Tema 3
Justiça Poética
Numa nota de
um livro que estou a escrever, escrevi o seguinte:
Afirmamos que o inglês se converteu em língua franca, mas não neutral, da alta finança, dos
negócios, da diplomacia, da tecnologia e até, infelizmente, da ciência à escala
mundial, pelas seguintes razões. O latim alcançou uma posição semelhante nos
séculos XVI e XVII, mas muito mais limitada, visto que se confinava à diplomacia
e às disciplinas cognoscitivas (ciência inclusive) no chamado mundo ocidental e
só se manteve nessa posição até aos inícios do século XIX. Era, porém, uma
língua neutral, tanto do ponto de vista psicológico como do ponto de vista
sociológico, visto que não conferia privilégios especiais a quem a tivesse como
língua materna. Nessa altura, o latim já tinha cessado há muito de ser a língua
materna de quem quer que fosse. Era, como se costuma dizer, uma língua «morta».
Além disso, o latim alcandorou-se a essa posição peculiar de língua franca
internacional precisamente na altura em que as línguas vernáculas da Europa
conquistavam o direito de ombrearem com ela em todos os domínios. Em Portugal,
esse processo inicia-se muito cedo, no fim do século 13, com o rei D. Dinis, e
está já bem consolidado no fim do século XVI. O uso do latim como
língua franca internacional implicava, portanto, um esforço comum de
aprendizagem a todos os seus utentes. Não é o caso do inglês, que é a língua
materna de centenas de milhões de pessoas, que assim se vêm dispensadas de
aprender outras línguas se quiserem fazer-se entender por pessoas e povos com
outros idiomas. Embora imensurável nos seus múltiplos efeitos, é difícil
imaginar maior privilégio de casta do que este nos dias que correm.
Agora, o
economista António Bagão Félix, no seu comentário sobre o Brexit, chama a atenção para um pormenor (que é, de facto, um ‘pormaior’)
ligado a este acontecimento:
Uma curiosidade: a língua inglesa, língua franca de hoje,
vai deixar de estar representada na UE (haverá a relativa excepção da Irlanda
cujo verdadeiro idioma é o gaélico)! E esta hein? (28 menos 1 (R.U.) não é o mesmo que 27.
Público. 24.06.2016)
Eu vejo nisto
um caso auspicioso de justiça poética. Os britânicos (e muito em particular os
ingleses) recuperaram a soberania do seu parlamento em Westminster. Em
contrapartida, perderam uma parte considerável do privilégio de casta que lhes conferia o
“direito” de não terem de aprender línguas estrangeiras para se fazerem entender
quando saiem da sua ilha e atravessam o canal da Mancha, continuando a
comportar-se quase como se estivessem em casa.