk (RPD) e na República
Popular de Lugansk (RPL), que se separaram da Ucrânia em Maio de 2014, formularam
a seguinte pergunta, em russo, aos votantes:
― «Aprova que a
República Popular de [Donetsk ou Lugansk, consoante o caso, n.e.]
seja incorporada na Federação Russa com os direitos de
sujeito da Federação Russa?»
Os
referendos realizados nos oblasti de
Quérson e Zaporíjia, que estavam incorporados na Ucrânia à data de 24 de
Fevereiro de 2022, formularam a seguinte pergunta, em russo e em ucraniano, aos
votantes:
― «Aprova
a saída do oblast de [Quérson ou Zaporíjia, consoante o caso, n.e.]
da Ucrânia, a reforma do oblast de [Quérson
ou Zaporíjia] num Estado autónomo e a sua incorporação
na Federação Russa, com os direitos de sujeito da Federação Russa?».
A
resposta «Sim» a estas perguntas foi largamente maioritária [8].
Isso só surpreenderá quem desconheça que (i) a população destes territórios é
maioritariamente russa, russófona e russófila [9]; que (ii) foi privada dos
seus direitos linguísticos pelo regime ucraniano nascido do golpe de Estado de Maidan
(Fevereiro de 2014) [10], e que (iii) foi militarmente atacada, bombardeada
e martirizada pelo mesmo regime durante 8 anos (2014-2022) antes, e mesmo
depois, do começo da denominada “Operação Militar
Especial” da Rússia [11].
Feita
a correcção (referendos e não eleições), parece claro que o artigo 1) do
plano de paz proposto por Musk já tinha ultrapassado há muito tempo o seu prazo
de validade quando foi apresentado. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov,
chamou a atenção para esse anacronismo:
«É muito positivo que uma
pessoa como Elon Musk esteja a tentar encontrar uma solução pacífica. Todavia, «no
que respeita aos referendos, as pessoas expressaram a sua opinião e não poderá
haver mais nada» [12].
É
necessário acrescentar que um referendo que fosse convocado para averiguar se a
população da RPD, da RPL, de Quérson e de Zaporíjia preferia um processo de
autodeterminação conducente:
―
A) à sua permanência na Ucrânia com um estatuto autonómico semelhante ao
do Tirol do Sul (em relação à Itália)
ou
―
B) à sua incorporação na Federação Russa com os direitos de sujeito autónomo
da Federação Russa
teria
sido possível de realizar logo no início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, e
nada obstaria a que fosse supervisionado pela ONU.
A
prova disso é que a possibilidade A) foi um dos artigos explicitamente contemplado
e acordado nas negociações que culminaram no acordo de paz celebrado entre a Ucrânia
e a Rússia no fim de Março de 2022, em Istambul.
Sabemos
que Zelensky rompeu esse acordo em 9 de Abril de 2022 e sabemos as razões por
que o fez. Examinei pormenorizadamente esta questão noutro lugar, pelo que não
é necessário voltar aqui, outra vez, ao assunto [13]. Por conseguinte, em 3 de Outubro de 2022, a
proposta contida no artigo 1) do plano de paz apresentado por Musk já
tinha sido irreversivelmente ultrapassada pela evolução da guerra e da situação
política no terreno nos 6 meses anteriores.
Quanto
aos demais artigos (2, 3, 4) do plano de paz proposto por Elon Musk, eles
continuam actuais. Não haverá paz na Ucrânia enquanto não forem cumpridos.
5. O “Ocidente
alargado” contra-ataca
Elon
Musk é um cidadão americano, um gestor industrial bem-sucedido e um prolífico
inventor. É também um magnata capitalista, um oligarca com uma fortuna avaliada de 198,2
mil milhões de dólares, o que faz dele, em 2024, o segundo homem mais rico do
mundo, segundo a Forbes.
2015. Elon Musk apresenta um dos carros eléctricos Tesla que concebeu. Foto Justin Sullivan Getty Images News via Getty Image |
Musk
não faz segredo das suas simpatias políticas. Afirmou que votou em Hillary
Clinton nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016 e que votou em Joe
Biden nas eleições presidenciais norte-americanas de 2020.
Sobre
os EUA, o seu país adoptivo (Musk nasceu e cresceu na África do Sul), Musk declarou:
«Penso que os Estados
Unidos são o melhor país que já existiu na Terra [!]. E penso que será difícil
argumentar, em bases objectivas, que não o são. Penso que os factos apontam
realmente nessa direcção. É a maior força em prol do bem de todos os países que
já existiram [!]. Não haveria democracia no mundo se não
fossem os Estados Unidos [!]» [14].
Por
último, cabe lembrar que a Ucrânia tem estado totalmente dependente do serviço
de Internet por satélite Starlink ‒ cujo proprietário é Elon Musk ‒ para
as suas comunicações desde a invasão russa em 24 de Fevereiro de 2022.
Em
suma, sociologicamente falando, Elon Musk é o exemplo mais perfeito do “sonho americano” na sua versão mais cor-de-rosa e
mais exaltante para os doutrinadores e praticantes da comunicação estratégica
dos EUA.
Assim
sendo, os muitos e extraordinários predicados de Musk deveriam, em bom rigor, garantir-lhe ficar ao abrigo de
qualquer suspeita de querer ajudar a Rússia a conquistar ou destruir a Ucrânia.
Desengane-se, porém, quem assim pensar!
O
plano que Musk propôs, desinteresseiramente, em 3 de Outubro de 2022, para
pôr fim à guerra entre a Rússia e Ucrânia e estabelecer uma paz justa e
duradoura entre esses dois países, assim como a advertência assustadora (mas
realista) que fez em 30 de Março de 2024 ‒ sobre a ameaça que paira sobre a
Ucrânia de perder o acesso ao Mar Negro se persistir no seu iníquo [15],
inútil, alucinado e suicidário esforço de guerra ‒ valeram ao seu autor não um agradecimento
e louvor da parte dos dirigentes desse Estado e dos Estados seus apoiantes (como
seria de esperar se estivessem de boa-fé), mas, pelo contrário, um cerrado e venenoso
ataque. Eis alguns exemplos.
A senhora Fiona Hill, ex-directora para a Europa e a Rússia do Conselho de Segurança Nacional do presidente Donald Trump e um proeminente membro do Blob, veio imediatamente declarar que o plano de paz proposto por Musk tinha sido, de facto, redigido por Putin para ser transmitido por Musk, uma mera correia de transmissão ao seu serviço [16]. Musk seria, pois, um agente secreto de Putin!
Ian Bremmer ‒ professor universitário, fundador e presidente do Eurasia Group e também um proeminente membro do Blob ‒ acusou Musk de ter falado com Putin antes de ter apresentado o seu plano, insinuando que o plano só foi publicado porque teria obtido a benção prévia de Putin! Musk desmentiu imediatamente essa atoarda no Tweeter:
«Não, não é verdade [que tenha falado com Putin sobre o plano de paz para a Ucrânia]. Falei com Putin apenas uma vez e isso foi há cerca de 18 meses. O assunto foi o espaço».
O desmentido foi em vão, porque Bremmer, em vez de se retractar, reiterou a sua acusação.
Por
sua vez, o presidente Zelensky veio a público afirmar que havia dois Musks: um
que apoiava a Ucrânia [com o seu sistema Starlink] e outro que apoiava a
Rússia [com o seu plano de paz], para, de seguida, perguntar sarcasticamente aos
seus leitores do Tweet/X: “qual é o Musk de que
gostam mais?”.
Musk
respondeu a Zelensky:
«O
custo suportado pela SpaceX para activar
e apoiar a Starlink na Ucrânia é de cerca de 80 milhões de dólares até
agora. O nosso apoio à Rússia é de 0 $. Obviamente, somos a favor da Ucrânia».
«Continuo
a apoiar fortemente a Ucrânia, mas estou convencido de que uma escalada maciça
da guerra causará grandes danos à Ucrânia e possivelmente ao mundo».
Mykhaylo
Podolyak, assessor do presidente Zelensky, sugeriu “um
plano melhor”: 1) a Crimeia seria reanexada pela Ucrânia; 2) a Rússia seria desmilitarizada e desnuclearizada [por
quem, Podolyak não disse, mas depreende-se que seriam os EUA com a ajuda de
todos os outros Estados-membros da OTAN(/NATO), dando assim início à terceira e
derradeira guerra mundial] e 3) os “criminosos
de guerra” seriam julgados num tribunal internacional [quem seriam os
réus, Podolyak não disse, mas depreende-se que seriam seleccionados exclusivamente
no lado russo].
Musk
respondeu-lhe no Tweeter (/X):
«A Rússia está a fazer
uma mobilização parcial. Se a Crimeia estiver em risco, os russos vão mobilizar-se
para uma guerra total. A mortandade será devastadora em ambos os lados da contenda.
A Rússia tem (mais de) 3 vezes a população da Ucrânia, por isso a vitória da
Ucrânia é improvável numa guerra total. Se te preocupas com o povo da Ucrânia,
procura a paz».
O
desembaraçado e desbocado embaixador da Ucrânia na Alemanha, Andriy Melnyk, escreveu
com a sua proverbial elegância:
«Vai à
merda, é a minha muito diplomática réplica para ti, Elon Musk»
Musk
limitou-se a retorquir que não lhe importava que o seu plano de paz não fosse
do agrado de todos, argumentando que só se importava
«com o
facto de milhões de pessoas poderem morrer desnecessariamente por um resultado
essencialmente idêntico. Vamos então tentar
isto: a vontade das pessoas que vivem na Donbass e na Crimeia deve decidir se
fazem parte da Rússia ou da Ucrânia»[17].
Tudo em vão, naturalmente. Os argumentos de Musk só serviram para ele próprio, apesar de todo o seu enormíssimo poder económico e mediático (ele é dono não só do Starlink, mas também do X), ser incluído definitivamente na lista dos “putinistas”, “agentes putinescos do Kremlin”, “idiotas úteis a Putin”.
6. Mudam-se os tempos…
Estes
e outros mimos lançados pelo Blob, pelas
oligarquias dirigentes do “Ocidente alargado” e
pelos comentadores do sistema mediático dominante de comunicação social (estações
de rádio e televisão de grande audiência e jornais e revistas de grande
circulação) têm uma função puramente intimidatória: amedrontar e silenciar toda
e qualquer pessoa que se recuse a trocar o apego aos factos (todos os factos pertinentes
e não apenas alguns) e o apreço pela verdade pelo inebriante alucinogénio da
comunicação estratégica.
É
uma função cada vez mais difícil de realizar. Um minúsculo (mas nem por isso
menos informativo) sintoma dessa dificuldade foi a idêntica objecção, pretensamente
irónica, que dois apresentadores diferentes da CNN-Portugal formularam, em dois
programas diferentes, quando foram confrontados com a advertência de Musk que traduzi
e reproduzi mais acima (cf. secção 3):
«Que eu saiba, Elon Musk
não é um especialista em relações internacionais…»
Subentendido:
“Não vamos,
por isso, perder tempo com o que esse indivíduo diz sobre a guerra na Ucrânia.
Temos mais que fazer”.
Como
se a grande maioria dos alegados “especialistas”
que a CNN-Portugal contratou como comentadores da guerra na Ucrânia (e do genocídio em Gaza) não debitassem, todos os dias, um chorrilho de inanidades,
meias-verdades, falsidades e disparates sobre o assunto!
Seja
como for, há um pequeno progresso a registar. Há um ano, os mesmos
apresentadores teriam, provavelmente, invocado as calúnias da senhora Fiona
Hill, os sarcasmos de Zelensky ou as fanfarronadas do senhor Mykhaylo Podolyak na
esperança de assestar um murro imaginário em Musk que o pusesse K.O. à frente de
milhões de anónimos e mudos telespectadores.
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Notas e referências
[1] “Ocidente alargado” é uma expressão cara a Zbigniew
Brzezinski (1928-2017) ‒ um dos mais cínicos ideólogos da supremacia dos EUA
sobre todos os outros países do mundo ‒ que a empregava para designar o
conjunto formado pelos EUA e os seus aliados/clientes na América do Norte
[Canadá], Europa [os Estados-membros da OTAN e da UE], Ásia [Japão, Coreia do
Sul] e Australásia [Austrália e Nova Zelândia]. Emprego aqui a palavra “clientes” num sentido afim daquele que tinha na Roma
antiga. Os “clientes” constituíam uma classe
constituída por plebeus, escravos libertos, estrangeiros ou filhos ilegítimos
que se associavam, de forma subalterna, aos patrícios, a classe romana
superior, prestando-lhes diversos serviços em troca de auxílio económico e
protecção social e militar.
[2] Por “comunicação
estratégica”, no âmbito geopolítico e geoeconómico, deve entender-se,
segundo os seus praticantes, «os esforços concentrados
do governo dos Estados Unidos para compreender e envolver audiências-chave para
criar, reforçar ou preservar condições favoráveis ao avanço dos interesses,
políticas e objectivos do governo dos Estados Unidos através da utilização de
programas coordenados, planos, temas, mensagens e produtos sincronizados com as
acções de todos os instrumentos do poder nacional» (Joint Publication
1-02, Department
of Defense Dictionary of Military and Associated Terms. Washington
D.C., 8 November 2010 [as amended through 15 February 2016]).
[3] “Carta aos
Efésios”, 6.5. In Bíblia Sagrada. Verbo.
1982, p.1329.
[4] As únicas excepções são as do governo de Viktor Orban (Hungria) e do governo de Robert Fico (Eslováquia) — este último acaba de sair reforçado com a eleição do seu aliado, Peter Pellegrini, para presidente da República. Estes dois países são ambos países encravados, sem saídas para os mares e oceanos que banham a Europa. São também, há muitas décadas, altamente dependentes do petróleo e do gás natural russo que lhes chega através de um oleoduto (o Druzhba, ou oleoduto da Amizade) e de um gasoduto que atravessam a Ucrânia e que continuam a funcionar com o acordo do governo da Ucrânia (!), o qual continua a cobrar e receber da Rússia as portagens que foram contratualizadas antes da guerra para o trânsito desses hidrocarbonetos. Sem o petróleo e o gás russos, abundantes e baratos, a Eslováquia e a Hungria ficariam energeticamente estranguladas. Por isso, Orban (um governante dito de “direita”) e Fico (um governante dito de “esquerda”) fizeram a única escolha racional e correcta, do ponto de vista dos interesses dos seus respectivos países e povos: continuar a importar o petróleo (e o gás natural) russo e manter boas relações com a Rússia e o seu presidente. São decisões “soberanistas” que os demais membros da UE ‒ geopolítica e geoeconomicamente alinhados com o Blob americano ‒ consideram abomináveis e que tudo farão para reverter.
[5]
Blob é
a denominação coloquial em Inglês do physarum polycephalum,
que literalmente quer dizer “bolor de várias cabeças”.
Esta biospécie é constituída por organismos unicelulares do grupo dos
micomixetos, ou bolor limoso, uma subcategoria da família das amibas. Apesar de
não ter um sistema nervoso central, o blob
é capaz de se locomover (através de pseudópodes), aprender com as suas
experiências e mudar o seu comportamento em conformidade. Por exemplo, quando
se sente ameaçado entra em estado de hibernação e “seca”, para ressuscitar em
condições ambientais mais favoráveis. O blob
reproduz-se através de esporos que se transformam em novos blobs. Quando dois blobs se encontra fundem-se um no outro num blob maior que,
deste modo, pode atingir dez metros de comprimento.
O termo blob
tem a sua origem no título de um filme de ficção científica (The Blob), estreado em 1958, que tinha como
protagonista principal Steve McQueen. O filme narrava a invasão da Terra por um
organismo extraterrestre que devora tudo o que encontra pela frente numa
pequena cidade dos EUA.
Em 2016, Ben Rhodes ‒ um assessor do presidente Barak Obama (o seu guru para a Segurança Nacional) e o autor de muitos dos seus discursos ‒ empregou o termo Blob (com inicial maiúscula) numa conversa com o jornalista David Samuels, do New York Times Magazine, para denominar depreciativamente um grupo específico da oligarquia dirigente dos EUA. Trata-se de um grupo «composto por democratas e republicanos ‒ um grupo díspar de elementos pertencentes à fina-flor dos centros de estudos [Ingl. “elite think-tankers”], legisladores, jornalistas e outros que tais na Washington oficial ‒ que se aglutinam em torno de uma política externa que defenda o velho evangelho da chefia americana na cena mundial» (Jacob Heilbrunn, “How the War in Ukraine Is Reviving the Blob”. Politico. 5/06/2022). Convém acrescentar que «o Blob não é, estritamente falando, o sistema oficial de instituições que sustentam a política externa americana (os centros de estudos [Ing. “think tanks”], as escolas de política pública, os meios de comunicação social, os organismos governamentais), e não são, estritamente falando, todos os habitantes dessas instituições. O Blob é um subconjunto grande e dominante das pessoas que habitam essas instituições — um subconjunto cujos membros, embora por vezes discordem, partilham certas tendências que moldam a política externa americana» (Robert Wright, “Toward a unified theory of Blob-dom”. Responsible Statecraft, October 13, 2021). «De acordo com Rhodes», o Blob incluía, em 2016, «Hillary Clinton, Robert Gates e outros promotores da guerra do Iraque de ambos os partidos que agora se queixam incessantemente da derrocada da ordem de segurança americana na Europa e no Médio Oriente» (David Samuels, “The Aspiring Novelist Who Became Obama’s Foreign-Policy Guru. How Ben Rhodes rewrote the rules of diplomacy for the digital age”. New York Times Magazine, May 15, 2016).
[6] «“Punish France, ignore Germany, forgive Russia” was the famously pithy advice of Condoleezza Rice, America’s national security adviser, after the rows over Iraq at the United Nations earlier this year». In “Europe and Uncle Sam”. The Economist, September 4, 2003.
[7] Ver as confissões ante acta de Victoria Nuland [https://www.youtube.comwatch?v= RLeAgMF0Q6y] e de Joe Biden [https://www.youtube.com/watch?v=kBQSSjMhDmA], assim como o artigo de Seymour Hersh, “How America Took Out The Nord Stream Pipeline”, Substack, February 2, 2023.
[8] De acordo com os resultados
divulgados pela Comissão Eleitoral Central da Rússia, através das suas secções
na RPD e na RPL, 99,23% (2.116.800 votantes) apoiaram a incorporação da RPD na
Federação Russa e 98,42% (1.636.302 votantes) apoiaram a incorporação da RPL na
Federação Russa. A taxa de participação foi de 97,51% (2.131.207 votantes) e
94,15% (1.662.607 votantes), respectivamente.
De acordo com os resultados divulgados
pela secção regional de Quérson da Comissão Eleitoral Central da Rússia, 87,05%
(497.051 votantes) apoiaram a incorporação deste oblast na Federação
Russa, com 12,05% (68.832 votantes) contra e 0,9% de votos nulos, numa taxa de
participação de 76,86%. De acordo com os resultados divulgados pela secção regional
de Zaporíjia da Comissão Eleitoral Central da Rússia 93,11% (541.093 votantes)
a favor da incorporação deste oblast na Federação Russa. A taxa de
participação declarada foi de 85,4%.
De acordo com os dados fornecidos
pela Comissão Eleitoral Central, o apoio à incorporação foi de 90,01% no Raion [=
município] de Melitopol, enquanto no seu centro administrativo, Melitopol, foi
de 96,78%. (Cf. “Residents of Donbass, Zaporozhye and Kherson
region overwhelmingly supported joining the Russian Federation”. Tass.Ru, 28 September 2022).
[9] Ver
a secção 1 [“Causas da primeira guerra na Ucrânia”] do meu livro, Dissipando a
Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz
na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro
Capítulo. Agosto de 2023).
[10] Ver
“Causas da primeira guerra na Ucrânia”, op.cit.
[11] Ver Bruno Amaral de Carvalho, A Guerra a
Leste: oito meses no Donbass. Editorial Caminho. Abril de 2024.
[12] “Elon
Musk’s peace plan for Ukraine draws condemnation from Zelensky”. Associated Press, 4 October 2022.
[13] Ver
José Catarino Soares, “Em 9 de Abril de 2022 Zelensky preferiu a guerra à paz
pelos motivos mais mesquinhos”, Estátua de Sal
[14] Ben Watterberger, “Elon Musk and the frontier of Technology”.Think Tank, 12/13/ 2007.
[15] A partir do momento (9 de Abril de
2022) que Zelensky rompeu o acordo de paz, muito favorável, que tinha celebrado
com a Rússia em fim de Março de 2022, em Istambul, o esforço de guerra do
governo ucraniano contra as tropas russas perdeu toda e qualquer legitimidade.
Converteu-se numa iníqua forma de destruir centenas de milhares de vidas
ucranianas (e muitas dezenas de milhares de vidas russas) em nome de um nacionalismo opressor, etnofóbico, obscurantista e niilista.
[16] Maura Reynolds, «Fiona Hill: ‘Elon Musk Is Transmitting a Message for Putin’». Politico, 17 October 2022.
[17] As citações foram colhidas nestas fontes: “Zelenskiy hits back as Elon Musk sets up Twitter poll on areas of Ukraine”. The Guardian, 4 October 2022; “Elon Musk’s peace plan for Ukraine draws condemnation from Zelensky”. Associated Press, 4 October 2022; “Elon Musk Sets Off Uproar in Ukraine by Tweeting His ‘Peace’ Plan”. Time, 4 October 2022; “Elon Musk Spoke to Putin Before Tweeting Ukraine Peace Plan: Report”. Vice, October 11, 2022.