Esta é 7ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto).
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O “estado da nação”
em tempos de pandemia Covid-19
José Catarino Soares
«A atitude dominante no universo é o conservadorismo e a
subserviência» disse, uma vez, Rui Costa, poeta português precocemente falecido
(1972-2012).
Eu diria “conformismo”, em vez de “conservadorismo”, e acrescentaria, “em matéria política”. No entanto, a veracidade desse aforismo, em qualquer das suas duas versões, é muito duvidosa, porque se fosse levado à letra não haveria, por exemplo, progresso científico e tecnológico, como tem havido, nem teria havido, por exemplo, o golpe de Estado militar do 25 de Abril de 1974 e a revolução popular que se lhe seguiu [1].
1. O debate do estado da nação e a
pandemia Covid-19
Seja como for, qualquer delas se ajusta como uma luva ao
debate que teve lugar na Assembleia da República sobre «o estado da nação» na sexta-feira, dia 24 de Julho de 2020. Houve
dois aspectos que me chamaram a atenção nesse debate (que vi do princípio ao
fim) pela sua imponente ausência: um que me surpreendeu, o outro não.
O aspecto que me surpreendeu foi a ausência quase completa, por parte de todos os partidos parlamentares, sem excepção, de referências à pandemia da Covid-19 enquanto tal, enquanto doença viral altamente contagiosa, em franca expansão a nível mundial. Na data em que comecei a redigir este texto, 10 de Agosto, a pandemia já tinha ultrapassado as 20 milhões de pessoas infectadas, das quais 737.103 (3,6%) já faleceram e quase um terço (6 milhões, 306 mil e 61) permanecem ainda infectadas (fonte: Worldometer). E continua a progredir, sem tratamento específico e sem vacina segura e eficaz (pelo menos, por enquanto) e sem que nenhum país, portanto, esteja ao abrigo de um recrudescimento, mesmo aqueles que alcançaram grandes êxitos no seu estancamento, como a China, a Coreia do Sul e a Nova Zelândia.
Talvez esse silêncio sobre a situação pandémica em
Portugal no debate sobre o «estado da nação» —
poder-se-ia pensar — se justifique por ela não inspirar cuidados de maior. Mas
não é verdade. Continuamos com uma elevada taxa de óbitos e uma elevada taxa de
novos infectados em Portugal, se tomarmos por termo de comparação o conjunto
dos 30 países da Área Económica Europeia mais o Reino Unido, como mostra a
tabela seguinte. Portugal só se distingue pela positiva na taxa de testagem por
100 mil habitantes, que é bem superior à do termo de comparação, à data de
referência, 2 de Agosto, seis dias depois do debate sobre «o estado da nação».
Países |
Taxa de novos
casos de infecção durante 14 dias por 100 mil habitantes |
Taxa de óbitos
durante 14 dias por 1 milhão de habitantes |
Taxa de testagem
por 100 mil habitantes |
Percentagem de
testes positivos |
Data de
referência |
2 Agosto 2020 |
2 Agosto 2020 |
Semana 30 |
Semana 30 |
Portugal |
28,4 |
5,2 |
923, 3 |
1,6 |
AEE e RU Total |
21,5 |
4,1 |
710,4 |
1,4 |
No entanto, quem tivesse chegado de Marte e ouvisse falar
os ministros e os deputados dos diferentes partidos parlamentares que
intervieram nesse debate julgaria que a pandemia já teria sido vencida, ou que
ainda persiste, mas tão-somente em estado residual. Durante o debate, a
pandemia da Covid-19 só foi invocada nos seus efeitos económicos e sociais, nunca
(que eu me lembre) nos seus efeitos sanitários sobre a população, sobre o
estado de saúde, as expectativas de vida (e os riscos de morte) das pessoas
como seres vivos, não como meros agentes económicos ou unidades estatísticas.
Mais surpreendente ainda: o efeito revelador mais
importante da pandemia no plano económico, nunca foi sequer aflorado. Todavia,
não é preciso ter olhar de águia ou grande sagacidade para relevar esse efeito.
Ele está à vista de todos. O presidente da Argentina, Alberto Fernandez, não se
esqueceu dele no seu discurso de 15 de Julho de 2020:
Com a pandemia descobrimos que o mundo tem um sistema económico muito frágil, tão frágil que um vírus, imperceptível à vista humana, foi capaz de desmoronar impérios económicos (Público, 29 de Julho de 2020).
O que o presidente da Argentina não explicou, nem poderia
ter explicado — por lhe faltarem de todo as ferramentas teóricas para o fazer
ou a vontade política de as utilizar —, foi a causa da fragilidade desse
sistema económico que o fez soçobrar tão rápida e fragorosamente perante o vírus SARS-CoV-2.
Toda a gente viu como esse sistema, cujos ideólogos não
se cansam de bradar aos quatro ventos que só funciona bem quando não é tolhido
pela acção castradora do “Estado Social” — oximoro que usam para designar (i) quer
a legislação moderadora dos seus insaciáveis apetites económicos (limitação da
jornada de trabalho a 8 horas diárias e 40 horas semanais, salário mínimo
nacional, período anual de férias pagas com a duração mínima de 22 dias úteis,
etc.) que não conseguiram evitar que fosse aprovada, quer (ii) os serviços
públicos universais (serviço nacional de saúde, escolaridade obrigatória dos 6
aos 18 anos, segurança social, universidades e politécnicos da rede pública,
etc.) que não conseguiram evitar que fossem instituídos, quer (iii) a parte do
erário público destinada a financiar (i) e (ii) — se viu, de um momento para o outro, na
necessidade de implorar que esse mesmo “Estado Social” interviesse para o
salvar. E foi assim que toda a gente pôde ver, espectáculo bem instrutivo, que
se não fossem os biliões de euros, dólares, ienes, libras esterlinas, francos
suíços, coroas norueguesas, etc. do erário público injectados nas firmas de
todos os tamanhos e a legislação aprovada à pressa e em catadupas para as
manter vivas, ainda que em estado comatoso, o sistema económico mundial vigente
a que se referia o presidente da Argentina teria ido desta para melhor.
De 2 de Março até 15 de Agosto foram aprovados 88 diplomas legais (decretos-lei, leis, resoluções do Conselho de Ministros, despachos, portarias, declarações de rectificação, recomendações e decretos presidenciais) motivados pela pandemia da Covid-19 e com impacto directo nas firmas e nos trabalhadores, o que representa quase um documento legal a cada dois dias, nestes cinco meses e meio, sobretudo desde que a OMS declarou, em 11 de Março, estarmos perante uma pandemia (A Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho [DGERT] fez uma compilação dessa legislação que pode ser consultada aqui: https://www.dgert.gov.pt/covid-19/legislacao-relacionada-com-a-covid-19).
É sabido que o governo actual tem de entregar à Comissão
Europeia em Bruxelas um «plano de recuperação e
resiliência», como condição de acesso ao Next Generation EU, o fundo
de recuperação de 850 mil milhões de euros que a União Europeia aprovou como
medida de resposta aos efeitos económicos da pandemia de Covid-19.
O economista José Castro Caldas observou a este
propósito:
Incapaz de responder ao encargo por não dispor
de capacidade de planeamento e estar absorvido em respostas de emergência, [o governo] decidiu subcontratar a tarefa, ou pelo menos parte dela,
desta vez não a uma das consultoras do costume, mas a uma pessoa. A escolha
recaiu sobre António Costa Silva, engenheiro, gestor e professor universitário.
É preciso um plano ? [para aceder aos 15,3 mil milhões de euros prometidos a
Portugal no quadro do Next Generation, a que se somarão os 29,8 mil milhões
de euros do Quadro Financeiro Plurianual e os 12,8 mil milhões de euros
não executados do programa Portugal 2020, num total de subvenções de
57,9 mil milhões de euros transferíveis entre 2021 e 2029] Faça-se o Plano (J. Castro Caldas, A Grande Ilusão.
Le Monde Diplomatique- Edição Portuguesa, Agosto 2020).
O plano apresentado por António Costa Silva com o título
«Visão Estratégica
para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030» não surge,
evidentemente, em consequência de uma conversão colectiva à ideia de
planeamento, por efeito da Covid-19. Como observa J. Castro Caldas no artigo já
citado
Acontece tão-só porque o Estado [entenda-se, o erário público e o “Estado Social”, com especial destaque para o Serviço Nacional de Saúde e a Segurança Social] foi posto pela pandemia em função de máquina de suporte de vida da “economia de mercado” [um eufemismo para “economia capitalista”] e porque essa máquina, não se podendo programar a si mesma a partir dos débeis sinais emitidos pelos mercados comatosos, precisa de sequências de instruções vindas “de fora”.
Billion (americano) = mil milhões; Grants = subvenções; Loans = empréstimos |
O aspecto do debate sobre o «estado da nação» que não me surpreendeu — por ser corriqueiro, mas nem por isso menos revelador — foi precisamente a ausência completa, por parte de todos os partidos parlamentares que se consideram, ou que são considerados, como sendo de “esquerda” (PS, BE, PCP, PEV [não incluo o PAN porque esse partido diz que não é nem de “esquerda” nem de “direita”]), de qualquer explicação dessa fragilidade do sistema económico. Quem tenha escutado o que disseram os deputados desses partidos durante o debate sobre o «estado da nação», não terá conseguido sequer detectar qualquer menção à existência e à natureza desse sistema económico cuja fragilidade o novo coronavírus pôs a nu tão impiedosamente, mas da qual NÃO é a causa.
2. A causa da fragilidade do sistema
económico
A causa é a profunda crise sistémica — isto é, global e
multidimensional (socioeconómica, socioambiental, sociobiótica, sociocultural,
sociopolítica) — que afecta o modo capitalista de produção e apropriação de
bens e serviços; o sistema económico a que se referiu, sem o nomear, o
presidente da Argentina e que reina, supremo, embora com diferentes graus de
entranhamento, em todos os países do planeta.
As manifestações mais salientes dessa crise sistémica nas
últimas três décadas são as seguintes:
1) a manutenção de um elevado nível de desemprego [2]; 2) o aumento da precaridade do emprego; 3) a progressão da massa salarial a um nível inferior à produtividade do trabalho; 4) o declínio da parte dos salários no valor acrescentado; 5) o aumento constante da idade legal para a reforma; 6) a desigualdade dos salários (em paridades do poder de compra) entre países; 7) o aumento da desigualdade de rendimentos (em paridades de poder de compra) entre as pessoas mais ricas e as mais pobres tanto nos países industrial e tecnologicamente mais desenvolvidos como nos menos desenvolvidos; 8) a lenta mas persistente diminuição das taxas de crescimento económico do produto interno bruto (PIB) [3] em todos os países capitalistas mais desenvolvidos (EUA, Canadá, UE, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong-Kong [hoje parte da China]) desde há mais de meio século [4], 9) alimentada pela desaceleração da progressão da produtividade do trabalho e da denominada “produtividade total (ou global) dos factores” ou “produtividade multi-factorial” (que mede a influência da tecnologia e dos factores socioinstitucionais) ; 10) a escalada das dívidas públicas nos EUA, no Canadá, nos países da Zona do Euro, no Reino Unido, no Japão, na China, na Argentina, no Brasil, na África do Sul, a partir da crise de 2008; 11) acompanhada pelo enriquecimento mirabolante das camadas superiores (os 10% e o 1% dos membros mais ricos) das classes dominantes; 12) as deslocações e migrações massivas entre continentes e dentro de um mesmo continente de populações desesperadas, em fuga da guerra, do occídio e da fome; 13) o aumento da ameaça de um holocausto nuclear da humanidade [5];
14) a redução massiva da biodiversidade (e.g., deflorestação das florestas tropicais, introdução incontrolada de espécies exóticas e organismos geneticamente modificados); 15) a degradação acelerada do meio-ambiente (e.g., poluição da atmosfera e dos cursos e reservas subterrâneas de água doce, gases com efeito de estufa, acidificação e plastificação dos oceanos, fracturamento hidráulico do substrato rochoso para extrair gás de xisto e petróleo de xisto).
Outrora (da segunda metade do século 19 até ao fim da 1ª guerra mundial), a alternativa capaz de substituir o modo capitalista de produção e superar os seus malefícios insanáveis — sem abdicar, todavia, dos progressos científicos, tecnológicos e culturais alcançados durante a sua vigência — era resumida pelas palavras “socialismo” e “comunismo”.
Estas eram entendidas, pela positiva, como sinónimos de «movimento cooperativo, especialmente o movimento das fábricas
cooperativas, (…) desenvolvido em dimensões nacionais e, por conseguinte,
promovido por meios nacionais » (Karl Marx, Alocução Inaugural à Associação
Internacional dos Trabalhadores, 1864) de modo a instituir, em todos os
países industrialmente desenvolvidos, « o sistema republicano e beneficente da associação
dos produtores livres e iguais» (Karl Marx,
1866, Instruções
para os Delegados do Conselho Geral Provisório [ao 1º Congresso da
Associação Internacional de Trabalhadores, em Genebra]. O realce em itálico é
do original). [6]
Na
sua terceira alocução à Associação Internacional dos Trabalhadores, em Maio de
1871, sobre o significado da Comuna de Paris, Karl Marx voltou ao assunto nos
mesmos termos.
A Comuna, exclamam eles, tenciona abolir a propriedade, base de toda a
civilização!
Sim, cavalheiros, [Marx dirige-se aqui,
retoricamente, aos representantes das classes dominantes] a Comuna tencionava abolir aquela propriedade de classe
que faz do trabalho de muitos a riqueza de poucos. Ela aspirava à expropriação
dos expropriadores. Queria tornar a propriedade individual numa realidade, transformando
os meios de produção, a terra e o capital, que são principalmente, hoje em dia,
meios de escravização e exploração do trabalho, em meros instrumentos de
trabalho associado e livre.
Mas isso é o comunismo, o comunismo “impossível”!
Marx
imagina que seria esta a resposta escandalizada que lhe dariam os seus
interlocutores. A sua réplica é, como se verá, uma reiteração das posições de
1864 e de 1866 citadas mais acima e das quais nunca se afastou até ao fim da
sua vida (1883).
Se não cabe à produção cooperativa manter-se como uma impostura e uma
armadilha; se lhe cabe substituir o sistema capitalista; se cabe às sociedades cooperativas
unidas regular a produção nacional segundo um plano comum, colocando-a assim sob
o seu próprio controlo e pondo fim à constante anarquia e às convulsões
periódicas que são a fatalidade da
produção capitalista — que seria isto, cavalheiros, senão o comunismo, o
comunismo “possível” ? [7]
Porém, a partir do fim da 1ª guerra mundial (1918), as
palavras “comunismo” e “socialismo” foram apropriadas para um uso espúrio. Alguns
passaram a usá-las para denominar um Eldorado situado num futuro longínquo que
só se alcançaria ao cabo de prolongados e porfiados esforços para domesticar o
sistema capitalista através de doses cavalares de parlamentarismo e punções cirúrgicas
nos lucros e nos privilégios do grande capital.
Outros passaram a usá-las para denominar duas fases distintas, uma inferior e outra superior, de uma configuração socioinstitucional muito diferente da que Marx sugeriu (e nalguns aspectos diametralmente oposta à sua) para as formações sociais concretas capazes de superar o modo capitalista de produção. Designemo-la por dirigismo tecnoburocrático de Estado, porque merece ter um nome e uma caracterização [8] :
—Dirigismo tecnoburocrático de Estado: propriedade estatal dos meios colectivos de produção [9] + planificação e regulação burocráticas da produção e apropriação de bens e serviços (incluindo os serviços colectivos e universais de saúde, segurança social, escolaridade, água canalizada, saneamento básico, electricidade doméstica, transportes públicos, telecomunicações, cultura [desporto, arte, ciência, tecnologia]) + ditadura perpétua de um partido único e omnipotente. Isto significa que o partido governante controla todas as instituições do poder político (legislativo e executivo) e do aparelho de Estado (judiciário, polícias e Forças Armadas), assim como todas as instituições da administração pública, todos ou a maioria dos organismos económicos (tais como fábricas, herdades, laboratórios de engenharia) e todas as instituições que prestam serviços colectivos, tais como infantários, escolas, hospitais, universidades, etc.
Dois dos partidos portugueses com assento parlamentar, PS
e PCP, estão historicamente associados, respectivamente, às duas perspectivas
supramencionadas. À primeira vista, isso poderá parecer incompatível com os nomes
desses partidos, que invocam o “socialismo” e o “comunismo”. E é, de facto,
incompatível. Convém lembrar, a este propósito, que “socialismo” e “comunismo”
não significam duas fases distintas do desenvolvimento de uma sociedade
pós-capitalista liberta da exploração e da opressão do homem pelo homem. São,
isso sim, dois nomes distintos, mas intermutáveis, da configuração
socioinstitucional de uma tal sociedade [10].
Feito este esclarecimento, compreender-se-á que não há,
de facto, contradição no que afirmei nos parágrafos anteriores. Hoje em dia, o
significado original dessas duas palavras só sobrevive, nesses partidos, à
maneira dos fósseis de uma era remota num folhelho de xisto.
Na prática, todos os partidos de esquerda com assento parlamentar
(PS, BE, PCP, PEV) actuam, hoje em dia, como se o modo capitalista de produção
fosse um horizonte inultrapassável e como se as suas tarefas se esgotassem nas
medidas para mitigar os malefícios do capitalismo. O seu programa comum poderia
ser resumido num lema: «para um capitalismo de rosto
humano».
Se os dirigentes desses partidos fossem convidados a
descrever o tipo de sociedade que deveria suceder à sociedade capitalista, os
do PCP, pelo menos, diriam, presumo, algo como isto:
um sistema semelhante, grosso modo, ao
da ex-URSS, ou da China, ou da Coreia do Norte, ou de Cuba, ou do Vietnam, ou
do Laos — países que foram ou são governados por partidos irmãos do PCP [11]. Grosso
modo porque, para nós, há leis gerais de revolução e de
construção socialista, mas não há nem pode haver “modelos” universais de
revolução e de construção socialista. Os caminhos da revolução e da edificação socialista
são diversificados e seguem etapas diferenciadas de país para país, pelo que a
edificação em Portugal de uma sociedade socialista não será uma cópia de
qualquer outra experiência alheia.
Daqui podemos deduzir que seria, apesar de todas as qualificações, um sistema como aquele que foi descrito em Dirigismo tecnoburocrático de Estado. Ora, essa descrição caracteriza, sucinta mas correctamente, os traços principais do sistema económico e político vigente na ex-URSS, traços esses que encontramos também — mais ou menos atenuados nalguns aspectos, mais ou menos acentuados noutros aspectos — na China, na Coreia do Norte, em Cuba, no Vietnam e no Laos.
Quanto aos outros partidos de esquerda, nada saberiam dizer de concreto, porque se contentam com esta ou aquela
versão ordoliberal do capitalismo, a saber:
— “Estado de direito” (leia-se: primado (ou império) da leis protectoras da propriedade privada dos meios colectivos de produção de bens e serviços e dos cinco mercados — o mercado dos bens de capital, o mercado de trabalho, o mercado dos bens de consumo, o mercado da terra e o mercado das matérias-primas — como princípio jurídico basilar) + regime oligárquico electivo (parlamentar, presidencial ou semi-presidencial) [12] + “economia social de mercado” [leia-se: propriedade privada dos meios colectivos de produção promovida e regulada pelo poder político (legislativo e governamental) e defendida pelo aparelho judiciário e repressivo de Estado] + um mínimo de “Estado social” [leia-se: segurança social pública, escola pública, serviço nacional público de saúde].
No caso do PS, trata-se de um facto bem conhecido. No
caso do BE, é um facto menos conhecido, mas nem por isso menos real. Em 2 de
Setembro de 2019, Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, declarou
à Rádio Observador que «o BE apresenta um programa
— já o disse antes e às vezes as pessoas ficam um pouco chocadas, mas acho que
é importante dizê-lo — que é, na sua essência, um programa social-democrata, no
sentido em que corrige os excessos [do capitalismo] com o controlo da economia, com o Estado social e com
mecanismos de igualdade» (https://www.youtube. com/watch?reload=9&v=Vk7vcbGkhVI) — o trecho citado começa no minuto 4.55 e termina
no minuto 5.13).
Há mais de um século que este programa de “correcção dos
excessos” do capitalismo tem vindo a ser praticado, em particular pela
social-democracia [13], sem que o capitalismo
alguma vez tenha renunciado a “exceder-se”. Na verdade, não o pode fazer sem se
negar a si próprio e se autodestruir.
O objectivo de toda e qualquer firma capitalista é
conseguir fazer lucros elevados para serem distribuídos ao seu ou seus
proprietários privados (o[s] detentor[es] do capital) e bater a concorrência.
Se o não conseguir fazer, ainda que seja à custa de baixos salários e más
condições de trabalho dos seus trabalhadores, abre falência, o que acarreta o
despedimento colectivo dos mesmos. Para poder pagar altos salários e propiciar
boas condições de trabalho aos seus trabalhadores (como sucede, por exemplo,
com a Google, a Apple, a BP,
a ExxonMobil, a Bayer ou a Cargill)
— pelo menos àquela parte deles que
trabalha no país onde se situa a sua sede e que ocupa os postos de trabalho que
exigem qualificações mais elevadas ou que acarretam maior melindre na prestação
de contas aos accionistas — garantindo ao mesmo tempo grandes lucros aos seus
accionistas, terá, regra geral, de
(i) obter extensas benesses fiscais,
(ii) beneficiar de um regime de monopólio ou oligopólio (assente
em patentes blindadas, ou em apoios financeiros e incentivos fiscais [14]) ou de um regime
de monopsónio ou oligopsónio (assente no acesso privilegiado ou exclusivo a
fontes de matérias primas),
(iii) recorrer à fabricação por contrato em países onde a
força de trabalho seja muito mais barata e tenha muito menos direitos sociais,
(iv) procurar eliminar a concorrência — a mesma “livre concorrência”que os economistas apologéticos nunca se cansam de apresentar como sendo a arma secreta da longevidade e da alegada superioridade do capitalismo.
Não há forma de escapar a estes antagonismos internos que
são parte integrante do funcionamento do modo capitalista de produção e
apropriação.
Por isso, as classes capitalistas e as suas potestades
políticas vêem-se compelidas volta e meia, volens nolens, a tentar
recuperar com a mão direita o que foram obrigadas a ceder com a mão esquerda (direitos sociais e políticos,
segurança social pública, escola pública, serviço nacional público de saúde,
aumentos de salários, etc.) num momento de grande aflição (como em Portugal nos
anos 1974-1976, o período revolucionário) ou num momento de grande poderio e prosperidade
(como nos EUA nos anos 1948-1952, o período do plano Marshall). O que obriga,
por sua vez, as classes trabalhadoras a travarem lutas prolongadas e esgotantes
para defenderem ou recuperarem as suas conquistas socioeconómicas,
socioculturais e sociopolíticas — uma situação reminiscente do mito de Sísifo.
É assim que as coisas se passam há mais de 100 anos e, se
tudo dependesse da vontade das classes capitalistas e dos seus agentes políticos,
não haveria razão nenhuma para pensar que pudessem passar-se de maneira
diferente nos próximos 100 anos. Mas tudo indica que não há sociedade
ecologicamente sustentável nem civilização que resistam a mais 100 anos de
capitalismo.
Sem dúvida, um sistema semelhante ao da ex-URSS a partir de 1928 elimina a propriedade privada dos meios colectivos de produção (e, por conseguinte, a classe capitalista). Não o faz, porém — como a experiência desse país mostrou à saciedade durante 63 anos — com vista a colocar esses meios sob a custódia e o controlo de gestão dos produtores/trabalhadores organizados em empresas cooperativas e noutras formas igualitárias de associação laboral não lucrativa, capazes de regular a produção segundo um plano comum democraticamente elaborado, aprovado e implementado, mas para os entregar nas mãos de um novo tipo de oligarquia dirigente toda-poderosa. Destarte, a subordinação e a opressão dos produtores/trabalhadores continua sob outras formas, frequentemente tão ou mais tirânicas e opressivas do que as que vigoravam anteriormente. Qualificar um tal sistema de “socialista” é equivalente a chamar “pousada” a uma penitenciária.
4. Vislumbres do modo socialista de produção
Um sistema
socialista encarado como base económica de uma sociedade do século XXI integralmente democrática, é um sistema de empresas cooperativas, fundações públicas comunitárias
(e.g. no caso dos hospitais do serviço nacional de saúde e das universidades e politécnicos) ou
pancomunitárias (e.g., no caso dos Correios e Telecomunicações e dos
Caminhos-de-Ferro) e de outras formas associativas sem fins lucrativos de cidadãos-produtores
e consumidores livres e iguais (em direitos e deveres), coordenadas umas com as
outras por meio de um plano global comum de produção e provisão de bens e
serviços.
4.1. Plebiscitos electrónicos
Os objectivos e prioridades desse plano global serão periodicamente
(por exemplo, anualmente ou bianualmente) objecto de propostas livremente
apresentadas por grupos de cidadãos tirados à sorte (e.g., 5 grupos) que
trabalhem independentemente uns dos outros, numa primeira fase, e que se reúnam
em conjunto para debater os pontos de convergência e de divergência, numa
segunda fase. Depois de devidamente compilados e quantificados em grandes
rubricas e sub-rubricas para efeitos orçamentais, os objectivos e prioridades
constantes das diferentes propostas serão divulgados para efeitos de discussão pública
pelo conjunto dos cidadãos.
Findo o período de discussão pública, os seus resultados
serão devidamente compilados. Por exemplo, a proposta P1 fundiu-se com a proposta P4,
dando lugar à Proposta I; a proposta P2 fundiu-se
parcialmente com a proposta P5, dando lugar à Proposta II e à Proposta III, respectivamente;
a proposta P3 mantém-se inalterável, agora com a designação de Proposta
IV.
Depois de compiladas, as alternativas existentes serão democraticamente
dirimidas por meio de plebiscito electrónico.
Por exemplo, escolher através do sufrágio universal,
directo e secreto entre as alternativas a.1 [constante da Proposta I]:
aumentar em 3,5% o investimento na Saúde, ou a.2 [constante da Proposta
II]: aumentar em 2% o investimento na Saúde, ou a.3 [constante da
Proposta III] : aumentar em 1% o investimento na Saúde; ou a.4
[constante da Proposta IV]: manter o investimento na Saúde no seu nível actual;
b.1 [constante da Proposta I]: aumentar o investimento na investigação
científica em 1%, ou b.2 [constante
da Proposta II e da Proposta
III]: aumentar o investimento na investigação científica em 2%, ou b.3 [constante da Proposta IV]:
aumentar o investimento na investigação científica em 3%, etc.
Hoje em dia, uma escolha múltipla deste género por meio de um plebiscito electrónico é tecnicamente muito fácil de organizar com a ajuda de telemóveis de 4ª geração. Paul Cockshott, inventor do sistema Handivote, mostrou teórica e praticamente como é que isso se faz [15].
Por sua vez, a implementação e a regulação do plano assim elaborado e aprovado dispõe também, hoje em dia, de recursos que deixariam maravilhados os socialistas do passado, mesmo os mais imaginativos (como, por exemplo, Edward Bellamy [16] e William Morris [17]). Refiro-me à possibilidade de poder tirar o máximo partido dos meios tecnológicos disponíveis, não apenas os telemóveis 4G (que são de facto microcomputadores portáteis) e a Internet, que viabilizam sistemas de votação electrónica como o Handivote, mas também muitos outros — cibernética, computadores, informática, códigos de barras, cartões inteligentes de débito, rede de terminais de pagamento automático (TPA), www, computação em nuvem, Internet das coisas, inteligência artificial, nanotecnologia.
O protocolo de votação do sistema Handivote. Registration = recenseamento; Voting = votação; Publication = publicação dos resultados. Fonte : Paul Cockshott, Karen Renaud, Tsvetelina Valcheva, 2016 |
4.2. Contas à ordem e cartões de débito cronolaborais
Um exemplo concreto — o das virtualidades inexploradas que oferecem os cartões electrónicos de pagamento ditos “inteligentes” (ou seja, com microprocessadores em circuitos integrados) — permitirá, creio, ter outro vislumbre do funcionamento do modo socialista de produção. A primeira pessoa que imaginou os cartões de débito como substitutos do dinheiro foi Edward Bellamy no seu romance de 1886, Looking Backward: 2000-1887. Mas nem mesmo Bellamy, apesar da sua imaginatividade e argúcia, poderia imaginar as possibilidades que oferecem os circuitos integrados embutidos nos cartões inteligentes de pagamento que hoje utilizamos rotineiramente [18]. Vejamos então esta questão de mais perto.
No modo capitalista de produção, a riqueza toma a forma
de uma imensa colecção de mercadorias.
As mercadorias são bens ou serviços com um valor-de-uso e um valor-de-troca.
Por essa razão, o dinheiro desempenha três funções: (A) de equivalente
geral dos valores-de-troca das mercadorias, ou seja, de unidade de conta e
estalão dos preços das mercadorias; (B) de meio geral de circulação das
mercadorias, ou seja, de meio geral de pagamento e (C) de reserva de
valor, ou seja, de tesouro.
No modo socialista de produção, a riqueza toma a forma de
uma enorme colecção de valores-de-uso. Os valores-de-uso, no modo socialista de
produção, não são valores-de-troca e, por conseguinte, não são mercadorias. Isso
torna-se mais claro e fácil de compreender se dividirmos a economia socialista em três sectores:
1. A produção dos
meios colectivos de produção (e.g. maquinaria, instalações fabris, energia,
matérias primas).
2. A produção de bens
e serviços de consumo pessoal e familiar que são distribuídos para venda aos cidadãos
e às suas famílias (e.g., comida, roupa, habitação, livros, computadores
pessoais, brinquedos, meios individuais ou familiares de transporte, sessões de cinema, concertos, peças de teatro).
3. A provisão de
serviços colectivos universais e gratuitos de protecção e apoio ao bem-estar e
ao desenvolvimento cultural da população (serviços colectivos, para
abreviar), tais como, por exemplo, segurança social, centros de saúde,
hospitais, infantários, escolas, universidades, bombeiros, equipamentos
desportivos.
As prioridades e os objectivos dos três sectores (O que
produzir? O que produzir primeiro? Quanto produzir? Quando produzir?) serão
objecto, como vimos, de discussão pública e de deliberação democrática pelo
conjunto dos cidadãos através de plebiscito electrónico realizado numa base
anual ou plurianual.
São essas decisões sobre as grandes rubricas da despesa
pública que informam o plano de produção e provisão dos bens e serviços
fornecidos pelos três sectores e que determinam também, em primeiro lugar, a distribuição
intersectorial da força de trabalho e dos demais recursos necessários à sua
implementação. Isso significa que o mercado, as transacções estritamente privadas
de compra e venda de mercadorias (uma certa quantia de dinheiro passando da
pessoa A para a pessoa B, e uma certa quantidade de mercadoria[s]
passando, em sentido inverso, da pessoa B para a pessoa A) não
existem nos sectores 1 e 3.
No sector 2 as coisas passam-se de um modo diferente,
porque não são os meios colectivos de produção (sector 1), nem os
serviços colectivos e universais (sector 3) que aí se produzem e fornecem
— isto é, bens e serviços que só podem ser produzidos e prestados pela
cooperação e o trabalho concertado de muitas dezenas, centenas ou milhares de pessoas
actuando simultaneamente —, mas os bens de consumo pessoal e familiar.
Neste sector, são as preferências individuais dos consumidores que têm a
primazia. Os cidadãos, enquanto consumidores, escolhem aquilo que querem
comprar sem terem necessidade de submeter as suas escolhas a plebiscito.
Um Catálogo Geral dos Bens de Consumo e Serviços Afins (permanentemente actualizado) indicará as propriedades de todos os artigos e serviços disponíveis — será um catálogo que funcionará também, por conseguinte, como um inventário geral das existências dos mesmos — que os cidadãos poderão adquirir numa rede nacional de lojas e centros de abastecimento (seja directamente, seja através da Internet) por meio de cartões de débito inteligentes vinculados a contas à ordem pessoais. Nada disto é fantasioso, muito pelo contrário; é a prática corrente de empresas como a Walmart e a Amazon.
Armazéns da Amazon. Foto Gtres. |
E serão a procura e as escolhas selectivas dos consumidores, ciberneticamente monitorizadas em permanência pela rede de informação e coordenação computadorizada que ligará todas as empresas, que orientará a actividade produtiva quotidiana do sector 2 (bem como a sua relação com a actividade dos demais sectores) e o seu planeamento de curto e médio prazo. Isso é hoje uma tarefa fácil de realizar com a ajuda da Internet, das gigantescas bases de dados (Ingl. Big Data), dos supercomputadores, dos já citados cartões electrónicos de pagamento e dos métodos de optimização linear desenvolvidos há mais de 80 anos pelo matemático russo Leonid Kantorovich (1912-1986) e que foram, entretanto, aperfeiçoados por outros matemáticos russos e ocidentais.
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Moda masculina 2
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Outros
Rubricas do Catálogo da Amazon
Leonid Kantorovich (1912-1986), em 1930, o ano em que se licenciou, com 18 anos. Entrou na Universidade aos 14 anos e foi professor catedrático aos 22 anos. |
4.3. O fim do dinheiro
Como já foi dito, todos os cidadãos disporão de contas à
ordem e cartões inteligentes de débito vinculados a essas contas. É necessário
compreender, porém, que essas contas à ordem e os cartões de débito que as
operacionalizam não representam dinheiro vivo, como aquele que depositamos quando
abrimos uma conta num banco, nem crédito monetário, como sucede actualmente, nas
nossas sociedades onde impera o modo capitalista de produção e apropriação.
A sua função é a
de servirem simultaneamente como:
— (i) comprovativo individual e instrumento de
registo contabilístico da retribuição cronolaboral
do seu titular — ou seja, como comprovativo do nº de horas trabalhadas por cada
cidadão/cidadã durante a sua actividade económica para efeitos de contabilidade
nacional e do cálculo da taxa única de imposto de rendimento destinado a
financiar os sectores 1 e 3
— (ii) meio de aquisição e de registo de aquisição
dos bens de consumo (avaliados também pelo seu conteúdo cronolaboral [isto é, pelo nº de horas de trabalho socialmente necessário que foi requerido para a sua produção], acrescido
de um coeficiente C de encarecimento do preço no caso de valores-de-uso
fabricados com recursos naturais não-renováveis ou renováveis só muito
lentamente) que cada cidadão quiser escolher do Catálogo Geral, desde que
custem o equivalente a uma fracção do seu rendimento cronolaboral disponível.
O que foi dito aplica-se igualmente aos trabalhadores reformados, em cujas contas à ordem será creditado o valor cronolaboral da pensão mensal a que têm direito.
Cartão bancário "inteligente". Infografia-Tecnomundo de Fábio Jordão e Brina Fujie. |
As contas à ordem que registam o rendimento cronolaboral disponível dos cidadãos numa economia socialista e os cartões de débito com microprocessadores que operacionalizam o seu poder de compra no sector 2 são muito diferentes do dinheiro num outro aspecto. O seu poder de compra não circula anonimamente de umas mãos para as outras, como sucede com o dinheiro. A despesa com a compra de um artigo de consumo feita com um desses cartões não corresponde a uma receita auferida por outrem, mas tão-somente à anulação da existência de uma unidade (ou X unidades) desse artigo no Catálogo Geral dos Bens de Consumo e Serviços Afins e à anulação concomitante do mesmo valor cronolaboral na conta à ordem do comprador.
Os cartões de débito numa economia socialista são cartões
pessoais e intransmissíveis, no sentido de que o seu titular (i) só pode fazer
compras para uso próprio, ou para uso alheio mas sem intuitos comerciais (por
exemplo, comprar um computador portátil para si próprio, ou para um filho, ou
para o oferecer como prenda a uma pessoa amiga, mas não para o alugar ou revender),
razão pela qual o seu titular (ii) não poderá transferir nenhuma parte do seu rendimento
cronolaboral para a conta à ordem de outrem, (iii) nem aceitar transferências
de outrem para a sua conta pessoal. Essa cláusula de intransmissibilidade das
contas à ordem cronolaborais e dos cartões de débito conexos elimina
completamente a possibilidade de um mercado negro.
Por último, convém salientar que são cartões válidos
apenas para a aquisição de bens de consumo (os bens que são produzidos no sector
2). Não servem para comprar meios colectivos de produção de bens de produção (sector
1) — p. exemplo, fábricas de máquinas de corte industrial (tais como, máquinas de
corte de laser de chapas metálicas, máquinas
de corte de laser de tubos, máquinas de
corte de plasma de chapas metálicas) —, nem para comprar meios colectivos de
produção de bens de consumo individual ou familiar (sector 2) — por exemplo,
fábricas de telemóveis ou fábricas de sapatos —, nem para comprar serviços
colectivos universais (sector 3) — p. exemplo, um hospital ou uma estação de
tratamentos de águas residuais (vulgo, esgotos sanitários) —, nem para alugar
força de trabalho humana em troca de um salário. Em suma, são cartões
(rendimentos) que não podem ser utilizados como capital em nenhum sector
económico.
Deste modo, duas das três funções que o dinheiro cumpre
actualmente (as funções A e C) perderão a sua razão de ser nos
sectores 1 e 3 de uma economia socialista e a terceira (a função B) será
substituída com vantagem pelos cartões de débito e contas à ordem cronolaborais
no sector 2.
4.4. O financiamento da economia socialista
A partir do momento em que uma parte do trabalho social
total (ou, o que vem a ser o mesmo, uma
parte da jornada total de trabalho [19]) tenha sido alocada ao sector 1 — isto
é, à acumulação de novos meios de produção, como edifícios, infraestruturas
(ferrovias, barragens, etc.) e maquinaria , incluindo um fundo de reserva como seguro para imprevistos —, e outra parte tenha sido alocada
ao sector 3 — isto é, à provisão de serviços colectivos universais e gratuitos
(como cuidados de saúde, infantários, escolaridade obrigatória, etc.) — através
de decisão cidadã tomada em plebiscitos electrónicos periódicos, estão reunidas
as condições básicas para calcular o montante e escolher os meios de financiamento da
economia no seu todo. Há, em princípio, várias maneiras de se conseguir isto:
1. Através (1.a)
de um imposto de rendimento de taxa única sobre os produtores, e/ou através (1.b)
de um imposto de rendimento de taxa progressiva, semelhante ao nosso actual imposto sobre o
rendimento das pessoas singulares (IRS), e/ou através (1.c) de um
imposto sobre a renda fundiária semelhante ao actual imposto municipal sobre os
imóveis (IMI), mas abrangendo todos os moradores, mesmo os que não sejam
proprietários das suas habitações.
2. Através (2.a) de um imposto sobre as
vendas de bens de consumo específicos (como, por exemplo, bebidas açucaradas,
bebidas alcoólicas, tabaco), e/ou através (2.b) de um imposto geral de
consumo semelhante ao actual imposto de valor acrescentado (IVA).
3. Através (3) de um imposto sobre o volume de “negócios” das empresas dos sectores 1 e 2, o que se traduziria num coeficiente aplicado ao custo líquido de todos os bens produzidos nesses sectores para formar o seu preço de venda ideal. (N.B. Emprego o termo “volume de negócios” à falta de melhor, porque não existem negócios propriamente ditos numa economia socialista. “Volume de transações” talvez fosse mais apropriado).
Há fortes argumentos a favor de uma solução compósita integrando 1.a, 1.c e 2.a, por esta ordem de importância, e rejeitando 1.b, 2.b e 3 (v. Paul Cockshott & Allin Cottrell, Towards a New Socialism.Nottingham, Bertrand Russell, 1992/ Notttingham, Spokesman, 1995, pp. 94-96; Paul Cockshott, How the World Works. The story of human labor from prehistory to the modern day. New York, Monthly Review, 2019, pp.251-257). Bem entendido, numa sociedade socialista, a escolha destes impostos deve ser objecto de um plebiscito válido por «x» anos. Um vez aprovada a solução fiscal a adoptar, as alíquotas (taxas) dos impostos escolhidos para vigorarem durante «x» anos devem ser também decididas periodicamente por plebiscito electrónico.
Note-se que, através da solução aqui proposta (1.a+1.c+2.a),
o rendimento cronolaboral disponível dos cidadãos-produtores (o seu poder de compra efectivo
individual) é posto em correspondência exacta com o número de horas de trabalho
social dispendidas a fabricar bens de consumo pessoal e familiar (sector 2). A transparência
dos números relativos aos custos e benefícios sociais da economia socialista
fica assim assegurada.
5. As duas questões centrais da nossa
época
Que arquitectura socioinstitucional deverá ter, então, uma
sociedade integralmente democrática, tecnologicamente avançada, ecologicamente
sustentável, sem classes socioeconómicas e sem Estado (entenda-se, sem forças
repressivas especiais, separadas do colectivo dos cidadãos) ? Esta é uma das duas questões
centrais da nossa época.
É impossível continuar a fazer de conta que é possível
lutar eficaz e coerentemente por uma sociedade socialista sem enfrentar esta questão
ou respondendo-lhe com sobranceira displicência: «quando expropriarmos os
expropriadores, logo se verá o que faremos». Essa é, quando muito, a
receita universal para conseguir construir uma qualquer versão “nacional” do dirigismo tecnoburocrático de Estado. Ora, sucede
que a história do século XX não é apenas a história da decadência convulsiva e mortífera
do modo capitalista de produção, com as suas constantes rivalidades e guerras intestinas. É também,
em grande medida, a história do dirigismo tecnoburocrático de Estado, das aporias da sua doutrina, da grandiosa mistificação que representou como
falsa alternativa ao sistema capitalista, e da sua desagregação numa área superior a 1/6 do planeta (ex-URSS e países da Europa de leste do ex-COMECON). Temos de
aprender todas as lições dessa história, se quisermos encontrar uma saída viável
para a humanidade.
A outra questão central consiste em saber que medidas e acções concretas podem ser postas em prática e realizadas para que os cidadãos que constituem a grande maioria da população adulta (os trabalhadores assalariados e os estudantes adultos) possam auto-instituir — se o quiserem fazer, pois a emancipação económica e política dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores ou nunca ocorrerá — essa alternativa à sociedade capitalista que lhes (nos) come as papas na cabeça.
A segunda pergunta é muito mais difícil e melindrosa do
que a primeira. Mas sem uma resposta cabal à primeira, não é possível dar uma
resposta com pés e cabeça à segunda.
Estas são as duas questões centrais do século XXI, das quais depende o futuro da humanidade.
Não sou o único a dizê-lo, muito longe disso. E vale a pena
notar que, por razões opostas às que aqui foram expostas — a saber, a defesa do
modo capitalista de produção e apropriação que ele sente ameaçado de implosão —
o financeiro multimilionário e filantropo George Soros afirmou recentemente
(Janeiro de 2020) na reunião do Fórum Económico Mundial em Davos, na Suíça,
que, «tendo em conta a emergência climática e a
agitação mundial, não é um exagero dizer que 2020 e os próximos anos vão
determinar não só o destino de Xi [Jinping] e
[Donald] Trump, mas também o destino do
mundo» (Público, 23 de Janeiro de 2020). Mais recentemente, neste mesmo mês de Agosto, acrescentou:
Estamos numa crise, a pior crise da minha vida desde a Segunda Guerra Mundial. Descrevê-la-ia como um momento revolucionário em que o leque de possibilidades é muito maior do que em tempos normais. O que é inconcebível em tempos normais torna-se não só possível, mas acontece, de facto (Público, 16 de Agosto 2020).
Os textos publicados no blogue multilingue Sítio com Vista (https: //sitewithaview.ovh/) procuram responder a ambas as questões. Para esse blogue remetemos, por isso, o leitor interessado.
Lisboa, 10-19 de Agosto de 2020
Notas
[1] Estes dois processos acabariam por transformar o regime de oligarquia autoritária de cariz fascista (polícia política, tribunais políticos, censura, corporações, câmara corporativa, etc.), que vigorou em Portugal durante mais de 40 anos, num regime de oligarquia liberal, que vigora há mais de 40 anos. Sobre a distinção entre os conceitos de “oligarquia liberal” e de “oligarquia autoritária” ver José Catarino Soares, Rumo à Democracia Integral, nomeadamente a sua secção 18 [Democracia integral vs oligarquia liberal] e o seu Post-Scriptum (em https://sitewithaview.ovh/arquivo-do-blogue/page/2).Rui Costa poderia retorquir, presumo, que o conservadorismo e a subserviência a que se referia são perfeitamente ilustrados pela duração destes dois regimes em grande medida antagónicos. Se fosse esse o caso, não seria fácil refutá-lo.
[2] Muitos economistas
que fazem a apologia do capitalismo consideram que existe uma taxa “natural”
[!] de desemprego, a qual seria, por conseguinte, a taxa de desemprego
inerente…ao “pleno emprego” [!]. As únicas coisas que podem, segundo eles, “desnaturar” a taxa “natural” de desemprego,
são as lutas sociais dos trabalhadores assalariados por melhores salários e melhores
condições de trabalho, as convenções colectivas que os trabalhadores e os seus
sindicatos conseguem, por vezes, negociar com o patronato, e os direitos laborais
(tais como, por exemplo, a legislação sobre o salário mínimo).
A taxa “natural” de desemprego, um conceito dos
economistas apologéticos Milton Friedman
e Edmund Phelps, não é, porém, apesar da sua alegada “naturalidade”, uma taxa
de desemprego observada ou observável. Em vez disso, tem de ser estimada a
partir de um certo número de métodos estatísticos que podem variar de autor
para autor [!]. Seja como for, e contrariamente às alegações de Friedman de que
a taxa “natural” de desemprego seria uma constante inter-temporal, as estimativas
empíricas dessa “taxa” mostram-na como sendo altamente variável ao longo do
tempo.
Por exemplo, para a economia dos E.U.A, o país natal de
Friedman e Phelps, a referida “taxa” tem variado entre 4% e 8% nas últimas
décadas (Thomas I. Paley, “Natural Rate of Unemployment”, Jul 23 2020, em International
Encyclopedia of the Social Sciences, Encyclopedia.com). Outros autores apontam uma variação de
4,5% a 5,5% nos últimos 100 anos para o mesmo país (Roger Barnichon &
Christian Matthes,“The Natural Rate of Unemployment over the Past 100 Years”,
FRBSF Economic Letter, 2017-23; August 14, 2017 ; Research from the
Federal Reserve Bank of San Francisco). O mais curioso é que a grande maioria dos diversos
governadores que passaram pelo Federal Reserve System (o banco
central dos EUA) nos últimos 50 anos, incluindo a actual governadora Janet
Yelleng, se baseiam na taxa “natural” de emprego para determinarem a sua
política monetária (taxas de juro, emissão de moeda, etc.). A sua grande e mais
constante preocupação neste particular é não deixarem que a taxa “natural” de
desemprego baixe demasiado (!!) — isto é, que se situe abaixo dos 4,5% — para…não
fazer subir a inflação (!), um aforisma manhoso que lhes foi inculcado por
Milton Friedman.
[3] O Produto Interno Bruto (PIB) é um indicador que mede o
valor monetário da produção total de bens e serviços num determinado território
(país ou região) durante um certo período, geralmente um ano. Consiste no
somatório dos valores acrescentados realizados no âmbito de um território pelo
conjunto dos seus ramos de actividade, aos quais se acrescenta o IVA e os
direitos alfandegários.
O PIB é um indicador que padece de sérias limitações
porque não tem em conta (i) o trabalho não remunerado (e.g., o trabalho
doméstico e o trabalho feito em regime de voluntariado); (ii) a produção para
autoconsumo (e.g., a produção de produtos hortícolas); (iii) a produção vendida,
mas não declarada ao fisco (e.g., a produção de heroína); (iv) o trabalho
clandestino (e.g., na construção civil e na agricultura). Por outro lado, o PIB
não tem em conta os danos causados ao ambiente pelas actividades económicas
(e.g., poluição dos cursos de água, o esgotamento de recursos naturais), que os
economistas apologéticos apelidam de “externalidades negativas”. O PIB não
pode, por definição, medir o custo social de uma economia de guerra (cujo PIB
pode aumentar, apesar do número de mortos vítimas
de guerra na população do território em apreço poder aumentar no mesmo período), nem medir o aumento do bem-estar dos indivíduos como resultado de
medidas preventivas de saúde que se traduzam numa redução do consumo de
medicamentos (e portanto numa quebra do PIB…). Por último, as limitações do PIB
são especialmente evidentes no facto de contabilizar da mesma maneira o que pode
ser benéfico à sociedade (e.g., a produção de medicamentos) e o que lhe é
prejudicial (e.g., a produção de armas de guerra), e no facto de não ter nenhum
meio de avaliar os efeitos económicos da partilha de informação através da
Internet e da www (por exemplo, a partilha de conhecimento técnico via
“Usenet”, os movimentos de programação informática de código aberto [Ingl. open
source] e a cooperação laboral por meio de redes de pares [P2P].
Simon Kuznets (1901-1985), o criador do PIB, concluiu o
seu relatório sobre a construção deste indicador com as seguintes
palavras : « O bem-estar de uma nação não pode
ser deduzido a partir de uma medida do
produto nacional tal como a que foi acima definida». No entanto, isso
não impede os economistas apologéticos e muitos outros que se dizem
heterodoxos, de chamarem crescimento económico à variação positiva do PIB entre
dois períodos. Mas sobre o crescimento económico ver a nota seguinte.
[4] Baseando-se em
dados oriundos de uma larga gama de fontes fidedignas e em estudos do
crescimento económico dos países industrializados do hemisfério norte no
período do pós-segunda guerra mundial (1947-2017), o economista Alan Freeman
mostrou recentemente que esse crescimento « tem
caído continuamente, só entrecortado por breves e limitadas interrupções,
desde, pelo menos, o início dos anos
1960. A tendência é extremamente forte e inclui todas as grandes economias do
hemisfério Norte sem excepção. É confirmada por um largo espectro de diferentes
medidas de PIB e de crescimento, incluindo paridades de poder de compra (PPC) e
medidas padrão do PIB, e por uma gama de métodos para agregar os dados de
diferentes países. É por isso uma tendência histórica muitíssimo bem
confirmada» (Freeman. A.
2019. “The
sixty-year downward trend of economic growth in the industrialised countries of
the world”. GERG Data Group working paper No.1, January 2019. Manitoba:
Geopolitical Economy).
[5] O Bulletin of
the Atomic Scientists tem vindo todos os anos, desde 1947, a acertar o
“Relógio do Apocalipse” (Doomsday Clock), em que a meia noite corresponde
simbolicamente ao holocausto nuclear da humanidade. Na “Declaração de 2020 do
Relógio do Apocalipse”, o Bulletin of the Atomic Scientists adverte que
nunca estivemos tão perto desse evento fatídico: estamos a 100 segundos da
meia-noite. Em 1947 estávamos a 7 minutos da meia-noite (https://thebulletin.org/doomsday-clock/current-time/). Isto não é de admirar se tivermos em conta os
seguintes factos:
1º) Há, actualmente, nove
Estados (EUA, Rússia, Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Coreia do
Norte, Israel) que possuem um total de cerca de 14.000 armas nucleares de
destruição maciça, mais exactamente 13.410 — das quais 9.230 operacionais e em
armazém, e as restantes à espera de serem desmontadas e servirem de combustível
para centrais nucleares (fonte: Federação dos Cientistas Americanos). Em 1947, havia um único Estado que possui armas nucleares:
os EUA.
2º) Os EUA e a
Rússia possuem actualmente 90% destas armas.
3º) As bombas atómicas que foram
lançadas em Hiroshima e Nagasaki, em 1945 foram baptizadas de “Little Man” e
“Fat Man”, respectivamente. Tinham uma potência explosiva de 15 e 21 quilotoneladas
de T.N.T [= trinitrotolueno], respectivamente — ou, o que vem a ser o mesmo, 15.000
e 21.000 toneladas de T.N.T, respectivamente (uma quilotonelada [kt] = 1000
toneladas).
4º) Actualmente, as bombas
nucleares são cerca de 50 vezes mais potentes. Os mísseis balísticos americanos
Trident, de alcance intercontinental, que podem ser lançados a partir de
submarinos nucleares da classe Ohio (americanos) ou da classe Vanguard
(britânicos), carregam múltiplas ogivas termonucleares (vulgo, bombas de
hidrogénio) com uma potência de 455 kt de T.N.T. Os mísseis balísticos russos Bulava e Sineva,
de alcance intercontinental, que podem ser lançados a partir de submarinos
nucleares da classe Project 955 Borei e da classe Delta IV carregam
múltiplas ogivas termonucleares com uma potência explosiva de 100-150 kt e 500
kt de T.N.T, respectivamente. Cada submarino Ohio pode transportar até
24 mísseis Trident, o que lhe dá um poder fogo maior do que todas as
bombas lançadas na 2ª Guerra Mundial. Cada submarino Borei pode transportar
até 16 mísseis Bulava e cada submarino Delta IV pode transportar um
igual número de mísseis Sineva. Como se vê, o poder de fogo dos
submarinos nucleares americanos, britânicos e russos é muito semelhante.
Nagasaki, Agosto de 1945. Um rapazinho descalço, com o cadáver do seu irmão mais novo às costas, espera a sua vez de entrar num crematório, num dos dias seguintes à explosão da bomba atómica americana que arrasou a cidade em 9 de Agosto, matando instantaneamente 35.000-40.000 pessoas, quase todas civis, e feriu mais outras 60.000. Foto do fotógrafo da Marinha de Guerra dos EUA Joe O'Donnell. |
5º) A revista Popular Mechanics relatava recentemente:
Sabemos que há uma estonteante gama de programas americanos de
desenvolvimento de armas que estão em curso simultaneamente. A Marinha de
Guerra americana está a desenvolver o míssil Conventional Prompt Strike,
enquanto que o Exército americano está a desenvolver a Long Range Hypersonic
Weapon e o novamente anunciado Vintage Racer. A Força Aérea Americana
está a desenvolver não uma, mas duas armas: a AGM-183 Air-Launched Rapid
Response Weapon (ARRW) e o Hypersonic Air-Breathing Weapon Concept
(HAWC). A DARPA [Defense Advanced Research Projects Agency, uma
agência do Ministério da Defesa responsável pelo desenvolvimento de tecnologias
militares] tem mais dois conceitos de armas hipersónicas
em desenvolvimento: o Tactical Boost
Glide e o OpFires (Kyle Mizokami, “What Is Trump’s ‘Super Duper Missile’?: An Investigation”, June 16, 2020).
O projecto que está mais
avançado neste momento parece ser o AGM-183 ARRW (“Air-Launched Rapid
Response Weapon”), que o presidente americano Donald Trump não se cansa de
gabar. A ARRW é uma arma hipersónica em desenvolvimento pela Lockheed Martin
para a Força Aérea dos EUA. “Hipersónica” refere-se a qualquer velocidade
superior a Mach 5. A ARRW é um sistema hipersónico de impulso-planagem que
consiste num foguete impulsionador e numa ogiva de planagem hipersónica. Depois
de ser lançado de uma aeronave, o foguete impulsionador acelera para altas
velocidades antes de libertar a sua carga, uma ogiva de planagem hipersónica
que plana então, sem motor, rumo ao seu alvo, a uma velocidade de 24.695 km por
hora (ou seja, a um velocidade Mach 12).
Em resposta ao ARRW,
a Rússia desenvolveu o Avangard, um planador hipersónico que é lançado
por um míssil e que é capaz de transportar bombas convencionais ou nucleares. A
potência da ogiva nuclear transportada pelo Avangard seria de mais de
duas megatoneladas [= 2 milhões toneladas] de T.N.T e o Avangard seria
capaz de ludibriar os escudos anti-mísseis americano graças à sua velocidade de
33.000 km por hora (ou seja, a uma velocidade Mach 17) e à sua capacidade de mudar de rumo e de operar
a muito baixas altitudes. O Avangard é apenas uma das seis novas armas
estratégicas anunciadas pelo presidente russo Vladimir Poutine no dia 1 de Março
2018 , entre as quais se contam o míssil
hipersónico e aerobalístico terra-ar Kinjal e o míssil balístico furtivo
e intercontinental RS-28 Sarmat (ou SS-X-30, na terminologia da
OTAN), capaz de destruir em poucos segundo um território do tamanho da França
ou do Estado do Texas com as suas 12 ogivas termonucleares. Este último é uma
resposta do Exército russo ao programa americano Prompt Global Strike.
6º) o Presidente Trump dos
EUA já desvinculou os EUA de dois tratados de não-proliferação de armas
nucleares, um dos quais o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário
(INF no acrónimo inglês) com a Rússia sobre as armas nucleares de alcance
intermédio. Este Tratado, celebrado em 1987, proíbe os dois países signatários
de fabricar, desenvolver ou testar mísseis de curto alcance (500 km a 1.000 km)
e de médio alcance (1.000 km a 5.000 km). Trump prepara-se para deixar caducar
um terceiro tratado, que é o mais importante. O New START (Strategic Arms
Reduction Treaty), assinado em 2010 entre os EUA e a Rússia, é último tratado
de armas estratégicas em vigor e vai expirar em 21 de Fevereiro de 2021.
[6] “The International Workingmen’s Association
(The First International). Documents and Writings 1864–1874”. Marx-Engels
Works).
[7] Karl Marx, “The Third Address” May, 1871 [The
Paris Commune]”. Em The Civil War in France. Marx/Engels Internet
Archive)
[8] Dirigismo tecnoburocrático de Estado não é um nome inteiramente satisfatório, mas não consegui (ainda) encontrar outro melhor. Para caracterizar mais rigorosamente a natureza da ex-URSS no período que vai, grosso modo, de 1932 (data do término do 1.º plano quinquenal) até 1985 (data da chegada ao poder supremo de Mikhail Gorbachev) é necessário introduzir dois conceitos novos: o de quimerismo sociogenético ou quimera social e o de modo pseudo-socialista de produção. Por quimerismo sociogenético e quimera social entendo designar, respectivamente, a formação (numa perspectiva diacrónica) e a existência concreta (numa perspectiva sincrónica), no âmbito de uma mesma sociedade, de uma combinação de elementos heterogéneos pertencentes a modos de produção distintos com formas de poder de Estado compatíveis unicamente com um deles. Por modo pseudo-socialista de produção entendo designar um modo de produção com as seguintes características:
1. A ausência de uma classe de capitalistas privados na indústria, na agricultura, no comércio e nos serviços. 2. A existência de uma classe de governantes inamovíveis que monopoliza o poder de determinar a alocação dos meios de colectivos de produção e a repartição do sobreproduto social produzido pelas classes trabalhadoras governadas. 3. A alocação dos meios colectivos de produção de bens e serviços por meio de um sistema de directivas políticas emanadas da classe governante. 4. A consequente ausência de mercados de bens de capital e de matérias primas. 5. A existência de um mercado de bens de consumo sujeito a constrangimentos tais que: a) uma parte considerável dos bens de consumo seja distribuída por meios que não sejam a compra e venda; b) o mecanismo de preços do mercado de bens de consumo seja geralmente neutralizado por meio de preços de equilíbrio. 6. A ausência de mercado da terra e a ausência da categoria de renda fundiária como categoria económica. 7. A existência de dinheiro e trabalho assalariado. 8. Uma variância de rendimentos em relação à média que seja menor do que a dos países capitalistas com um nível de desenvolvimento industrial equivalente. 9. Um modo de extração do sobreproduto distinto do que é apanágio do modo capitalista de produção, a saber: a divisão politicamente determinada do produto social entre as categorias de consumo corrente, acumulação e consumo improdutivo. 10. A conversão do imposto como meio de extração de um sobreproduto num meio de assegurar a estabilidade monetária. 11. A ausência de um contingente permanente de desempregados, frequentemente associado com faltas de mão-de-obra neste ou naquele sector.
Assim sendo, a URSS (no período que vai de 1932 a 1985) era uma quimera social que combinava um modo pseudo-socialista de produção com um dirigismo tecnoburocrático de Estado moldado e comandado por uma oligarquia totalitária — uma oligarquia (partidária e estatal) plenipotenciária, liberticida e antidemocrática, personificadora dos poderes outrora cometidos às classes possidentes, que, para legitimar o seu monopólio do poder perante a classe proletária, utilizava fraudulentamente as palavras “socialismo” e “comunismo”. É esta caracterização complexa que a expressão dirigismo tecnoburocrático de Estado capta só por metade, a metade mais evidente.
[9] Não confundir “propriedade estatal dos meios colectivos de
produção” com “propriedade
cooperativa, comunitária e pancomunitária dos meios colectivos de produção”. A primeira é
controlada discricionariamente por uma oligarquia dirigente inamovível. A
segunda é controlada democraticamente pelas várias formas de consociação dos
cidadãos-produtores livres e iguais. São coisas bem diferentes!
[10] A transformação das palavras “socialismo” e “comunismo”,
até então palavras sinónimas, em designações de duas fases distintas e sucessivas
— a fase inferior e a fase superior, respectivamente — de uma sociedade
pós-capitalista sem exploração nem opressão do homem pelo homem, foi obra de Vladimir
Ilyich Ulianov, mais conhecido pelo pseudónimo Lénine, no seu livro O Estado e a Revolução (1917). Esta reconfiguração lexical não seria muito
grave se ninguém lhe prestasse atenção. Mas foi propalada e incensada, durante
décadas, por uma legião enorme de seguidores acríticos de Lénine e continua, ainda
hoje, a ser propalada por eles, embora o seu número seja muitíssimo menor. O
mais grave, porém, é o facto de Lénine ter procurado recrutar Karl Marx à
revelia para justificar e legitimar esse seu uso idiossincrático, e na verdade abusivo,
das duas palavras em causa. As seguintes passagens do Estado e a Revolução, sobretudo as partes realçadas a amarelo, assinalam os
momentos e o modo como esse recrutamento à revelia foi feito:
Assim, na
primeira fase da sociedade comunista (a que se chama usualmente socialismo),
o “direito burguês” não é abolido completamente, mas somente em parte,
só na medida em que a revolução económica tenha sido feita, quer dizer, só no
que diz respeito aos meios de produção.
(…)
Nós abordamos aqui a questão da distinção científica entre socialismo e
comunismo (…)
Mas a diferença
científica entre socialismo e comunismo é clara. Ao que se chama comummente
socialismo, Marx chamou a “primeira” fase ou fase inferior da sociedade
comunista. Na medida em que os
meios de produção se tornam propriedade comum, a palavra “comunista” pode
aplicar-se igualmente aqui, com a condição de não se esquecer que não é o
comunismo integral.
Lénine alude aqui à Crítica do Programa de Gotha [1875] (São Paulo. Boitempo Editorial, 2012), o texto em
que Karl Marx faz a distinção entre as duas fases da sociedade comunista,
uma inferior ou primeira e outra superior ou segunda. A
afirmação de Lénine de que Marx chamou «fase
inferior da sociedade comunista» «ao que se chama
usualmente, comummente, socialismo» é duplamente falsa. Nem em 1875,
quando Marx escreveu a Crítica do programa de Gotha, nem em 1917, quando Lénine escreveu O Estado e
Revolução, era
usual chamar socialismo ao que Marx chamou a
«fase inferior do comunismo». Nem poderia
ser usual, porque «a distinção científica entre socialismo e comunismo» de que fala
Lénine, não é, como ele diz, “clara”;
é inexistente. A distinção que Marx faz no seu texto entre duas fases da
sociedade comunista é uma distinção inédita e que lhe pertence. Essa
distinção, porém, nada tem a ver com uma alegada distinção entre socialismo e
comunismo, porque distinguir duas fases da sociedade comunista é o mesmo que
distinguir duas fases da sociedade socialista. É uma mistificação completa aquela que consiste em deturpar
os argumentos de Marx para estabelecer uma pseudodistinção “científica” entre
socialismo e comunismo porque socialismo e comunismo são dois
termos intermutáveis, tanto na obra de Marx e Engels, pelo menos de 1864 em
diante, como em toda a tradição do movimento trabalhista até à tomada do poder
pelos bolcheviques na Rússia, em 1918. Foram o partido bolchevique russo (sucessor
da ala leninista do partido trabalhista social-democrata russo) e o partido
social-democrata alemão que, a partir de 1918, mais contribuíram, cada um à sua
maneira, para desfigurar o sentido e romper a sinonímia das palavras
“socialismo” e “comunismo”.
No prefácio à edição alemã de 1890 do Manifesto do Partido Comunista (1848), Friedrich Engels explicou-se de modo inequívoco sobre a razão conjuntural da escolha do termo comunista (em vez de socialista) no título desse manifesto:
Presentemente, [o Manifesto do Partido Comunista] é sem dúvida o
produto mais amplamente divulgado, mais internacional, de toda a literatura
socialista, o programa comum de muitos milhões de operários de todos os países
desde a Sibéria à Califórnia.
E, contudo, quando
ele apareceu, não lhe poderíamos ter chamado um manifesto socialista. Em 1847, entendia-se por socialistas duas
espécies de pessoas. De um lado, os seguidores dos diversos sistemas utopistas,
em especial os owenistas em Inglaterra e os fourieristas em França, ambos os
quais já então estavam reduzidos a meras seitas moribundas. Do outro lado, os mais
variados charlatães sociais, que, com as suas diversas panaceias e com toda a
espécie de remendos, queriam eliminar os males sociais sem magoar minimamente o
capital e o lucro. Em ambos os casos eram pessoas que estavam fora do movimento
trabalhista e que, ao invés, procuravam apoio junto das classes “cultas”. Em contrapartida, aquela secção
da classe trabalhadora que estava convencida da insuficiência de meras
revoluções políticas [entender:
rearranjos dos órgãos do poder de Estado] e que exigia uma reconfiguração
profunda da sociedade, essa parte autodenominava-se então comunista.
Era um comunismo mal desbastado, apenas instintivo, amiúde com o seu quê de
tosco. No entanto, tocava no ponto essencial e era suficientemente poderoso no
seio da classe trabalhadora para engendrar dois sistemas do comunismo utópico,
em França o comunismo da «Icária» de [Étienne] Cabet,
na Alemanha o de [Wilhelm] Weitling. Em
1847, socialismo significava um movimento burguês, comunismo um
movimento da classe trabalhadora. O socialismo, pelo menos no Continente, era
aceitável pela alta-roda [“salonfähig” no original], o comunismo era precisamente o contrário. E como já
nessa altura éramos muito decididamente da opinião de que «a emancipação
das classes trabalhadoras tem de ser obra das próprias classes trabalhadoras» [citação
dos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores], nem por um instante podíamos ter dúvidas sobre qual dos
dois nomes escolher. Além do mais, desde então, nunca nos passou pela cabeça
rejeitá-lo.
Quando Friedrich Engels deu à estampa, em 1880, uma obra
intitulada O desenvolvimento do socialismo da utopia à ciência (no original
alemão: Die Entwicklung des Sozialismus von
der Utopie zur Wissenschaft), o título poderia ter sido igualmente O
desenvolvimento do comunismo da utopia à ciência. No prefácio à
edição inglesa desta obra, em 1892 (9 anos depois da morte do seu amigo Marx), Engels
escreveu com manifesta satisfação e uma pontinha de orgulho:
A pedido do meu amigo Paul Lafargue, agora representante
de Lille na câmara de deputados francesa, arranjei três capítulos desse livro
[Engels refere-se ao seu livro A revolução na
ciência do sr. Dühring,
publicado em 1876] como uma brochura que ele traduziu
e publicou em 1880 sob o título Socialisme utopique et Socialisme scientifique. A partir deste texto em Francês foram preparadas
edições em Polaco e Espanhol. Em 1883, os nossos amigos alemães devolveram este
texto à língua original. Desde então, com base no texto alemão, foram
publicadas traduções para Italiano, Russo, Holandês e Romeno. Desta forma, contando com a
presente edição em Inglês, este pequeno livro circula já em 10 línguas. Não tenho conhecimento de qualquer outro trabalho Socialista, nem mesmo
o nosso [de K. Marx e F. Engels] Manifesto [do Partido] Comunista de 1848, ou O
Capital de
Marx, que tenha tido tantas traduções. Em
alemão, já houve quatro edições com um total de cerca de 20.000 exemplares.
A parte realçada a amarelo mostra bem, uma vez mais, a
equivalência semântica das palavras socialista e comunista.
Por último, convém acrescentar que a artificiosa distinção da sua autoria entre socialismo e comunismo, permitiu a Lénine inventar uma nova distinção entre dois períodos de transição: um primeiro período de transição entre a sociedade capitalista e o socialismo e um segundo período de transição entre o socialismo e o comunismo. Tal como a primeira distinção, esta segunda distinção, alegadamente “marxista”, não se encontra em parte nenhuma nos escritos de Marx (ou de Marx e Engels, ou de Engels). Estas distinções de aparência meramente terminológica e inofensiva, tiveram enormíssimas consequências práticas que foram tudo menos inofensivas. Tornaram-se instrumentos convenientes para justificar e legitimar, de 1918 em diante, quer a ideologia do partido único omnisciente e todos os seus actos como sendo, alegadamente, a única incarnação genuína do proletariado capaz de assegurar “a transição do capitalismo para o socialismo”, quer para justificar e legitimar, de 1928 em diante, a ideologia do partido-Estado e todos os seus actos, como sendo, alegadamente, a única incarnação genuína do proletariado para assegurar a “construção do socialismo”, condição necessária para a “transição para o comunismo” num futuro mais ou menos longínquo. Em suma, estas duas distinções foram instrumentais na ex-URSS para remeter o projecto emancipatório da «República beneficente da associação dos produtores livres e iguais» (Marx) como obra dos próprios trabalhadores para as calendas gregas. Mas este é um vasto e complexo assunto histórico que não pode ser aqui cabalmente desenvolvido.
[11] No último
congresso (o 20º) do PCP, realizado em 2016, estiveram presentes delegações,
entre muitos outros, dos seguintes “partidos irmãos”
(é assim que são apelidados pelo PCP): Partido Comunista da Federação Russa (que
se quer o herdeiro e continuador do Partido Comunista da União Soviética),
Partido Comunista da China, Partido do Trabalho da República Popular
Democrática da Coreia (vulgo, Coreia do Norte), Partido Comunista de Cuba, Partido Comunista do Vietnam,
Partido Popular Revolucionário do Laos.
[12] A combinação do princípio
jurídico do primado (ou império) da lei com um regime político representativo
assente em eleições livres e periódicas por sufrágio universal e secreto é
usualmente denominada “democracia representativa”,
“democracia liberal”, “regime
demo-liberal”, “Estado de direito democrático”
ou, simplesmente, “democracia”.
Mas todas essas designações são impróprias e enganadoras.
A democracia é uma coisa bem diferente de um
tal regime, que qualifico de oligarquia liberal.
Os leitores interessados em conhecer essa diferença têm à sua disposição, no
blogue Sítio com Vista (https://sitewitha view.ovh/),
um conjunto de textos esclarecedores sobre esta questão: On Democracy,
de William Paul Cockshott & Allin
Cottrell; Rumo à Democracia Integral (nomeadamente as secções 14-19) de José
Catarino Soares; Centralité du Tirage au Sort en Démocratie de Étienne
Chouard; e L’esprit antidémocratique des fondateurs de la “démocratie” moderne,
de Francis Dupuis-Déri.
[13] A palavra social-democrata tem
uma história, da qual resultam as suas várias acepções. Começou por ser o nome de um partido, o Partido
Social-Democrata dos Trabalhadores (Sozialdemokratische Arbeiterpartei [SDAP]),
que foi fundado em 1869, na Alemanha, por Wilhelm Liebknetch, Wilhelm
Bracke e August Bebel, com a preciosa ajuda dos seus compatriotas, amigos e camaradas exilados, Karl Marx e Friedrich
Engels. Em 1875, o SDAP fundiu-se com a Associação Geral dos Trabalhadores da
Alemanha (Allgemeiner Deutscher Arbeiterverein [ADA]) que tinha sido
fundada por Ferdinand Lassale em 1863, antes deste ter morrido em duelo em
1864, tomando o nome de Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha (Sozialistische
Arbeiterpartei Deutschlands [SAD]). Em 1890, o SAD mudou o nome para
Partido Social-Democrata da Alemanha (Sozialdemokratische Partei
Deutschlands [SPD]), que manteve até aos dias de hoje. O SPD (tal como os
seus antecessores, o SDAP e o SAD) foi um partido que lutava pela emancipação
económica e política dos trabalhadores assalariados através da instituição de uma
sociedade socialista. Durante esse período, “social-democrata” era sinónimo de “socialista”.
“Social-democrata” era o nome que adoptaram também muitos dos partidos
socialistas europeus dessa época, incluindo o Partido Trabalhista Social-Democrata
Russo de Georgi Plekhanov, Julius Martov, Vladimir Ilyich Ulianov (Lénine), Lev
Davidovich Bronstein (Trotski), etc., fundado em 1898.
O SPD
abandonou definitivamente (na prática, embora não ainda nas palavras) o
programa socialista durante a 1ª guerra mundial (1914-1918), passando a pautar
a sua intervenção pelos objectivos da suavização, correcção e erradicação dos
traços mais repulsivos e cruéis do sistema capitalista. (É esta tradição que Catarina
Martins evoca e reivindica quando afirma que o Bloco de Esquerda tem um
programa social-democrata). Em 1959, esta orientação franqueou um novo limiar
de acomodação ao capitalismo que ganhou uma expressão explícita no chamado
programa de Godesberg. O SPD passou, desde então, a elogiar abertamente o
capitalismo, argumentando, nomeadamente, que «a liberdade
para os patrões exercerem a sua iniciativa, assim como a livre concorrência,
são condições essenciais de uma política económica Social-Democrata» e
afirmando que «a propriedade privada dos meios de
produção pode reivindicar protecção pela sociedade desde que não impeça o
estabelecimento da justiça social».
[14] «Até ao momento [no quadro de apoio comunitário “Portugal 2020”] foram submetidos 411 projetos de 263 empresas
estrangeiras que correspondem a 4,3 % das empresas que já receberam apoio, e
13,49% do investimento feito com apoios comunitários [totalizando 841,22
milhões de euros]. As grandes multinacionais têm aproveitado
os fundos do Portugal 2020 e dominam o Top10 dos maiores investimentos feitos
com apoios comunitários» (Portal dos Incentivos, http://www.portaldosincentivos. pt/index.php/29-noticias/noticias-centro/627-portugal-2020-ha-263-empresas-estrangeiras-a-beneficiar-dos-apoios).
[15] Handivote é um sistema
electrónico de votação que utiliza telemóveis com acesso à Internet e mensagens
dactilografadas curtas (vulgo SMS). Ver,
por exemplo, Paul Cockshott, Karen Renauld, Tsvetelina Valcheva, Democratising
budgetary decisions with handivote (2013). Proceedings of the International
CTS-UNAM-IFPO-WARP seminar, Berlin, 8th and 9th February
2013, p.36-53; Sarah Birch, Paul Cockshott, Karen Renaud, (2014), Putting
Electronic Voting under the Microscope. The Political Quarterly
Volume 85, Issue 2, pages 187-194, April-June 2014; Tsvetelina Valcheva, Karen
Renaud, Paul Cockshott (2016), A Medium-Scale Trial of Handivote. International
Journal of Electronic Governance, 2016, Vol.8 Nº2.
[16] Edward Bellamy
(1850-1898) foi um socialista, jornalista e romancista americano. Ficou
conhecido sobretudo pelo seu romance de ficção científica Looking
Backward: 2000-1887 [Olhando para Trás: 2000-1887] que foi
traduzido para 20 idiomas, incluindo o Português, e que vendeu cerca de 200 mil
exemplares nos EUA, só no primeiro ano de publicação (1888). Isso fez dele um campeão
de vendas (“best-seller” na gíria livreira dos países de língua oficial inglesa)
nos EUA, só ficando atrás de Uncle Tom’s Cabin; or, Life Among the Lowly (traduzido
para Português como A Cabana do Pai Tomás ou os Negros na América) de
Harriette Beecher Stowe, e de Ben-Hur: A Tale of the Christ (traduzido para
Português como Ben-Hur: uma narrativa de Cristo) de Lee Wallace, entre
os romances mais vendidos nas últimas décadas do século XIX.
No romance de Bellamy — traduzido por Pinheiro Chagas em
Portugal, em 1891, com o título D’aqui a cem anos, que inverte completamente o
sentido temporal do título original — Julian West, um jovem com preocupações de
justiça social oriundo de uma família abastada, adormece em 1887 após um transe
hipnótico, para acordar 113 anos depois, no ano 2000, sem ter envelhecido mais
do que alguém depois de uma noite bem dormida. O sítio onde West acorda é o
mesmo onde adormeceu, mas a sociedade sofreu uma transformação profunda. É
agora uma sociedade socialista tecnologicamente mais avançada do que qualquer
sociedade capitalista da época de Bellamy. Porém, mais do que as diferenças
tecnológicas (que não deixam de estar presentes), o romance explora sobretudo
as diferenças sociais e económicas entre a sociedade capitalista de 1887 no seu
país natal e a sociedade socialista imaginada por Bellamy. O próprio Bellamy
assevera que o seu romance «tenciona ser, com toda a
seriedade, uma previsão de acordo com os princípios de evolução, da próxima
fase do desenvolvimento social e industrial da humanidade, especialmente neste
país [os Estados Unidos]». E vale a pena notar que Bellamy encarava como
perfeitamente plausível que a transição da sociedade capitalista para a «civilização fraternal» por ele imaginada não
necessitaria de um prazo maior do que aquele que o romance Looking
Backward estabelece: um século! Isto porque, argumenta ele, «o que
nos ensina a história, senão que as grandes transformações nacionais, embora
sejam preparadas durante anos sem que ninguém as perceba, se concretizam, uma
vez iniciadas, com uma rapidez e um ímpeto irresistível, proporcionais à sua
magnitude e não limitados por ela?»
Mais tarde, no seu romance Equality (Igualdade),
publicado em 1898, Bellamy iria pormenorizar mais minuciosamente e de maneira
bem mais democrática a arquitectura socioinstitucional e o modo de
funcionamento da sociedade americana desse futuro socialista que havia imaginado
para o ano 2000 na sua primeira obra ficcional, antes de morrer prematuramente vítima
da tuberculose.
[17] O romance Olhando para
Trás de Edward Bellamy foi publicado em Inglaterra no jornal socialista Commonweal.
O socialista inglês William Morris (1834-1896), homem de muitos talentos e
ofícios (poeta, desenhador, estilista têxtil, pintor, arquitecto), que
discordava de Bellamy em muitos pontos em matéria de socialismo e de estética,
sente-se na obrigação de escrever uma resposta, também sob a forma romanesca. Assim
nascerá o romance de ficção científica News from Nowhere, or an Epoch of Rest (Notícias
de Nenhures, ou uma Época de Repouso), publicado em 1890.
William Morris em 1875 |
O narrador, William Guest, regressa a casa depois de uma
reunião pública socialista muita agitada e adormece. Quando desperta descobre
que se encontra no futuro, no ano 2012. A sociedade então vigente é uma
sociedade comunista, igualitária, como a do livro Olhando para Trás, mas
caracterizada, ao contrário dela, por uma organização mais artesanal do que
industrial, mais rural do que urbana, mais libertária do que estatutária, mais
dada à criatividade individual e ao contacto repousante com a Natureza do que à
disciplina laboral e ao frenesim da vida citadina. Depois de várias deambulações
e peripécias, Guest participa num jantar festivo durante o qual as outras
pessoas deixam de o poder ver. Guest vê-se então a caminhar envolto num
nevoeiro escuro. Quando acorda de facto, dá-se conta de que esteve a sonhar,
mas declara que o que viveu durante o sonho foi mais uma visão do futuro do que
uma fantasia.
[18] Um circuito
integrado é uma pastilha ou microplaqueta (chip na gíria
anglo-americana) muito delgada de material semicondutor (e.g. cristal de
silício) em que se encontram gravados uma quantidade enorme de dispositivos
microelectrónicos interligados, principalmente diodos semicondutores e transístores,
além de componentes passivos como resistências ou condensadores.
Um cartão de pagamento com circuito integrado (CPCI) pode
ter um ou vários circuitos integrados. Um cartão de pagamento inteligente
(CPI) é semelhante a um CPCI, salvo que não tem de ter necessariamente uma banda
magnética. Na verdade, dispensa completamente a banda magnética característica
dos CPCI.
A arquitectura básica de um CPI tem três elementos: um sistema de entrada/saída (sistema E/S), uma unidade de processamento central (UPC) e memória. O sistema E/S é a interface necessária para interagir com os terminais de pagamento automático (TPA). Há 2 tipos de sistema E/S: por contacto directo com o TPA, ou sem contacto directo com o TPA. Neste último caso, a interacção com o TPA faz-se através de ondas de rádio. A UPC, ou microprocessador, é o componente que distingue o CPI de outros cartões que são construídos para só armazenarem dados. As memórias usadas pelos CPI são fabricadas com materiais semicondutores. Os três tipos de memória semicondutora usados pelos CPI são: a memória somente de leitura (ou ROM, acrónimo inglês de Read Only Memory), a memória de acesso aleatório (ou RAM, acrónimo inglês de Random Access Memory) e a memória somente de leitura, mas cujos conteúdos podem ser apagados e programados através de um impulso de voltagem (ou EEPROM, acrónimo inglês de Electrically Erasable Programmable Read Only Memory).
[19] A jornada total de trabalho de uma sociedade é a quantidade total de horas de trabalho que toda a população trabalhadora pode fornecer por dia.
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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana