Esta é 9ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto).
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Como o
SARS-CoV-2 se propaga à boleia dos nossos comportamentos habituais mais
arreigados
José Catarino Soares
1. Introdução
Este artigo é um complemento do anterior: “A chave do êxito no combate à
pandemia, até estar disponível uma vacina segura e eficaz, está a montante da
rede hospitalar do SNS”, publicado neste blogue em 17 de Novembro último.
Nesse artigo, lembrei e comentei as
cinco medidas básicas de autodefesa individual e preventiva que podemos e
devemos adoptar para impedir a propagação do vírus SARS-CoV-2 e a doença que
ele provoca (a COVID-19), [1] até estar disponível uma vacina segura e eficaz (ou
várias vacinas seguras e eficazes) e até estar concluída a vacinação em massa
do grosso da população, começando pelos grupos de maior risco. São elas:
1. Manter um distanciamento físico de 2 metros das pessoas com quem não coabitamos, quer se esteja em pé ou
sentado, a andar ou parado, dentro ou fora de casa.
2. Uso de máscara de protecção respiratória cobrindo o
nariz e a boca, em todos os espaços públicos fechados (como autocarros,
metro, comboios, restaurantes, cafés, lojas, centros comerciais, cinemas, teatros, escolas, politécnicos,
universidades, empresas, repartições públicas, etc.) e em todos os espaços
públicos abertos, mas com muita gente
aglomerada e onde não seja respeitada, ainda que temporariamente, a distância
mínima (esplanadas, miradouros, praças apinhadas, anfiteatros ao ar livre,
trilhos e percursos pedestres, pontes pedonais, passadiços, estádios de
futebol, etc.).
3. Uso de viseira ou de óculos-viseira, como complemento da máscara.
4. Etiqueta respiratória (espirrar e tossir para
um lenço de papel descartável que cubra a boca e o nariz ou para a dobra do
braço, oposta ao cotovelo).
5. Lavagem frequente das mãos com água e sabão ou – à falta de água e sabão (que é sempre a melhor solução) – com gel desinfectante cuja concentração alcoólica varie entre 60% e 80%.
O propósito deste artigo é responder à seguinte questão (Q):
Q: Porque é que é (aparentemente)
tão difícil fazer o que parece ser tão fácil — cumprir escrupulosa e
consistentemente estas cinco medidas básicas de autodefesa preventiva contra a
infecção pelo vírus SARS-CoV-2?
A pergunta é pertinente, tendo em vista os milhares de novas pessoas infectadas com o vírus SARS-CoV-2, as centenas de pessoas hospitalizadas e as dezenas de óbitos por COVID-19 que todos os dias são registadas em Portugal desde Outubro.
O presidente da República, o governo e os partidos com assento parlamentar
repetem amiúde o elogio ao «comportamento exemplar dos
portugueses» perante esta pandemia. Mas este diagnóstico não tem
correspondência com os factos. Há, certamente, muitos portugueses que se
comportam exemplarmente neste particular. Mas há também, certamente, muitos que
o não fazem. Se assim não fosse os números da propagação da pandemia não seriam
o que são e são muito maus [2].
Não sei (e julgo que ninguém saberá) quantificar quantos portugueses se
comportam exemplarmente (cumprindo as 5 medidas de autodefesa preventiva
supramencionadas) e quantos o não fazem. Mas isso também não é o que mais
importa para o caso em apreço. O que verdadeiramente importa ter bem presente é
este facto iniludível: seja qual for o número dos portugueses (e estrangeiros
residentes em Portugal) que não cumprem as 5
regras básicas, são suficientes para provocar o descalabro que todos
conhecemos da situação pandémica e para
manter os que cumprem reféns das medidas de recolher obrigatório e de
encerramento obrigatório selectivo de algumas actividades económicas que a imprevidência dos incumpridores suscita e
justifica.
Daí, não só a pertinência, mas também a importância prática da questão Q.
2. Foco
Vou pôr de parte, neste artigo, (i) as pessoas que negam a existência do vírus SARS-CoV-2 e a doença COVID-19 que ele provoca; (ii) as que desvalorizam a sua gravidade (“é uma gripezinha”, “é um vírus como tantos outros”, etc.) e (iii) as que vêem em ambos (no vírus e na doença associada) o resultado de uma tenebrosa conspiração urdida por potestades malévolas e todo-poderosas.
As crenças destas pessoas e o comportamento que tais crenças induzem merecem uma análise específica, necessariamente demorada, que ficará para outra oportunidade. Aqui ocupar-me-ei apenas das pessoas que estão cientes da existência pandémica deste vírus e da gravidade da doença que ele provoca e que, apesar disso, não só não cumprem escrupulosa e consistentemente as medidas necessárias para combater esta pandemia, como também não sentem rebates de consciência por esse incumprimento.
3. O condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações perigosas
O linguista Benjamin Lee Whorf, prematuramente falecido com 44 anos, vítima de cancro, deixou-nos, há quase um século, uma chave teórica para compreender este paradoxo.
Benjamin Lee Whorf (1897-1941) |
3.1.
Um linguista na pele de um inspector de incêndios
Whorf era um engenheiro químico e ganhava a sua vida como inspector de
incêndios numa companhia de seguros em Hartford, a capital do Estado americano
de Connecticut, Nova Inglaterra, EUA. Era nas horas vagas que se dedicava à
linguística de alma e coração. Num dos seus ensaios mais originais, The Relation of
Habitual Thought and Behavior to Language (1939) [“A relação do
pensamento e do comportamento habituais com a linguagem”], apoiou-se na sua
experiência de inspector de incêndios para fazer uma observação do maior
interesse para o assunto deste artigo.
Whorf leu e analisou centenas de relatórios sobre as circunstâncias que
envolviam o deflagrar de incêndios e, em muitos casos, de explosões. De início,
a análise de Whorf concentrou-se nas condições puramente físicas, tais como instalações
eléctricas defeituosas, presença ou falta de espaços arejados entre tubos de
metal e peças de madeira, etc. e apresentava os resultados dessa maneira. Na
verdade, a análise de Whorf era feita sem que alguma vez lhe tivesse passado
pela cabeça que outros significados pudessem ser revelados. Porém, à medida que
o tempo foi passando, tornou-se evidente para Whorf que não só a situação
física como tal, mas o significado dessa situação para as pessoas era,
por vezes, um factor, através do comportamento das pessoas, no começo de um
incêndio ou na ocorrência de uma explosão. E este factor de significado era
mais claro quando se tratava de um significado linguístico vinculado ao
nome ou à descrição linguística comummente aplicada à situação.
Assim, por exemplo, à volta de um armazém do que se designava por “tambores de gasolina” o comportamento tendia a ser de
um certo tipo – isto é, as pessoas tendiam a agir com grande cuidado – ao passo
que à volta de um armazém do que se designava por “tambores
de gasolina vazios” o comportamento tendia a ser diferente — descuidado,
com pouca inibição de fumar ou de atirar beatas para o chão. No entanto, os
tambores “vazios” são talvez os mais perigosos
porque contêm vapor explosivo. Do ponto de vista físico, a situação era perigosa,
mas a sua análise linguística, em conformidade com a analogia vulgar, levava as
pessoas a empregarem a palavra “vazio”, a qual
inevitavelmente sugere a ausência de perigo.
3.2.
Vazio -> inofensivo
A palavra “vazio/vazia” é usada em duas acepções
linguísticas: (1) como um sinónimo virtual de “nulo
e desocupado, negativo, inerte”; (2) aplicado a situações físicas
sem ter em conta a natureza do que está ou esteve no contentor — e.g., vapor,
vestígios de líquido ou lixo esparso. A situação é nomeada numa acepção (2)
e é em seguida transposta e vivenciada de maneira a fazer jus à outra (1).
Esta é a fórmula geral ou o mecanismo do condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações perigosas — uma descoberta de Whorf. O seu artigo dá muitos outros exemplos ilustrativos, mas julgo que este será suficiente para se entender o seu teor e alcance.
4. Como o SARS-CoV-2 se propaga à boleia dos nossos comportamentos mais arreigados
Na esteira de Whorf, conjecturo que o factor determinante no êxito do
SARS-CoV-2 em se propagar de pessoa para pessoa não é apenas a sua extrema
pequenez, mas o condicionamento linguístico do pensamento e do comportamento
habituais dos seres humanos em situações extremamente propícias à sua
propagação e que são, por conseguinte, as mais perigosas. Vejamos então separadamente
estes dois aspectos.
4.1. O tamanho dos viriões do SARS-CoV-2
Os viriões do SARS-CoV-2 são partículas esféricas demasiado pequenas para
poderem ser vista a olho nu. Não podem sequer ser vistas num microscópio
óptico. Só podem ser vistas com a ajuda de um potente microscópio electrónico
de varrimento ou de transmissão. A razão para isso é o seu diâmetro, que varia
entre os 60 nm (nanómetros) e os 140 nm, ou, equivalentemente, entre os 0,06 μm
(micrómetros) e os 0,14 μm. O diâmetro médio de um virião é de aproximadamente
125 nm (0,125 μm). Um nanómetro é uma unidade de medida de comprimento do
sistema métrico, correspondente a 1×10−9 metro ou 0,000000001 metro
(um milionésimo de milímetro ou um bilionésimo de metro).
O coronavírus SARS-CoV-2 |
O seguinte exemplo poderá ajudar a ter uma ideia mais concreta do nanómetro
como unidade de medida e do tamanho do novo coronavírus medido em nanómetros. O
fio de cabelo humano (do cabelo liso, para simplificar) tem geralmente 60 a 120
micrómetros de diâmetro (vulgo, espessura). Um micrómetro equivale a
1.000 nanómetros. Um fio de cabelo tem, portanto, entre 60.000 e 120.000
nanómetros de diâmetro. Por conseguinte, precisaríamos de cortar esse fio 1.000
vezes no sentido do comprimento para fazer um fio que tivesse o tamanho de um
virião de SARS-CoV-2.
Outro exemplo: uma formiga mede 5.000 micrómetros (= 5 milhões de
nanómetros). Ora, a entidade material mais pequena que podemos ver a olho nu
mede 40 micrómetros (= 40.000 nanómetros). Assim, para todos os efeitos
práticos, no nosso quotidiano, os viriões do SARS-CoV-2 são invisíveis.
4.2.
Invisível -> incorporal -> inofensivo
É bem conhecida a sinonímia virtual que o senso comum estabelece entre a
invisibilidade e a incorporalidade (ou imaterialidade). O que é invisível é incorporal
(imaterial). Por outro lado, o senso comum considera que o que distingue as
entidades materiais (vulgo, coisas) – como, por exemplo, pedras, montanhas, florestas,
cães, pássaros, pessoas, famílias, livros, escolas, fábricas, astros – das
entidades imateriais (ou ideacionais) – como, por exemplo, mitos, construtos
(conceitos, noções, proposições, teorias), significados, entes matemáticos (números,
figuras geométricas, equações diferenciais, etc.) – é que as primeiras têm
massa e as segundas não. Mas isso não é verdade.
Por isso, convém esclarecer várias coisas antes de prosseguirmos.
A primeira é que toda a entidade material, excepto o caso do Universo ou
Cosmo no seu todo, é uma componente de um sistema. A segunda é que qualquer
sistema composto de entidades materiais, é também material [3],
desde o núcleo interno da Terra até à crosta terrestre, desde a biosfera à
sociedade, desde a Terra como um todo ao Universo (passando pelo sistema solar,
a Via Láctea, os aglomerados de galáxias, os enxames ou superaglomerados galácticos,
as grandes muralhas de superaglomerados galácticos). A terceira é que ‘matéria’
e ‘massa’ são noções bem distintas. A massa é, sem dúvida, uma propriedade de
muitas entidades materiais (vulgo, coisas). Mas há muitas entidades materiais
que são desprovidas de massa e isso sucede na própria física. Por exemplo, os
campos electromagnético e gravitacional, os fotões, os gluões, os neutrinos e
os hipotéticos gravitões são entidades materiais sem massa.
O senso comum opera com a noção de materialidade (corporalidade) da física
clássica — da física pré-relativista e pré-quântica. Na física clássica é
material (corporal) o que possui massa e, frequentemente também, extensão,
forma e mobilidade. É verdade que a mecânica clássica emprega o conceito de
ponto material (ou massa puntiforme), o qual tem massa, embora infinitesimal.
Mas isso sempre foi entendido como um modelo simplificado de um corpo material
extenso [4] — como, por exemplo, quando se representa a Terra como um
ponto na sua trajectória em torno do Sol, ou a Lua na sua trajectória em torno
da Terra. De 1750 em diante, até aos anos 1910, os líquidos e os gases, embora
não fossem sólidos, eram encarados como sendo constituídos por partículas
sólidas – átomos ou moléculas – uma ideia que a experiência de Rutherford de
1911 veio refutar: os átomos são penetráveis e em grande medida ôcos porque a
sua massa concentra-se no núcleo.
Na concepção do senso comum, (1) o que é invisível é incorporal,
imaterial, e (2) o que é imaterial não constitui uma ameaça séria para a
nossa saúde ou para a nossa existência, (3) porque só as entidades materiais
(ou seja, dotadas de massa) nos podem magoar. Contraste-se, por exemplo, o ar
que respiramos com uma zaragatoa enfiada no nariz, se quisermos ter uma ideia
mais concreta do género de entidades envolvidas em (1) e (3),
respectivamente, neste tipo de raciocínio.
Para simplificar esta cadeia de inferências — mas tornando mais fácil
memorizá-la — podemos anotá-la assim (onde M=
mecanismo):
(M1): invisível -> incorporal
-> inofensivo
Dada a sua pequenez, o vírus SARS-CoV-2 beneficia, como vimos, de uma invisibilidade
assegurada que o habilita, por sua vez, a participar no mecanismo de
condicionamento linguístico do comportamento habitual em situações perigosas
caracterizada pela conjugação de (1), (2) e (3) — três
proposições todas elas falsas.
4.3.
Família, amigos, colegas -> zona de confiança mútua -> segurança
Este mecanismo, porém, não é suficiente por si só para dar uma resposta
plausível à questão Q enunciada na Introdução. Isto, porque há
seguramente pessoas que estão cientes de que o vírus é perigoso — ou pelo menos
que admitem teoricamente que ele pode ser perigoso, sem necessariamente
entenderem as razões da sua perigosidade — apesar de ser invisível a olho nu e
que, no entanto, não cumprem, em muitas circunstâncias, algumas das
regras básicas de autodefesa preventiva contra a infecção pelo SARS-CoV-2,
principalmente as regras 1 e 2 (cf. Introdução), sem terem rebates de
consciência.
Deverá haver, portanto, conjecturo, outro mecanismo de condicionamento
linguístico do pensamento e do comportamento habituais em situações perigosas que opere
conjuntamente com o mecanismo identificado na secção 4.2. de modo a
fornecer-nos uma resposta plausível à questão Q.
Suponho que esse segundo mecanismo seja o seguinte:
(1) Quando estamos com pessoas da nossa família que nos querem bem, com amigos e mesmo com colegas de escola/trabalho com quem nos damos bem, (2) estamos numa zona de confiança mútua, (3) logo de segurança (sanitária ou outra), (4) onde nada temos a temer. (5) Podemos, pois, relaxar as medidas de autoprotecção preventiva contra o novo coronavírus.
Note-se que as proposições (1) e (2) não levantam problemas
de veracidade vs falsidade. Mas isso já não acontece com as proposições (3),
(4) e (5), cuja veracidade depende do preenchimento de múltiplos
requisitos, da realização concomitante de múltiplas condições. Se esses
requisitos não estiverem preenchidos, se essas condições não estiverem
realizadas, a cadeia de inferências (1), (2), (3), (4),
(5) rompe-se e os seus elos dispersam-se.
Para simplificar esta cadeia de inferências —
mas tornando mais fácil por outro lado a sua memorização — podemos anotá-la
assim (onde M= mecanismo):
(M2): família, amigos, colegas
-> zona de confiança mútua -> segurança
4.4.
Comportamentos arreigados
Julgo que são estes dois mecanismos (M1
e M2) que operam
conjugadamente para levar ao incumprimento (sem rebates de consciência) das 5
medidas básicas de autodefesa preventiva contra a propagação SARS-CoV-2. E eles operam tanto mais eficazmente quanto
estão em causa os nossos comportamentos arreigados.
O jornal Público fez três excelentes reportagens sobre três surtos
de infecção — numa obra de construção civil, numa fábrica e num lar para
pessoas idosas — com a ajuda e com os dados que lhe foram fornecidos pelas
equipas de saúde pública das admnistrações regionais de saúde. Vou aqui
deter-me no caso da obra de construção civil (“Raio-x a três surtos: as boleias e o convívio
espalharam a COVID-19 nesta obra”. Público, 11 de Novembro de 2020), visto
que permite ilustrar muito bem o modus operandi dos dois mecanismos (M1 e M2).
Tratou-se de uma obra de remodelação de um hotel de um concelho de Lisboa,
em Maio. Pela remodelação desse hotel passaram 119 trabalhadores de diferentes
ofícios, 45 dos quais foram infectados, antes da obra ser encerrada, 19 dias
depois do primeiro caso ter sido confirmado.
Lembremo-nos de que o uso de máscara respiratória começou a ser obrigatório em
locais fechados e movimentados no mês de Abril. Porém — segundo informou o
médico Vítor Veríssimo, do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) de Lisboa
Central, que acompanhou de perto este surto — muitos trabalhadores desta obra,
que decorreu em Maio, não respeitavam esta regra. «Tinham
indicação da parte da Medicina do Trabalho para o fazer, mas não as usavam
regularmente.»
Tudo começou por um trabalhador infectado que foi trabalhar, apesar de já ter sintomas da COVID-19, e que infectou outros, que por sua vez infectaram outros e assim por diante até perfazer 45 trabalhadores infectados. As causas explicativas desta cadeia de infecções, segundo as autoridades de saúde, são três: (1) desleixo no uso de máscara respiratória, (2) partilha de boleias em carros e carrinhas, (3) refeições tomadas em conjunto (com conversa à mistura) sem respeitar o distanciamento físico de segurança.
Além de, em certos casos, a utilização de máscara não ser
respeitada, o distanciamento também não o era, principalmente nas pausas para
almoços. “Apesar de o espaço ser bastante arejado e de os trabalhadores estarem
dispersos por vários espaços do edifício, quase que simulando um ambiente ao ar
livre, vários funcionários juntavam-se para as pausas de almoço e do lanche”,
descreve o médico [Vítor
Veríssimo].
Outra das razões apontadas pelo médico é que o ambiente
de trabalho, por ser aparentemente arejado, muitas das vezes ao ar livre ou com
poucas janelas, aliado ao facto de poder existir uma “menor literacia para a
saúde neste grupo” (quando comparado, por exemplo, com um surto num lar ou numa
empresa), “facilita o alívio das medidas preventivas previstas, como a
utilização regular da máscara”.
Eis alguns exemplos concretos que os serviços de medicina do trabalho/ saúde
ocupacional conseguiram reconstituir nessa obra:
Dois profissionais responsáveis pela condução das
empilhadoras (ao ar livre) que partilharam horários de refeição. Cinco
elementos de uma equipa que, apesar de não trabalharem no mesmo piso nem
partilharem horário de refeição, iam para a obra no mesmo carro. Nove pedreiros
de diferentes pisos que almoçavam juntos.
A explicação do dr. Vítor Veríssimo e dos médicos de medicina do trabalho/saúde
ocupacional foi retomada pela ministra da Saúde:
Foi precisamente esta a explicação dada pela ministra da Saúde, na altura em que os surtos em obras de construção civil e grandes empresas, principalmente na região de Lisboa e Vale do Tejo, se multiplicavam. “Há algum relaxamento nos momentos que não são de trabalho formal — almoço, mudas de roupa, eventual utilização de meios de transporte coletivos, que não transportes públicos”, afirmou Marta Temido a 23 de Maio.
5. Uma campanha eficaz contra os comportamentos de risco
Não há nada de errado nesta descrição. Todavia, ela enferma das mesmas
limitações explicativas do que os relatórios de Benjamin Lee Whorf sobre as
causas dos incêndios e das explosões, antes do mesmo Whorf ter descoberto, como
vimos, o mecanismo do condicionamento linguístico do pensamento e do
comportamento habituais em situações de risco.
Isto porque uma explicação satisfatória consiste em identificar a causa ou as
causas dos comportamentos de risco, do tal «relaxamento»
das regras básicas de autodefesa preventiva contra a infecção pelo vírus
SARS-CoV-2 «nos momentos que não são de trabalho
formal». Sem identificar essas causas não é possível desenvolver uma
campanha de esclarecimento público destinada a erradicá-las.
Julgo que a explicação reside na operação conjugada dos dois mecanismos
descritos mais acima:
(M1): invisível -> incorporal ->
inofensivo
(M2): família, amigos, colegas ->
zona de confiança mútua -> segurança
Assim sendo, uma campanha eficaz para a promoção das 5 medidas básicas de
autoprotecção individual contra infecção pelo vírus SARS-CoV-2 passa por
alertar para a perigosidade dos comportamentos habituais e arreigados à boleia
dos quais o vírus se propaga e que são precisamente os comportamentos que estão
subjacentes a cada um dos vectores -> das fórmulas gerais M1 e M2.
Esses comportamentos habituais e arreigados, mas que são hoje, no contexto
da pandemia de SARS-CoV-19 comportamentos de alto risco, são (i) as refeições tomadas
em conjunto por colegas (de escola ou de trabalho) e por familiares não-coabitantes
sem respeitar o distanciamento físico necessário e com muita conversa à mistura;
(ii) o não uso de máscara e o não respeito pelo distanciamento físico no
convívio com amigos, colegas e familiares não coabitantes; (iii) o não uso de
máscara nas viagens em viatura (carro ou carrinha) privada com colegas, amigos
e familiares não-coabitantes.
A banda desenhada seguinte (cujo autor e cuja origem
infelizmente desconheço) é um bom exemplo do que poderia ser uma tal campanha. Mostra
de uma maneira muito directa e simples que os comportamentos mais habituais e arreigados da nossa conduta no
dia-a-dia – comportamentos que nos habituámos a encarar (e com razão) como
sendo inofensivos em condições normais – se convertem em comportamentos de alto
risco no contexto da actual pandemia de SARS-Cov-2.
Temo, porém, que não haja ninguém no Ministério da Saúde – em particular na Direcção Geral de Saúde e nas Administrações Regionais de Saúde – convencido da necessidade de desenvolver uma tal campanha e em posição de conseguir levá-la por diante com a urgência e o vigor necessários.
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Notas
[1] No presente artigo, por razões de economia argumentativa, deixo de lado as medidas de autodefesa preventiva, mas de âmbito colectivo, contra a propagação do vírus SARS-CoV-2, cuja adopção e implementação incumbem aos poderes públicos (orgãos do poder político e autoridades de saúde pública) e que também mencionei no meu artigo anterior, mas que omitirei neste. Raciocinarei, portanto, como se o actual descalabro da situação pandémica não fosse de modo nenhum imputável a falhas e incumprimentos dos poderes públicos. É claro que não é isso que se passa na realidade. As cláusulas “como se” são, como se sabe, artifícios lógicos destinados a realçar um determinado aspecto da realidade que se pretende examinar em pormenor. Por isso, peço aos leitores que levem esta advertência em consideração ao lerem este artigo.
[2] Os resultados registados hoje, domingo, dia 29 de Novembro de 2020 são os seguintes: mais 64 óbitos por COVID-19; mais 4.093 pessoas infectadas com o vírus SARS-CoV-2; 3.245 pessoas hospitalizadas com COVID-19 (+90 do que no dia anterior), das quais 536 em unidade de cuidados intensivos (+ 7 do que no dia anterior), um novo máximo desde o início da pandemia; 80.838 casos activos (+770 do que no dia anterior).
[3]
Convém distinguir “matéria” e “entidade
material”. A matéria é uma colecção — a colecção de todas as entidades
materiais (efectivas ou possíveis) passadas, presentes e futuras. Uma entidade
material é uma entidade que pode mudar de estado. Dizer que uma entidade é
material é o mesmo que dizer que pode estar em pelo menos dois estados (v. Mario
Bunge. Matter and Mind — a philosophical inquiry.
Springer: Dordrecht, Heidelberg, London, New York. 2010, p.273). Uma colecção é um construto, um conceito. Por
conseguinte, a matéria (um conceito) é imaterial (como são todos os conceitos).
[4] Mario Bunge, ibidem,
p.25.
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