Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

29 novembro, 2020

Esta é 9ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto).

******

  Como o SARS-CoV-2 se propaga à boleia dos nossos comportamentos habituais mais arreigados

José Catarino Soares

 

1. Introdução

Este artigo é um complemento do anterior: “A chave do êxito no combate à pandemia, até estar disponível uma vacina segura e eficaz, está a montante da rede hospitalar do SNS”, publicado neste blogue em 17 de Novembro último.

Nesse artigo, lembrei e comentei as cinco medidas básicas de autodefesa individual e preventiva que podemos e devemos adoptar para impedir a propagação do vírus SARS-CoV-2 e a doença que ele provoca (a COVID-19), [1] até estar disponível uma vacina segura e eficaz (ou várias vacinas seguras e eficazes) e até estar concluída a vacinação em massa do grosso da população, começando pelos grupos de maior risco. São elas:  

1. Manter um distanciamento físico de 2 metros das pessoas com quem não coabitamos, quer se esteja em pé ou sentado, a andar ou parado, dentro ou fora de casa.

2. Uso de máscara de protecção respiratória cobrindo o nariz e a boca, em todos os espaços públicos fechados (como autocarros, metro, comboios, restaurantes, cafés, lojas, centros comerciais, cinemas, teatros, escolas, politécnicos, universidades, empresas, repartições públicas, etc.) e em todos os espaços públicos abertos, mas com muita gente aglomerada e onde não seja respeitada, ainda que temporariamente, a distância mínima (esplanadas, miradouros, praças apinhadas, anfiteatros ao ar livre, trilhos e percursos pedestres, pontes pedonais, passadiços, estádios de futebol, etc.).

3. Uso de viseira ou de óculos-viseira, como complemento da máscara.

4. Etiqueta respiratória (espirrar e tossir para um lenço de papel descartável que cubra a boca e o nariz ou para a dobra do braço, oposta ao cotovelo).

5. Lavagem frequente das mãos com água e sabão ou – à falta de água e sabão (que é sempre a melhor solução) – com gel desinfectante cuja concentração alcoólica varie entre 60% e 80%. 

O propósito deste artigo é responder à seguinte questão (Q):

Q: Porque é que é (aparentemente) tão difícil fazer o que parece ser tão fácil — cumprir escrupulosa e consistentemente estas cinco medidas básicas de autodefesa preventiva contra a infecção pelo vírus SARS-CoV-2?

A pergunta é pertinente, tendo em vista os milhares de novas pessoas infectadas com o vírus SARS-CoV-2, as centenas de pessoas hospitalizadas e as dezenas de óbitos por COVID-19 que todos os dias são registadas em Portugal desde Outubro.

O presidente da República, o governo e os partidos com assento parlamentar repetem amiúde o elogio ao «comportamento exemplar dos portugueses» perante esta pandemia. Mas este diagnóstico não tem correspondência com os factos. Há, certamente, muitos portugueses que se comportam exemplarmente neste particular. Mas há também, certamente, muitos que o não fazem. Se assim não fosse os números da propagação da pandemia não seriam o que são e são muito maus [2].

Não sei (e julgo que ninguém saberá) quantificar quantos portugueses se comportam exemplarmente (cumprindo as 5 medidas de autodefesa preventiva supramencionadas) e quantos o não fazem. Mas isso também não é o que mais importa para o caso em apreço. O que verdadeiramente importa ter bem presente é este facto iniludível: seja qual for o número dos portugueses (e estrangeiros residentes em Portugal) que não cumprem as 5  regras básicas, são suficientes para provocar o descalabro que todos conhecemos da situação pandémica e para  manter os que cumprem reféns das medidas de recolher obrigatório e de encerramento obrigatório selectivo de algumas actividades económicas que a  imprevidência dos incumpridores suscita e justifica.

Daí, não só a pertinência, mas também a importância prática da questão Q.

2. Foco

Vou pôr de parte, neste artigo, (i) as pessoas que negam a existência do vírus SARS-CoV-2 e a doença COVID-19 que ele provoca; (ii) as que desvalorizam a sua gravidade (“é uma gripezinha”, “é um vírus como tantos outros”, etc.) e (iii) as que vêem em ambos (no vírus e na doença associada) o resultado de uma tenebrosa conspiração urdida por potestades malévolas e todo-poderosas. 

As crenças destas pessoas e o comportamento que tais crenças induzem merecem uma análise específica, necessariamente demorada, que ficará para outra oportunidade. Aqui ocupar-me-ei apenas das pessoas que estão cientes da existência pandémica deste vírus e da gravidade da doença que ele provoca e que, apesar disso, não só não cumprem escrupulosa e consistentemente as medidas necessárias para combater esta pandemia, como também não sentem rebates de consciência por esse incumprimento.  

3. O condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações perigosas

O linguista Benjamin Lee Whorf, prematuramente falecido com 44 anos, vítima de cancro, deixou-nos, há quase um século, uma chave teórica para compreender este paradoxo.

Benjamin Lee Whorf (1897-1941)

3.1. Um linguista na pele de um inspector de incêndios

Whorf era um engenheiro químico e ganhava a sua vida como inspector de incêndios numa companhia de seguros em Hartford, a capital do Estado americano de Connecticut, Nova Inglaterra, EUA. Era nas horas vagas que se dedicava à linguística de alma e coração. Num dos seus ensaios mais originais, The Relation of Habitual Thought and Behavior to Language (1939) [“A relação do pensamento e do comportamento habituais com a linguagem”], apoiou-se na sua experiência de inspector de incêndios para fazer uma observação do maior interesse para o assunto deste artigo.

Whorf leu e analisou centenas de relatórios sobre as circunstâncias que envolviam o deflagrar de incêndios e, em muitos casos, de explosões. De início, a análise de Whorf concentrou-se nas condições puramente físicas, tais como instalações eléctricas defeituosas, presença ou falta de espaços arejados entre tubos de metal e peças de madeira, etc. e apresentava os resultados dessa maneira. Na verdade, a análise de Whorf era feita sem que alguma vez lhe tivesse passado pela cabeça que outros significados pudessem ser revelados. Porém, à medida que o tempo foi passando, tornou-se evidente para Whorf que não só a situação física como tal, mas o significado dessa situação para as pessoas era, por vezes, um factor, através do comportamento das pessoas, no começo de um incêndio ou na ocorrência de uma explosão. E este factor de significado era mais claro quando se tratava de um significado linguístico vinculado ao nome ou à descrição linguística comummente aplicada à situação.

Assim, por exemplo, à volta de um armazém do que se designava por “tambores de gasolina” o comportamento tendia a ser de um certo tipo – isto é, as pessoas tendiam a agir com grande cuidado – ao passo que à volta de um armazém do que se designava por “tambores de gasolina vazios” o comportamento tendia a ser diferente — descuidado, com pouca inibição de fumar ou de atirar beatas para o chão. No entanto, os tambores “vazios” são talvez os mais perigosos porque contêm vapor explosivo. Do ponto de vista físico, a situação era perigosa, mas a sua análise linguística, em conformidade com a analogia vulgar, levava as pessoas a empregarem a palavra “vazio”, a qual inevitavelmente sugere a ausência de perigo.

3.2. Vazio -> inofensivo

A palavra “vazio/vazia” é usada em duas acepções linguísticas: (1) como um sinónimo virtual de “nulo e desocupado, negativo, inerte”; (2) aplicado a situações físicas sem ter em conta a natureza do que está ou esteve no contentor — e.g., vapor, vestígios de líquido ou lixo esparso. A situação é nomeada numa acepção (2) e é em seguida transposta e vivenciada de maneira a fazer jus à outra (1).

Esta é a fórmula geral ou o mecanismo do condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações perigosas — uma descoberta de Whorf. O seu artigo dá muitos outros exemplos ilustrativos, mas julgo que este será suficiente para se entender o seu teor e alcance.

4. Como o SARS-CoV-2 se propaga à boleia dos nossos comportamentos mais arreigados

Na esteira de Whorf, conjecturo que o factor determinante no êxito do SARS-CoV-2 em se propagar de pessoa para pessoa não é apenas a sua extrema pequenez, mas o condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais dos seres humanos em situações extremamente propícias à sua propagação e que são, por conseguinte, as mais perigosas. Vejamos então separadamente estes dois aspectos.

4.1. O tamanho dos viriões do SARS-CoV-2

Os viriões do SARS-CoV-2 são partículas esféricas demasiado pequenas para poderem ser vista a olho nu. Não podem sequer ser vistas num microscópio óptico. Só podem ser vistas com a ajuda de um potente microscópio electrónico de varrimento ou de transmissão. A razão para isso é o seu diâmetro, que varia entre os 60 nm (nanómetros) e os 140 nm, ou, equivalentemente, entre os 0,06 μm (micrómetros) e os 0,14 μm. O diâmetro médio de um virião é de aproximadamente 125 nm (0,125 μm). Um nanómetro é uma unidade de medida de comprimento do sistema métrico, correspondente a 1×10−9 metro ou 0,000000001 metro (um milionésimo de milímetro ou um bilionésimo de metro).

O coronavírus SARS-CoV-2

O seguinte exemplo poderá ajudar a ter uma ideia mais concreta do nanómetro como unidade de medida e do tamanho do novo coronavírus medido em nanómetros. O fio de cabelo humano (do cabelo liso, para simplificar) tem geralmente 60 a 120 micrómetros de diâmetro (vulgo, espessura). Um micrómetro equivale a 1.000 nanómetros. Um fio de cabelo tem, portanto, entre 60.000 e 120.000 nanómetros de diâmetro. Por conseguinte, precisaríamos de cortar esse fio 1.000 vezes no sentido do comprimento para fazer um fio que tivesse o tamanho de um virião de SARS-CoV-2.

Outro exemplo: uma formiga mede 5.000 micrómetros (= 5 milhões de nanómetros). Ora, a entidade material mais pequena que podemos ver a olho nu mede 40 micrómetros (= 40.000 nanómetros). Assim, para todos os efeitos práticos, no nosso quotidiano, os viriões do SARS-CoV-2 são invisíveis.

4.2. Invisível -> incorporal -> inofensivo

É bem conhecida a sinonímia virtual que o senso comum estabelece entre a invisibilidade e a incorporalidade (ou imaterialidade). O que é invisível é incorporal (imaterial). Por outro lado, o senso comum considera que o que distingue as entidades materiais (vulgo, coisas) – como, por exemplo, pedras, montanhas, florestas, cães, pássaros, pessoas, famílias, livros, escolas, fábricas, astros – das entidades imateriais (ou ideacionais) – como, por exemplo, mitos, construtos (conceitos, noções, proposições, teorias), significados, entes matemáticos (números, figuras geométricas, equações diferenciais, etc.) – é que as primeiras têm massa e as segundas não. Mas isso não é verdade.

Por isso, convém esclarecer várias coisas antes de prosseguirmos.

A primeira é que toda a entidade material, excepto o caso do Universo ou Cosmo no seu todo, é uma componente de um sistema. A segunda é que qualquer sistema composto de entidades materiais, é também material [3], desde o núcleo interno da Terra até à crosta terrestre, desde a biosfera à sociedade, desde a Terra como um todo ao Universo (passando pelo sistema solar, a Via Láctea, os aglomerados de galáxias, os enxames ou superaglomerados galácticos, as grandes muralhas de superaglomerados galácticos). A terceira é que ‘matéria’ e ‘massa’ são noções bem distintas. A massa é, sem dúvida, uma propriedade de muitas entidades materiais (vulgo, coisas). Mas há muitas entidades materiais que são desprovidas de massa e isso sucede na própria física. Por exemplo, os campos electromagnético e gravitacional, os fotões, os gluões, os neutrinos e os hipotéticos gravitões são entidades materiais sem massa.

O senso comum opera com a noção de materialidade (corporalidade) da física clássica — da física pré-relativista e pré-quântica. Na física clássica é material (corporal) o que possui massa e, frequentemente também, extensão, forma e mobilidade. É verdade que a mecânica clássica emprega o conceito de ponto material (ou massa puntiforme), o qual tem massa, embora infinitesimal. Mas isso sempre foi entendido como um modelo simplificado de um corpo material extenso [4] — como, por exemplo, quando se representa a Terra como um ponto na sua trajectória em torno do Sol, ou a Lua na sua trajectória em torno da Terra. De 1750 em diante, até aos anos 1910, os líquidos e os gases, embora não fossem sólidos, eram encarados como sendo constituídos por partículas sólidas – átomos ou moléculas – uma ideia que a experiência de Rutherford de 1911 veio refutar: os átomos são penetráveis e em grande medida ôcos porque a sua massa concentra-se no núcleo. 

Na concepção do senso comum, (1) o que é invisível é incorporal, imaterial, e (2) o que é imaterial não constitui uma ameaça séria para a nossa saúde ou para a nossa existência, (3) porque só as entidades materiais (ou seja, dotadas de massa) nos podem magoar. Contraste-se, por exemplo, o ar que respiramos com uma zaragatoa enfiada no nariz, se quisermos ter uma ideia mais concreta do género de entidades envolvidas em (1) e (3), respectivamente, neste tipo de raciocínio.

Para simplificar esta cadeia de inferências — mas tornando mais fácil memorizá-la — podemos anotá-la assim (onde M= mecanismo):

(M1): invisível -> incorporal -> inofensivo

Dada a sua pequenez, o vírus SARS-CoV-2 beneficia, como vimos, de uma invisibilidade assegurada que o habilita, por sua vez, a participar no mecanismo de condicionamento linguístico do comportamento habitual em situações perigosas caracterizada pela conjugação de (1), (2) e (3) — três proposições todas elas falsas.  

4.3. Família, amigos, colegas -> zona de confiança mútua -> segurança

Este mecanismo, porém, não é suficiente por si só para dar uma resposta plausível à questão Q enunciada na Introdução. Isto, porque há seguramente pessoas que estão cientes de que o vírus é perigoso — ou pelo menos que admitem teoricamente que ele pode ser perigoso, sem necessariamente entenderem as razões da sua perigosidade — apesar de ser invisível a olho nu e que, no entanto, não cumprem, em muitas circunstâncias, algumas das regras básicas de autodefesa preventiva contra a infecção pelo SARS-CoV-2, principalmente as regras 1 e 2 (cf. Introdução), sem terem rebates de consciência.

Deverá haver, portanto, conjecturo, outro mecanismo de condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações perigosas que opere conjuntamente com o mecanismo identificado na secção 4.2. de modo a fornecer-nos uma resposta plausível à questão Q.

Suponho que esse segundo mecanismo seja o seguinte:

(1) Quando estamos com pessoas da nossa família que nos querem bem, com amigos e mesmo com colegas de escola/trabalho com quem nos damos bem, (2) estamos numa zona de confiança mútua, (3) logo de segurança (sanitária ou outra), (4) onde nada temos a temer. (5) Podemos, pois, relaxar as medidas de autoprotecção preventiva contra o novo coronavírus.

Note-se que as proposições (1) e (2) não levantam problemas de veracidade vs falsidade. Mas isso já não acontece com as proposições (3), (4) e (5), cuja veracidade depende do preenchimento de múltiplos requisitos, da realização concomitante de múltiplas condições. Se esses requisitos não estiverem preenchidos, se essas condições não estiverem realizadas, a cadeia de inferências (1), (2), (3), (4), (5) rompe-se e os seus elos dispersam-se.

Para simplificar esta cadeia de inferências — mas tornando mais fácil por outro lado a sua memorização — podemos anotá-la assim (onde M= mecanismo):

(M2): família, amigos, colegas -> zona de confiança mútua -> segurança

4.4. Comportamentos arreigados

Julgo que são estes dois mecanismos (M1 e M2) que operam conjugadamente para levar ao incumprimento (sem rebates de consciência) das 5 medidas básicas de autodefesa preventiva contra a propagação SARS-CoV-2.  E eles operam tanto mais eficazmente quanto estão em causa os nossos comportamentos arreigados.

O jornal Público fez três excelentes reportagens sobre três surtos de infecção — numa obra de construção civil, numa fábrica e num lar para pessoas idosas — com a ajuda e com os dados que lhe foram fornecidos pelas equipas de saúde pública das admnistrações regionais de saúde. Vou aqui deter-me no caso da obra de construção civil (“Raio-x a três surtos: as boleias e o convívio espalharam a COVID-19 nesta obra”. Público, 11 de Novembro de 2020), visto que permite ilustrar muito bem o modus operandi dos dois mecanismos (M1 e M2).

Tratou-se de uma obra de remodelação de um hotel de um concelho de Lisboa, em Maio. Pela remodelação desse hotel passaram 119 trabalhadores de diferentes ofícios, 45 dos quais foram infectados, antes da obra ser encerrada, 19 dias depois do primeiro caso ter sido confirmado.

Lembremo-nos de que o uso de máscara respiratória começou a ser obrigatório em locais fechados e movimentados no mês de Abril. Porém — segundo informou o médico Vítor Veríssimo, do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Lisboa Central, que acompanhou de perto este surto — muitos trabalhadores desta obra, que decorreu em Maio, não respeitavam esta regra. «Tinham indicação da parte da Medicina do Trabalho para o fazer, mas não as usavam regularmente

Tudo começou por um trabalhador infectado que foi trabalhar, apesar de já ter sintomas da COVID-19, e que infectou outros, que por sua vez infectaram outros e assim por diante até perfazer 45 trabalhadores infectados. As causas explicativas desta cadeia de infecções, segundo as autoridades de saúde, são três: (1) desleixo no uso de máscara respiratória, (2) partilha de boleias em carros e carrinhas, (3) refeições tomadas em conjunto (com conversa à mistura) sem respeitar o distanciamento físico de segurança.

24 de Março de 2020, fábrica Donfeng de viaturas de passageiros, na cidade de Wuhan, província de Hubei, China. Trabalhadores tomam uma refeição respeitando escrupulosamente o distanciamento físico de dois metros de distância uns dos outros. Foto Xinhua.

Além de, em certos casos, a utilização de máscara não ser respeitada, o distanciamento também não o era, principalmente nas pausas para almoços. “Apesar de o espaço ser bastante arejado e de os trabalhadores estarem dispersos por vários espaços do edifício, quase que simulando um ambiente ao ar livre, vários funcionários juntavam-se para as pausas de almoço e do lanche”, descreve o médico [Vítor Veríssimo].

Outra das razões apontadas pelo médico é que o ambiente de trabalho, por ser aparentemente arejado, muitas das vezes ao ar livre ou com poucas janelas, aliado ao facto de poder existir uma “menor literacia para a saúde neste grupo” (quando comparado, por exemplo, com um surto num lar ou numa empresa), “facilita o alívio das medidas preventivas previstas, como a utilização regular da máscara”.

Eis alguns exemplos concretos que os serviços de medicina do trabalho/ saúde ocupacional conseguiram reconstituir nessa obra:

Dois profissionais responsáveis pela condução das empilhadoras (ao ar livre) que partilharam horários de refeição. Cinco elementos de uma equipa que, apesar de não trabalharem no mesmo piso nem partilharem horário de refeição, iam para a obra no mesmo carro. Nove pedreiros de diferentes pisos que almoçavam juntos.

A explicação do dr. Vítor Veríssimo e dos médicos de medicina do trabalho/saúde ocupacional foi retomada pela ministra da Saúde:

Foi precisamente esta a explicação dada pela ministra da Saúde, na altura em que os surtos em obras de construção civil e grandes empresas, principalmente na região de Lisboa e Vale do Tejo, se multiplicavam. “Há algum relaxamento nos momentos que não são de trabalho formal — almoço, mudas de roupa, eventual utilização de meios de transporte coletivos, que não transportes públicos”, afirmou Marta Temido a 23 de Maio.

5. Uma campanha eficaz contra os comportamentos de risco

Não há nada de errado nesta descrição. Todavia, ela enferma das mesmas limitações explicativas do que os relatórios de Benjamin Lee Whorf sobre as causas dos incêndios e das explosões, antes do mesmo Whorf ter descoberto, como vimos, o mecanismo do condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações de risco.

Isto porque uma explicação satisfatória consiste em identificar a causa ou as causas dos comportamentos de risco, do tal «relaxamento» das regras básicas de autodefesa preventiva contra a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 «nos momentos que não são de trabalho formal». Sem identificar essas causas não é possível desenvolver uma campanha de esclarecimento público destinada a erradicá-las.

Julgo que a explicação reside na operação conjugada dos dois mecanismos descritos mais acima:

(M1): invisível -> incorporal -> inofensivo

(M2): família, amigos, colegas -> zona de confiança mútua -> segurança

Assim sendo, uma campanha eficaz para a promoção das 5 medidas básicas de autoprotecção individual contra infecção pelo vírus SARS-CoV-2 passa por alertar para a perigosidade dos comportamentos habituais e arreigados à boleia dos quais o vírus se propaga e que são precisamente os comportamentos que estão subjacentes a cada um dos vectores ->  das fórmulas gerais M1 e M2.

Esses comportamentos habituais e arreigados, mas que são hoje, no contexto da pandemia de SARS-CoV-19 comportamentos de alto risco, são (i) as refeições tomadas em conjunto por colegas (de escola ou de trabalho) e por familiares não-coabitantes sem respeitar o distanciamento físico necessário e com muita conversa à mistura; (ii) o não uso de máscara e o não respeito pelo distanciamento físico no convívio com amigos, colegas e familiares não coabitantes; (iii) o não uso de máscara nas viagens em viatura (carro ou carrinha) privada com colegas, amigos e familiares não-coabitantes.

A banda desenhada seguinte (cujo autor e cuja origem infelizmente desconheço) é um bom exemplo do que poderia ser uma tal campanha. Mostra de uma maneira muito directa e simples que os comportamentos mais  habituais e arreigados da nossa conduta no dia-a-dia – comportamentos que nos habituámos a encarar (e com razão) como sendo inofensivos em condições normais – se convertem em comportamentos de alto risco no contexto da actual pandemia de SARS-Cov-2.

Temo, porém, que não haja ninguém no Ministério da Saúde – em particular na Direcção Geral de Saúde e nas Administrações Regionais de Saúde – convencido da necessidade de desenvolver uma tal campanha e em posição de conseguir levá-la por diante com a urgência e o vigor necessários.

                        …………………………………………………………

Notas

[1] No presente artigo, por razões de economia argumentativa,  deixo de lado as medidas de autodefesa preventiva, mas de âmbito colectivo, contra a propagação do vírus SARS-CoV-2, cuja adopção e implementação  incumbem aos poderes públicos (orgãos do poder político e autoridades de saúde pública) e que também mencionei no meu artigo anterior, mas que omitirei neste. Raciocinarei, portanto, como se o actual descalabro da situação pandémica não fosse de modo nenhum imputável a falhas e incumprimentos dos poderes públicos. É claro que não é isso que se passa na realidade. As cláusulas como se” são, como se sabe, artifícios lógicos destinados a realçar um determinado aspecto da realidade que se pretende examinar em pormenor. Por isso, peço aos leitores que levem esta advertência em consideração ao lerem este artigo. 

[2] Os resultados registados hoje, domingo, dia 29 de Novembro de 2020 são os seguintes: mais 64 óbitos por COVID-19; mais 4.093 pessoas infectadas com o vírus SARS-CoV-2; 3.245 pessoas hospitalizadas com COVID-19 (+90 do que no dia anterior), das quais 536 em unidade de cuidados intensivos (+ 7 do que no dia anterior), um novo máximo desde o início da pandemia; 80.838 casos activos (+770 do que no dia anterior).

[3] Convém distinguir “matéria” e “entidade material”. A matéria é uma colecção — a colecção de todas as entidades materiais (efectivas ou possíveis) passadas, presentes e futuras. Uma entidade material é uma entidade que pode mudar de estado. Dizer que uma entidade é material é o mesmo que dizer que pode estar em pelo menos dois estados (v. Mario Bunge. Matter and Mind — a philosophical inquiry. Springer: Dordrecht, Heidelberg, London, New York. 2010, p.273). Uma colecção é um construto, um conceito. Por conseguinte, a matéria (um conceito) é imaterial (como são todos os conceitos).

[4] Mario Bunge, ibidem, p.25.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana