Temas 2 e 3
“Schäuble arrependido”
tem ar de ser uma notícia forjada
Será? Verifiquemos
José Manuel Catarino Soares
Os jornais e
os jornalistas queixam-se amiúde da WWW e das “redes sociais” que nela se tecem e destecem, acusando-as de serem fontes
inesgotáveis de notícias forjadas
(Ingl. “fake news”). A WWW e as “redes
sociais” têm, porém, as costas muito largas, porque servem de veículo tanto
para a difusão de notícias importantes e opiniões válidas, mas dessabidas ou censuradas
pela imprensa tradicional e pelos demais meios tradicionais de comunicação social (radiodifusão, radiotelevisão, telex) como para a difusão de notícias forjadas e de milhões de terabytes de lixo opinativo. O problema não está, portanto, na WWW e nas “redes sociais”, mas em quem
as utiliza, no modo como as utiliza e nos propósitos visados pela sua
utilização.
Seja como
for, a imprensa tradicional também é, amiúde, a fonte de notícias forjadas. O
modo como foi relatado uma recente entrevista de Wolfgang Schäuble é um bom
exemplo disso.
Schäuble é actualmente
presidente do parlamento alemão (Bundestag).
Anteriormente, foi ministro das finanças da Alemanha, de 2005 a 2017, nos governos da senhora Angela
Merkel. O seu desempenho dessa função valeu-lhe o cognome de “Tesoureiro da
Europa”, justificado pelo facto de nenhuma medida financeira do Eurogrupo de
algum relevo poder ser aprovada sem a sua benção. Foi entrevistado em 22 de
Março pelo Financial Times. Eis
alguns ecos dessa entrevista na imprensa portuguesa.
O ex-ministro alemão Schäuble e a austeridade: «Penso que podíamos ter feito as coisas de forma diferente.» Foto: Getty Images
|
Foto e legenda publicadas pelo Observador, 23 Março de 2019
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Numa entrevista ao Financial Times, e a propósito da
austeridade, o antigo ministro alemão afirmou que «se
poderia ter feito as coisas de forma diferente.» (Jornal Económico, 24
Março de 2019)
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Schäuble e a austeridade:
«Hoje, penso que podíamos ter feito as coisas de
forma diferente.» (Buzztimes, 25 Março de 2019)
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O que aconteceu foi que o
então ministro das Finanças da Alemanha se tornou num homem odiado no sul da
Europa, em particular na Grécia. «Fico triste com
isso, porque tive um papel nisso», admite. Mas sem admitir erros — «eu sou um teimoso!» — apenas confessando refletir
retrospetivamente sobre o que fez: «Penso sobre
como poderíamos ter feito diferente.» (Diário de Notícias, 23
Março de 2019)
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Eis o que Schäuble realmente
disse em entrevista ao jornalista Guy Chazan do Financial Times, de 22 de
Março de 2019, intitulada “I’m pretty stubborn”
[Sou muito casmurro]:
But
what of the accusation that he didn’t care enough about the suffering of the
southern Europeans? Austerity divided the EU and spawned a real animus against
Schäuble. I ask him how that makes him feel now. «Well I’m sad, because I
played a part in all of that», he says, wistfully. «And I think about how we could have done it differently.»
Tradução:
Mas o que
dizer da acusação que ele não se preocupou suficientemente com o sofrimento
dos Europeus do Sul? A austeridade dividiu a União Europeia e gerou uma
animosidade real contra Schäuble. Perguntei-lhe como é que isso o fazia sentir
agora. «Bem, estou triste, porque
desempenhei um papel em tudo isso», diz ele, melancolicamente. «E penso sobre se poderíamos ter feito de modo diferente.»
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Moral da história.
O único jornal português dos quatro citados que relatou com fidelidade o essencial
do que Schäuble disse na sua entrevista ao Financial
Times foi o Diário de Notícias.
Os outros puseram na sua boca uma declaração que ele não fez — e que está muito
provavelmente nos antípodas do que ele pensa.
Na verdade, parece óbvio
que a resposta de Schäuble à pergunta retórica que diz fazer por vezes a si
próprio (“Poderíamos ter feito as coisas de modo
diferente?”) — se ele for coerente, como sempre mostrou
ser, com o seu posicionamento político durante todo o tempo em que foi ministro
das finanças do governo alemão, e com o seu pensamento sobre o Eurogrupo e a União
Europeia [ver, no arquivo deste blogue, Schäuble volta a atacar, 7 de Novembro de 2016] — só poderá ser a seguinte:
“A minha conclusão, sempre que faço esta pergunta a mim próprio, é sempre a mesma: obviamente que
não podíamos.” E não podiam, porque Schäuble representava, com
implacável determinação, os interesses das grandes firmas transnacionais (financeiras [bancos, gestão de investimentos, seguros], industriais, comerciais, de serviços) que operam no espaço europeu, em particular as que têm a sua casa-mãe (administração central) na Alemanha. Para
esses interesses, a política dita de “austeridade” na Irlanda e nos países da Europa do Sul (Espanha, Portugal, Grécia e Chipre), não era uma opção. Era a política
de que precisavam para garantir a recuperação rápida dos seus investimentos com lucros acrescidos.
Neste particular, Schäuble respondeu exactamente como o apparatchik do FMI, Poul Thompsen (director europeu do Fundo Monetário Internacional e o rosto mais conhecido desta organização quando a troika chegou a Portugal para impor o seu plano de “ajustamento”, em 2011), entrevistado alguns dias depois de Schäuble pelo Público.
Poul Thompsen, director europeu do FMI |
Sérgio
Aníbal [jornalista do Público]:
Wolfgang Schäuble, ex-ministro das Finanças da
Alemanha, disse recentemente, em relação à crise da zona euro e aos países
periféricos, que “muitas vezes pensa se
poderia ter feito alguma coisa diferente.” Também pensa nisso às vezes?
Poul
Thompsen: Temos de pensar. Temos
sempre de pensar o que é que poderíamos ter feito diferente.
Lembremo-nos: em 7 de Setembro de 2012,
Passos Coelho, então 1º Ministro do governo PSD-CDS, anunciou a intenção do seu
governo em reduzir a contribuição do patronato para a TSU [taxa social
única] em 5,75 %, passando-a para 18 %, e aumentar a contribuição dos
trabalhadores assalariados (tanto os do sector privado como os da função
pública) para 18 %, ou seja, uma subida de 7 pontos percentuais. A medida foi
justificada com o argumento de que se inseria no plano de “ajustamento” negociado com a troika. Nos dias seguintes, o ministro
da Solidariedade e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, do CDS, admitiu que
a «redistribuição» das taxas sociais iria «ajudar à sustentabilidade» da Segurança Social
e, simultaneamente, «embaratecer» o custo do trabalho em Portugal. Foram as gigantescas manifestações de 15
de Setembro de 2012 que forçaram o cancelamento deste ataque sem
precedentes aos direitos dos trabalhadores.
É natural, por isso, que
Thompsen fosse interrogado a este respeito.
Sérgio
Aníbal: Com
a TSU, essa união
política [entre os partidos (PS, PSD e CDS) que negociaram e assinaram o “memorando
de ajustamento” com a troika; união que Thompsen considerou ser a chave do êxito da sua aplicação]
saiu muito abalada e cresceu
o sentimento de que havia um excesso de austeridade. Não houve um excesso de
austeridade no programa que acabou por ser contraproducente?
Poul
Thompsen: Não
penso que houvesse uma forma de evitar a prioridade dada ao ajustamento
orçamental. Portugal tinha um grande défice orçamental, não tão grande como na
Grécia é certo, mas não vejo como é que poderíamos ter restaurado a confiança
tanto nos mercados, como junto dos parceiros europeus, para que estes pudessem
proporcionar o financiamento de larga escala que era preciso. (Público,
31 de Março de 2019)
Schäuble e Thompsen são dois bons exemplos contemporâneos daquela estirpe de homens que deu azo à expressão “chorar lágrimas de crocodilo.”
Schäuble e Thompsen são dois bons exemplos contemporâneos daquela estirpe de homens que deu azo à expressão “chorar lágrimas de crocodilo.”
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