Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

07 agosto, 2021

 (Temas 2, 3 e 4) 


“Esquerda” e “Direita” trocadas por miúdos

do ponto de vista da democracia (2ª parte) —

 Um excurso sobre o poder explícito 

José Catarino Soares

 

8. Um excurso sobre o poder explícito

Antes de entrarmos no assunto de saber como assegurar a igualdade em relação ao poder político e ao poder económico, de modo a instituir uma sociedade autónoma e justa, convém que façamos um excurso sobre o poder, porque não é possível abordar aquele assunto sem ter as ideias bem claras sobre estoutro.

8.1. Poder e poder explícito

Comecemos por definir poder como sendo a capacidade, de uma instância qualquer (pessoal ou impessoal), de levar alguém (ou algumas pessoas) a fazer (ou a não fazer) o que, entregue a si mesma, essa pessoa (ou essas pessoas) não faria necessariamente (ou talvez tivesse feito), e poder explícito como sendo uma forma de poder dotada de instâncias capazes de emitir explicitamente injunções ratificáveis [7].

Assim sendo, fica claro que o poder político – o poder governativo (eufemisticamente chamado “poder executivo” por Montesquieu [8] e pelos constitucionalistas e politólogos que se lhe seguiram), o poder legislativo e o poder jurisdicional – é uma das formas canónicas do poder explícito.

Capa da edição original (1748) do livro De l’Esprit des Lois de Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, conhecido como Montesquieu. Tradução portuguesa: Do Espírito das LeisLisboa: Edições 70, 2011.

Há e haverá sempre poder explícito (e em particular poder político) em todas as sociedades, a menos que alguma delas consiga transformar os seus membros em autómatos capazes de realizar unanimemente, sem discussão e sem objecções, tudo o que é preciso fazer ou deixar de fazer para que a sociedade se reproduza e prospere — desiderato impossível de realizar. Há e haverá sempre poder explícito (e em particular poder político) em todas as sociedades pela boa e simples razão de que ele é necessário para realizar objectivos, obras, acções e trabalhos que, pela sua natureza e dimensão, ultrapassam o indivíduo e que se tornam, por conseguinte objecto de discussão e actividade colectivas, ou seja, políticas [9].

8.2. Poder político e Estado

É preciso dissipar duas confusões muito enraizadas a este respeito. A primeira é a identificação do poder político com o Estado. As sociedades sem Estado não são sociedades sem poder (por muito entranhado e escondido que esteja nos usos e costumes tradicionais) e sem poder explícito, em particular poder político.


1885. Iroqueses em Montreal, Québec, Canadá. Litografia.

Um exemplo claro é o da gens iroquesa, descrita por Lewis Henry Morgan e aqui resumida por Friedrich Engels:

A gens tem um conselho, a assembleia democrática dos seus membros adultos, homens e mulheres, todos com o mesmo direito de voto. Esse conselho elege e depõe o sachem [o chefe para os tempos de paz] e o chefe militar, tal como os demais “guardiães da fé”; decide o preço do sangue (Wergeld) ou a vingança pelo assassinato de um membro da gens; e adopta os estrangeiros. Em síntese: [o conselho] é o poder soberano da gens.

Tais são as atribuições de uma típica gens indígena. Os seus membros são todos indivíduos livres, cada um obrigado a defender a liberdade dos outros; têm todos os mesmos direitos pessoais; nem os sachens nem os chefes militares pretendem ter qualquer espécie de preeminência; formam, no conjunto, uma colectividade fraternal, unida pelos vínculos de sangue. Liberdade, igualdade e fraternidade, esses são, embora nunca formulados, os princípios cardiais da gens, e esta última é por sua vez a unidade de todo um sistema social, a base da sociedade indígena [10].

Poder político não é um sinónimo de Estado, termo e noção que devemos reservar para uma forma específica de dominação do homem pelo homem, cuja criação histórica é datável e localizável —Vale do Nilo no norte de África (Egipto faraónico), Médio Oriente ou Sudoeste Asiático (Mesopotâmia), Europa (Grécia Minóica e Micénica), Leste Asiático (China imperial), Mesoamérica pré-Colombiana (civilização Maia).

O Estado é uma instância separada da sociedade, separada do colectivo dos cidadãos (ou dos súbditos nas monarquias) no caso das sociedades capitalistas contemporâneas como a nossa, e instituída de maneira a assegurar constantemente essa separação. Mais concretamente, o Estado é um aparelho burocrático – uma organização hierárquica de poder explícito com uma delimitação de áreas de competência no seu seio – detentor do monopólio da posse e do uso legal das armas de guerra e detentor do monopólio do uso legal da coerção e da violência física.

Neste sentido, a polis democrática ateniense dos séculos V e IV a.C. não era um Estado, uma vez que o poder político explícito – o poder governativo, o poder legislativo e o poder jurisdicional – pertencia isonomicamente a todo o corpo de cidadãos, como veremos mais pormenorizadamente na 3ª parte deste ensaio.

Além disso – e este é um aspecto central para se entender a diferença entre poder político e Estado – os cidadãos asseguravam também, individual e colectivamente, a defesa militar da polis, quer cumprindo o serviço militar obrigatório (dos 18 aos 19 anos, inclusive) como hoplitas, cavaleiros, archeiros ou marinheiros, quer, quando terminavam de fazer esse serviço, ficando como membros da reserva militar permanente (dos 20 aos 58 anos, inclusive) [11]. Anualmente, os efebos (os mancebos que faziam 18 anos) prestavam um juramento solene nos seguintes termos:

Não desonrarei as armas sagradas [de que sou portador]; não abandonarei o meu camarada de combate; lutarei para defender as coisas sagradas e profanas e transmitirei [aos meus compatriotas mais jovens] uma pátria não diminuída, mas aumentada e mais forte, em toda a medida das minhas forças e com a ajuda de todos. Obedecerei aos comandantes, às leis instituídas e às leis que vierem a ser instituídas; se alguém quiser derrubá-las, opor-me-ei com todas as minhas forças e com a ajuda de todos. Venerarei os cultos dos meus pais [12].


Pintura num vaso representando um Hoplita (= soldado de infantaria) ateniense totalmente equipado: lança (spear), espada (sword), escudo (shield), capacete (helmet), couraça peitoral (breastplate or cuirass), grevas (greaves), túnica (tunic), capa (cloak) e malga (bowl). Este vaso encontra-se no Museu Britânico, em Londres.

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8.3. Estado e auto-instituição da sociedade

A segunda confusão é dupla. Consiste em confundir o âmbito político do imaginário social instituinte – o âmbito específico do poder político, sempre presente em todas as sociedades – com o Estado, para conferir ao Estado, acto contínuo, o poder demiúrgico de agente central da instituição do conjunto da sociedade.

Assiste-se, desde os anos 1990 do século XX, a uma tentativa persistente e insidiosa de englobar no Estado (enganosamente identificado com o poder político) todos os aspectos da auto-instituição da sociedade: linguagem, reprodução sexuada, sexualidade, educação, “etnicidade”, dieta, vestuário, arte, religião, ciência, desporto, etc.

Para este movimento tudo seria político, tudo relevaria de decisões políticas, um ideário que Charles Maurras (1868-1952) e Pol Pot (1925-1998), por exemplo, não deixariam de aplaudir com entusiasmo. Maurras nunca chegou à situação de conseguir realizar as suas ideias, mas Pol Pot teve essa oportunidade durante dois breves períodos: de 1971 a 1975 e de 1975 a1979. Por isso, vale a pena passar em revista, ainda que muito rapidamente, as medidas que tomou, sobretudo no período 1975-1979, para subsumir no Estado tudo o que releva da auto-instituição da sociedade e que lhe é, por conseguinte, intrinsecamente estranho.

8.4. O Ano Zero do regime de Pol Pot: um pesadelo tornado realidade

Em 17 de Abril de 1975, o exército do Quemer Vermelho (o nome dado às tropas do partido de Pol Pot pelo príncipe Sihanouk, então rei do Camboja, e que mais tarde se generalizou) entrou em Phnom Penh, a capital do Camboja. Pouco depois de tomar a cidade, o Quemer Vermelho anunciou mentirosamente que os seus habitantes teriam de evacuar a cidade para escapar a um bombardeamento americano.

Dados os constantes e maciços bombardeamentos americanos no Camboja ordenados pelo Presidente Richard Nixon – que, só nos primeiros nove meses de 1973, despejaram sobre o Camboja 100.000 toneladas de bombas, o equivalente a 5 bombas atómicas com uma potência destrutiva idêntica à da que foi lançada em Hiroshima, causando cerca de 600.000 mortos [13] – o anúncio afigurou-se muito plausível. Por isso, foi tomado a sério e acatado por muitos habitantes da cidade, tanto mais que o Quemer Vermelho anunciou mentirosamente que a população seria afastada apenas 2 ou 3 quilómetros para fora da cidade e que poderia retornar à cidade três dias depois. “Não precisam de fechar à chave as portas das vossas casas, nem se preocuparem com ladrões, porque o Quemer Vermelho ficará a policiar as ruas”, era a mensagem tranquilizadora das tropas do Quemer Vermelho à população citadina.

Na verdade, a evacuação de Pnom-Pehn tinha sido planeada como uma acção definitiva destinada a reinstalar os habitantes das cidades nas zonas rurais para se tornarem trabalhadores rurais. Essa era uma das condições de realização da ideia-mestra de Pol Pot que consistia em remodelar todo o Camboja à imagem do campesinato pobre, cujas vidas rurais, isoladas e autossuficientes do ponto de vista alimentar, eram vistas como dignas de serem emuladas por toda a população Quemer [14].

A evacuação de Pnom-Phen envolveu a remoção de mais de 2,5 milhões de pessoas da cidade (incluindo milhares de pessoas hospitalizadas), que foi feita em menos de uma semana, com muito pouca preparação prévia. Uma grande parte das pessoas teve de se deslocar a pé, originando uma marcha contínua de centenas de milhares de pessoas e veículos. O Quemer Vermelho montou postos de controlo ao longo das estradas, fora da cidade, onde os seus soldados revistavam os moradores e confiscavam muitos dos seus pertences, considerados supérfluos nas novas actividades que os esperavam. A marcha de evacuação para as zonas rurais ocorreu no mês mais quente do ano; nalguns casos durou semanas até alcançar os lugares de destino e estima-se que cerca de 20.000 pessoas tenham morrido ao longo do percurso, sobretudo as que estavam anteriormente hospitalizadas [15].

O Quemer Vermelho organizou evacuações semelhantes nas cidades de Batdambang, Kampong Cham, Siem Reap, Kampong Thom, entre outras. Essas evacuações foram a expressão mais evidente do “Ano Zero”.  Após a tomada de Pnom Penh, Pol Pot e a Angka (uma palavra Quemer que significa «a organização» e que Pol Pot e a direcção do Quemer Vermelho usavam para se autodenominarem sibilinamente) decretaram o “Ano Zero”. A ideia subjacente ao “Ano Zero” era de que a cultura e as tradições de um país – neste caso o Camboja – deveriam ser completamente destruídas ou descartadas e uma nova cultura revolucionária deveria substituí-la, começando na estaca-zero. Nesse sentido, toda a história de uma nação ou de um povo antes do “Ano Zero” seria em grande parte considerada irrelevante, porque idealmente seria purgada dos seus elementos nocivos e substituída a partir do zero [16].

Em conformidade com a ideia do “Ano Zero”, a população do Camboja que tinha sido evacuada das cidades e forçada a instalar-se nas herdades polpotianas das zonas rurais – ou seja, quase 1/3 da população do país – foi então classificada em três classes: membros plenos, candidatos e depositados. Os membros plenos, a maioria dos quais eram camponeses pobres ou remediados, tinham direito a rações completas, podiam ocupar cargos políticos nas herdades polpotianas, ingressar no exército e pedir a sua admissão no partido governante chefiado por Pol Pot. Os candidatos tinham direito a rações menores e podiam ocupar posições administrativas de baixo escalão. Os depositados eram os últimos na lista dos racionamentos, mas os primeiros na lista dos inimigos (khmang) condenados à morte, e não tinham direitos políticos. Eram eles que ouviam dizer-lhes a frase que muitos sobreviventes se recordam com um arrepio de medo: «não ganhamos nada em manter-vos, não perdemos nada em perder-vos».

Inicialmente, as primeiras duas categorias eram exclusivamente constituídas pela chamada “velha gente” ou “gente de cepa” que tinha vivido nas chamadas “zonas libertadas” antes da vitória de Pol Pot e da sua Angka, ao passo que os deportados das cidades, apelidados de “nova gente”, se tornaram todos depositados. O estatuto socioeconómico anterior também desempenhava um papel na classificação. Médicos e engenheiros eram agrupados com outros depositados e raramente ou nunca eram consultados.

Muitos deles, aliás, eram presos como inimigos (khmang) e sumariamente assassinados. Em muitos casos, antigos camponeses ricos eram classificados juntamente com a “nova gente” na categoria dos depositados. Em teoria, estes últimos podiam ascender a candidatos e, uma vez candidatos, podiam ascender a membros plenos se mostrassem suficiente zelo pela causa polpotiana.

Pol Pot (1º ministro do Camboja de 26 de Outubro de 1976 a 7 de Janeiro de 1979). Em Março de 1978, uma equipa da televisão jugoslava (ainda havia Jugoslávia nessa altura) fez uma reportagem de 10 dias no Camboja, visitando herdades e fábricas e fazendo uma entrevista a Pol Pot. Um dos membros da equipa contou, mais tarde, que Pol Pot tinha sido a única pessoa que tinha visto a sorrir no Camboja.

Na prática, a nova divisão tripartida foi introduzida de forma desigual – nalgumas áreas já existia em força em 1975, noutras áreas só entrou em vigor em 1977 ou mais tarde – e a dicotomia básica continuou a ser entre a gente de cepa e a nova gente. A diferença de estatuto entre estes dois grupos era imensa, especialmente no primeiro ano do regime do Quemer Vermelho. A gente de cepa podia cultivar os seus próprios alimentos para complementar as rações comunitárias e, se transgredisse a disciplina revolucionária, sofria castigos ligeiros ou era-lhe dado o benefício da dúvida. A nova gente, pelo contrário, era sempre suspeita do pior [17].

Para cumprir a sua agenda, os dirigentes do Quemer Vermelho acreditavam que tinham de desmontar a sociedade cambojana, e dissolver todas as diferenças entre as pessoas. Antes mesmo do “Ano Zero”, em 1972, a Angka do Quemer Vermelho tinha já dado ordem para toda a população que habitava nos territórios sob o seu controlo militar passasse a vestir-se com uma indumentária-uniforme que consistia em vestes pretas, kramas (lenços multifuncionais) de cores vermelho-e-branco e sandálias feitas de borracha de pneus de automóvel. Esta indumentária era propagandeada como sendo semelhante ao vestuário dos camponeses pobres de etnia Quemer e passou a ser usada pelo próprio Pol Pot.


Indumentária-uniforme do Quemer Vermelho: de mulher (à esquerda) e de homem (à direita).

As outras medidas incluiam: a obrigatoriedade de tomar as refeições em cantinas comunitárias das herdades e a colectivização dos utensílios de cozinha para impedir as pessoas de cozinharem e comerem juntas em grupos familiares; a organização de campos especiais para crianças e unidades de trabalho para adolescentes e jovens adultos; a adopção de longas jornadas (10h-12h) de trabalho árduo nos arrozais (na estação das chuvas), a desbravar florestas, a construir diques e noutros projectos de irrigação (na estação sêca) sem assistência médica, sem maquinaria e sem ferramentas adequadas; comida racionada; reuniões nocturnas de endoutrinamento e propaganda e poucas horas para dormir.

Os estrangeiros foram proibidos de entrar no país e os cambojanos proibidos de sair do país. E como uma espécie de prenúncio de um plano genocida que a Angka tornaria público em 1978, a minoria vietnamita, cerca de 100 mil pessoas, foi expulsa em massa. Mas não é tudo. Em Janeiro de 1976, um porta-voz do regime polpotiano – que passara a autodesignar-se, por antífrase, como Campucheia Democrático (CD) – anunciou que «dois mil anos de história tinham chegado ao fim». O que o porta-voz queria dizer era, muito provavelmente, que nada mais seria como dantes, pelo menos se a realidade se conformasse aos seus desejos, visto que:

As religiões (principalmente o Budismo) foram abolidas, juntamente com as festas, com cerimónias tais como os casamentos tradicionais, com o calendário usual e com todas as actividades culturais. A Angka substituiu-as por um calendário revolucionário de celebrações, com um dia de descanso por cada 10 dias de trabalho. Para além de fazer as pessoas trabalharem literalmente até caírem mortas de cansaço, a principal obsessão da Angka era a de caçar os “inimigos da revolução”; afirmando que traidores e espiões andavam a espiar o país. Uma rede de prisões foi desenvolvida ao nível distrital e por vezes ao nível concelhio, onde cidadãos inocentes eram encarcerados, torturados e mortos às centenas de milhares [18].

Angka proclamava que tinha acabado com a exploração, mas era um regime explorador de cabo a rabo. No início de 1976, tanto para a “gente de cepa” como para a “nova gente”, Camboja tinha-se tornado numa gigantesca herdade-prisão [19].

A tentativa insana de subsumir a auto-instituição da sociedade no poder de Estado é um caso extremo de hubris [#]. A hubris atingiu o seu clímax num discurso de Pol Pot radiodifundido em Maio de 1978, em Pnom Phen, onde se fazia a apologia do genocídio étnico. Eis a passagem mais explícita desse discurso:

Em termos de números, cada um de nós [cambojanos] deve matar 30 Vietnamitas…. Quer dizer, perdemos 1 contra 30. Precisamos, por conseguinte, de 2 milhões de soldados para 60 milhões de Vietnamitas. De facto, isso [2 milhões de soldados do Camboja] deverá ser mais do que suficiente [para combater os Vietnamitas], porque o Vietnam só tem 50 milhões de habitantes. Nós não precisamos de 8 milhões de pessoas [ou seja, a população estimada do Camboja à época]. Nós só precisamos de 2 milhões de soldados para esmagar os 50 milhões de Vietnamitas e ainda nos sobrariam 6 milhões de pessoas. Precisamos de formular a nossa linha de combate desta maneira para conseguirmos vencer […] Precisamos absolutamente de concretizar a palavra de ordem de 1 contra 30 [20].

8.5. Limites do poder explícito

A uma sociedade instituída de maneira a garantir a igualdade dos cidadãos em relação ao poder explícito (embora, na ocorrência, limitado à sua vertente política) – ou seja, uma sociedade instituída de maneira a garantir a isonomia política em todas as suas “iso-declinações” (v. secções 9.2 e 9.3 na 3ª parte deste ensaio) – os gregos dos séculos V e IV a.C. deram o nome de democracia (Gr. δῆμος [demos ou “povo”] e κράτος [kratos ou “poder”], o poder do povo).

Este nome tem sido vilipendiado, deturpado, conspurcado e desfigurado, ao longo das eras, por todos os seus inimigos — e eles são legião, em particular nos últimos dois séculos. O chamado Campucheia Democrático” de Pol Pot é apenas uma das mais recentes e mais atrozes maneiras de conspurcar e desfigurar a palavra democracia, procurando torná-la o signo de tudo o que é o seu contrário. Mas essa não é uma razão para a abandonar aos bichos, bem pelo contrário. Veremos, na próxima secção, que há boas razões para sustentar que a democracia só se instituirá se, e quando, conseguir assegurar a igualdade dos cidadãos em relação não apenas ao poder político, mas também ao poder económico — ou seja, não apenas a uma, mas às duas vertentes do poder explícito.

É preciso insistir, no entanto, para obviar a interpretações estapafúrdias, demagógicas e obscurantistas, que a democracia não se compromete a fazer com que toda a gente corra a maratona em menos de 2h e 15m, toque à perfeição o Concerto para piano para a mão esquerda de Maurice Ravel, escreva em 12 meses cinco artigos notáveis que ponham em causa muitas e respeitáveis teorias físicas, como o fez Albert Einstein em 1905, tenha um brio profissional e um altruísmo semelhantes aos de Jacinto Convit, pinte tão espantosamente como Pieter Bruegel (o Velho), Claude Monet, Pablo Picasso ou René Magritte, ou narre tão bem como Homero, Liev Tolstói, Mark Twain ou J.R.R. Tolkien.

Jacinto Covit (1913-2014), médico, cientista, professor e humanista venezuelano que procurou incansavelmente, durante a sua longa vida (morreu aos 100 anos), descobrir uma vacina contra a lepra, uma vacina contra o cancro da mama e uma vacina contra a leishmaniasis. Foi bem-sucedido com a vacina contra a leishmaniasis, mas não com as vacinas contra a lepra e contra o cancro da mama, embora tenha contribuído para muitos progressos no tratamento destas doenças e nos cuidados paliativos aos seus doentes. Nunca cobrou um cêntimo às inúmeras pessoas que tratou.

A igualdade política e a igualdade económica que a democracia poderá  instituir entre os seres humanos também não significa que a democracia se compromete a fazer com que os homens que mudaram de sexo (admitindo, só para argumentar, que isso seja possível) possam competir no desporto feminino e nos concursos de beleza feminina em pé de igualdade com as mulheres, ou a estabelecer a igualdade “racial” nos efectivos de qualquer grupo ocupacional ou profissional [21], ou a fazer com que todos os alunos tenham notas iguais, ou sequer a fazer com que todos os alunos passem para o ano de escolaridade seguinte todos os anos, sejam quais forem as suas notas.

Fica claro que não há poder explícito algum, incluindo o poder democrático, que consiga garantir qualquer das coisas mencionadas no terceiro parágrafo desta secção.

Não há também poder explícito algum, incluindo o poder democrático, que consiga garantir qualquer das coisas mencionadas no quarto parágrafo desta secção, a não ser de modo fictício, pelo embuste e pela trapaça. Numa palavra, a democracia não consegue assegurar a igualdade (a identidade contingente) entre os seres humanos em âmbitos muito numerosos e diversos, porque não há nem pode haver igualdade nesses âmbitos.

Fabrizio Petrillo é um atleta italiano de 47 anos, com uma deficiência visual (a doença de Stargardt), que ganhou 11 títulos nacionais em Jogos Paralímpicos entre 2016 e 2018. Em 2019, decidiu fazer um tratamento hormonal (mas nenhuma operação cirúrgica) para se parecer com uma mulher. Desde essa altura, faz-se tratar por Valentina Petrillo. Concorreu como mulher ao campeonato italiano de Paralímpicos, em Setembro de 2020, e obteve três medalhas de ouro (nos 100m, 200m e 400m), o que lhe valeu ser seleccionado para a equipa feminina italiana que concorrerá aos Jogos Paralímpicos de Tóquio, em Agosto de 2021. A Federação Italiana de Atletismo fez uma petição para impedir que isso aconteça, alegando que um homem não pode concorrer desportivamente como mulher, ainda que alegue ser “transgénero ou transsexual [22]

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N.B. Este ensaio está dividido em 8 partes, sendo esta a segunda:

1ª parte. Os critérios e os conceitos principais

(2ª parte. Um excurso sobre o poder explícito)

3ª parte. A igualdade em relação ao poder político

4ª parte. A desigualdade em relação ao poder explícito

5ª parte. A igualdade em relação ao poder económico

6ª parte. O poder explícito numa oligarquia electiva e liberal

7ª parte. O poder explícito numa democracia

8ª parte. A esquerda inexistente

que podem ser encontradas, por esta ordem, no Arquivo do Blogue, 2021, Agosto,

no fim da coluna da direita do blogue.

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Notas

[7] Cf. Cornelius Castoriadis, “Pouvoir, politique, autonomie,” (em Le monde morcelée, Paris : Éditions du Seuil : 1990). Por “injunção ratificável” deve entender-se uma imposição susceptível de ser aprovada/consentida ou reprovada/repudiada mediante exame e debate a priori ou a posteriori.  

[8] «Há em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das pessoas e o poder executivo daquelas coisas que dependem do direito civil. […] Chamar-se-á a este último poder, o poder de julgar, e ao outro simplesmente o poder executivo do Estado.» Charles de Secondat de Montesquieu, De L’Esprit des Lois, Livre XI, Chapitre V, De l’objet des États divers (cito uma edição electrónica realizada a partir  do livro de Montesquieu, De l’esprit des loix (1758). Texte de 1758, dernier état du texte revu par Montesquieu. L’orthographe a été modernisé et la ponctuation légèrement, mais non la graphie. Édition établie par Laurent Versini, Paris, Éditions Gallimard, 1995. Source: http://www.uqac.uquebec.ca/zone30), p. 112. Minha tradução. Montesquieu escreve “puissance exécutrice”, que eu traduzi por “poder executivo”. Também poderia ter traduzido por “poder executor”, o que, todavia, seria inusitado em Português e porventura interpretado como o poder de um carrasco.

[9] Esta opinião é directamente oposta à de Friedrich Engels. «O primeiro acto», escreve Engels no seu Anti-Dühring, «em que o Estado actua realmente como representante de toda a sociedade – a expropriação dos meios de produção em nome da sociedade – é, ao mesmo tempo, o seu último acto independente como Estado. A intervenção de um poder de Estado nas relações sociais tornar-se-á supérflua num domínio após outro, e extinguir-se-á então por si mesma. O governo das pessoas dá lugar à administração das coisas e à direcção de processos de produção. O Estado não é “abolido”, deperece.» Há, aqui, em minha opinião, uma confusão entre poder político e Estado, que é tanto mais estranha quanto Engels escreveu um livro pioneiro sobre a origem do Estado nas sociedades pós-gentílicas (A origem da família, da propriedade privada e do Estado [1884], Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A., 1984). Uma sociedade autónoma é incompatível com o Estado, mas uma sociedade autónoma não é uma sociedade sem poder explícito. Voltarei a este assunto no texto principal deste ensaio. Nesta nota quero apenas salientar que a ideia de que «o governo das pessoas» dará lugar, um dia, «à administração das coisas e à direcção de processos de produção» pressupõe que desaparecerão, nessa altura, não só os crimes, mas também as opiniões diametralmente opostas, os litígios e os conflitos entre as pessoas sobre tudo o que diz respeito ao funcionamento da sociedade, inclusive sobre a administração das coisas e a direcção de processos de produção. É pressupor que as pessoas se tornarão todas (e na pior das hipóteses) igualmente sábias e sagazes, para não dizer santas. É uma pressuposição infundada.

[10] F. Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p.97, com base em Lewis Morgan, Ancient Society, London:MacMillan & Company, 1877.

[11] Os leninistas, os estalinistas, os maoístas e as feministas identitárias apressar-se-ão a objectar que a polis ateniense democrática exercia um poder e mesmo um poder explícito em relação aos escravos, aos metecos (os estrangeiros domiciliados na cidade de Atenas) e às mulheres atenienses (três grupos que estavam excluídos da cidadania), e que “a polis era, por conseguinte, um Estado”.  Essa é também a posição da grande maioria dos historiadores que apelidam a polis democrática ateniense de “cidade-Estado”. Mas a objecção não colhe. As suas premissas são verdadeiras, mas a conclusão é errada e constitui um bom exemplo da confusão entre poder explícito e Estado. Vejamos porquê com a ajuda de alguns exemplos. Em Portugal, as mulheres portuguesas só adquiriram o direito de voto universal em eleições em 1975. Até 1975, e ao contrário dos homens – que, desde 1945 podiam votar mesmo se fossem analfabetos – as mulheres só tinham acesso às urnas de voto se tivessem o equivalente ao curso de liceu (ou seja, o ensino secundário completo) ou se fossem “chefes de família” (por viuvez ou porque o marido estava ausente), desde que a sua “idoneidade moral” fosse devidamente atestada (por órgãos do Estado). E mesmo quando tinham o curso do liceu, as mulheres perdiam o direito de voto se fossem casadas com um marido com capacidade eleitoral. Até 1969, as esposas não podiam viajar para o estrangeiro sem autorização do marido. Até 1975, a lei permitia que os maridos pudessem proibir as suas mulheres de trabalhar fora de casa, rescindir o contrato de trabalho das suas mulheres se estas exercessem actividades remuneradas sem terem o seu consentimento, e abrirem a correspondência dirigida às suas mulheres. A linha de raciocínio dos objectores levar-nos-ia a afirmar que os homens adultos portugueses de todas as classes sociais “eram Estado” perante as mulheres adultas portuguesas (incluído as suas mães, irmãs, esposas e namoradas) até 1975, e que os maridos portugueses de todas as classes sociais “eram Estado” perante as suas esposas até 1969, nuns casos, e até 1975 noutros casos. E a mesma linha de raciocínio levar-nos-ia a afirmar que os adultos (tanto homens como mulheres) “são Estado” perante os seus filhos menores até aos 18 anos. Trata-se de afirmações que são, todas elas, falsas. Nem o poder, nem o poder explícito, nem mesmo a dominação tomam necessariamente a forma de Estado, tal como este termo-e-conceito foi caracterizado no texto principal.  

[12] Cf. Mogens H. Hansen, La démocratie athénienne à l’époque de Démosthène (Paris. Éditions Tallandier, 2009), p.130. Sobre os hoplitas, vide Ahmed Ghanem Hafez,  The Social Position of the Hoplites in Classical Athens: A Historical Study”, Athens Journal of History, Vol. X, No. Y, 2014; David M. Pritchard. “The Armed Forces.” In The Cambridge Companion to Ancient Athens, eds. J. Neils and D. Rogers, Cambridge (Cambridge University Press), 2021.

[13] David Chandler, Beneath a beautiful piece of cloth — a horrific social experiment in Cambodia (Forum för Levande Historia. 2009), p.19. Vale a pena notar a este propósito que Taylor Owen e Ben Kiernan, num artigo intitulado “Bombs Over Cambodia” (The Walrus, October 2006, 62), afirmam que os EUA lançaram 2 milhões de toneladas de bombas no Camboja entre 1965 e 1972, mais toneladas de bombas do que as lançadas pelos EUA durante a 2ª Guerra Mundial.

[14] David Chandler, op.cit., p.19.

[15] David Chandler, op.cit., p. 20. P.S. Fiquei hoje (26-10-2021) a saber, lendo um velho artigo de João Bernardo que desconhecia (O dinheiro: da reificação das relações sociais ao fetichismo do dinheiro, Revista de Economia Política, vol.III, nº 1, Janeiro-Março 1983), o seguinte. Em 1936, o grupo anarquista catalão Reclus publica no jornal Tierra Y Libertad uma proposta: eliminar metade de Barcelona, sendo a população correspondente absorvida pelo campo. Acabar com as compras de alimentos. «Temos aqui, quarenta anos antes, o programa de Pol Pot», escreve João Bernardo.

[16] Depois da abolição da monarquia francesa em 20 de Setembro de 1792, a Assembleia Nacional francesa instituiu um novo calendário e declarou essa data como sendo o início do “Ano Um” do novo calendário. Pol Pot e alguns dos seus principais colaboradores na direcção do Quemer Vermelho foram educados no ensino superior em França, onde se impregnaram de cultura francesa. São vários os historiadores que afirmam que a ideia do “Ano Zero” lhes veio do “Ano Um” do calendário revolucionário francês. Se assim foi, como é plausível que tenha sido, é necessário acrescentar que a relação entre o “Ano Um” e o “Ano Zero” é da mesma ordem da que poderá existir, por exemplo, entre uma “sala de concertos” e “uma “sala de chuto”.

[17] Philip Short, Pol Pot. The history of a nightmare (London: John Murray [Publishers], 2005), p. 292.

[18] Henri Locard, “State Violence in Democratic Kampuchea (1975–1979) and Retribution (1979 –2004)”, European Review of History Revue européenne d’Histoire Vol. 12, No. 1, March 2005, p. 123. Minha tradução.

[19] David Chandler, op.cit., p.23. Minha tradução.

[#] hubris é uma mescla de duas componentes: (i) a transgressão de limites que não foram previamente definidos e (ii) a ilusão de que podemos deliberar sozinhos e tomar a decisão certa para o bem comum sem avaliar as consequências dos nossos actos, ou seja, uma mistura letal de arrogância e douta ignorância.

[20] Citado em Short, op.cit, p. 387. Minha tradução.

[21] A “igualdade (e a desigualdade) racial”, a “equidade racial”, a “justiça (e a injustiça) racial” são temas centrais da chamada “teoria crítica racial” ou “teoria crítica da raça” (TCR). O seu pressuposto é o de existe algo a que os seus proponentes chamam “identidade racial” ou “consciência racial”. Eis um exemplo ilustrativo desse tipo de raciocínio, enunciado por um dos mais conhecidos representantes da TCR: «Uma perspectiva mais radical [i.e. a da teoria crítica da raça, N.E.] enxerga a raça como um problema a ser superado. Para este ponto de vista, a consciência da raça é necessária. Essa consciência é fundamental para se chegar à mudança racial. […] As vinte e quatro pessoas que compareceram à reunião fundacional da TCR foram, por definição, os indivíduos que definiram um tipo de consciência racial como elemento necessário à promoção e ao entendimento da posição contestada daqueles que estão no poder em relação às minorias racializadas em uma posição de subjugação.» (Tukutu Zuberi, “Teoria Crítica da Raça e da sociedade nos Estados Unidos”, Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, 2016, p.479). Todavia, como não existem “raças” na espécie humana (Homo sapiens), não se vê como é que é poderia adquirir “consciência racial” a não ser sob o modo do racialismo (a doutrina de que a humanidade está dividida em “raças” distintas) ou do racismo (a doutrina de que há uma hierarquia entre as “raças”, umas sendo superiores e outras inferiores). Assim sendo, a “identidade racial”, a “consciência racial”, a “igualdade racial”, a “equidade racial” e a “justiça racial” são falácias informais de carácter racialista. A TCR é, de uma ponta a outra, um tecido racialista de falácias informais.

[22] O regulamento da Comité Olímpico Internacional de 2015 estabeleceu que um homem que se auto-identifique como mulher, ou (na terminologia dos que reivindicam essa identificação) como “transgénero”, pode participar numa prova de corridas de atletismo feminino desde que apresente um nível de testosterona inferior a 10 nM/L [10 nanomoles por litro de sangue] durante 12 meses antes da competição, sem necessidade de realizar cirurgia de remoção de testículos. (A testosterona é uma hormona masculina responsável por características como crescimento da barba, o engrossamento da voz e o aumento da massa muscular, além de estimular a produção de espermatozoides).  Graças ao seu tratamento hormonal, Petrillo apresenta níveis de testosterona abaixo dos 2 nM/L e, por conseguinte, preenche os requisitos para competir nas provas de atletismo feminino. É o Comité Olímpico Internacional a fazer o papel do demiurgo de Platão (no Timeu) com a mais completa desfaçatez! É também, e pela mesma razão, um exemplo acabado daquele sentimento turvo que os gregos da era democrática denominaram hubris