Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

12 setembro, 2022

 Tema 3

A propósito do assassinato de Darya Dugina [*]

Alan Freeman [1]

 

Uma vez que os factos relativos ao assassinato de Darya Dugina ainda estão sob investigação, ainda não estão assentes, e muito menos ainda foram testados em qualquer tribunal, não me parece adequado começar já a falar sobre “quem cometeu o assassinato”.


Darya Dugina (1992-2022).  Jornalista, politóloga e activista russa.
 Assassinada em 20 de Agosto de 2022,  no distrito de Moscovo, vítima de uma bomba posta
 no seu automóvel, que, muito plausivelmente, visaria assassinar o seu pai, Aleksándr Dugin. 
Foto de 1RNK. Wiki Commons


No entanto, há um ponto que tem de ser salientado: se o leitor pensa que se pode construir uma sociedade viável na qual as pessoas são assassinadas por causa daquilo que pensam, então feche as portas, feche as janelas, olhe para debaixo do automóvel antes de cada viagem e verifique cada porta antes de passar por ela — porque, então, não há limites, nem há lei, nem há forma de responsabilizar os assassinos vulgares.

Este é o perigo da sugestão, que grassa no sistema mediático liberal da comunicação social, de que a tentativa de assassinato [de Aleksándr Dugin] se justifica por causa das ideias de Dugin. Até já vi pessoas afirmarem que a morte da sua filha foi uma coisa boa, porque ela concordava com as ideias dele [2].  Que o Deus dessas pessoas lhes apodreça a alma. Estamos então a dizer que não são só as pessoas, mas também as suas famílias, que constituem alvos legítimos de violência hedionda, porque se dá o caso de não gostarmos do que dizem?

Penso que as pessoas que dizem isto não pensaram bem no assunto. Pelo menos espero que seja essa a explicação.

[Aleksándr] Dugin propaga as suas ideias através dos seus escritos e dos seus livros. Ele não é um funcionário governamental ou um militar e, tal como foi assinalado por Mercouris, ZeroHedge e outros, ele não tem qualquer associação com Putin nem com ninguém no governo ou no Estado russo que possa, de alguma forma, justificar a alegação de que ele é responsável pelas acções do governo russo [3].

Dugin é um escritor. A sua influência resulta do que escreveu. Certo, podemos não concordar com o que ele escreve (eu não concordo), mas não ando por aí a matar pessoas cujas opiniões não me agradam.

Assim, as pessoas que procuram justificar a atrocidade [que foi o assassinato da sua filha Darya Dugina, N.T.] estão, de facto, a dizer que é legítimo assassinar pessoas por causa daquilo que elas pensam [4].

Assassinar pessoas como se fosse um substituto da justiça está errado seja de que maneira for. Os tribunais são a forma de lidar com os perpetradores. A legitimação do assassinato como um procedimento aceitável do Estado é algo que nenhum amante da justiça deveria aceitar.

Mas, para além disso, assassinar pessoas apenas pelo que dizem é simplesmente abrir um caminho para o inferno.

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                                                                   Notas

[*] Este texto foi publicado, em Inglês, no Facebook de Alan Freeman em 23 de Agosto de 2022. O título foi acrescentado por mim, o tradutor, José Catarino Soares. As notas e as fotos também foram acrescentadas por mim.

[1] Alan Freeman foi economista principal da Greater London Authority. Foi professor de economia na Universidade de Greenwich (Inglaterra). Foi também professor visitante na Universidade Metropolitana de Londres, Research Fellow da Queensland University of Technology (Austrália) e investigador associado da Universidade de Kent em Canterbury (Inglaterra). Agora está reformado e vive em Winnipeg (Canadá), onde é co-director do Grupo de Investigação da Economia Geopolítica na Universidade Manitoba. É membro do comité da Associação para a Economia Heterodoxa (www.hetecon.net) e vice-presidente da Associação Mundial de Economia Política. É co-editor da série de livros Future of World Capitalism na Pluto Books, e da série de livros Geopolitical Economyna Manchester University Press. É autor, entre outros livros, de The Benn Heresy (Pluto Press, 2014) e The Politics of Empire (Pluto Press, 2004). Entre os seus artigos mais recentes contam-se “Creative Labor, Mental Objects and the Modern Theory of Production,” in Science & Society (2020), e “A General Theory of Value and Money: Foundations of an Axiomatic Theory,” in World Review of Political Economy (2020). Recebeu o prémio Marxian Economics Award da World Review of Political Economy (WAPE) em 2018.

[2] Aleksándr Dugin é um politólogo contemporâneo russo, autor de uma doutrina geopolítica denominada Neo-Eurasianismo e mentor de um movimento denominado Movimento Internacional Euroasiático. É impossível resumir o Neo-Eurasianismo numa nota, dada a diversidade das suas fontes de inspiração. Trata-se de uma complexa amálgama de diversos elementos heterogéneos — uma ideologia política baseada no Tradicionalismo de René Guénon e Julius Evola; a religião cristã ortodoxa dos chamados Velhos Crentes; o arianismo germânico de Guido von List e Jörg Lanz von Liebenfels; as elucubrações ocultistas de Herman Wirth; o diferencialismo étnico de Lev Gumilev e Yulian Bromlei; o Eurasianismo dos emigrados russos pós-1919 (Pyotr N. Savitsky, Nikolay S. Trubetskoi, Nikolay N. Alekseev); as concepções dos organicistas alemães (e.g. Ernst Yünger, Oswald Spencer, Carl Schmitt); a aversão profunda ao globalismo de matriz angloamericana; a admiração pela Ahnenerbe Forschungs und Lehrgemeinschaft [Comunidade para a Investigação e Ensino sobre a Herança Ancestral] e pelos Waffen SS do regime nazi, etc. Salvo melhor informação, a melhor sinopse do Neo-Eurasianismo de Aleksándr Dugin é o estudo de Marlene Laruelle, “Aleksandr Dugin: A Russian Version of the European Radical Right?”. Kennan Institute, Occasional Paper # 294, 2006.

[3] Nos meios liberais e neoliberais e na esquerda socialdemocrata ou cripto-socialdemocrata, está muito enraizada a ideia de que Dugin é o guru de Putin ou, pelo menos, o seu ideólogo favorito. Mas nenhuma dessas ideias tem fundamento factual. Eis uma maneira eufemística de o dizer: «A questão de saber se as ideias de Dugin têm uma influência directa sobre as autoridades russas permanece sem resposta. Estamos inclinados a concordar com a observação de Shlapentokh de que “seria ingénuo assumir que Putin ou qualquer membro do seu círculo próximo começa o seu dia lendo a mais recente publicação de Dugin da mesma a forma como os governantes soviéticos do passado começavam o seu dia lendo o Pravda”» (Anton Shekhovtsov. “Aleksandr Dugin’s Neo-Eurasianism: The New Right à la Russe.” Religion Compass, Vol. 3, Nº. 4 [2009]). Quanto à ideia de que Dugin seria o ideólogo favorito de Putin, já foi competentemente refutada por Marlene Laruelle em vários estudos. Ver, por exemplo, o seu artigo “The intellectual origins of Putin’s invasion.” (Unherd, March 16, 2022) onde se pode ler, a páginas tantas: «Dugin não segreda aos ouvidos do Kremin. Dugin é demasiado radical nas suas formulações [para que isso fosse possível, N.E.], demasiado obscuro e esotérico e cultiva um nível “elevado” de referências intelectuais aos clássicos europeus de extrema-direita que não podem satisfazer as necessidades do governo de Putin. Dugin foi um dos promotores originais de uma noção geopolítica da Eurásia e da Rússia como uma civilização distinta nos anos mil novecentos e noventa, mas esses temas banalizaram-se independentemente  e até mesmo contra a utilização que Dugin deles fez nas décadas seguintes. Ele nunca foi membro de nenhuma das muitas organizações da sociedade civil cooptadas pelo Kremlin, mesmo que tenha sido capaz de angariar alguns patronos nos círculos militar-industrial e dos serviços de segurança».

[4] N.T. = nota do tradutor

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N.B. Propus a publicação deste texto ao magazine Passa Palavra (https:// passapalavra.info/) no dia 1 de Setembro de 2022. Em 11 de Setembro de 2022, o colectivo do Passa Palavra informou-me da sua recusa em publicar o texto de Alan Freeman, sem adiantar qualquer razão para essa sua posição. Convém perguntar-nos, então, quais terão sido as razões (não reveladas) para esta censura envergonhada. Não vislumbro nenhuma, se nos ativermos à declaração de princípios que norteia o Passa Palavra [“O que é o Passa Palavra e como se organiza?”, 29/04/2020, https://passapalavra.info/2020/04/131450/]

O Passa Palavra afirma ser «anticapitalista e internacionalista». O Passa Palavra «pretende estimular o confronto de opiniões e o debate» nesse âmbito. O Passa Palavra considera «que as inspirações teóricas únicas, os modelos únicos e os sectarismos de grupo são obstáculos à reflexão sobre as lutas». O Passa Palavra garante: «não somos, nem pretendemos ser, portadores da verdade revolucionária». O Passa Palavra diz que «está aberto à publicação de textos enviados por colaboradores não pertencentes ao coletivo, tanto relatos de lutas como artigos de reflexão, desde que a) obedeçam a um padrão de qualidade que consideramos o mínimo aceitável; b) adotem perspectivas anticapitalistas; c) não defendam os nacionalismos nem os identitarismos.»

Em suma, o Passa Palavra não tem qualquer argumento que lhe permita justificar a sua recusa de publicar do texto de Alan Freeman sem, ao mesmo tempo, renegar todos os seus princípios. 

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