Tema 3
A propósito do
assassinato de Darya Dugina [*]
Alan Freeman [1]
Uma vez que os factos relativos
ao assassinato de Darya Dugina ainda estão sob investigação, ainda não estão assentes,
e muito menos ainda foram testados em qualquer tribunal, não me parece adequado
começar já a falar sobre “quem cometeu o assassinato”.
Darya Dugina (1992-2022). Jornalista, politóloga e activista russa. Assassinada em 20 de Agosto de 2022, no distrito de Moscovo, vítima de uma bomba posta no seu automóvel, que, muito plausivelmente, visaria assassinar o seu pai, Aleksándr Dugin. Foto de 1RNK. Wiki Commons |
No entanto, há um ponto
que tem de ser salientado: se o leitor pensa que se pode construir uma
sociedade viável na qual as pessoas são assassinadas por causa daquilo que
pensam, então feche as portas, feche as janelas, olhe para debaixo do automóvel
antes de cada viagem e verifique cada porta antes de passar por ela — porque,
então, não há limites, nem há lei, nem há forma de responsabilizar os
assassinos vulgares.
Este é o perigo da sugestão,
que grassa no sistema mediático liberal da comunicação social, de que a
tentativa de assassinato [de Aleksándr Dugin] se justifica por causa das ideias de Dugin. Até já vi pessoas afirmarem que a
morte da sua filha foi uma coisa boa, porque ela concordava com as ideias dele [2]. Que o Deus dessas pessoas lhes apodreça a
alma. Estamos então a dizer que não são só as pessoas, mas também as suas
famílias, que constituem alvos legítimos de violência hedionda, porque se dá o
caso de não gostarmos do que dizem?
Penso que as pessoas que
dizem isto não pensaram bem no assunto. Pelo menos espero que seja essa a
explicação.
[Aleksándr]
Dugin propaga as suas ideias através dos seus escritos e dos seus livros. Ele
não é um funcionário governamental ou um militar e, tal como foi assinalado por
Mercouris, ZeroHedge e outros, ele não tem qualquer associação com Putin nem com
ninguém no governo ou no Estado russo que possa, de alguma forma, justificar a
alegação de que ele é responsável pelas acções do governo russo [3].
Dugin é um escritor. A sua
influência resulta do que escreveu. Certo, podemos não concordar com o que ele
escreve (eu não concordo), mas não ando por aí a matar pessoas cujas opiniões
não me agradam.
Assim, as pessoas que
procuram justificar a atrocidade [que foi o assassinato
da sua filha Darya Dugina, N.T.] estão, de facto, a dizer
que é legítimo assassinar pessoas por causa daquilo que elas pensam [4].
Assassinar pessoas como se
fosse um substituto da justiça está errado seja de que maneira for. Os
tribunais são a forma de lidar com os perpetradores. A legitimação do
assassinato como um procedimento aceitável do Estado é algo que nenhum amante
da justiça deveria aceitar.
Mas, para além disso,
assassinar pessoas apenas pelo que dizem é simplesmente abrir um caminho para o
inferno.
………………………………………………………………………….
Notas
[*] Este texto foi publicado, em Inglês, no Facebook de Alan Freeman em 23 de Agosto de 2022. O título foi acrescentado por mim, o tradutor, José Catarino Soares. As notas e as fotos também foram acrescentadas por mim.
[2] Aleksándr Dugin é um politólogo
contemporâneo russo, autor de uma doutrina geopolítica denominada Neo-Eurasianismo, de uma doutrina política denominada Populismo Integral (que qualificou de quarta teoria política) e mentor de um movimento denominado Movimento Internacional Euroasiático. É impossível
resumir estas duas doutrinas numa nota, em particular o Neo-eurasianismo, dada a diversidade das suas fontes de
inspiração. Trata-se de uma complexa amálgama de diversos elementos
heterogéneos — uma doutrina geopolítica baseada no Tradicionalismo de René Guénon
e Julius Evola; na religião cristã ortodoxa dos chamados Velhos Crentes; no
arianismo germânico de Guido von List e Jörg Lanz von Liebenfels; nas
elucubrações ocultistas de Herman Wirth; o diferencialismo étnico de Lev
Gumilev e Yulian Bromlei; no Eurosianismo dos emigrados russos pós-1919 (Pyotr N.
Savitsky, Nikolay S. Trubetskoi, Nikolay N. Alekseev); nas concepções dos organicistas
alemães (e.g. Ernst Yünger, Oswald Spencer, Carl Schmitt); na aversão profunda
ao globalismo de matriz angloamericana; na admiração pela Ahnenerbe
Forschungs und Lehrgemeinschaft [Comunidade para a Investigação e Ensino
sobre a Herança Ancestral] e pelos Waffen SS do regime nazi, etc. Salvo melhor
informação, a melhor sinopse do Neo-Eurasianismo de Aleksándr Dugin é o estudo
de Marlene Laruelle, “Aleksandr Dugin: A Russian Version of the European Radical
Right?”. Kennan Institute, Occasional Paper # 294, 2006.
[3] Nos meios liberais e neoliberais e na
esquerda socialdemocrata ou cripto-socialdemocrata, está muito enraizada a
ideia de que Dugin é o guru de Putin ou, pelo menos, o seu ideólogo favorito. Mas
nenhuma dessas ideias tem fundamento factual. Eis uma maneira eufemística de o
dizer: «A questão de saber se as ideias de Dugin têm
uma influência directa sobre as autoridades russas permanece sem resposta.
Estamos inclinados a concordar com a observação de Shlapentokh de que “seria
ingénuo assumir que Putin ou qualquer membro do seu círculo próximo começa o
seu dia lendo a mais recente publicação de Dugin da mesma a forma como os
governantes soviéticos do passado começavam o seu dia lendo o Pravda”» (Anton
Shekhovtsov. “Aleksandr Dugin’s Neo-Eurasianism: The New Right à la Russe.” Religion
Compass, Vol. 3, Nº. 4 [2009]). Quanto à ideia de que Dugin seria o
ideólogo favorito de Putin, já foi competentemente refutada por Marlene Laruelle
em vários estudos. Ver, por exemplo, o seu
artigo “The
intellectual origins of Putin’s invasion.” (Unherd, March 16, 2022) onde
se pode ler, a páginas tantas: «Dugin não segreda aos
ouvidos do Kremin. Dugin é demasiado radical nas suas formulações [para
que isso fosse possível, N.E.], demasiado
obscuro e esotérico e cultiva um nível “elevado” de referências intelectuais
aos clássicos europeus de extrema-direita que não podem satisfazer as
necessidades do governo de Putin. Dugin foi um dos promotores originais de uma
noção geopolítica da Eurásia e da Rússia como uma civilização distinta nos anos
mil novecentos e noventa, mas esses temas banalizaram-se independentemente e até mesmo contra a utilização que Dugin
deles fez nas décadas seguintes. Ele nunca foi membro de nenhuma das muitas organizações
da sociedade civil cooptadas pelo Kremlin, mesmo que tenha sido capaz de angariar
alguns patronos nos círculos militar-industrial e dos serviços de segurança».
[4] N.T. = nota do tradutor
……………………………………………………………….
N.B. Propus a publicação deste texto ao
magazine luso-brasileiro Passa Palavra (https:// passapalavra.info/)
no dia 1 de Setembro de 2022. Em 11 de Setembro de 2022, o colectivo do Passa Palavra informou-me
da sua recusa em publicar o texto de Alan Freeman, sem adiantar qualquer
razão para essa sua posição. Convém perguntar-nos, então, quais terão sido as
razões (não reveladas) para esta censura envergonhada. Não vislumbro nenhuma,
se nos ativermos à declaração de princípios que norteia o Passa Palavra
[“O que é
o Passa Palavra e como se organiza?”, 29/04/2020, https://passapalavra.info/2020/04/131450/]
O Passa Palavra afirma
ser «anticapitalista e internacionalista». O Passa Palavra
«pretende estimular
o confronto de opiniões e o debate» nesse âmbito.
O
Passa Palavra considera «que as inspirações
teóricas únicas, os modelos únicos e os sectarismos de grupo são obstáculos à
reflexão sobre as lutas». O Passa Palavra garante: «não
somos, nem pretendemos ser, portadores
da verdade revolucionária». O Passa Palavra
diz que «está aberto à publicação de textos
enviados por colaboradores não pertencentes ao coletivo, tanto relatos de lutas
como artigos de reflexão, desde que a) obedeçam a um padrão de qualidade
que consideramos o mínimo aceitável; b) adotem perspectivas
anticapitalistas; c) não defendam os nacionalismos nem os identitarismos.»
Em suma, o Passa Palavra não tem qualquer argumento que lhe permita justificar a sua recusa de publicar do texto de Alan Freeman sem, ao mesmo tempo, renegar todos os seus princípios.
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