Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

17 setembro, 2017

TEMAS 1 e 4

As eleições para a ADSE 


Se o leitor é actualmente (ou foi) trabalhador das administrações públicas e se é beneficiário titular da ADSE, deve ter recebido há dias uma carta da ADSE (IP), com o anúncio de eleições para o seu Conselho Geral e de Supervisão no próximo dia 19, uma indicação das listas concorrentes e a senha secreta que lhe permitirá votar electronicamente acedendo ao endereço : http://certvote.com/ADSE2017.

Qual é a importância dessas eleições?  Para responder a esta pergunta precisamos de recuar e ganhar perspectiva.


1. Breve histórico da ADSE


A ADSE era originalmente (1963) um serviço de protecção da saúde (muito fraquinho) prestado pelo Estado, como entidade empregadora, aos seus funcionários (que não tinham, até então, nenhuma protecção deste tipo). A ADSE era, nessa altura, inteiramente financiada pelo Orçamento de Estado (OE). Depois, passou a ser financiada pelo OE e pelos descontos (quotizações) dos seus beneficiários que foram subindo à medida que os anos passavam.

Tudo isso pertence ao passado. Como saberão, a ADSE é, desde 2014, um subsistema de saúde de adesão voluntária e integralmente financiado pelas quotizações dos seus aderentes/beneficiários, que pagam 3,5% do seu vencimento ou da sua pensão de aposentação para terem direito aos seus benefícios (que são muitos e bons).

Quer isto dizer que a ADSE não é, actualmente, um benefício concedido pelo Estado aos trabalhadores e ex-trabalhadores da administração pública. Também não é um sistema substitutivo do Serviço Nacional de Saúde. Os quotizados/beneficiários da ADSE, antes de o serem, já são, por imperativo constitucional e legal, utentes e financiadores/contribuintes do Serviço Nacional de Saúde. A ADSE é, isso sim, um sistema complementar do Serviço Nacional de Saúde, uma cobertura complementar de cuidados de saúde, paga de forma solidária pelos próprios quotizados/beneficiários e não pelos restantes contribuintes.

Mas há concepções e práticas que persistem muito para além do seu prazo de validade. Num relatório recente o Tribunal de Contas constatava:

« Apesar de a ADSE ter passado a ser financiada pelo rendimento disponível dos quotizados, para suportar o seu esquema de benefícios, esta continua a suportar encargos que constitucionalmente compete ao Estado assegurar, tal como o faz para os restantes cidadãos, e que não podem ser financiados pelo rendimento disponível dos quotizados. Tal resulta de a ADSE continuar a ser entendida, de jure, como um subsistema de saúde público, embora, de facto, não o seja. São exemplos destes encargos:

— a comparticipação de medicamentos dispensados nas farmácias das Regiões Autónomas; 

— a assistência médica no estrangeiro quando esta não resulta da livre vontade do quotizado;

— os cuidados respiratórios domiciliários prescritos por entidades do Serviço Nacional de Saúde;

— o transporte de doentes de e para entidades do Serviço Nacional de Saúde;

— os meios complementares de diagnóstico e terapêutica prescritos em entidades do Serviço Nacional de Saúde ou dos Serviços Regionais de Saúde das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.» (relatório nº8/2016 do Tribunal de Contas) 

Ao tornar os quotizados da ADSE os financiadores exclusivos do sistema em 2014, o Estado alterou a natureza da sua relação com a ADSE. A receita da ADSE, oriunda apenas das quotizações dos seus  financiadores — trabalhadores da função pública no activo e trabalhadores da função pública aposentados — pertence exclusivamente aos seus financiadores/ beneficiários. Por conseguinte, só a eles cabe geri-la da maneira que melhor entenderem. 

Mais ainda: «Tendo em conta que a ADSE-DG [Direcção Geral] permanece integrada na administração direta do Estado, as despesas da ADSE com os seus quotizados aumentam ilusoriamente os gastos do Estado com a função saúde, pois aquelas são pagas com o rendimento disponível dos quotizados trabalhadores e aposentados da Administração Pública, e não com dinheiros provenientes dos impostos. Em termos substantivos, sendo totalmente financiada pelo rendimento disponível dos quotizados, as receitas e as despesas da ADSE não são receitas e despesas públicas, pelo que nem deviam estar integradas como tal no Orçamento do Estado»  (relatório nº8/2016 do Tribunal de Contas).  


2. A transformação da ADSE


Seria, pois, natural que a ADSE se transformasse completamente, passando de Direcção Geral do Ministério da Saúde a associação mutualista de utilidade pública, gerida pelos seus associados/ financiadores/beneficiários sem qualquer interferência do Estado. 


Código das Associações Mutualistas

Artigo 1.º 

Natureza e fins em geral 

As associações mutualistas são instituições particulares de solidariedade social com um número ilimitado de associados, capital indeterminado e duração indefinida que, essencialmente através da quotização dos seus associados, praticam, no interesse destes e de suas famílias, fins de auxílio recíproco, nos termos previstos neste diploma.

É de salientar que o próprio Programa do actual governo (XXI Governo Constitucional) prevê a “Mutualização progressiva da ADSE, abrindo a sua gestão a representantes legitimamente designados pelos seus beneficiários, pensionistas e familiares". Apesar da linguagem confusa (que significa “mutualização progressiva” ? Desde quando é que os “familiares” dos  financiadores/ beneficiários de uma associação mutualista têm o direito de participar na sua gestão?), o objectivo estava indicado: a ADSE deveria ser uma associação mutualista de utilidade pública gerida exclusivamente pelos seus associados/financiadores (e que são também, obviamente, dela beneficiários). Note-se que alguns dos peritos da comissão de reforma da ADSE propuseram a sua transformação de Direcção-Geral em "associação privada sem fins lucrativos e de utilidade pública", um estatuto cujas vantagens, relativamente ao das associações mutualistas, não consigo vislumbrar para este caso. 

Mas o que aconteceu não foi nem uma coisa nem outra. O que aconteceu foi que a ADSE se transformou, em Janeiro de 2017 (Decreto-Lei n.º 7/2017), num “instituto público de regime especial e gestão participada” que ficará sob a dupla tutela do Ministério da Saúde e do Ministério das Finanças.

Em minha opinião, esta não é uma boa solução. A prova disso é que a ADSE continuará a estar completamente na dependência dos governos/ Estado (apesar do Estado ter cessado completamente de contribuir para o seu financiamento) como se continuasse a ser uma direcção geral. Se não vejamos. Segundo o decreto-lei nº7/2017, são atribuídos ao governo, nomeadamente aos ministros da saúde e das finanças, vastos poderes de comando da ADSE, IP:


Artigo 7.º
Superintendência

Compete ao membro do Governo responsável pela área da saúde:

a) Aprovar os objetivos e estratégias da ADSE, I. P.;
b) Emitir orientações, recomendações e diretivas para prossecução das atribuições da ADSE, I. P.;
c) Solicitar toda a informação necessária à avaliação do desempenho da ADSE, I. P.


Artigo 8.º
Tutela

1 — Compete ao membro do Governo responsável pela área da saúde:

a) Determinar auditorias e inspeções ao funcionamento da ADSE, I. P., de acordo com a legislação aplicável;
b) Praticar outros atos que, nos termos da lei, careçam de autorização prévia ou aprovação tutelar.

2 — Compete aos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde:

a) Aprovar o plano de atividades e o orçamento da ADSE, I.P;
b) Aprovar os documentos de prestação de contas;
c) Autorizar a aceitação de doações, heranças ou legados;
d) Autorizar a participação da ADSE, I. P., em entidades de direito privado com ou sem fins lucrativos, bem como a aquisição de participações nessas entidades;
e) Autorizar a aquisição e venda de imóveis, bem como a sua oneração;
f) Autorizar os demais actos previstos na lei ou nos estatutos.

Ora, sabemos bem o que os governos fizeram com a ADSE nos anos mais recentes, em particular durante o período do XX governo constitucional (governo PSD[Passos Coelho]-CDS[Paulo Portas]). Encontramos um bom sumário das práticas desse governo relativamente à ADSE no relatório nº8/2016 do Tribunal de Contas entitulado “Auditoria de Seguimento das Recomendações formuladas no Relatório de Auditoria ao Sistema de Protecção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas (Relatório n.º 12/2015 – 2ª Secção)”, que passo a citar:  

«2Verificou-se a apropriação, pelo Governo da República, dos excedentes da ADSE, provenientes do aumento da taxa de desconto para 3,5%, para financiar o Serviço Regional de Saúde da Madeira, tendo assim sido utilizados € 29,8 milhões dos excedentes da ADSE, consignados aos quotizados da ADSE, para financiar necessidades públicas, descapitalizando a ADSE. Foram ainda suportados pela ADSE encargos que devem ser suportados pelo Estado, tal como o faz para os restantes cidadãos.

3. Verificou-se a retenção ilegal dos descontos dos quotizados da ADSE por parte de organismos do Governo Regional da Madeira, e sua utilização indevida para fins de âmbito regional, em prejuízo da sustentabilidade e da solidariedade em que o sistema de proteção da ADSE se baseia.

4. O aumento da taxa de desconto para 3,5% gerou excedentes, financiados pelos próprios quotizados, que foram e continuam a ser utilizados para maquilhar as contas públicas, num contexto de necessidade de atingir as metas acordadas para o défice orçamental».

Noutro ponto do relatório do Tribunal de Contas pode ler-se, em síntese, que há várias ameaças à existência/sustentabilidade da ADSE, entre as quais «a administração da ADSE por parte dos Governos/Estado, que a têm vindo a instrumentalizar para realizarem as suas políticas financeiras e sociais, descapitalizando-a, em prejuízo da sua sustentabilidade e à revelia da participação dos quotizados/financiadores/beneficiários nessas decisões. (§ 59-64; 72-75; 76-80; 81-88).»

Essa instrumentalização da ADSE por parte dos Governos/Estado

«causará, a curto/médio prazo, um prejuízo para o Estado através de um agravamento da despesa pública, suportada pelos impostos, pois terá como consequência:

— ou a reintrodução do financiamento público do sistema para fazer face às necessidades próprias da ADSE-DG, entretanto descapitalizada, correspondendo o prejuízo ao montante daquele financiamento;

— ou a extinção da ADSE, por insustentabilidade crónica, correspondendo o prejuízo para o Estado ao montante do aumento da despesa pública (suportado por impostos) em saúde provocado por uma maior procura de cuidados de saúde no Serviço Nacional de Saúde/Serviços Regionais de Saúde por parte dos ex-beneficiários da ADSE».


A ADSE quando ainda era uma direcção-geral... do ministério das finanças! Em 2015 passou a direcção-geral do ministério da saúde, como era mais lógico desde longa data. Mas continuou a ser encarada como um porquinho-mealheiro dos governos.

3. Os excedentes da ADSE


Compreende-se que a ADSE, tal como existe actualmente, seja vista por muita gente como uma fonte de receitas muito apetecível.  Em 2014, os excedentes da ADSE foram de 200,8 milhões de euros, em 2015, foram de 137,6 milhões de euros e em 2016 de 120 milhões de euros, apesar de a ADSE ter perdido 37.000 contribuintes/beneficiários entre  2013 e 2015, devido ao aumento enorme e abrupto do montante das quotizações individuais. O saldo acumulado da ADSE era, em 2016, de 432 milhões de euros. Como vimos, estes excedentes, nas mãos de governantes sem escrúpulos, dão muito jeito para maquilhar as contas do Estado. 

Por outro lado, a ADSE é um pequeno potentado financeiro. De acordo com os últimos dados publicados (2016), a ADSE arrecada 545 milhões de euros de quotizações anuais de 830 mil contribuintes titulares/beneficiários (a que se somam mais de 400 mil beneficiários não contribuintes titulares), tem cerca de mil e seiscentos prestadores convencionados e cerca de três mil quatrocentas e sessenta e oito entidades responsáveis pelo processamento da retenção do desconto. Perante estes números, não admira que a versão inicial do relatório da comissão de reforma da ADSE tenha sugerido que a sua gestão fosse entregue...a uma companhia de seguros de saúde  privada. Seria de facto o maná celeste para esse tipo de companhias, se lhe pudessem ferrar o dente.

A ADSE como instituto público (IP) foi, pois, a solução que acabou por vingar, afastando outros figurinos institucionais bem mais consentâneos com a sua actual situação — como o de associação mutualista de utilidade pública (quanto a mim a melhor solução institucional), ou o de associação privada sem fins lucrativos e de utilidade pública. Poderá argumentar-se que o instituto público é, no entanto, uma solução bem melhor do que outras possíveis para este caso — como seriam as de fundação pública, fundação privada, cooperativa e, claro, a que consistiria na pura e simples entrega da sua carteira de beneficiários a uma companhia de seguros de saúde privada. Mas por que razão deveríamos escolher uma solução medíocre quando podemos escolher uma boa?  

O modelo da ADSE, IP, tal como foi desenhado (voltarei a este assunto mais adiante), só pôde vingar, devemos reconhecê-lo, devido à complacência ou a anuência explícita das direcções sindicais e também (salvo melhor informação) dos partidos com assento parlamentar que se reclamam dos trabalhadores assalariados. E vingou também — devemos também reconhecê-lo — devido ao alheamento da grande maioria dos financiadores/beneficiários da ADSE. Se esse alheamento não existisse, os dirigentes sindicais e os dirigentes políticos que conceberam e aprovaram esta solução não teriam tido a vida tão facilitada. A aprovação do decreto-lei nº7/2017 ocorreu em Janeiro deste ano no meio da indiferença geral, não tendo suscitado nenhuma discussão pública digna desse nome, nem dentro nem fora do parlamento, nem antes nem depois da sua aprovação. 


5. O conselho directivo e o fiscal único da ADSE


Resta, portanto, registar o facto e tomar posição numa trincheira mais recuada. Embora não sendo, de modo nenhum, a solução que melhor serve os interesses dos seus financiadores/beneficiários, o modelo ADSE, IP,  não afasta completamente a possibilidade dos financiadores/beneficiários fazerem ouvir a sua voz na defesa dos seus direitos e interesses e conseguirem, por vezes, ganho de causa. 

O decreto-lei nº 7/2017, que define o modelo institucional da ADSE IP, prevê a existência de um fiscal único e de um conselho directivo de três membros (um presidente e dois vogais) com um mandato de três anos, renovável duas vezes por igual período. O presidente e um dos vogais do conselho directivo são designados pelo governo. São, por conseguinte, os seus representantes na ADSE.

O fiscal único é designado por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde obrigatoriamente de entre os auditores registados na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários ou, quando tal não se mostrar adequado, de entre os revisores oficiais de contas ou sociedades de revisores oficiais de contas inscritos na respectiva lista da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas. O mandato do fiscal único tem a duração de cinco anos e é renovável uma única vez mediante despacho dos membros do Governo já referidos.


6. O Conselho Geral e de Supervisão da ADSE


Além destes orgãos está também prevista a existência de um Conselho Geral e de Supervisão onde têm assento quatro representantes dos beneficiários (que serão eleitos  dia 19), bem como, por inerência, seis elementos indicados pelo governo, três representantes dos sindicatos dos trabalhadores da administração pública, dois representantes das associações dos aposentados e reformados da administração pública, um da Associação Nacional de Municípios e um da Associação Nacional de Freguesias.  No  artigo 14.º (Conselho geral e de supervisão) do decreto-lei nº7/2017 é dito o seguinte: 

1 — O conselho geral e de supervisão é o órgão de acompanhamento, controlo, consulta e participação na definição das linhas gerais de atuação da ADSE, I. P.

2 — O conselho geral e de supervisão é composto pelos seguintes elementos:
a) Três elementos indicados pelo membro do Governo responsável pela área das finanças;
b) Três elementos indicados pelo membro do Governo responsável pela área da saúde;
c) Quatro representantes eleitos por sufrágio universal e direto dos beneficiários titulares da ADSE, I. P.;
d) Três representantes indicados pelas organizações sindicais mais representativas dos trabalhadores das administrações públicas;
e) Dois membros indicados pelas associações dos reformados e aposentados da administração pública;
f) Um elemento indicado pela Associação Nacional de Municípios Portugueses;
g) Um elemento indicado pela Associação Nacional de Freguesias

4 — Para além das competências previstas no artigo 31.º da lei -quadro dos institutos públicos, compete ainda ao conselho geral e de supervisão:

a) Emitir parecer prévio sobre:

i) Os objetivos estratégicos da ADSE, I. P.;
ii) Os planos de atividades e o orçamento;
iii) Os planos de sustentabilidade, incluindo as medidas apresentadas pelo conselho diretivo visando assegurar a sustentabilidade da ADSE, I. P.;
iv) O relatório de atividades e as contas anuais;
b) Supervisionar a atividade do conselho diretivo, tendo direito para o efeito de exigir a disponibilização da informação necessária por aquele conselho;
c) Emitir parecer sobre as matérias e atribuições da ADSE, I. P., bem como sobre quaisquer outros regulamentos, nomeadamente:
i) Propostas do conselho diretivo relativas à gestão do património da ADSE, I. P.;
ii) Propostas do conselho diretivo sobre a participação na criação de entidades de direito privado com ou sem fins lucrativos, bem como sobre a aquisição de participações em tais entidades».

Cabe ainda ao Conselho Geral e de Supervisão indicar o nome do 2º vogal do Conselho Directivo. Mas este vogal só será designado se tiver a aprovação do governo (artigo 10º). Imaginemos que se trata de uma persona non grata do governo que estiver em funções: que lhe acontecerá ? Não será designado, obviamente.


5. O futuro da ADSE nos anos mais próximos


Os membros do Conselho Geral e de Supervisão terão, todavia, uma palavra muito importante a dizer sobre as novas regras que irão permitir alargar a ADSE a novos contribuintes-beneficiários — como os cônjuges dos funcionários públicos ou os trabalhadores com contratos individuais que trabalham no Estado  sobre os montantes das quotizações individuais, sobre a revisão das convenções (acordos) para prestação de cuidados de saúde aos quotizados com vista a obter mais e melhores cuidados por melhores preços, e sobre as medidas a tomar para  garantir a sustentabilidade financeira da ADSE a longo prazo. Terão também de encontrar uma solução justa para o melindroso problema da existência de 438.831 beneficiários sem qualquer obrigação de contribuir para o esquema de benefícios da ADSE: 42.186 titulares isentos e respectivos 4.518 familiares, e 392.127 familiares de contribuintes (quotizados) titulares não isentos. Esta situação traduz-se num rácio número total de beneficiários/ número de quotizados, de 1,5 que, se não for reduzido, pode revelar-se insustentável no médio e longo prazo. Além disso, têm a missão importante de zelar pela boa aplicação das receitas da ADSE, impedindo qualquer apropriação por parte dos governos e qualquer desvio dos seus fundos para outros fins. Por exemplo, foi aventada a possibilidade de a ADSE passar a fazer a prestação directa de serviços de saúde em estabelecimentos próprios, criados ou adquiridos para o efeito. Esta proposta não é inocente. 

Lembremos, a este propósito, alguns elementos da história da relação do Estado com o Hospital da Cruz Vermelha. A história começa em 1998. Nessa altura, o Estado, através da Partest, actual Parpública, resgatou da ruína o hospital (até então exclusivamente detido e gerido pela Cruz Vermelha Portuguesa). O hospital da Cruz Vermelha, depois de injectado o capital do Estado, passou então a integrar uma sociedade nova criada com esse propósito, a CVP-Sociedade de Gestão Hospitalar, que continua, até hoje, a ser detida em 45% pelo Estado e em 54,7% pela Cruz Vermelha.

Segundo um relatório de auditoria do Tribunal de Contas (relatório nº21/2013, 2ª secção), de 1998 a 2011, o Estado injectou na CVP-Sociedade de Gestão Hospitalar, SA, cerca de 283,6 milhões  de euros : «11,7 milhões de euros como contrapartida da sua participação no capital social da CVP-Sociedade de Gestão Hospitalar, SA, 255,8 milhões de euros a título de remuneração pelos serviços prestados a utentes do SNS em execução dos Acordos de Cooperação celebrados com a ARSLVT [Associação Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo], IP, e 16,1 milhões a título de remuneração pelos serviços prestados a doentes referenciados por instituições hospitalares da ARS Algarve, IP, nas especialidades de Cirurgia Cardiotorácica e Cirurgia Vascular Apesar das contribuições estatais, em vez de a saúde das contas da CVP-Sociedade de Gestão Hospitalar ter melhorado, piorou: o grau de endividamento era de 74% em 2008, passou a 77% em 2011. Para sobreviver, o hospital depende, em larga medida, dos clientes que lhe chegam do sistema público de saúde. Por outro lado, segundo o mesmo relatório do Tribunal de Contas, os custos unitários por doente tratado praticados pelo Hospital da Cruz Vermelha e suportados pela ARSLVT, IP, no âmbito dos Acordos de Cooperação, são superiores aos custos apurados em unidades hospitalares do SNS, nas especialidades de Cirurgia Cardiotorácica, Cirurgia Vascular, Oftalmologia e Ortopedia.

Pois bem, há quem pense que seria um grande negócio se se pudesse deitar a mão aos excedentes da ADSE para comprar a parte privada do hospital da Cruz Vermelha. Todavia, se essas negociatas tivessem êxito, a ADSE iria muito além da sua vocação como garante financeiro do acesso dos beneficiários a cuidados de saúde e acabaria por ser privatizada ou ir à falência a breve trecho. É, pois, da maior importância que os financiadores/beneficiários da ADSE mantenham a mais apertada vigilância sobre a administração e gestão desta estrutura que lhes pertence. Essa é uma das funções do Conselho Geral e de Supervisão da ADSE. 


6. As listas concorrentes às eleições de 19 de Setembro


Como ficou dito mais acima (v. alínea c, artigo 14), nós, os beneficiários titulares da ADSE, temos o direito de eleger por sufrágio universal e secreto quatro representantes para o Conselho Geral e de Supervisão. Estes representantes são eleitos por um mandato de três anos, renovável uma vez.

Há 7 listas de candidatos para as eleições destes 4 representantes que se vão realizar em 19 de Setembro. O leque de escolhas é, por conseguinte, amplo.

Grosso modo, o que consegui apurar sobre as listas foi o seguinte. Três listas são constituídas por dirigentes e militantes sindicais de diversas correntes. É o caso da Lista A (que é encabeçada pela presidente do Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado e pelo presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos), da Lista E (encabeçada pelo ex-secretário geral da UGT) e da lista G (encabeçada por um dirigente do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local).

A lista A tem o apoio do STE (Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado e Entidades com Fins Públicos). A lista E tem o apoio da FESAP (Federação de Sindicatos da Administração Pública e de Entidades com Fins Públicos), uma estrutura da UGT. A lista G tem o apoio da Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública, uma estrutura da CGTP-IN, e da Inter-Reformados, outra estrutura da CGTP-IN.

Convém lembrar que os sindicatos têm representação automática no Conselho Geral e de Supervisão da ADSE através de três representantes: um indicado pela Federação dos Sindicatos da Administração Pública e de Entidades com Fins Públicos (FESAP), filiada na UGT, um indicado pela Frente Comum de Sindicatos da Administração Pública, filiada na CGTP-IN, e um indicado pelo Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado e Entidades com Fins Públicos (STE), que não pertence a nenhuma das centrais sindicais. Estes sindicatos são apoiantes, respectivamente, das listas E, G e A. Parece pois que estas organizações sindicais pretendem obter uma dupla representação no Conselho Geral e de Supervisão da ADSE: uma por inerência e outra por via eleitoral.

Há um traço comum às três listas de sindicalistas (A, E e G) e aos sindicatos que as apoiam e cujos representantes têm assento por inerência no Conselho Geral e de Supervisão da ADSE. Tanto umas como os outros estão de acordo (i) com a transformação da ADSE/Direcção-Geral, em instituto público, com o desenho actual, e (ii) vêm como desejável a participação do Estado, por via do Orçamento de Estado, no financiamento parcial dos benefícios garantidos pela ADSE aos seus contribuintes/beneficiários. 

As duas posições, (i) e (ii), são perfeitamente congruentes entre si, mas não vejo como (ii) se possa coadunar com a defesa do princípio da equidade relativamente ao direito de acesso a um serviço nacional de saúde universal e geral, tendencialmente gratuito. Se se acha bem que o Orçamento de Estado favoreça o financiamento das despesas nos domínios da promoção da saúde, da prevenção da doença, do tratamento e da reabilitação de um grupo específico de cidadãos (neste caso os trabalhadores em funções públicas, quer no activo quer aposentados) relativamente aos demais, não se pode dizer que se defende o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da constituição da república portuguesa. Ou se defende uma coisa ou se defende outra.

ARTIGO 13.º
(Princípio da igualdade)

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.

2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Quanto à posição (i) — a defesa que os sindicatos acima mencionados, assim como as listas A, E e G, fazem do modelo de instituto público para a ADSE — ela é igualmente  contestável. Essa solução só seria aceitável se o desenho do novel instituto público garantisse a sua autonomia administrativa e financeira perante os governos/Estado, a sua gestão e o seu controlo pelos seus financiadores/beneficiários. Para que isso fosse possível, teriam de ser introduzidas grandes alterações no actual desenho da ADSE-IP. 

Por exemplo, os membros do Conselho Directivo (presidente e vogais) deveriam ser escolhidos e designados pelo Conselho Geral e de Supervisão com base numa lista de candidatos pré-seleccionados em concurso público. Aos governos continuaria a caber a designação do fiscal único e de seis membros para o Conselho Geral e de Supervisão. Esta prerrogativa, no entanto, só teria sentido se continuasse a caber ao Estado assegurar as despesas logísticas de funcionamento da ADSE-IP, ou, pelo menos, as remunerações dos trabalhadores da ADSE-IP que transitaram da ADSE/ direcção-geral. Segundo os últimos números publicados (2015), as despesas logísticas anuais de funcionamento da ADSE foram de 4.953.659 euros, das quais a maior fatia vai para as remunerações certas e permanentes (3.971.975 euros) dos seus 215 funcionários (cf. ADSE, Balanço Social, 2015). 

Estas seriam algumas das modificações que poderiam tornar a solução de um instituto público mais vantajosa, porventura, do que a da associação mutualista de utilidade pública, já que garantiriam também (e tal como ela) a efectiva participação na gestão e no controlo da ADSE pelos seus contribuintes/beneficiários. 

Não é esse, porém, o entendimento que o governo tem de instituto público de regime especial, o estatuto que atribuiu, como vimos, ao organismo que sucedeu à Direcção-Geral de Protecção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas (ADSE): o Instituto de Protecção e Assistência na Doença, I. P. (abreviadamente designado por ADSE, I. P). Já conhecemos a razão principal dessa mudança de estatuto por parte do governo: com ela pretende-se assegurar que os governos/Estado possam continuar a superintender à ADSE, mesmo depois de terem cessado por completo de co-financiarem os cuidados de saúde cobertos pela ADSE e de terem, também, cessado por completo de pagarem as despesas logísticas do funcionamento da ADSE, incluindo as despesas com as remunerações dos 215 seus funcionários, despesas essas que são agora integralmente pagas pelos contribuintes/beneficiários da ADSE [o aditamento a verde foi feito em 14 de Janeiro de 2019].

Quanto ao regime especial que seria o deste instituto público, convém não nos deixarmos iludir. Esse regime especial destina-se apenas a garantir que os salários dos membros do Conselho Directivo (presidente e vogais) da ADSE, IP, deixam de estar limitados aos vencimentos dos dirigentes superiores da Administração Pública. Assim sendo, o presidente do Conselho Directivo da ADSE, IP, será seguramente superior ao vencimento atribuído aos cargos de direcção superior de 1.º grau (3734 euros mensais) e o vencimento dos vogais do Conselho Directivo do mesmo instituto público será seguramente superior ao vencimento atribuído aos cargos de direcção superior de 2.º grau (3173,95 euros por mês). Quão superior? É o que veremos.

Seja como for, a questão que se põe é a seguinte: quem pagará esses salários: os ministérios da tutela (finanças e saúde) ou nós, os financiadores/beneficiários da ADSE ? E se formos nós, outra pergunta se põe: por que razão deveríamos nós pagar os serviços de gestores “especiais” que não podemos sequer escolher nem recusar?

Estas são perguntas cuja resposta desconhecemos (eu, pelo menos, desconheço). Sei agora qual é a resposta à primeira pergunta do parágrafo anterior. Quem paga os vencimentos dos membros do Conselho Directivo da ADSE são os seus contribuintes/beneficiários. A segunda pergunta fica assim automaticamente respondida [o aditamento a verde foi feito em 14 de Janeiro de 2019] . Por tudo quanto ficou dito, não me parece que as listas A, E e G estejam interessadas em saber qual é a resposta a estas perguntas. Se forem coerentes com a sua defesa do actual modelo de IP para a ADSE, não estarão sequer de acordo em fazer tais perguntas.  

Passemos então às outras listas.

Nada sei dizer sobre as listas C, D e F, para além do que elas dizem de si mesmas, que é, nalguns casos, muito pouco. Sobre a lista B, posso dizer mais do que ela diz de si própria. A lista B é constituída por financiadores/beneficiários da ADSE, na sua maioria aposentados. Esta lista é apoiada pela Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe!) e pela Associação 30 de Julho. A APRe! está representada por inerência, através da sua presidente, no Conselho Geral e de Supervisão da ADSE. Como é uma organização já bem conhecida pelo seu combate em defesa dos aposentados, dispenso-me de entrar em mais pormenores. 

A Associação 30 de Julho não será conhecida por muita gente. Foi criada, em 31 de Maio de 2016, por um grupo de beneficiários da ADSE, com o objectivo de criar e desenvolver uma plataforma em rede, capaz de dar voz aos interesses de todos os beneficiários, colaborando com todos os interessados. Foi buscar o seu nome à data de publicação do Decreto Lei nº 105/2013 de 30 de Julho, que atribuiu aos beneficiários da ADSE o seu exclusivo financiamento, e visa contribuir para a análise, esclarecimento e discussão da sua evolução organizativa. A Associação cívica 30 de Julho pretende mobilizar os trabalhadores em funções públicas no activo e aposentados para acompanhar o futuro da ADSE e incrementar a sua participação no processo decisional desse futuro. Procura, por isso, estabelecer relações de trabalho e cooperação com organizações afins, visando sempre a procura de soluções que melhor enquadrem e defendam os interesses dos beneficiários da ADSE no acesso aos cuidados de saúde. Em sua opinião, a ADSE não pode ser reduzida a um mero seguro de saúde e deve continuar a afirmar o seu carácter solidário e intergeracional, como forma de protecção eficaz, duradoura e continuada dos funcionários públicos e suas famílias.

Em http://adsedosbeneficiarios.blogs.sapo.pt/ os leitores poderão encontrar toda a documentação relativa à lista B, incluindo o currículo dos seus candidatos. É nesta lista que tenciono votar, pelas seguintes razões: 1) tem um programa eleitoral que diz o essencial do que é necessário fazer nos tempos mais próximos para defender os  financiadores/beneficiários da ADSE na ADSE, IP ; 2) a quase totalidade dos seus membros tem uma idade demasiada avançada para serem movidos por qualquer ambição de poder político, sindical ou económico. Também não são movidos pela ambição de terem um tacho bem remunerado (visto que o cargo de membro do Conselho Geral e de Supervisão não é remunerado); 3) são pessoas altamente qualificadas, duas das quais, aliás, conhecem muito bem a ADSE, visto que foram durante vários anos os seus responsáveis máximos. Creio, por estas razões, que estão em condições de prestarem um bom serviço na qualidade de nossos representantes na ADSE, IP.

É apenas uma opinião, que poderá estar errada, porque não conheço pessoalmente nenhum dos candidatos desta lista. Haverá outras opiniões, claro. Seja como for, se forem financiadores/beneficiários da ADSE não deixem de votar, no próximo dia 19 de Junho, na lista que vos pareça a melhor ou, pelo menos, a menos má. 

Não há desculpas para não votar, nem sequer a da falta de tempo, visto que se pode votar a partir de casa ou do local de trabalho, bastando para tanto dispor de um computador portátil com ligação à Internet. 


José Manuel Catarino Soares

30 junho, 2017


TEMAS 4 e 2


Piroverões, a tragédia de Pedrógão Grande e o luto histriónico de uma certa direita


Portugal é um país de piroverões — verões com incêndios rurais devastadores — durante os quais ardem dezenas, por vezes centenas, de milhar de hectares de mato e floresta, são destruídos muitos bens diversos (casas, alfaias agrícolas, viaturas, etc.), morrem amiúde cabeças de gado e chega a morrer gente, em particular bombeiros. Por exemplo, entre 1975 e 2013 arderam 4,3 milhões de hectares, quase metade da área total do país, contribuindo desta forma para a delapidação ambiental e económica de grandes zonas do país. Cerca de 70% dos fogos em meio rural acontecem em áreas que tinham já ardido pelo menos uma vez. Entre 2002 e 2013, morreram, devido aos incêndios, 97 pessoas, 51 delas bombeiros.

As condições permanecentes propiciadoras deste facto recorrente dos últimos 40 anos são bem conhecidas dos investigadores da floresta portuguesa e do mundo rural português, alguns dos quais as explicaram em linguagem acessível ao grande público.  É o caso, por exemplo, da Proposta Técnica para o Plano Nacional de Defesa da Floresta (2005), elaborada pelo Instituto Superior de Agronomia para a Agência para a Prevenção dos Incêndios Florestais. Relatório Final, Volumes 1 e 2 (coordenação do professor universitário e engenheiro silvicultor José Miguel Cardoso Pereira e do engenheiro João Basto); do Relatório Final da Missão dos Peritos Norte-Americanos Mark Beighley & Michael Quesinberry, do USDA Forest Service, publicado, em Março de 2005, pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento; do estudo Incêndios Florestais em Portugal. Caracterização, Impactes, Prevenção (2006), publicado pelo Instituto Superior de Agronomia, Universidade Técnica de Lisboa (coordenação de João Santos Pereira, José M. Cardoso Pereira, Francisco Castro Rego, João M. Neves Silva e Tiago Pereira da Silva); da  Reflexão sobre os sistemas de protecção e combate aos incêndios rurais (2006), elaborado pelo Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS); ou dos artigos de divulgação do professor universitário e engenheiro florestal Paulo Fernandes (p.ex. “«Eucaliptização» e vulnerabilidade aos incêndios” [ambio.blogspot.com, 31-01-2006] e “«Árvores bombeiras» também apagam os fogos” [Eco, 19-06-2017]), do arquitecto paisagista Henrique Pereira dos Santos (p.ex. “Carta Aberta ao Professor Jorge Paiva sobre incêndios florestais” [ambio.blogspot.com, 8-09-2013] e “Imprevisível?” [Público, 26-06-2017]), e do investigador principal aposentado e biólogo Jorge Paiva (p.ex. “Os incêndios e a desertificação do Portugal florestal” [Público, 23-01-2006] e “Como passámos a ter estradas onde corremos o risco de ser incinerados” [Público, 20-06-2017]).

Essas condições permanecentes propiciadoras de piroverões — para além das condições atmosféricas favoráveis (como maior calor, secura e vento mais forte) características de um pequeno número de dias no período de Verão — podem ser resumidas em poucas linhas: (i) péssimo ordenamento florestal (em particular, a florestação mono-específica, contínua e contígua, com árvores de espécies cuja biomassa morta se decompõe lentamente e que acumulam combustível com rapidez e em quantidade, como o pinheiro-bravo [31,2% da área florestal] e o eucalipto [24,4% da área florestal]), com grandes manchas em estado de abandono ou sub-gestão, (ii) êxodo rural das populações que viviam da agricultura de subsistência e da silvopastorícia, com o grande decréscimo concomitante da utilização que essas populações e os seus animais faziam da biomassa, (iii) despovoamento das regiões do interior, sobretudo nas regiões florestais onde prevalece o minifúndio, e envelhecimento da população residual aí residente, (iv) incumprimento da legislação de prevenção contra incêndios rurais (não só no que respeita às florestas, mas também no que respeita aos perímetros de segurança em torno das casas e das povoações rurais, aos corredores de segurança ao longo das bermas das estradas e linhas de caminho-de-ferro, e às faixas de protecção das linhas da rede eléctrica), (v) instabilidade institucional e delapidação técnica e funcional dos serviços florestais (engenheiros florestais e silvicultores, técnicos de análise do fogo, guardas e sapadores florestais), (vi) baixa eficácia da prevenção e gestão dos fogos rurais, resultante da desarticulação dos três pilares de defesa da floresta contra os incêndios (os pilares da prevenção estrutural, vigilância e detecção, e supressão, respectivamente a cargo do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas [ICNF], da Guarda Nacional Republicana [GNR], e da Autoridade Nacional da Protecção Civil [ANPC]) que carecem de um organismo de coordenação e comando unificado e de uma doutrina coerente de intervenção integrada  assente na interdependência desses três pilares. 

Bombeiros no incêndio de Pedrógão Grande
                      
Sem actuar sobre estas condições diversas continuaremos a ter piroverões. Mais, ficou agora claro que a situação chegou a um ponto tal que se corre o risco de morrer carbonizado mesmo numa estrada nacional. Foi o que sucedeu na estrada nacional 236-1, onde morreram 47 pessoas presas das chamas e asfixiadas pelo fumo, a maioria das quais em pouco mais de um quilómetro, no troço que liga Castanheira de Pera a Figueiró dos Vinhos. Registaram-se ainda 16 mortes em várias povoações de pessoas que não puderam ser salvas ou evacuadas a tempo, 254 feridos e um bombeiro que acabou por falecer.


Carcaças de automóveis de pessoas que morreram na EN 236-1 vítimas do incêndio de Pedrogão Grande


A meteorologia


Será certamente necessário esclarecer cabalmente as condições que terão permitido tão elevado número de vítimas mortais em tão curto espaço e em tão pouco tempo. Já existem informações suficientes para se efectuar um balanço preliminar dessa horrível tragédia.

Comecemos pela meteorologia. O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) produziu um esclarecimento a pedido do primeiro ministro (http://www.portugal.gov.pt/pt/pm/noticias/20170627-pm-incendio-pedrogao-grande.aspx) onde se pode ler nomeadamente o seguinte:

Neste sentido, o sistema de previsão meteorológico para as condições de superfície [na região de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos], funcionou de forma correta, dentro de margens de erro expectáveis, definindo o quadro sinóptico de tempo muito quente, com temperaturas máximas muito elevadas, próximas de 40ºC, temperaturas mínimas igualmente elevadas, humidade relativa muito baixa, vento fraco ou moderado nos locais elevados, e condições de instabilidade, com possibilidade de ocorrência de aguaceiros de trovoadas durante a tarde. Do mesmo modo confirma-se que os níveis de avisos emitidos estavam de acordo com as regras fixadas entre o IPMA e a ANPC.

No que diz respeito às condições excecionais que determinaram situações no terreno de excecional gravidade, estamos convictos que foram o resultado da conjugação da dinâmica do próprio incêndio e dos efeitos da instabilidade atmosférica, gerando “downburst”, ou seja, vento de grande intensidade que se move verticalmente em direção ao solo, que após atingir o solo sopra de forma radial em todas as direções. Este fenómeno é por vezes confundido com um tornado, e tem um grande impacto em caso de incêndio florestal por espalhar fragmentos em direções muito diversas.

De acordo com as informações já recolhidas pelo IPMA, o desencadeamento e/ou a propagação do incêndio poderão ter sido amplificados pela conjugação dos fatores descritos, e a importância excecionalmente elevada de efeitos locais relacionados com fenómenos de convecção atmosférica associados à humidade muito reduzida, e a dinâmica induzida pelo próprio incêndio.

Esta situação tão complexa e excecional está a ser objeto de um estudo aprofundado. Foi já nomeada uma comissão coordenada pelo Dr. Nuno Moreira, Chefe de Divisão de Previsão. Este estudo está a ser realizado no IPMA, e quando estiver terminada será de imediato enviado.

Aguardemos pois pela conclusão desse estudo.


Ilustração de um downburst. Por downburst deve entender-se um «vento de grande intensidade que se move verticalmente em direção ao solo» e que, depois de o atingir, «sopra de forma radial em todas as direções». Frequentemente confundido com um tornado, este fenómeno assume «um grande impacto em caso de incêndio florestal, por espalhar fragmentos em direções muito diversas», amplificando assim, caótica e exponencialmente, a propagação do fogo, que fica fora de controlo. Fonte da descrição: Instituto Português do Mar e da Atmosfera.

O condicionamento do trânsito rodoviário  


O Comando Geral da GNR considerou, numa resposta oficial enviada ao primeiro ministro em 20-06-2017 (http://www.portugal.gov.pt/pt/ pm/noticias/20170627-pm-incendio-pedrogao-grande.aspx), que a EN 236-1 (nomeadamente nos troços onde morreram as referidas 47 pessoas) foi atingida de forma “inesperada e assustadoramente repentina, surpreendendo todos.”


IC8 perto de Pedrógão Grande e do desvio para a EN 236-1. Vêm-se claramente as temíveis "línguas de fogo" descritas por muitos habitantes locais. Foto de Paulo Cunha. EPA.


A GNR assumiu que a EN 236-1 foi indicada como uma alternativa ao IC8, porque não havia qualquer indicador ou informação que apontasse para a existência de um risco potencial ou efectivo em seguir esta estrada (EN 236-1) em qualquer dos sentidos. Acresce, ainda, referir que o acesso à EN 236-1 se faz a partir de múltiplos locais, muitos deles provenientes de pequenas localidades e propriedades existentes nas proximidades e não apenas a partir do IC8.

Por conseguinte, entre as questões mais candentes a averiguar está o funcionamento do sistema de comunicações de emergência, em particular o SIRESP.


As comunicações de emergência


O SIRESP (Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal), é “um sistema único de comunicações, baseado numa só infraestrutura de telecomunicações nacional, partilhado, que deve assegurar a satisfação das necessidades de comunicações das forças de segurança e emergência, satisfazendo a intercomunicação e a interoperabilidade entre as diversas forças e serviços e, em caso de emergência, permitir a centralização do comando e da coordenação” (Resolução do Conselho de Ministros, nº56/2003).  

A rede SIRESP é baseada na tecnologia de comunicações trunking digital TETRA (Terrestrial Trunking Radio)” de acordo com o padrão europeu desenvolvido pelo ETSI (European Telecommunications Standards Institute). É constituída por 7 comutadores, 550 Estações Base, 52 salas de despacho e duas Estações Móveis. 

Regra geral, a ANPC (Autoridade Nacional de Protecção Civil), a GNR, a PSP, os bombeiros, o INEM, são as entidades que usam mais frequentemente o SIRESP. Mas há muitas outras que também o fazem. Ao todo, a rede está ao dispor de mais de 50 entidades e está dimensionada para suportar 53.500 potenciais utilizadores.


"Terminal" (telemóvel) do SIRESP. Foto de Nuno André Ferreira. Lusa 
                     

A rede SIRESP resultou de uma parceria pública-privada (PPP) entre o Ministério da Administração Interna e uma empresa privada, a SIRESP S.A, um consórcio constituído de raíz para este efeito. O consórcio era chefiado pela Sociedade Lusa de Negócios (SLN, hoje Galilei, uma sociedade insolvente com milhões de euros de dívidas ao Estado português) que detinha o Banco Português de Negócios (BPN) de Oliveira Costa. 

Foi o XVI governo constitucional (PPD-PSD[Santana Lopes]/CDS-PP [Paulo Portas]), quando já estava demissionário, que assinou, em 23 de Fevereiro de 2005, o despacho de adjudicação do contrato do SIRESP com a SIRESP S.A, num valor inicial de 540 milhões de euros (Paulo Pena. Público. 23-06-2007).  

A SIRESP S.A integra na sua estrutura accionista, além da SLN, a PT Participações (entretanto adquirida pela empresa franco-israelita Altice), a Motorola, que forneceu a tecnologia, a Esegur (empresa do antigo Banco Espírito Santo, hoje Novo Banco) e a Datacomp, outra empresa do universo SLN/Galilei. «Estes associados, conhecidos pelas suas ligações ao poder político, representam o pior da promiscuidade no nosso regime económico e político, como hoje todos sabemos. Esta é sem dúvida uma das razões da má fama do SIRESP», observou Fernando Alexandre, o membro do XIX governo constitucional (Passos Coelho[PSD]/Paulo Portas[CDS]) encarregado de renegociar o SIRESP em 2014. Acresce referir, como prova suplementar dessa promiscuidade, que este negócio foi feito sem consulta pública e sem concurso público. As empresas que constituiram o consórcio que deu origem à SIRESP S.A foram todas convidadas a chegar-se à frente para negociar com o Estado.

Segundo Fernando Alexandre, a opção por uma parceria público-privada no caso do SIRESP, «foi um excelente negócio para os privados envolvidos.» O que se compreende perfeitamente se tivermos em conta que a SIRESP S.A distribuiu, em 2016, 6,675 milhões de euros em dividendos aos seus accionistas e que registou mais de 3 milhões de euros de lucros em 2015. Saliente-se também que entre 2007 e 2013 (segundo os últimos dados disponíveis recolhidos por Joaquim Miranda Sarmento, um estudioso das PPP), os lucros depois de impostos desta PPP foram superiores em cerca de 10 milhões de euros ao que estava projectado no caso base financeiro.

Os afortunados accionistas da SIRESP S.A contam com a ajuda (involuntária) dos contribuintes portugueses para continuarem a auferir dividendos dessa ordem de grandeza, já que o SIRESP custa anualmente ao erário público cerca de 40 milhões de euros a pagar até 2021, mesmo depois das renegociações de 2006 e de 2015 do contrato feito inicialmente com a SIRESP S.A. 

A primeira renegociação foi feita pelo XVII governo constitucional, um governo PS (1º ministro José Sócrates). Foi conduzida por António Costa (que era então ministro de Estado e da Administração Interna), que, com base num parecer da Procuradoria Geral da República, anulou, em 2 de Maio de 2005, a adjudicação feita pelo governo PSD[Santana Lopes]-CDS [Paulo Portas] ao consórcio SIRESP S.A,  tendo reaberto a negociação com o mesmo consórcio, com o qual assinou um novo contrato a 28 de Junho de 2006. A segunda renegociação com o mesmo consórcio foi iniciada em 2014, pelo XIX governo constitucional, um governo PSD[Passos Coelho]-CDS[Paulo Portas]. Foi conduzida pelo referido Fernando Alexandre, então secretário de Estado adjunto do Ministério da Administração Interna desse governo, mas não chegou ao seu termo. Foi concluída pelo actual governo PS (XXI governo constitucional), chefiado por António Costa, em Dezembro de 2015. 

Note-se que nenhum destes governos abriu concurso público para o SIRESP. Decidiram  todos renegociar com o mesmo consórcio ao qual foram atribuídas, em 2005, sem concurso público, a concepção, fornecimento, montagem, construção, gestão e manutenção de uma rede de comunicação baseada na tecnologia TETRA. A razão invocada pelos três governos envolvidos para procederem desta forma teve a ver com o carácter excepcional e de segurança desta tecnologia e do serviço em causa, um argumento de validade muito duvidosa tanto do ponto de vista jurídico como do ponto de vista tecnológico. 

As duas renegociações referidas permitiram abater 50 milhões e 25 milhões de euros, respectivamente, ao valor total de 580 milhões de euros acordado no início do contrato com o consórcio (2005). No entanto, apesar destas renegociações, «o contrato do SIRESP continua a ser mau para o Estado», como reconhece o próprio Fernando Alexandre (F. Alexandre. “SIRESP: o país numa rede de interesses”. Eco-Economia On-line, 22-06-2017).

Há muitas razões para isso. Uma delas é o contrato, que tem uma duração de 15 anos (2006-2021), não ter uma cláusula de fiscalização e acompanhamento da instalação dos equipamentos. Em contrapartida, «o contrato tem um anexo (o anexo nº 29) de penalizações que faz com que o valor a pagar pelo Estado apenas se reduza em casos em que o sistema falhe durante vários dias, o que significa que no caso de Pedrógão Grande, não se afigura que as cláusulas de penalização possam ser accionadas» (Joaquim Miranda Sarmento. “A história do SIRESP em números”. Eco-Economia On-line, 22-06-2017).

Além disso, o contrato tem uma cláusula que é usual nas PPP, mas que não faz sentido nenhum no caso em apreço: a alocação do risco qualificado de “acts of God” (ou seja, a ocorrência de desastres naturais) ficou do lado do Estado. Esta cláusula é o meio habitual através do qual os capitalistas que entram numa PPP que se propõe construir uma auto-estrada ou uma ponte tratam de proteger o seu investimento caso ocorra uma calamidade — por exemplo, um terramoto. Porém, no caso do SIRESP, a existência dessa cláusula mostra que houve negligência na elaboração do contrato, dado que o objectivo do sistema é precisamente que ele funcione em caso de calamidade. «Esta cláusula iliba qualquer responsabilidade da empresa privada no falhanço que ocorreu no fim-de-semana do incêndio [de Pedrógão Grande]» (Joaquim Miranda Sarmento, ibidem). 

Há outras razões ainda para afirmar que o contrato do SIRESP continua a ser mau para o Estado.  

Uma delas é o facto deste sistema ainda não actuar como uma rede de comunicação única de âmbito nacional entre as várias entidades que a utilizam ou que a deveriam utilizar. Por exemplo, o governo regional dos Açores gastou milhões de euros a montar um sistema de comunicações de emergência paralelo para a protecção civil (a PSP e a GNR utilizam o SIRESP) cuja manutenção é feita por uma empresa privada local (cf. Fernando Alexandre, ibidem). Uma outra razão prende-se com o facto de o SIRESP continuar a revelar dificuldades e falhas de operação, como aliás alguns intervenientes alegam ter sucedido nos recentes incêndios do distrito de Leiria. É o caso, por exemplo, do comandante dos bombeiros voluntários de Pedrógão Grande, Augusto Arnault (Jornal de Notícias, 27-06-2007) e do comandante dos bombeiros voluntários de Castanheira de Pêra, José Domingos (Lusa, 27-06-2017). Ambos afirmaram ter havido falhas no SIRESP no combate aos incêndios nestes concelhos.


A Autoridade Nacional da Protecção Civil


As afirmações destes dois comandantes de bombeiros foram corroboradas pela Autoridade Nacional da Protecção Civil (ANPC).


Elementos e viaturas da Autoridade Nacional de Protecção Civil. Foto de Daniel Rocha

Num relatório produzido em 22 de Junho de 2017 a pedido do primeiro ministro (http://www.portugal.gov.pt/pt/pm/noticias/20170627-pm-incendio-pedrogao-grande.aspx) a ANPC começa por esclarecer que utiliza nas suas comunicações não só a rede SIRESP, mas também mais duas redes de banda alta, a saber: a Rede Estratégica da Protecção Civil (REPC) e a Rede de Operações dos Bombeiros (ROB). A ANPC dispõe ainda de um Sistema de Apoio à Decisão Operacional (SADO). Este sistema permite registar, entre outros parâmetros, a sequência ordenada dos principais acontecimentos e decisões operacionais.

Com base no sistema SADO, a ANPC pôde registar várias falhas do sistema SIRESP no teatro de operações (os concelhos afectados pelos incêndios, em particular o de Pedrógão Grande) desde as 19:45 horas do dia 17 de Junho até ao dia 20 de Junho. Por forma a minimizar as falhas da rede SIRESP, a ANPC utilizou as comunicações de redundância, REPC e ROB, conforme se pode constatar na fita do tempo do SADO.

A título de exemplo, merece um destaque especial a queda de três sites (estações base) da rede SIRESP (a saber, Serra da Lousã, Malhadas, Pampilhosa da Serra) que ocorreu entre as 21:12 h e as 21:16 h de 17 de Junho. Este facto, que afectou as comunicações, levou a ANPC a solicitar ao SIRESP, às 21:29 h, a mobilização de duas estações móveis (EM). O SIRESP informou então a ANPC que a estação móvel 1, pertencente à GNR, se encontrava inoperacional e que a estação móvel 2, pertencente à PSP, se encontrava em reparação na empresa UNIVEX, pelo que não era possível, no momento, a sua mobilização para a zona de Pedrógão Grande. Isso só viria a acontecer no dia 18 de Junho às 5:50h.  Além das estações base supra referidas, cumpre mencionar o facto de as estações base de Pedrogão Grande e de Figueiró dos Vinhos terem ficado inoperacionais  às 00:51 e às 4:12 do dia 18 de Junho. A estação base da rede SIRESP de Pedrógão Grande só ficou de novo operacional às 12h de 19 de Junho.


Pedrógão Grande. Foto de Miguel Vidal. Reuters. 


Vale a pena acrescentar, para a boa compreensão do que acaba de ser dito, que existem duas Estações Móveis (EM) auto-transportadas, com ligação satélite que permite conexão com a rede SIRESP. São geridas pela SGMAI e estão confiadas uma à PSP e a outra à GNR. Quando alguma entidade utilizadora da rede SIRESP necessita de reforço de cobertura ou resolução de alguma falha temporária das estações base solicita ao Centro de Operação e Gestão (COG) da SGMAI, que funciona em regime 24/7, a activação de uma ou das duas EM, seguindo-se a aplicação de um conjunto de procedimentos operacionais definidos.


Estação móvel do SIRESP. Foto de Daniel Rocha

A ANPC conclui o seu relatório com a seguinte afirmação: 

O impacto da interrupção da rede SIRESP fez-se sentir, sobretudo ao nível do comando e controlo das operações por não permitir, em tempo, o fluxo de informação entre os operacionais e o posto de comando, situações que foram supridas com recurso às redes redundantes já referidas, permitindo assegurar as comunicações associadas à operação.


A Secretaria Geral do MAI


No relatório da Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna (SGMAI) sobre o incêndio de Pedrógão Grande e rede SIRESP em 17 de Junho (http://www.portugal.gov.pt/pt/pm/noticias/20170627-pm-incendio-pedrogao-grande.aspx) pode ler-se:

Os procedimentos operacionais estabelecidos em vigor na SGMAI e em particular no COG [Centro de Operação e Gestão] foram cumpridosApós o pedido para activar as EM [Estações Móveis] à SGMAI pelas 21:15 pelo Chefe de Gabinete SEAI[Secretário de Estado da Administração Interna] e pelas 21:29 pela ANPC [Autoridade Nacional de Protecção Civil] o devido procedimento foi activado. Nesse momento era já impossível ter a EM em Pedrogão Grande a tempo de ajudar a minorar as ocorrências que resultaram em mortes. O tempo necessário optimizado para que a EM se deslocasse e iniciasse serviço é de 4:00. A EM face à hora em que foi solicitada nunca poderia ter chegado a Pedrogão Grande antes das 01:15. As mortes [na EN 263-1 ?], pela análise da fita do tempo da ANPC, terão ocorrido até às 22:30.

Nessas circunstâncias, o relatório da SGMAI formula uma crítica à Autoridade Nacional de Protecção Civil:

A ANPC (Autoridade Nacional de Proteção Civil) ao verificar que a situação se estava a tornar excecional requisitando mais meios de combate ao incêndio, deveria também em simultâneo ter solicitado preventivamente a mobilização da estação móvel [EM] em tempo útil, mesmo antes de alguma estação rádio fixa se encontrar em modo local.

Confesso que não entendo a razão de ser desta crítica, visto que a ANPC afirma no seu relatório ter solicitado ao SIRESP a mobilização das estações móveis alguns minutos depois deste lhe ter comunicado a queda das estações base da Serra da Lousã, Malhadas e Pampilhosa da Serra.


A SIRESP S.A


Importa, portanto, perceber, em concreto, que equipamentos do SIRESP foram afectados pelos incêndios, a que horas, durante quanto tempo esteve o sistema fora de serviço, que consequências resultaram dessa inoperância, que meios ‘redundantes’ têm os elementos no terreno ao seu dispor, de que forma (se é que existe alguma) pode o SIRESP ser protegido contra estes incidentes recorrentes que resultam em falhas da rede.

A resposta a estas perguntas pode ser colhida, em grande parte, nos relatórios já mencionados. Os relatórios da ANPC e da SGMAI apontam ambos, como vimos, para falhas (graves?) na rede SIRESP. Para aprofundar esta e outras questões conexas, o primeiro ministro, António Costa, ordenou à SIRESP S.A, em 23 de Junho, com carácter de urgência, um relatório de desempenho da rede SIRESP durante o incêndio florestal de Pedrógão Grande (17 a 22 de Junho).

O extenso relatório da SIRESP S.A (24 páginas com mais 17 de anexos) foi publicado no portal do governo em 27 de Junho  (http://www.portugal. gov.pt/pt/pm/documentos/20170627-pm-rel-siresp.aspx). Com base na informação reportada e analisada, o relatório conclui que não houve interrupção no funcionamento da rede SIRESP, nem houve nenhuma Estação Base que tenha ficado fora de serviço durante o incêndio” (p. 23).

Esta é deveras uma conclusão espantosa, tendo em conta os relatórios da ANPC e da SGMAI, assim como as declarações dos comandantes dos bombeiros voluntários de Pedrógão Grande e Castanheira de Pera. A menos que os autores do relatório do SIRESP joguem aqui com as palavras. 

Por exemplo, das 16 estações base que cobrem a zona do incêndio, «verificou-se que 5 entraram em modo local (LST- Local Site Trunking), em virtude da destruição, pelo incêndio, dos cabos de fibra óptica e outros da rede de telecomunicações que asseguram contratualmente a ligação ao resto da rede» (secção 3.2. do Relatório de desempenho da rede SIRESP. Incêndio de Pedrógão Grande. 17 a 22 de Junho de 2017). Ora, é possível afirmar que este facto NÃO constitui «uma interrupção no funcionamento da rede SIRESP», visto que «embora em modo de serviço local (LST-Local Site Trunking), cada Estação Base garante a comunicação entre os operacionais no terreno na respectiva área de cobertura, sendo esta uma característica da tecnologia TETRA».(Relatório, ibidem). Na mesma ordem de ideias, é possível afirmar que «não houve interrupção na rede SIRESP», visto que «além do funcionamento em modo local, a tecnologia TETRA permite ainda que os operacionais comuniquem entre si no designado modo directo (walkie talkie)» (Relatório, ibidem).

Não sendo especialista em telecomunicações, não sou capaz de determinar o significado exacto a atribuir a estas afirmações, nem avaliar o verdadeiro alcance prático das argúcias técnicas que encerram. Seja como for, uma coisa é certa: há, como se constata,  várias discrepâncias e incongruências entre os três relatórios — o da ANPC, o da SGMAI e o da SIRESP S.A. —    no que diz respeito à operacionalidade da rede SIRESP. Acresce referir que, sendo a SGMAI, a ANPC e a SIRESP S.A. partes interessadas, os seus relatórios poderão sempre ser postos em dúvida com base no argumento de que “ninguém é bom juíz em causa própria”.


Apurar tudo o que sucedeu


Em 22 de Junho, Passos Coelho, presidente do PPD-PSD desde 2010, propôs a constituição de uma comissão técnica de inquérito independente (uma proposta inusitadamente sensata, tendo em conta a personalidade do proponente). 

Embora a intenção da proposta não fosse a de obviar às dificuldades de interpretação suscitadas pelos relatórios da ANPC, da SGMAI e da SIRESP S.A, a verdade é que uma comissão técnica independente de avaliação é um meio idóneo de apurar todos os factos e todas as reponsabilidades de uma forma abrangente, exaustiva e integrada, superando assim a visão necessariamente parcelar e unilateral dos relatórios das diferentes entidades envolvidas nos incêndios e as discrepâncias de informação que possam existir entre eles sobre o mesmo assunto (e já vimos que existem).

O PS, o BE e o CDS concordaram com a ideia dessa comissão e votaram a seu favor. O PAN e o PEV abstiveram-se. O PCP votou contra por achá-la inútil. Para este partido é ao governo que cabe apurar o que passou. Mas uma coisa não impede a outra. O governo tem feito o que se impunha para averiguar o que se passou. Para além dos esclarecimentos e relatórios já referidos, estão em curso, por sua iniciativa, vários inquéritos, que produzirão também relatórios: o relatório final do IPMA, o relatório interno da GNR, o inquérito à actuação da secretaria-geral da Administração Interna, que é a entidade que gere o SIRESP, e uma auditoria global da rede SIRESP pedida ao Instituto de Telecomunicações, um laboratório associado nacional. A comissão técnica independente para apurar o sucedido nos incêndios da região centro (Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Ansião, Alvaiázere, Figueiró dos Vinhos, Arganil, Góis, Penela, Pampilhosa da Serra, Oleiros e Sertã), sendo de iniciativa parlamentar, não se sobrepõe ao escrutínio conduzido pelo governo, antes o alarga e complementa.

Essa comissão técnica independente vai ser composta por doze investigadores de “reconhecidos méritos nacionais e internacionais” e competências nas áreas da protecção civil, prevenção e combate aos incêndios florestais, ciências climáticas, ordenamento florestal e telecomunicações. Por consenso entre os partidos que apoiam a constituição desta comissão de inquérito, seis desses investigadores serão indicados pelo presidente da Assembleia da República e outros seis pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas. A comissão terá um mandato de 60 dias, a partir da data de constituição, prorrogáveis por mais 30, até à conclusão dos trabalhos.

Curiosamente, uma parte dos colunistas apoiantes de Passos Coelho achou a ideia estapafúrdia e um peso-pesado do PSD chegou mesmo ao ponto de acusar Passos Coelho de fazer um frete ao governo de António Costa. 

“Luto”, aqui, é código para “ganhar tempo”. Não surpreende a cumplicidade dos partidos comunistas [sim, é mesmo um plural] no arranjo. Não surpreendem os esforços do PS na elaboração do arranjo. Não surpreende o aval do PR ao arranjo, visto que já só os ceguinhos não vêem a verdadeira função do prof. Marcelo. E não surpreende a ajuda das televisões e dos jornais à eficácia do arranjo (Alberto Gonçalves. Observador, 24-06-2017).

Muito crítico da investigação que o Governo decidiu avançar a partir do Parlamento — “é um absurdo”, defendeu —, Marques Mendes acusa o PSD, que sugeriu esta comissão, de ter sido “ingénuo” e de ter “lançado uma boia ao Governo”, alinhando num “Bloco Central da asneira”. No Parlamento, avisou, “nada é rápido, tudo é politizado e fica tudo em águas de bacalhau”. E António Costa, “que nunca aceitou nenhuma sugestão do PSD, agora deu-lhe jeito (Marques Mendes. Expresso, 25-06-2017).

A farsa, tudo indica, continuará na constituição de uma comissão independente a partir do parlamento. Sim, será composta por peritos — mas peritos escolhidos por partidos que têm interesses na matéria. Achar-se que uma comissão independente pode nascer da iniciativa dos partidos, que têm interesse em diluir as suas responsabilidades ou favorecer clientelas no sector da agricultura, é como acreditar que as vacas voam (Alexandre Homem Cristo. Observador, 26-06-2017).


Viva o diabo e bem-vindas sejam a suas diabruras


Um comentador, de costume muito moderado nas suas opiniões, chamava a atenção para o modo aparentemente muito pouco inteligente como uma parte da direita portuguesa — esta de que citei três exemplos como amostra —  começou a reagir ao incêndio-tragédia de Pedrógão Grande, logo que as chamas abrandaram um pouco. 
(…) o PSD de Passos Coelho é defendido no maior jornal on-line português — o Observador —, onde [muitos dos seus comentadores residentes] se entreteram durante a semana a seguir ao incêndio a atacar . . .  o Presidente da República, inimigo de estimação de Passos Coelho, sem repararem que estão a atacar o seu próprio eleitorado. Até parece que a falta de inteligência da direita portuguesa, que alimentou as causas que deram origem ao 25 de Abril, está a ressurgir nestas obsessões redutoras sem soluções para os problemas que têm de enfrentar (Maurício Barra. “Estado, Partidos, Claques. A tragédia de Figueiró. E Nós !”. Blogue Grande Hotel, 26-06-2017).

A direita portuguesa anterior à revolução de 25 de Abril de 1974 não precisava de pensar politicamente (Salazar e Caetano dispensaram-na dessa maçada durante 48 anos), por isso parecia estúpida. A direita portuguesa actual nada tem de estúpido; não pode dar-se a esse luxo porque tem de subsistir em democracia. Parece-me, pois, mais correcto interpretar o seu comportamento errático nos últimos dois anos como o resultado de um estado de estupor prolongado por o poder governamental lhe ter escapado das mãos de um modo que não esperava. Mas uma coisa é certa: a sua facção brutesca é seguramente uma admiradora entusiasta e reverente do diabo e das suas imprevisíveis diabruras.

«Não veio o diabo, mas veio o inferno Foi com estas sóbrias palavras de satisfação por uma profecia de Passos Coelho (Gozem bem as férias que em Setembro vem aí o diabo, 19-07-2016) ter excedido as suas melhores expectativas, ainda que tardiamente, que João Marques de Almeida formulou o seu veredicto sobre o incêndio de Pedrógão Grande (Observador, 25-06-2017).


Pedrogão Grande. Foto de Paulo Novais. Lusa


O imprevisível, seja esse imprevisível umas cheias, um fogo florestal ou um engarrafamento em cadeia, tornou-se consequentemente no terror de quem nos governa. (…) Donde a catástrofe, resulte ela de um incêndio ou de um factor externo, como os mercados, que não se conseguem controlar com a verborreia do costume, se ter tornado naquilo que os socialistas realmente temem garante-nos Helena Matos (Observador, 26-06-2017), que, pelo visto, não teme o imprevisível, por mais catastrófico que seja: cheias, fogos florestais, engarrafamentos em cadeia, subidas galopantes das taxas de juro, etc.  


Foto de Patrícia Melo Moreira. AFP. 

O diagnóstico de muitas, talvez a maioria, das cabeças pensantes da direita portuguesa é muito simples: o “Estado” sofreu um colapso em Pedrógão Grande de que não recuperará tão cedo (se é que o fará). Que fazer então perante tal catástrofe? Aqui, as opiniões dividem-se em duas linhas de argumentação, a saber:

1) uma linha cínica (e, na prática, quietista):  «O Estado falhou porque não conseguiu evitar as vítimas do incêndio. Mas não vale a pena protestar, porque temos o Estado que merecemos. Não vale a pena apontar o dedo ao PS. Não vale a pena fingir que o Estado que existe não é também, em enormíssima medida, obra nossa (PPD-PSD e CDS-PP). Pintemos pois a cara de preto e batamos todos com a mão no peito: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

2) uma linha oportunista (e, na prática, activista) : «O Estado falhou porque não conseguiu evitar as vítimas do incêndio. Mas a ideia de uma comissão técnica independente de inquérito ao que aconteceu é uma péssima ideia do nosso querido “líder”. Ela pode muito bem abrir a porta a um exame das acções e omissões  de todos os inquilinos do Estado desde o 1º governo constitucional até hoje, já que os eucaliptos levam 10 anos a crescer o suficiente para ser rentável cortá-los e vendê-los, e os pinheiros-bravos demoram o triplo do tempo. Ora, isso seria atribuir a responsabilidade pelos piroverões em partes iguais aos partidos do “arco da governação” (na versão Paulo Portas): PS, PPD-PSD e CDS-PP. Não, a única acção inteligente possível é conseguir transformar o governo actual (PS) e a sua geringonça parlamentar (PS, BE, PCP, PEV) em bode expiatório para o que aconteceu em Pedrógão Grande. Se conseguirmos juntar ao rol o Presidente da República, melhor, porque é um vira-casacas, cuja única função hoje é a de servir de pau-de-cabeleira da geringonça. Exijamos que sejam eles, e só eles, a pintar a cara de preto e a fazer acto de contrição pública: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

A linha cínica foi argumentada por Vasco Pulido Valente e Helena Garrido, entre outros:

A primeira obrigação do Estado é garantir a segurança física dos cidadãos. Em Pedrógão Grande o Estado Português não a cumpriu e mostrou assim a sua fraqueza e a sua essencial ilegitimidade (Vasco Pulido Valente. Observador, 25-06-2017).

A grande pergunta é simples: porque havia de aparecer em Pedrógão Grande, por milagre flagrante do Altíssimo, um Estado previdente, eficaz e responsável? Não apareceu; e, como de costume, os mais fracos pagaram a conta. Seria bom que fizéssemos mais três dias de luto (Vasco Pulido Valente. Observador, 25-06-2017).

Não, não chega fazer mais três dias de luto, afirma Helena Garrido.

Temos de pedir desculpa a Pedrógão Grande. Porque somos nós os responsáveis por termos viabilizado tanta mediocridade, por estarmos a fazer crer aos políticos que é isso que queremos, coisas como diários da república verdes, declarações de intenções nunca realizadas, estradas e obras de fachada. Políticas que geraram um país profundamente desigual, onde uns são mais iguais que outros (H. Garrido. Observador, 22-06-2017).

A linha oportunista foi argumentada por uma série de comentadores (Rui Ramos, Alberto Gonçalves, João Marques de Almeida, Gabriel Mithá Ribeiro, Helena Matos, entre outros) e por Marques Mendes, um peso-pesado do PSD.

Não, não é a altura para discutir a limpeza das matas e das bermas da estrada, a desertificação do interior, a propriedade rural, o aquecimento global e a relação dos seres humanos com a natureza. Tudo isso são temas muito interessantes, mas desta vez temos de resistir à mania nacional de fazer derivar as conversas. Neste momento, há apenas uma questão relevante: o Estado tem um sistema de protecção civil, e esse sistema falhou tragicamente. Porquê? A “natureza” e os “problemas estruturais”, como o mitológico ordenamento do território, não ilibam o sistema, porque a protecção civil existe para defender as populações nas condições existentes, mesmo quando tudo é “muito rápido”, e não apenas em condições ideais, como fossem aquelas em que o país se tivesse desenvolvido de outra maneira ou a progressão dos fogos fosse sempre muito lenta (Rui Ramos. Observador, 21-06-2017).

Em Pedrógão Grande, o Estado falhou no solitário papel que lhe devia caber: proteger fisicamente os cidadãos. Logo o Estado, de que os portugueses esperam tudo e, no momento que importa, obtêm nada. Não é coincidência (Alberto Gonçalves. Observador, 24-06-2017).

Nenhuma explicação convence. Só há uma conclusão. O Estado português é incapaz de proteger a vida dos portugueses perante acidentes como o do incêndio de Pedrógão Grande. É um facto. O resto não passa de conversa (João Marques de Almeida. Observador, 25-06-2017). 

Em Pedrógão não aconteceu um erro. Negligência. Ou falha. Tudo isso já tivemos e continuaremos a ter. Porque somos humanos. Não, o que aconteceu em Pedrógão foi doutra natureza e apenas tem paralelo com as cheias de 1967: o Estado não estava lá. As pessoas gritaram, as pessoas pediram socorro, as pessoas fizeram o que as autoridades mandaram…e morreram (Helena Matos. Observador, 26-06-2017).

Não foram as actuais autoridades que plantaram pinhais e depois os abandonaram? Pois não. Só que não estamos a falar de “culpas”, mas de responsabilidades. Estar no poder é assumir a responsabilidade: é prevenir, é mudar (Rui Ramos. Observador, 19-06-2017).

O reconhecimento da responsabilidade constituiria talvez, dados os precedentes, a única mudança possível: pela primeira vez na sua história, o Estado em Portugal reconheceria não ter estado à altura da confiança que os cidadãos tinham depositado nele. Para isso, claro, seria preciso coragem. Haverá essa coragem? Sr. Presidente? Sr. Primeiro-Ministro? Vão ter coragem de pedir desculpa, em nome do Estado, pelas vidas perdidas, pelas famílias destruídas, pelas comunidades atormentadas enquanto os senhores ocupavam os primeiros lugares do Estado? (Rui Ramos. Observador, 22-06-2017, [o realce a vermelho foi acrescentado por mim]).

Sim, como escreveu muito bem o Rui Ramos, os responsáveis políticos devem um pedido de desculpas aos portugueses. Deve ser António Costa a fazê-lo e na Assembleia da República, perante os representantes do povo português. Se não o fizer, mostra que não está à altura das funções que exerce. É muito simples (João Marques de Almeida. Observador, 25-06-2017).

Por que razões não será legítimo rotular politicamente de homicidas por negligência ou, para usar uma retórica mais ajustada à esquerda, de assassinos por negligência os responsáveis máximos de um estado que, face a um conjunto de episódios graves com datas e locais inequívocos, socialmente não se livrará de indícios sustentáveis que o apontam como responsável por muitas mortes, sendo parte delas seguramente evitável? (Gabriel Mithá Ribeiro. Observador, 26-06-2017).

Luís Marques Mendes acha “impossível não haver consequências políticas” para o Governo dos fogos do passado fim de semana na zona Centro do país. O comentador defendeu, este domingo, no seu comentário semanal na SIC, que a demissão da ministra da Administração Interna “a prazo vai ser inevitável”, porque “é quase impossível o Ministério Público não formular uma acusação de homicídio por negligência (Expresso, 25-06-2017).

São os desastres, o imprevisível, o que vem de fora da cidadela mediática de Lisboa, que fazem os governos socialistas chegar ao fim (Helena Matos. Observador, 26-06-2017).


O luto histriónico de uma certa direita


Creio que as citações precedentes serão suficientes para se perceber o vezo demagógico da prosa destes observadores. Quem se der ao trabalho (penoso) de ler por inteiro as suas crónicas sobre os incêndios florestais de Junho de 2017, verificará também que não há nelas nenhuma referência aos relatórios e inquéritos que mencionámos. Os factos coligidos por meio desses inquéritos e os acontecimentos relatados nesses relatórios não existem para estes comentadores. No seu mundo fantasmagórico não há nada a inquirir, nada a averiguar nem a discutir com base em factos devidamente atestados. Há só ucasses e sentenças de condenação contra culpados designados de antemão. Lendo-os torna-se mais fácil, pelo menos para mim, imaginar de que massa eram feitos os inquisidores do Santo Ofício.

O luto carregado que exibem não é pelas vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos. O luto que exibem é pela ANPC e pela SIRESP S.A, mais exactamente pela sua crença de que essas entidades eram suficientes para nos protegerem eficazmente, a todos, dos efeitos nefastos do incumprimento e da inaplicação, durante décadas a fio, de leis e políticas públicas coerentes de defesa da floresta e de prevenção dos incêndios florestais.

Essa crença morreu incinerada no momento em que cada um destes observadores se imaginou na estrada nacional 236-1, no troço que liga Castanheira de Pera a Figueiró dos Vinhos, no dia 17 de Junho entre as 20,10h e as 20,40h. Sim, foi aí que o inferno chegou (transportado, porventura, por um downburst). As jantes de automóveis de pessoas que aí foram apanhadas pelo incêndio, algumas de liga de alumínio, derreteram como se fossem manteiga. Os motores dos automóveis ficaram reduzidos a um montão de ferraria informe. Ficaram só as carcaças dos automóveis e os corpos dos seus ocupantes, vitimados pelo calor ou pelas chamas. Pode depreender-se destes e doutros factos que as temperaturas atingiram mais de 1200 graus centígrados nesse local *. Se, por hipótese académica, um avião-tanque anfíbio Canadair tivesse podido despejar a sua carga de água nesse local, muita dessa água ter-se-ia evaporado antes de tocar o solo.


Troço fatídico da estrada nacional 236-1. Foto de Rui Oliveira. Global Imagens.

Os ex-crentes não são, porém, capazes de perceber o que lhes fez perder essa crença. Falam de “falência/falhanço/fraqueza/ausência do Estado” para designar por antífrase uma tragédia anunciada, para camuflar a sua recusa em aceitar esta verdade comezinha, enunciada por um político também da sua área política mas lúcido: 
   
Num país que, desgraçadamente, arde todos os anos como tem ardido, algum dia iria chegar uma muito terrível catástrofe. Foi agora. E, não nos enganemos, continuamos inteiramente à mercê doutra (José Ribeiro e Castro. Observador, 27-06-2017).

José Manuel Catarino Soares


* P.S. Mais de um mês depois da publicação deste texto, a imprensa noticiou (cf. Correio da Manhã, 1-08-2017) que o Instituto de Medicina Legal concluiu, com base na autópsia dos corpos, que a temperatura no local atingiu os 900 graus centígrados, razão pela qual muitos dos corpos das vítimas da estrada nacional 236-1 se incendiaram sem sequer terem contacto com as chamas. A minha estimativa grosseira (e puramente dedutiva) de 1200 graus, feita com base nas informações então disponíveis, estava, pois, errada, por excesso. Apesar desse erro factual, creio, porém, que a linha de raciocínio subjacente se mostrou correcta, sugerindo uma ordem de grandeza (temperatura) aproximada para o calor infernal do ar que vitimou esses infelizes concidadãos.