Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

01 abril, 2019


Temas 2 e 3

“Schäuble arrependido”
tem ar de ser uma notícia forjada
Será? Verifiquemos

José Manuel Catarino Soares

Os jornais e os jornalistas queixam-se amiúde da WWW e das “redes sociais” que nela se tecem e destecem, acusando-as de serem fontes inesgotáveis de notícias forjadas (Ingl. “fake news”). A WWW e as “redes sociais” têm, porém, as costas muito largas, porque servem de veículo tanto para a difusão de notícias importantes e opiniões válidas, mas dessabidas ou censuradas pela imprensa tradicional e pelos demais meios tradicionais de comunicação social (radiodifusão, radiotelevisão, telex) como para a difusão de notícias forjadas e de milhões de terabytes de lixo opinativo. O problema não está, portanto, na WWW e nas “redes sociais”, mas em quem as utiliza, no modo como as utiliza e nos propósitos visados pela sua utilização.  

Seja como for, a imprensa tradicional também é, amiúde, a fonte de notícias forjadas. O modo como foi relatado uma recente entrevista de Wolfgang Schäuble é um bom exemplo disso.

Schäuble é actualmente presidente do parlamento alemão (Bundestag). Anteriormente, foi ministro das finanças da Alemanha,  de 2005 a 2017, nos governos da senhora Angela Merkel. O seu desempenho dessa função valeu-lhe o cognome de “Tesoureiro da Europa”, justificado pelo facto de nenhuma medida financeira do Eurogrupo de algum relevo poder ser aprovada sem a sua benção. Foi entrevistado em 22 de Março pelo Financial Times. Eis alguns ecos dessa entrevista na imprensa portuguesa.

O ex-ministro alemão Schäuble e a austeridade: «Penso que podíamos ter feito as coisas de forma diferente.» Foto: Getty Images

Foto e legenda publicadas pelo Observador, 23 Março de 2019
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Numa entrevista ao Financial Times, e a propósito da austeridade, o antigo ministro alemão afirmou que «se poderia ter feito as coisas de forma diferente.» (Jornal Económico, 24 Março de 2019)
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Schäuble e a austeridade: «Hoje, penso que podíamos ter feito as coisas de forma diferente.» (Buzztimes, 25 Março de 2019)
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O que aconteceu foi que o então ministro das Finanças da Alemanha se tornou num homem odiado no sul da Europa, em particular na Grécia. «Fico triste com isso, porque tive um papel nisso», admite. Mas sem admitir erros — «eu sou um teimoso!» — apenas confessando refletir retrospetivamente sobre o que fez: «Penso sobre como poderíamos ter feito diferente.» (Diário de Notícias, 23 Março de 2019)
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Eis o que Schäuble realmente disse em entrevista ao jornalista Guy Chazan do Financial Times, de 22 de Março de 2019, intitulada “I’m pretty stubborn” [Sou muito casmurro]:

But what of the accusation that he didn’t care enough about the suffering of the southern Europeans? Austerity divided the EU and spawned a real animus against Schäuble. I ask him how that makes him feel now. «Well I’m sad, because I played a part in all of that», he says, wistfully. «And I think about how we could have done it differently

Tradução: Mas o que dizer da acusação que ele não se preocupou suficientemente com o sofrimento dos Europeus do Sul? A austeridade dividiu a União Europeia e gerou uma animosidade real contra Schäuble. Perguntei-lhe como é que isso o fazia sentir agora. «Bem, estou triste, porque desempenhei um papel em tudo isso», diz ele, melancolicamente. «E penso sobre se poderíamos ter feito de modo diferente
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Moral da história. O único jornal português dos quatro citados que relatou com fidelidade o essencial do que Schäuble disse na sua entrevista ao Financial Times foi o Diário de Notícias. Os outros puseram na sua boca uma declaração que ele não fez — e que está muito provavelmente nos antípodas do que ele pensa.

Na verdade, parece óbvio que a resposta de Schäuble à pergunta retórica que diz fazer por vezes a si próprio (“Poderíamos ter feito as coisas de modo diferente?”) — se ele for coerente, como sempre mostrou ser, com o seu posicionamento político durante todo o tempo em que foi ministro das finanças do governo alemão, e com o seu pensamento sobre o Eurogrupo e a União Europeia [ver, no arquivo deste blogue, Schäuble volta a atacar, 7 de Novembro de 2016] — só poderá ser a seguinte: “A minha conclusão, sempre que faço esta pergunta a mim próprio, é sempre a mesma: obviamente que não podíamos.” E não podiam, porque Schäuble representava, com implacável determinação, os interesses das grandes firmas transnacionais (financeiras [bancos, gestão de investimentos, seguros], industriais, comerciais, de serviços) que operam no espaço europeu, em particular as que têm a sua casa-mãe (administração central) na Alemanha. Para esses interesses, a política dita de “austeridade” na Irlanda e nos países da Europa do Sul (Espanha, Portugal, Grécia e Chipre), não era uma opção. Era a política de que precisavam para garantir a recuperação rápida dos seus investimentos com lucros acrescidos.


Relações comerciais Alemanha-Portugal: 2016-2017 

Em 2016, as cerca de 400 empresas alemãs que operam em Portugal registaram um volume de negócios próximo dos 10 mil milhões de euros. Quase metade desse valor resultou de vendas para o estrangeiro. Fonte: Dinheiro Vivo, 30-06-2018 

Neste particular, Schäuble respondeu exactamente como o apparatchik do FMI, Poul Thompsen (director europeu do Fundo Monetário Internacional e o rosto mais conhecido desta organização quando a troika chegou a Portugal para impor o seu plano de ajustamento, em 2011), entrevistado alguns dias depois de Schäuble pelo Público.

Poul Thompsen, director europeu do FMI 

Sérgio Aníbal [jornalista do Público]: Wolfgang Schäuble, ex-ministro das Finanças da Alemanha, disse recentemente, em relação à crise da zona euro e aos países periféricos, que “muitas vezes pensa se poderia ter feito alguma coisa diferente.” Também pensa nisso às vezes?

Poul Thompsen: Temos de pensar. Temos sempre de pensar o que é que poderíamos ter feito diferente.

Lembremo-nos: em 7 de Setembro de 2012, Passos Coelho, então 1º Ministro do governo PSD-CDS, anunciou a intenção do seu governo em reduzir  a contribuição do patronato para a TSU [taxa social única] em 5,75 %, passando-a para 18 %, e aumentar a contribuição dos trabalhadores assalariados (tanto os do sector privado como os da função pública) para 18 %, ou seja, uma subida de 7 pontos percentuais. A medida foi justificada com o argumento de que se inseria no plano de “ajustamento” negociado com a troika. Nos dias seguintes, o ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, do CDS, admitiu que a «redistribuição» das taxas sociais iria «ajudar à sustentabilidade» da Segurança Social e, simultaneamente, «embaratecer» o custo do trabalho em Portugal. Foram as gigantescas manifestações de 15 de Setembro de 2012 que forçaram o cancelamento deste ataque sem precedentes aos direitos dos trabalhadores.

É natural, por isso, que Thompsen fosse interrogado a este respeito.

Sérgio Aníbal: Com a TSU, essa união política [entre os partidos (PS, PSD e CDS) que negociaram e assinaram o “memorando de ajustamento” com a troika; união que Thompsen considerou ser a chave do êxito da sua aplicação] saiu muito abalada e cresceu o sentimento de que havia um excesso de austeridade. Não houve um excesso de austeridade no programa que acabou por ser contraproducente?

Uma imagem que ficou para história, a 15 de Setembro de 2012, quando a população trabalhadora saiu à rua em protesto contra as mexidas na TSU (que previam a sua redução para o patronato de 23,75% para 18% e o seu aumento para os trabalhadores de 11% para 18%). Uma bela rapariga tenta convencer um agente da polícia de choque a abandonar a sua atitude belicosa. FOTO: JOSÉ MANUEL RIBEIRO / REUTERS

Poul Thompsen: Não penso que houvesse uma forma de evitar a prioridade dada ao ajustamento orçamental. Portugal tinha um grande défice orçamental, não tão grande como na Grécia é certo, mas não vejo como é que poderíamos ter restaurado a confiança tanto nos mercados, como junto dos parceiros europeus, para que estes pudessem proporcionar o financiamento de larga escala que era preciso. (Público, 31 de Março de 2019)

Schäuble e Thompsen são dois bons exemplos contemporâneos daquela estirpe de homens que deu azo à expressão chorar lágrimas de crocodilo. 

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