Assassinatos de Estado,
fantasmagorias ideológicas,
patranhas mediáticas
e moralismo farisaico
5º. artigo da série
Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!
José
Catarino Soares
1. Introdução
Num artigo anterior (Qual é a morada dos assassinos de
Darya Dugina e o que é que isso tem a ver com as guerras na Ucrânia? Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue. 5 de Novembro
de 2022) provei, com base em factos acessíveis a qualquer pessoa
interessada,
— (i) que as pessoas que encomendaram o
assassinato, em Moscovo, de uma cidadã russa (Darya Dugina), têm assento no
governo ucraniano presidido por Volodymir Zelensky, e
— (ii) que esse mesmo governo se gaba de
perseguir individualmente e assassinar “como porcos”
(sic) cidadãos russófonos da região de Donbass que se revoltaram em 2014
contra a opressão do Estado ucraniano e proclamaram as Repúblicas populares de
Donetsk e Lugansk e que, no referendo de 24-27 de Setembro de 2022, votaram
nesses oblasts, assim como nos oblasts de Zaporíjia
e Kherson, a favor da integração desses territórios na Federação Russa.
A terminar, prometi tentar responder às perguntas
(para mim enigmáticas):
a) Por que razão estava/está o governo ucraniano
tão empenhado em assassinar Darya Dugina, ou o seu pai, Aléksandr Dugin, ou
ambos?
b) Que tem isso a ver com as guerras na Ucrânia?
Este artigo é o resultado dessa tentativa. De caminho, responderei a algumas perguntas conexas, suscitadas por declarações de Mikhailo Podolyac (conselheiro do presidente da Ucrânia, Volodomyr Zelensky) e de Anton Gerashchenko (ex-vice-ministro da Admnistração Interna; actualmente conselheiro do mesmo Ministério e coordenador do seu Gabinete de Protecção Empresarial), que já tive ocasião de citar no artigo anterior a este e que reproduzo de novo aqui:
Uma vez mais,
sublinho [disse Podolyac] que qualquer assassinato em tempos de guerra, num ou noutro país, tem
de corresponder a algum significado prático. Teria
de cumprir algum objectivo específico, táctico ou estratégico. Alguém como Dugina não é um alvo táctico nem estratégico
para a Ucrânia. Temos outros alvos no
território da Ucrânia — quero eu dizer, colaboracionistas
russos e representantes do comando russo, que podem ter valor para os
membros dos nossos serviços especiais que trabalham nesse programa, mas
certamente não a Dugina [realce, por meio de negrito,
acrescentado ao original, N.E.]
Foi declarada uma caça aos colaboracionistas e a sua vida não está protegida pela lei [disse Gerashchenko]. Os nossos serviços secretos estão a eliminá-los, matando-os como porcos [destaque, por meio de negrito, acrescentado ao original, N.E.]
Para além das suas gravíssimas afirmações relativas ao que eles apelidam de “colaboracionista russos” (que foram objecto do meu artigo anterior), Podolyac e Gerashenko fazem aqui, descaradamente, a apologia do assassinato de Estado — entenda-se, o assassinato de pessoas concretas, incluindo conterrâneos dos assassinos e dos seus mandantes (como acontece no caso em apreço), planeado e executado por agentes e agências especiais do aparelho repressivo de um Estado mediante a deliberação, a aprovação prévia e a cobertura dos seus governantes oficiais. Daí a questão:
c) Devemos reprovar e repudiar publicamente e sem
quaisquer ambiguidades o assassinato ⎼
e, com maioria de razão, o assassinato de Estado ⎼ como uma forma cobarde, odiosa e hedionda de combate (pretensamente)
político?
ou, pelo contrário,
d) Devemos aprovar sem rebuço o assassinato e, em
particular o assassinato de Estado ⎼ ou, pelo menos, aprová-lo
tácita e hipocritamente (autoinibindo-nos de o reprovar publicamente) ⎼ se os alvos visados desses assassinatos forem pessoas
que manifestam opiniões que consideramos odiosas por este ou aquele motivo?
N.B. Como o texto é muito longo, recomendo aos leitores
que não tenham paciência ou tempo para o lerem todo de uma só vez, que o façam
em três vezes: uma até à secção 4
(inclusive); outra da secção 4.1 (inclusive)
até à secção 6; e ainda outra da secção 6 (inclusive) até ao fim.
2. Dugina
Darya Dugina (15 Dezembro 1992‒22 Agosto 2022). Fonte: @Levi_godman. Twitter |
Sobre o assassinato de Darya Dugina, Mykhailo Polodyak, conselheiro do presidente Zelensky, afirmou, como vimos, que «alguém como Dugina não é um alvo táctico nem estratégico para a Ucrânia». Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso ⎼ mesmo que não esteja minimamente informada sobre as guerras na Ucrânia ⎼ concordará com ele neste ponto.
Darya Dugina, também conhecida como Darya Platonova (o
seu pseudónimo literário) era uma cidadã russa, moradora em Moscovo. Não era
membro do governo russo, não era membro da Duma [nome do parlamento russo], não
tinha qualquer cargo político (importante ou não) na Rússia, não era uma alta
patente das forças armadas russas ou das polícias russas. Era jornalista e
comentadora política. Não andava armada e nunca matou nem ameaçou matar
ninguém. Nunca teve qualquer influência no rumo da política do governo russo,
nem na conduta das tropas russas em guerra na Ucrânia. A única coisa que os
seus assassinos lhe poderão assacar é o facto de ter apoiado, por palavras, a
chamada “operação militar especial” do governo
russo na Ucrânia. Mas nisso ela não se distingue de dezenas de milhões de
outros russos. Não é razoável admitir que mesmo um governo como o actual governo
ucraniano ⎼ que se gaba de empregar os métodos da Cosa
Nostra como ultima ratio para lidar com a dissidência
política dos naturais da região de Donbass que são russófonos e que, depois de
muitos anos de agravos e ataques letais do poder central ucraniano, expressaram
a sua vontade de se emanciparem definitivamente do seu jugo ⎼ tenha a
pretensão de assassinar dezenas de milhões de civis russos na Rússia, à
semelhança do que fez com Darya Dugina.
Foi precisamente por isso que a CIA ‒ uma agência
federal dos EUA que já fez toda a espécie de patifarias e malfeitorias, incluindo
assassinatos ‒ achou por bem, como vimos no artigo anterior (talvez por iniciativa
do seu actual director, William Burns [um ex-diplomata de carreira conhecido pela
sua perspicácia e pelas suas posições conciliadoras]) que os serviços especiais
(grupo Alfa) dos Serviços de Segurança Ucranianos (conhecidos pela sigla SBU)
tinham ultrapassado todas as marcas da razoabilidade com esse assassinato e
resolveu admoestar o governo ucraniano em público na esperança que este humilhante
e inédito procedimento impeça que se repitam actos semelhantes de terrorismo
estatal.
Também não se pode invocar a notoriedade pública de
Dugina como motivo plausível para ter sido seleccionada como alvo a abater. Até
ao seu assassinato, Dugina era conhecida apenas em meios muito restritos. Um
comentador russo, bom conhecedor da vida política da Rússia contemporânea, fez
notar a este respeito:
Em vida, Dugina nunca recebeu sequer uma
pequena fracção desta atenção [que o seu assassinato suscitou, N.E.].
Ela representava um movimento obscuro que mal conseguia reunir uma dúzia de
pessoas nos seus comícios [1].
A sua súbita notoriedade surgiu depois de ter sido
assassinada e deriva exclusivamente da crueldade e do carácter ignóbil da sua
morte; do facto de ser uma mulher jovem (30 anos) e bonita, com uma vida para
viver à sua frente; de ser filha de Aléksandr Dugin e de compartilhar as ideias
políticas do pai — o qual parece ter sido o verdadeiro visado do atentado
bombista que lhe custou a vida
Vejamos então, mais concretamente, quem é Aléksandr Dugin,
para tentar compreender como é que o seu apelido poderá ter custado a vida à
sua filha e lhe poderia ter custado (ou lhe poderá custar) a sua.
3. Dugin
Aléksandr Dugin é um ideólogo e um politólogo, actualmente
com 60 anos, que alcançou alguma nomeada, dentro e sobretudo fora da
Rússia, por ser (i) o autor de um complexo doutrinário geopolítico e mito-simbólico [2] denominado Neo-Eurasianismo (1996,
1997); (ii) o mentor de um movimento baseado nesse complexo geopolítico e mito-simbólico, denominado Movimento Internacional
Eurasiático (2003), e (iii) o autor de um ideário político alegadamente
ajustado a esse complexo geopolític e mito-simbólico, denominado quarta teoria política (2009) ou populismo integral.
Aléksandr Dugin |
3.1. Eurasianismo e Neo-Eurasianismo
Para resumir adequadamente o Neo-Eurasianismo
seria necessário um artigo inteiro e muito longo, dada a diversidade das suas facetas
e fontes de inspiração. Aqui vou restringir-me aos seus aspectos essenciais.
Trata-se de uma complexa amálgama de diversos
elementos heterogéneos — o Tradicionalismo
Perene (ou Perenialismo ou Tradicionalismo Integral) de René Guénon e Julius
Evola; a religião cristã ortodoxa dos chamados Velhos Crentes; as elucubrações
ocultistas de Herman Wirth; o diferencialismo étnico de Lev Gumilev e Yulian
Bromlei; o Eurasianismo dos emigrados russos pós-1919 (Pyotr N. Savitsky,
Nikolay S. Trubetzkoy, George Vernadsky, Nikolay N. Alekseev); as concepções escatalógicas
dos organicistas alemães (e.g., Arthur Moeller van der Bruck, Ernst Yünger,
Oswald Spencer, Carl Schmitt); a admiração pela Ahnenerbe Forschungs und
Lehrgemeinschaft [Comunidade para a Investigação e Ensino sobre a Herança
Ancestral] do regime nazi; a filosofia da história de Martin Heidegger; as
teorias geopolíticas de Halford Mackinder, Karl Haushofer e Jean Thiriart; a
aversão profunda ao “globalismo integral” neoliberal de matriz anglo-americana,
etc.
O resultado dessa amálgama é um complexo mito-simbólico que se apresenta sob a
forma de uma doutrina geopolítica eivada de esoterismo, misticismo, maniqueísmo,
messianismo, obscurantismo e utopismo, sobre o grandioso papel a
desempenhar pela Rússia no desenvolvimento da Eurásia — uma entidade
civilizacional (política-económica-ideológica-cultural) que só atingiria os
seus limites naturais «com a expansão geopolítica até
às costas do Oceano Índico» [3].
Neste aspecto, o Eurasianismo
incluso no termo Neo-Eurasianismo de Dugin difere
profundamente do Eurasianismo original ‒ o dos
emigrados russos do período entre as duas guerras mundiais ‒ tal como a Eurásia destes difere bastante da Eurásia de Dugin. Os Eurasianistas originais ‒ que
também podemos apelidar de “autênticos”, para
os diferenciar das suas contrafacções ‒ acreditavam que tinham descoberto uma espécie
de continente intermédio, abrangendo uma parte da Europa e uma parte da Ásia: a
Eurásia — ou seja, uma massa
terrestre e uma civilização que não eram nem europeias nem asiáticas,
mas uma síntese peculiar de ambas.
Os Eurasianistas procuraram diligentemente
e acreditaram ter encontrado várias características históricas, geográficas,
linguísticas e outras características unificadoras do território dos impérios
czarista e soviético que eram suficientemente únicas para declarar a existência
de uma civilização eurasiática separada, diferente daquilo a que chamavam a
cultura “romano-germânica” da Europa Central e Ocidental. Para promover a sua
causa, os emigrados eurasianistas fundaram mesmo um movimento intelectual de
curta duração que funcionou, durante cerca de duas décadas, na Europa Central e
Ocidental entre as duas guerras mundiais. Como os Eurasianistas argumentaram, a
civilização eurasiática ‒ ao contrário da ocidental ‒ é iliberal, não-democrática
e anti-individualista. Por conseguinte, deve ser separada tanto dos valores
europeus como das ideias universalistas, enquanto normas estranhas e em
contradição fundamental com a identidade eurasiática da Rússia. Com tal visão,
o Eurasianismo clássico foi ‒ como foi argumentado em artigos por Leonid Luks,
Stefan Wiederkehr ou Martin Beisswenger, entre outros ‒ parcialmente semelhante
à “revolução conservadora” alemã que emergiu paralelamente, durante o mesmo
período, na República de Weimar (1918-1933) [4].
Apesar da alegada dificuldade dos Eurasianistas originais em indicar exactamente o que constituía as fronteiras físicas da Eurásia, Petr Savitsky, que era economista geopolítico, e outros Eurasianistas, afirmaram, com base nos trabalhos de geógrafos russos seus antecessores (como, por exemplo, V.I. Lamansky) que a unidade natural do território eurasiático poderia ser cientificamente explicada.
Petr Savitsky (1895-1968) |
Argumentaram
que a Eurásia «...é o único país cuja flora, fauna, solo e clima são tão perfeitamente
harmoniosos...»
e que representava uma lei natural ainda por descobrir. A Eurásia era composta
por quatro faixas botânicas horizontais de terra e solo que se estendem de leste
a oeste: taíga, tundra, deserto e estepe. Estas faixas de terra eram
intersectadas por três grandes planícies: a planície siberiana, a planície do
Turquistão e a planície desde o Mar Branco até ao Cáucaso. Este sistema
geográfico diversificado exigia uma panóplia de vários métodos para os seres
humanos se autossustentarem, fôsse através da agricultura sedentária, da caça,
ou da pastorícia. Assim, a disposição geográfica da Eurásia, de acordo com os Eurasianistas,
era uma manifestação da missão universal da Eurásia. A estepe russa foi talvez
a mais importante dos tipos de terrenos presentes na Eurásia. A estepe, que se
estende horizontalmente ao longo de grande parte da região central da Eurásia e
Ásia Oriental através de múltiplas civilizações, constituiu a própria missão “horizontal”
da Eurásia. O alcance desta faceta geográfica da Eurásia provou aos Eurasiáticos
o inerente carácter expansionista da Rússia [5].
O Neo-Eurasianismo de Aléksandr Dugin é um complexo
doutrinário mito-simbólico bem diferente do que caracteriza o Eurasianismo
original, tanto em escopo como em complexidade.
Para começar, Dugin não compartilha o mitomotor do Eurasianismo original: a crença no carácter
fundamentalmente asiático, mongol, dos russos. Em vez disso, a doutrina de
Dugin baseia-se num outro mitomotor: a
crença esotérica no Tradicionalismo Perene da Rússia [6], na qual o cristianismo ortodoxo dos Velhos Crentes (o
seu elemento central na Rússia) e outras religiões tradicionais eurasiáticas representam
as facetas de uma única verdade divina. Em seguida, Dugin divide
geopoliticamente o mundo em “telurocracias”
(sociedades/potências baseadas na terra) e “talassocracias”
(sociedades/potências baseadas nos mares e oceanos), que vivem permanentemente ora
em tensão, ora em conflito aberto. A Rússia pertence às telurocracias, os EUA
às talassocracias. São essas duas potências que melhor encarnam essa tensão e esse
conflito permanentes entre as telurocracias e as talassocracias.
A esta bipolarização, Dugin acrescenta a divisão do
mundo em quatro zonas civilizacionais: a zona americana, a zona afroeuropeia, a
zona Ásia-Pacífico, e a zona eurasiática [7]. Segundo Dugin, a
Rússia, núcleo central da Eurásia, deveria esforçar-se por estabelecer várias
alianças geopolíticas, organizadas como círculos concêntricos. Na Europa, a
Rússia deveria aliar-se à Alemanha. Na Ásia a Rússia deveria aliar-se ao Japão.
No mundo islâmico (muçulmano), a Rússia deveria aliar-se ao Irão —
maioritariamente muçulmano-chiita.
Esta quádrupla aliança telurocrática e eurasiática
(Rússia-Alemanha-Japão-Irão) estaria então em condições de competir com êxito
contra a quadrúpla aliança talassocrática e civilizacionalmente híbrida formada
pelos EUA (na zona americana), Reino Unido (na Europa), China (na Ásia) e, no
mundo islâmico, a Turquia — maioritariamente muçulmana-sunita.
O Neo-Eurasianismo é esta concepção normativa muito alargada
e muito modificada (/desfigurada) do Eurasianismo original, em que a Rússia é
encarada como sendo a única potência vocacionada e capaz, simultaneamente, (i)
de agregar as forças dispersas da “zona eurasiática”
num projecto civilizacional supranacional, imperial e global, e (ii) de se opôr ao “Atlanticismo”
contemporâneo — entenda-se, ao sistema liberal de
dominação global (económica, mas também política,
ideológica e cultural) construído e mantido pelas “talassocracias”
contemporâneas sob a égide da sua potência hegemónica incontestada: os EUA.
Assim, o Neo-Eurasianismo não é
antieuropeu, mas sim antiocidental, antitransatlântico e antiliberal, e
acredita no destino de comum dos povos europeus e eurasiáticos [8].
Esta apreciação não é exacta, pese embora o facto da
sua autora ser alguém que conhece bem a biografia de Aléksandr Dugin e a sua
obra publicada. Dugin, é verdade, não é antieuropeu, mas sim antitransatlântico
e antiliberal, mas não é antiocidental. Ele próprio fez questão de o dizer e
não há razão nenhuma para rejeitar a sua afirmação.
Entrevistador: Há pessoas que dizem
que o senhor é antiocidental.
A. Dugin: Não, não concordo. Não sou antiocidental.
Sou antiliberal. Na verdade, adoro o Ocidente. Escrevi oito volumes dedicados à
cultura ocidental, à filosofia ocidental. Escrevi dois volumes sobre a cultura
grega e bizantina; um volume sobre a cultura latina; um volume sobre a
Alemanha; um volume sobre a França; um volume sobre a Inglaterra; um volume
sobre a América, incluindo a América do Norte. Estou interessado no logos Ocidental;
estudei-o; é extraordinariamente complicado. Não me limito a criticá-lo,
conheço-o e compreendo-o profundamente. Até a um certo momento, quando esta ideologia
liberal, globalista, triunfou, o Ocidente era uma jóia. O Ocidente produzia
pensamento ousado, pensamento belo, pensamento ensolarado. Tinha tudo. Até à
década de 1980. O que aconteceu no Ocidente, nos anos 80, afectou as
universidades, a arte, os meios de comunicação social, toda a sociedade.
Considero que a Europa contemporânea é uma anti-Europa. Simplesmente não posso
aceitar o Ocidente no seu estado actual, no fim da modernidade. Descobri que
tenho mais simpatizantes nos círculos culturais ocidentais do que nos russos.
O Ocidente é a minha pátria espiritual e intelectual. Isto para não mencionar a
cultura da Europa Ocidental, que eu admiro. Conheço de cor todos os chamados
poetas franceses “malditos”. Adoro a cultura inglesa. Não sou nenhum malévolo camponês
russo que odeia o Ocidente. Conheço bastante bem as línguas europeias. Conheço
o Ocidente, vivo a minha vida através dele. Pode mesmo dizer-se que amo o
Ocidente. Mas estou profundamente ofendido pelo seu estado actual, porque é uma
dor sincera de um amigo chegado. É uma dor sistémica. Não acidentalmente,
alguma coisa não funcionou, alguma coisa correu mal. E eu estou a tentar
compreender o que foi. [realce,
por meio de negrito, acrescentado ao original, N.E.]
Claro, sou um patriota russo, um homem
russo, e um russo acima de tudo. Mas eu não sou indiferente em relação ao
Ocidente [9].
3.2. Neo-Eurasianismo e Excepcionalismo Americano
O mitomotor (assim como o complexo doutrinário mito-simbólico)
do Neo-Eurasianismo presta-se a várias interpretações. A minha, baseada na sua
função instrumental, é a de que se trata de uma contra-razão pós-soviética ao
mitomotor (assim como ao complexo doutrinário mito-simbólico) do Excepcionalismo Americano.
Por outras palavras, o Neo-Eurasianismo
poderia chamar-se, e com muito mais propriedade, Excepcionalismo Russo, pois desempenha em relação à Rússia a mesma
função que o Excepcionalismo Americano desempenha
em relação aos EUA.
O termo “Excepcionalismo
Americano” é comummente caracterizado como sendo a «percepção de que os Estados Unidos são diferentes, qualitativamente,
de outras nações desenvolvidas, devido às suas origens únicas, credo nacional,
evolução histórica, instituições políticas e religiosas distintas» [10].
Mas é obvio que esta caracterização, sendo tão
abstracta e geral, se aplica a muitos outros países, razão pela qual tem um baixo
valor informativo. Este ponto foi bem salientado por um dos mais proeminentes defensores
do excepcionalismo americano, o ex-presidente dos EUA, Barak Obama. Fê-lo nos
seguintes termos:
Acredito no excepcionalismo americano, tal
como suspeito que os britânicos acreditam no excepcionalismo britânico e os
gregos acreditam no excepcionalismo grego [11].
Aproximamo-nos mais da verdade se fizermos uma lista dos tropos mais frequentes que têm sido utilizados, ao longo dos últimos dois séculos, por proeminentes governantes e ideólogos americanos, para caracterizar os EUA. É o caso, nomeadamente, de “o império da liberdade,” “a cidade resplandecente no topo da colina,” “a melhor esperança da Terra,” o “chefe do mundo livre”, “a terra das oportunidades,” a “nação redentora,” a “nação quase eleita por Deus,” “o conquistador dos mercados mundiais,” “a nação indispensável,” o “Estado pátrio global.” Estes tropos ilustram bem uma parte do complexo doutrinário mito-simbólico do “Excepcionalismo Americano” (também apelidado de “singularidade americana”). Mas temos de ir mais longe.
É costume, entre os autores americanos, tentar radicar
a doutrina do Excepcionalismo Americano num
juízo de Alexis de Tocqueville no seu livro Sobre a Democracia na América (1835,1840).
A posição dos americanos é, portanto,
bastante excepcional, e pode acreditar-se que nenhum povo democrático será jamais
colocado numa posição semelhante. A sua origem estritamente puritana, os seus
hábitos exclusivamente comerciais, mesmo o país onde habitam, que parece
desviar as suas mentes da busca da ciência, da literatura e das artes; a
proximidade da Europa, que lhes permite negligenciar estas buscas sem recair na
barbárie; mil causas especiais, das quais apenas pude apontar as mais
importantes, concorreram singularmente para fixar a mente do americano em
objectos puramente práticos. As suas paixões, os seus desejos, a sua educação,
e tudo o que lhe diz respeito parecem unir-se para conduzir a mente dos naturais
dos Estados Unidos em direcção à terra; só a sua religião lhe oferece, de
tempos a tempos, um olhar transitório e distraído para o céu. Deixemos, então,
de encarar todas as nações democráticas sob a máscara do povo americano e tentemos examiná-las longamente nas suas próprias características [12].
Alexis de Tocqueville (1805-1859). Quadro a óleo de Théodore Chassériau.1850 |
Mas Tocqueville nada tem a ver com o Excepcionalismo Americano, tal como ele tem sido entendido
e praticado desde há dois séculos. O melhor estudo do Excepcionalismo
Americano é da autoria de Harold Hongju
Koh. Este autor identificou quatro facetas diferentes do excepcionalismo
americano, às quais chamou
por ordem de opróbrio ascendente: direitos distintivos, rótulos diferentes, mentalidade de “arcobotante” e duplicidade de critérios e bitolas. Na minha opinião, a quarta faceta ‒ a duplicidade de critérios e bitolas ‒ representa a mais forma perigosa e destrutiva do excepcionalismo americano [13].
a) ― Por “direitos distintivos”, deve
entender-se um entendimento peculiar dos direitos humanos, em resultado da
história do país. É o caso, por exemplo, da interpretação que é dada ao segundo
artigo da Declaração dos Direitos (Ingl. Bill of Rights) acrescentada,
em 1791, à Constituição dos EUA (1787-1788). Esse artigo diz o seguinte:
Como uma Milícia bem regulamentada é necessária à segurança de um Estado
livre, o direito da população de manter e portar armas [para esse fim, N.E.]
não será infringido.
Porém,
o Supremo Tribunal dos EUA decidiu, num acórdão de 2008 [14],
que este artigo deve ser interpretado assim:
O segundo artigo protege o direito individual de possuir e usar uma arma de
fogo sem ser ao serviço de uma milícia [bem
regulamentada de defesa territorial do país, N.E.], e de utilizar essa arma para fins tradicionalmente
considerados como lícitos, tais como a autodefesa dentro de casa (!!).
Outro
exemplo de “direitos distintivos” é a importância
dada à norma de não-discriminação baseada na “raça,”
— um conceito que não tem fundamento genotípico na espécie humana, nem sequer um
referente fenotípico unívoco. Destarte, a importância dada ao conceito indefinível
de “raça” na estruturação da ordem jurídica nos
EUA, só pode entender-se tendo em consideração (i) a guerra travada contra
os povos indígenas (apelidados de “peles-vermelhas”)
e o seu confinamento forçado em reservas territoriais; (ii) a economia e
a cultura escravagistas vigentes nos Estados do Sul dos EUA até à guerra de
Secessão (1861-1865) e (iii) a longa luta que os ex-escravos (apelidados
de “negros”) e os seus descendentes, assim como
os descendentes dos povos indígenas, tiveram de travar para conquistar a
igualdade de direitos civis relativamente ao resto dos cidadãos americanos.
b) ― Por “rótulos diferentes,” deve
entender-se o costume americano de atribuir uma profusão de denominações a
conceitos que o resto do mundo trata como sendo únicos e sinónimos. É o caso,
por exemplo, da continuação do uso de termos arcaicos como “pés”, “polegadas”, “jardas,” “milhas náuticas,”
“nós,” “braças,”
“léguas”, “libra-massa,”
“libra-força,” “graus Fahrenheit,” em vez dos termos do sistema internacional
de unidades (vulgo, sistema métrico); ou o uso de eufemismos como “punição cruel e inabitual,” “brutalidade
policial,” “uso de força excessiva,” “reclamações ao abrigo da secção 1983,” em vez de “tortura”, “queixa por tortura”.
c) ― Por “mentalidade de arcobotante,” deve
entender-se a propensão dos EUA de se vangloriarem de ser um pilar do
edifício internacional dos direitos e liberdades, mas comportarem-se, de facto,
quando muito, como um mero arcobotante desse edifício. É o caso, por
exemplo, da Convenção das Nações Unidas dos Direitos da Criança, adoptada em
1989. Os EUA foram o único país do mundo que não ratificou esta convenção, 33 anos
volvidos!
Dois arcobotantes na abadia de Bath (Reino Unido). Foto: Adrian Pingstone 2005 |
Estas três facetas, embora importantes para
caracterizarem o Excepcionalismo Americano, não
possuem, nem de longe, a centralidade da quarta e última faceta, a duplicidade de critérios e bitolas [15] [vulgo,
“ter dois pesos e duas
medidas”] — que é também a mais
importante de todas para os propósitos deste artigo. O próprio Koh reconhece essa
centralidade, começando por contextualizá-la devidamente em relação ao aspecto
mais importante em que os Estados Unidos têm sido genuinamente excepcionais, a
saber: a sua conspícua chefia e activismo global na arena mundial, bem patente,
em particular, nos domínios económico e militar. Mas é aqui que a porca torce o
rabo, porque é neste plano que encontramos
d) — a quarta e a mais problemática faceta do
excepcionalismo americano: quando os Estados Unidos utilizam de facto o seu
poder e riqueza excepcionais para promoverem uma duplicidade de critérios e
bitolas [16].
Na verdade, a faceta mais execrável do Excepcionalismo Americano não é a) uma doutrina
de direitos e liberdades distintivamente americana; b) um gosto por
rótulos diferentes para conceitos que os demais países delimitam e denominam de
modo idêntico, ou c) uma mentalidade de “arcobotante”,
mas sim, d) o facto de os EUA proporem que se apliquem a si próprios critérios
e bitolas diferentes dos que (se) aplicam ao resto do mundo.
Exemplos recentes bem conhecidos incluem
questões tão diversas como o Tribunal Penal Internaciona [os EUA não fazem parte do TPI, que
foi formado, em 2002 para investigar crimes de guerra, genocídio e crimes
contra a humanidade, N.E.], o Protocolo de
Quioto sobre Alterações Climáticas [em 2001, os EUA, abandonaram este
Protocolo, assinado por 84 países, com a justificação de que cumprir as metas nele
estabelecidas comprometeria o seu desenvolvimento económico, N.E.], a execução [= a morte à mão de um carrasco estatal em
consequência da condenação à pena capital, N.E.] de delinquentes juvenis ou de pessoas com deficiência mental, a recusa de
executar ordens do Tribunal Internacional de Justiça no que diz respeito à pena
de morte, ou a reivindicação de um Segundo Aditamento de exclusão de uma
proposta de proibição global da transferência ilícita de armas ligeiras e de
pequeno calibre.
No ambiente pós-atentado de 11 de Setembro
de 2001, proliferaram outros exemplos: As atitudes dos Estados Unidos em
relação ao sistema de justiça global, mantendo detidos talibãs em Guantánamo
sem audiências da Convenção de Genebra, e afirmando o direito ao uso da força
para autodefesa preventiva, Sobre tudo isto direi mais [mais adiante]. Por agora, deveríamos reconhecer pelo menos quatro problemas
com os dois pesos e duas medidas.
O primeiro é que, quando os Estados Unidos
promovem dois pesos e duas medidas, invariavelmente acabam não no patamar mais
alto, mas no mais baixo com companheiros de cama horrendos — por exemplo, com
países como o Irão, a Nigéria e a Arábia Saudita, os únicos outros países que
não aboliram ou não declararam na prática uma moratória sobre a imposição da
pena de morte a delinquentes juvenis. Esta aparência de hipocrisia subverte a
capacidade da América de prosseguir uma agenda afirmativa em matéria de
direitos humanos. Pior ainda, ao abraçar a duplicidade de critérios, os Estados
Unidos vêem-se muitas vezes cooptados a aceitar ou a defender as violações dos
direitos humanos de outros países, mesmo quando anteriormente os criticavam
(como aconteceu, por exemplo, com as críticas dos Estados Unidos aos tribunais
militares no Peru, a guerra da Rússia aos “terroristas” chechenos, ou a
repressão da China contra os muçulmanos Uighur. Em terceiro lugar, a percepção
de que os Estados Unidos aplicam uma norma ao mundo e outra a si próprios
enfraquece fortemente a pretensão dos Estados Unidos de liderar globalmente
através da autoridade moral. Isto diminui o poder dos EUA de persuadir através
de princípios, um elemento crítico do “poder suave” americano. Quarto, e talvez
o mais importante, ao opor-se às regras globais, os Estados Unidos podem acabar
por minar a legitimidade das próprias regras, e não apenas modificá-las para se
adequarem aos propósitos da América. A ironia, evidentemente, é que, ao
fazê-lo, os Estados Unidos se desresponsabilizam de invocar essas regras,
precisamente quando precisam dessas regras para servirem os seus próprios
propósitos nacionais [17].
Não se pense que esta crítica do Excepcionalismo Americano vem de um inimigo figadal
dos EUA ou do imperialismo americano. Bem pelo contrário. O seu autor, o já mencionado
Harold Hongju Koh, foi secretário de
Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros [Department of State, nos
EUA] de 1998 a 2001, no governo presidido por Bill Clinton, e assessor jurídico
do mesmo ministério de 2009 a 2013, no governo presidido por Barak Obama. Este conceituado
professor catedrático de Direito na Universidade de Yale é também, ele próprio,
um bom exemplo da duplicidade de critérios e bitolas que caracteriza o Excepcionalismo Americano, pois foi ele o autor de
um famoso discurso/parecer jurídico, proferido em 2010, onde defendeu com unhas
e dentes o “direito” do governo dos EUA utilizarem
drones aéreos para assassinarem selectivamente os seus inimigos políticos. Esse
discurso de Koh valeu-lhe mesmo um rasgado elogio dos editores do Wall
Street Jornal [18].
Agora que já elucidei o que significa o Excepcionalismo Americano, regressemos ao Neo-Eurasianismo. Como vimos, Atlanticismo é a palavra que Dugin emprega para denominar
o sistema “talassocrático” de supremacia (económica,
política, ideológica e cultural) dos EUA à escala global. Creio que podemos
resumir a linha condutora do Neo-Eurasianista de Dugin nesta sua frase:
A Rússia é a encarnação da busca de uma
alternativa histórica para o Atlanticismo. Aí reside a sua missão global [19].
É exactamente este tipo de crença que Dugin procura
alicerçar e consolidar com o seu Neo-Eurasianismo.
Um dos objectivos do seu Neo-Eurasianismo é, portanto, como ele próprio o disse,
o de
transformar a distintividade russa num
modelo universal de cultura, numa visão do mundo que é alternativa à
globalização atlanticista, mas que é também global à sua própria maneira [20].
Em suma, Aléksandr Dugin é o ideólogo do Excepcionalismo Russo, uma crença/doutrina tão fantasmagórica e tóxica quanto a do Excepcionalismo Americano.
3.3. O populismo integral
Para unir e consolidar a quádrupla aliança eurasiática
(Rússia-Alemanha-Japão-Irão) de forma a enfrentar o “Atlanticismo”
(ou seja, o “globalismo 2.0” ou “globalismo integral”) e a sua potência hegemónica à
escala mundial (os EUA), seria necessário, segundo Dugin, uma meta-ideologia
política adequada que Dugin se propôs elaborar e a que deu o nome de populismo integral, qualificando-o de quarta teoria política. O populismo
integral de Dugin é também uma amálgama
complexa de elementos heterogéneos. Nas palavras do seu autor é a
amálgama de um projeto comum e [de] um
impulso comum em relação a tudo que foi descartado, derrubado e
humilhado durante o curso da construção da “sociedade do espectáculo”
(construindo a pós-modernidade). “A pedra que os construtores rejeitaram veio a
tornar-se pedra angular” (Marcos 12:10) [21].
Mas esta amálgama tem, pelo menos, a vantagem, relativamente à que constitui o Neo-Eurasianismo, de se deixar resumir sucintamente pela negativa. É uma “meta-ideologia” (na terminologia de Dugin) que pretende ser, ao mesmo tempo uma alternativa às ⎼ e uma superação das ⎼ três “ideologias” que lhe são historicamente anteriores: o liberalismo, o comunismo (ou, o que vem a ser o mesmo, acrescenta Dugin, «o socialismo em todas as suas variedades») e o fascismo. Daí a qualificativo de quarta teoria política que Dugin atribuiu ao seu populismo integral.
A quarta “teoria” política,
que é uma “meta-ideologia”, afirma incorporar
os elementos mais viáveis das três “ideologias”
que lhe são historicamente anteriores ‒ a liberdade, no liberalismo; a crítica
ao capitalismo, no comunismo; o particularismo étnico e a nação, no fascismo ‒
ao mesmo tempo que rejeita o seu individualismo, materialismo e racismo, respectivamente.
Em suma, afirma Dugin, a “quarta teoria política,”
o populismo integral, rejeita as narrativas
teleológicas universais da história como um processo (i) de emancipação
individual (própria do liberalismo), (ii) de luta de classes (própria do
socialismo/comunismo), ou (iii) de conflito racial (própria do fascismo)
[22].
Tudo isto é, como se constata, muito vago, nebuloso e
contestável. Ao mesmo tempo, e um pouco mais concretamente,
Dugin apela a desencadear uma “cruzada”
contra a cultura pós-moderna, encarada como a culminação niilista da
modernidade. A estratégia da quarta ideologia face à pós-modernidade é
caracterizada por Dugin com uma expressão pedida de empréstimo a Evola: “montar o tigre,” ou seja, explorar a
força da besta e ao mesmo tempo descobrir os seus pontos fracos e cortá-los, em
vez de tentar evitá-los ou ignorá-los ou confrontar directamente as suas presas
e garras. /…/
[E]sta estratégia faz da quarta ideologia
um conservadorismo pós-liberal. Dugin distingue-a cuidadosamente do conservadorismo
“fundamental” ou tradicionalismo de pensadores como Guénon e Evola, que defende
um regresso reaccionário aos valores e instituições sociais pré-modernos como a
religião, espiritualidade, hierarquia e patriarcado, bem como do
conservadorismo liberal ou do “status quo” que ele atribui a Jürgen Habermas
(n. 1929), o qual endossa a modernidade do Iluminismo, mas que se opõe ao seu
desdobramento em manifestações extremas e pós-modernas. /…/
O termo mais preciso e abrangente para
descrever esta nova versão radicalizada do conservadorismo é “conservadorismo
radical.”
Este termo é também o mais apropriado para descrever a abordagem de Dugin e é
ocasionalmente utilizado pelo próprio Dugin [23].
3.4. Fascismo e Neo-Eurasianismo
Nos meios liberais e neoliberais, na esquerda putativa
de pendor social-democrata ou criptosocial-democrata e nos movimentos do identitarismo
diversitário (feminismo interseccional, racialismo negro, LGTBQ, etc.), Dugin ‒
se porventura o seu nome for mencionado ‒ é comummente qualificado de fascista
ou neofascista, mesmo quando quem lhe aplica esses rótulos nunca se deu
ao trabalho de ler uma linha sequer daquilo que ele escreveu.
Naturalmente, isso suscita a questão fundamental de
saber o que se entende por fascismo, questão
muito controversa e que já fez correr rios de tinta. Como concordo, no essencial, com a
caracterização do fascismo de Daniel Guérin (1936, 1945, 1965) [24], é com base nela que
farei o meu juízo.
Quais são, então, as características do fascismo, quer
como movimento específico para a conquista violenta do poder de Estado, quer
como regime político específico, forma específica de organização do poder de Estado?
1. O objectivo de assegurar a continuidade dos processos de extracção da mais-valia sob a égide do grande capital oligopolista e da grande propriedade fundiária, recorrendo para tanto a meios não só extra-económicos, mas também, frequentemente, antieconómicos ‒ e, por conseguinte, contraproducentes ‒ privilegiando nomeadamente a preponderância dos processos de extracção da mais-valia absoluta sobre os processos de extracção da mais-valia relativa; [*]
2. A rejeição e supressão das liberdades públicas e dos direitos civis fundamentais
que resultaram de lutas emancipatórias multisseculares e a substituição das
instituições electivas do liberalismo político ‒ parlamentarismo, municipalismo,
chefes da polícia (police and crime commissioners no Reino Unido, sheriffs
nos EUA) e procuradores gerais da República (state general
attorneys nos EUA) eleitos por voto
popular ‒ por métodos clara e assumidamente tirânicos, enfatizando o culto heróico
do chefe supremo, omnisciente e quase divino e das chefias que o coadjuvam;
3. A repressão implacável da classe dos trabalhadores assalariados — destruição
das suas organizações autónomas (económicas, sindicais, culturais e políticas)
por meio de bandos armados organizados em moldes paramilitares e de métodos arruaceiros (incluindo medidas de extrema
violência contra os militantes e activistas sindicais e políticos, que vão ao
ponto do assassinato); supressão das conquistas sociais e políticas da classe
trabalhadora; estabelecimento de um regime de despotismo absoluto nas empresas
(dos sectores primário, secundário e terciário), no aparelho de Estado (Polícias,
Forças Armadas, Tribunais) e nos serviços de interesse geral (escolas, universidades,
hospitais, etc.);
4. A utilização, como base social de apoio e de recrutamento do movimento fascista, das (i) velhas classes médias de origem pré-capitalista e das (ii) novas classes “médias” geradas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo ‒ (i) a pequena burguesia urbana e rural pauperizada [pequenos agricultores parcelares, rendeiros (caseiros, meeiros, granjieiros, seareiros, etc.), lojistas, artesãos, comerciantes] e (ii) os trabalhadores de “colarinho branco” [empregados de escritório, caixeiros-viajantes, empregados bancários, técnicos, engenheiros, professores, médicos], burocratas e administradores, unidos por uma comum aversão à sua condição efectiva de proletários ou ao espectro da sua proletarização a breve trecho ‒ assim como de (iii) elementos socialmente desenraizados, desclassificados ou desprofissionalizados (como, por exemplo, meliantes, traficantes, ex-militares veteranos de guerra, desempregados de longa duração, estudantes e diplomados universitários sem perspectivas de emprego qualificado e bem remunerado à altura das suas expectativas); [**]
5. A propagação de uma demagogia social ultranacionalista, corporativista e pretensamente anticapitalista. No caso do nazismo hitleriano, o ultranacionalismo e o corporativismo caminhavam de mãos dadas com o racismo sob as suas formas mais cruéis. No caso do fascismo mussoliniano, o racismo foi um elemento acrescentado tardiamente (a partir de 1938) para agradar a Hitler e consolidar a aliança entre os dois regimes.
Adolf Hitler (à esquerda) e Benito Mussolini (à direita). 10 de Junho de 1940. Fonte: Alamy Stock Photo |
6. Uma vez instalado no poder de Estado
⎼ e, por conseguinte, convertido de movimento social em regime estatal ⎼, o fascismo
procura promover uma política externa de alinhamento, manutenção
ou expansão imperialista por todos os meios ao seu alcance, incluindo, em lugar de
destaque, os meios militares.
Considerado a esta luz, o Neo-Eurasianismo
e o populismo integral de Aléksandr Dugin
não se qualificam como fascistas. Em particular, o Movimento
Internacional Eurasiático, que Dugin fundou em 2003 e do qual é o principal
mentor, nunca adquiriu, desde então (e já lá vão 19 anos), os traços da
característica 3 do fascismo (que lhe é inerente antes mesmo de conquistar o poder de Estado e que é fundamental para o conseguir fazer), conjugada com a característica 4 — as mais distintivas de todas as
que caracterizam o fascismo como movimento social totalmente organizado e
orientado para a conquista violenta do poder de Estado. O mesmo se aplica à Frente Nacional Bolchevique, de que foi co-fundador em
1992 e que abandonou em 1998. A afinidade mais forte do Neo-Eurasianismo e do populismo integral com
o fascismo parece-me ser a que se estabelece ao nível da característica 5.
Voltarei a este assunto um pouco mais adiante.
Pode alegar-se que, se o Movimento Internacional Eurasiático tomasse o poder de Estado na Rússia (ou na Alemanha ou no Japão ou no Irão), adoptaria uma política externa semelhante à descrita na característica 6. Todavia, esta característica só tem valor cognitivo na caracterização do fascismo se tomada em conjunto com as outras cinco características. Tomada isoladamente, ela perde a sua função de critério distintivo. Os EUA são o melhor exemplo de uma «política externa de expansão imperialista por todos os meios ao seu alcance, incluindo, em lugar de destaque, os meios militares.» A melhor prova disso é que os EUA fizeram 469 intervenções militares no estrangeiro desde 1789 (ou, segundo outros cálculos, perto de 400 intervenções militares desde a sua fundação, em 1776). 261 dessas intervenções militares tiveram lugar após a implosão da União Soviética e o concomitante fim da chamada Guerra Fria, em 1991 e, segundo outros cálculos, metade tiveram lugar após 1950 e 25% depois de 1991 [25]. No entanto, ninguém ainda sustentou (e há boas razões para tal) que os EUA têm ou tiveram um regime fascista. Imperialismo não é sinónimo de fascismo.
O apodo de fascista ou
neofascista que é frequentemente aplicado a
Dugin parece ter como única justificação válida o uso que ele fez do termo fascismo (a terceira ideologia política na sua
terminologia) numa certa fase da sua evolução doutrinária. Num livro de 1997 [26],
Dugin parece ter identificado uma certa versão do fascismo ⎼ ainda,
segundo ele, sem denominação própria e adequada por carecer de existência, a
não ser no plano puramente conceptual ⎼ com o que o mesmo Dugin viria a
apelidar, dez anos mais tarde (2007), de Quarta teoria
Política, ou, equivalentemente, de populismo
integral. Esse fascismo «puro, ideal, que ainda não
foi corporizado na história», seria, nas palavras de Dugin, «sem fronteiras (como as nossas terras) [= como
a Rússia], e vermelho (como o nosso sangue)».
Esta variante ⎼ dita “pura”,
“ideal” ⎼ do fascismo, seria, segundo Dugin,
muito diferente da variante “nacional-capitalista”,
“de direita”, do fascismo, aquela que se
corporizou historicamente em regimes como os de Mussolini, Hitler, Salazar e
Franco (os exemplos são de Dugin). Mas essa variante “nacional-capitalista”
do fascismo, afiança-nos Dugin, «não esgota de forma
alguma a natureza desta ideologia.»
“A dominação do capital nacional” — esta é uma definição
marxista do fenómeno do fascismo. É uma definição que não tem em conta, de modo
nenhum, a auto-reflexão filosófica específica da ideologia fascista [e] que ignora
conscientemente o núcleo fundamental do pathos [= paixões, N.E.]
do fascismo. Fascismo é nacionalismo, mas não qualquer
nacionalismo, mas um nacionalismo revolucionário, rebelde, romântico, idealista,
apelando a um grande mito e ideia transcendental, tentando pôr em prática o
Sonho Impossível, para dar à luz uma sociedade do herói e do super-homem, para
mudar e transformar o mundo.
A nível económico [é neste aspecto que a doutrina de
Dugin se assemelha à do fascismo, nomeadamente à sua característica 5, N.E.], o fascismo caracteriza-se antes por métodos socialistas ou
moderadamente socialistas que subordinam os interesses económicos pessoais e
individuais aos princípios do bem-estar nacional, da justiça e da fraternidade. /…/
Por outras palavras, o fascismo despreza
tudo o que constitui a essência do “capitalismo nacional”. Luta pelo “domínio
do idealismo nacional” (e não pelo “capital nacional”) e contra a burguesia e a
intelligentsia [Port.
“elite intelectual”, N.E.] (e não por ela e não
com ela) [27].
Num outro texto do mesmo livro, Dugin argumenta que o medo
que o termo fascismo causa atualmente não resulta
apenas, nem principalmente, da sua associação histórica com os regimes de
Mussolini, Hitler, Salazar e Franco ⎼ os quais, para ele,
não corporizam, como vimos, o fascismo “puro”, “ideal”, mas sim o fascismo de
“direita”; o “nacional-capitalismo” e não o “nacional-socialismo” ⎼ mas de um
medo mais profundo.
Por fascismo não queremos obviamente
dizer um fenómeno político concreto, mas o nosso medo secreto e profundamente entranhado
que leva o nacionalista, o liberal, o comunista e o democrata a aproximarem-se
uns dos outros. Esse medo não tem uma natureza política ou ideológica, [pelo contrário] exprime um sentimento geral, mais profundo [...] [o medo de]
um fascismo mágico [28].
Dugin parece, entretanto, ter desistido de tentar salvar
a palavra “fascismo” atribuindo-lhe um novo
conteúdo conceptual — dito “mágico”, “puro” ou “ideal.” Dez
anos depois (2007), vemo-lo criar a expressão “quarta teoria
política” e, mais tarde ainda, a de populismo
integral para denominar o seu ideário político. Vinte anos depois (2017),
vemo-lo rejeitar vigorosamente a acusação de ser fascista.
Tenho um conhecido no Canadá que me disse
recentemente que tinha escrito uma dissertação e que lhe disseram que se ele
não criticasse Dugin como fascista, como nazi, assassino, terrorista, então ele
não tinha qualquer hipótese de a defender e de encontrar um emprego, nunca, nem
aqui nem numa universidade canadiana. O meu conhecido disse: “Já li Dugin e não há
nada disso nos seus livros. Não encontrei nada assim; é um sistema muito mais
complexo; pode ser visto como algo especial, exótico, mas não é nada disso”. /…/
Li recentemente algo sobre mim na Newsweek,
na qual se dizia que Dugin é um defensor da quarta teoria política. Isso é
verdade. Mas a quarta teoria política rejeita o liberalismo, o comunismo, e o
fascismo. Escrevem ainda: “Ele é um fascista”. Mas como se pode simultaneamente
rejeitar a terceira teoria política e ser um fascista! Do meu ponto de vista, é
impossível! Mas isso não impede os autores desse artigo. É a lógica dos dois
pesos e duas medidas. Ela permeia toda a atitude em relação à Rússia. Se digo
que não há provas de que os piratas informáticos [hackers] russos
estejam por detrás da eleição de Trump, então sou um fascista. É muito difícil
levar a cabo um diálogo científico fundamental, porque um dos lados é
irresponsável. Durante muito tempo, fomos nós que fomos irresponsáveis. Durante
muito tempo. Concordo com isso. Mas agora olhamos para vós, para o Ocidente, e
vemos apenas uma completa loucura, porque se tomássemos o que o Ocidente propõe
em termos de critérios de democratização, liberdade, e desenvolvimento,
perderíamos completamente a cabeça [29].
E em 2022, numa declaração feita sobre o assassinato
da sua filha, Darya Dugina, Dugin qualificou de “nazi”
o regime vigente na Ucrânia; um regime que acusou (com razão, como se veio a saber)
de ser o mandante desse hediondo assassinato. Eis aqui alguns extractos dessa
declaração, que poucos jornais publicaram.
Como todos sabeis, a minha filha, Darya
Dugina, foi brutalmente assassinada diante dos meus olhos numa explosão em 20
de Agosto, em resultado de um ataque terrorista levado a cabo pelo regime
nazi ucraniano, quando regressava a casa vinda do festival “Tradição”,
perto de Moscovo. Era uma linda rapariga cristã ortodoxa, uma patriota, uma
correspondente de guerra, uma comentadora especializada de estações de
televisão e uma filósofa. Os seus discursos e reportagens foram sempre
profundos, informados e contidos. Ela nunca apelou à violência e à guerra. [realce, por meio de negrito,
acrescentado ao original, N.E.]
Ela era uma estrela ascendente nos seus
primeiros tempos. Mas os inimigos da Rússia mataram-na sorrateiramente, dissimuladamente…
/…/
O adeus a Daria Dugina (Platonova), um
serviço funerário civil, terá lugar em 23 de Agosto, na Torre Ostankino, às 10
da manhã [30].
4. Histoires à dormir debout
Podemos, bem entendido, apelidar Dugin de fascista, se assim o desejarmos. Foi o que fez, por exemplo,
o jornalista David
von Drehle, do Washington Post, que o qualificou de «profeta fascista
do máximo império Russo»,
ou o comentador político Wahid Azal, que considerou o «Duginismo»
como sendo «uma forma de separatismo branco fascista cuidadosamente
escondido atrás de uma cortina de fumo» [31]. Porém, para fazermos isso, teríamos (se
quisermos ser coerentes) de caracterizar o fascismo de uma maneira bem diferente
daquela que foi feita sucintamente mais acima, em 6 pontos — o que nem Drehle nem
Azal se dão ao trabalho de fazer. Eles partem do princípio de que concordamos
com a definição de fascismo de cada um deles, que não sabemos, todavia, qual é e que, por conseguinte, pode não ser sequer
a mesma em ambos os casos.
Seja como for, quer consideremos quer não consideremos
Dugin como sendo um fascista ou um neofascista; um nazi (ou nazista, como se
diz no Brasil) ou um neonazi, a questão imediata que se põe (admitindo que era
ele o verdadeiro alvo pretendido do atentado bombista que vitimou a sua filha,
Darya) é esta: por que razão quis/quer o governo
ucraniano assassiná-lo?
N.B. Termina aqui a primeira parte do artigo. Para quem quiser
parar de o ler e retomar a sua leitura numa outra ocasião ‒ sem, no entanto,
perder o fio à meada ‒ este é bom momento para o fazer. A parte seguinte, a segunda,
começa na secção 4.1. e termina na secção 6.
4.1. A patranha mais frequente: “Dugin é o guru de Putin”
Se acreditarmos no que os comentadores residentes do
sistema mediático dominante de comunicação social disseram dele, aquando do
assassinato da sua filha, a resposta é unânime e muito simples: “Dugin é o cérebro (o guru, a
eminência parda, o mentor, o aliado chave, o ajudante mais íntimo, o filósofo
favorito, o filósofo, o ideólogo principal, o Rasputin) de Vladimir Putin. Por
conseguinte, foi ele que sugeriu a Putin a sua “operação militar especial” na
Ucrânia”.
De facto, se escrevermos no motor de busca do Google,
“Putin’s brain”, “Putin’s
philosopher” ou “guru de Putin”, aparecem-nos
centenas e centenas de entradas que nos informam que estas expressões são equivalentes
a Aléksandr Dugin.
Assim, por exemplo, nos EUA, o Washington Post,
elevou Dugin ao estatuto de «aliado chave de Putin» [32]. Em Espanha, o El
Mundo preferiu qualificá-lo como sendo «o
principal ideólogo do putinismo.» [33] No Reino Unido, o
Independent entende que a descrição que melhor assenta a Dugin é a de «guia espiritual de Putin» [34]. O The
Sun rotulou-o como o «cérebro director»
por detrás da invasão da Ucrânia [35]. O DailyMail foi um passo
mais longe: Dugin não é nada menos do que «o ajudante
mais íntimo de Putin»
[36].
Cada artigo é ilustrado, regra geral, com fotografias individuais de Dugin e
fotografias individuais de Putin. Não há fotografias de Putin e Dugin juntos, o
que não admira, porque os dois homens nunca se encontraram — o que é deveras difícil
de compreender à luz da alegada relação íntima entre Dugin e Putin que esses
jornais têm por ponto assente.
Como é que “o ajudante mais íntimo
de Putin” não tem qualquer intimidade com ele? Como é que o seu “guia espiritual” o consegue guiar ou como é o seu “cérebro director” o consegue dirigir prescindindo de
qualquer relação directa, cara-a-cara, com ele? Por telefone? Por correio electrónico?
Por videoconferência? Se assim fôsse, as agências estrangeiras de colecta-secreta-de-informações-e-espionagem
(NSA, CIA, MI6, etc.) já o teriam descoberto e dado a conhecer ao sistema
mediático dominante de comunicação social, ao fim de tantos anos (Não nos
esqueçamos que Putin está no poder há 22 anos). Será, então, por telepatia?
A ideia de que Dugin seria o cérebro (o guru, a
eminência parda, o mentor, o ajudante mais íntimo, o filósofo favorito, o
filósofo, o aliado chave, o principal ideólogo, o Rasputin) de Putin, já foi
competentemente refutada por vários autores, bons conhecedores da realidade
russa e que são, todos eles, note-se, muito críticos tanto de Dugin como de
Putin.
Já em 2001, Stephen Shenfield escreveu, no seu livro Russian Fascism:
Traditions, Tendencies, Movements, que «a
influência de Dugin sobre a elite russa [permaneceu] limitada e altamente desigual» [37].
Treze anos volvidos, em 2014, num momento em que Dugin
estava no auge da sua carreira [38], Anton Shekhovtsov escreveu:
Putin nunca deu mostras de que a sua
política externa fôsse guiada por qualquer tipo de ideologia e salientou sempre
a natureza “pragmática” da abordagem russa ao Ocidente. Se Putin tivesse indicado
qualquer ideologia orientadora específica, então teria sido desafiado
intelectualmente — uma batalha que estaria condenado a perder. Além disso, a
presunção de que o Kremlin estava a seguir as ideias de Dugin tornaria Putin
previsível. No fim de contas, Dugin apresentou uma estratégia geopolítica muito
clara e “pronta a usar”, mas é a imprevisibilidade de Putin que joga a seu
favor nas relações externas.
Apesar do facto de o Kremlin se ter
distanciado claramente de Dugin, isto não significa que o seu Neo-Eurasianismo
tenha sido condenado. Mas será que Putin apoia o Neo-Eurasianismo? Existem
semelhanças óbvias entre as narrativas de Dugin e Putin: antiocidentalismo,
expansionismo e a rejeição da democracia liberal entre eles [39]. No entanto, seria errado sugerir que
qualquer destes elementos ou elementos ideológicos semelhantes são exclusivos
de Putin ou de Dugin, uma vez que estão incorporados na política russa há mais
de um século [40].
Oito anos depois, em Agosto de 2022, Alexei Kovalev escreveu:
Eu costumava andar com alguns acólitos do
filósofo político russo Aléksandr Dugin em Moscovo, no início dos anos 2000,
muito antes de ele ganhar notoriedade como um ideólogo nacionalista de
extrema-direita. Eles e eu fomos aos mesmos concertos e compartilhámos uma
preferência por bandas esotéricas britânicas de underground, tais como as
bandas Coil, Current 93 e Death in June. Na altura,
estes jovens seguidores de Dugin pareciam-me mais inofensivos e comprometidos
com drogas psicadélicas do que com a construção de um império russo neofascista
desde o Oceano Atlântico até ao Extremo Oriente, tal como perspectiva a sua ideologia
— apelidada de Eurasianismo. Os seus trajes de Blackshirt ao
estilo dos anos 30 eram estranhos, mas não demasiado alarmantes; os verdadeiros
skinheads [cabeças
rapadas] nazis que deambulavam pelas ruas de Moscovo
eram uma ameaça muito mais evidente para mim e para os meus amigos. /…/
O pai de Dugina é frequentemente considerado
como sendo o “cérebro de Putin”
pelos meios de comunicação ocidentais — mas na Rússia, ele é pouco conhecido.
Segundo todos os testemunhos, Putin nunca o conheceu pessoalmente ou citou as
suas obras. (O ideólogo favorito de Putin parece ser o filósofo abertamente
fascista Ivan Ilyin, que morreu no exílio, em 1954 —mesmo que Putin apenas cite
as declarações mais brandas de Ilyin sobre a grandeza russa). A única
instituição oficial russa que ostenta “Eurásia” no seu nome é a União Económica
Eurasiática, que não tem qualquer ligação directa com as ideias de Dugin.
Fotografias da palestra de Dugin sobre “valores tradicionais”, que ele realizou
apenas algumas horas antes da morte da sua filha, mostram apenas algumas
dezenas de pessoas aglomeradas em frente de uma pequena tenda [41].
4.2. A patranha mais sofisticada: “Ilyin é o filósofo favorito de Putin”
O testemunho de
Kovalev e os factos em que se baseia para refutar a ideia peregrina de que “Dugin é o cérebro de
Putin” não suscitam objecções. São verdadeiros e
esclarecedores. Já o mesmo não acontece relativamente à sua presunção de que: (i)
“o
ideólogo favorito de Putin é Ivan Ilyn,” e à sua afirmação
de que (ii) “Ivan
Ilyin é um filósofo fascista.” Ambas foram refutadas por Paul Robinson,
especialmente a afirmação (ii). Eis aqui um breve resumo da sua argumentação.
À medida que as pessoas procuram
compreender a decisão do presidente russo, Vladimir Putin, de invadir a Ucrânia,
uma explicação que se tornou popular é a de que o dirigente russo é um “fascista”.
Esta ideia promove uma visão binária do mundo como estando dividido entre o bem
e o mal. É, no entanto, uma ideia enganosa e talvez mesmo nociva.
Para justificar o rótulo fascista, os
comentadores [que o empregam] tomaram nota da afeição de Putin pelo filósofo
Ivan Ilyin [1883-1954], que emigrou no período entre as duas guerras mundiais [42], e associaram isso às alegações de que Ilyin era um
fascista. A lógica é simples: “Putin gosta
de Ilyin; Ilyin era um fascista; ergo [logo] Putin é um fascista”. Os
especialistas também estabelecem paralelos entre Putin e o pensador russo
contemporâneo Aléksandr Dugin, que também tem sido apelidado de fascista. /.../
Enquanto a ligação Putin-Dugin parece ser uma
pura invencionice, a ligação Putin-Ilyin existe de facto. Putin citou Ilyin
cinco vezes nos seus discursos, e em resposta a uma pergunta feita no ano
passado [2021] sobre as suas inspirações filosóficas, mencionou Ilyin e
disse que tinha uma cópia do “seu livro” e que, por vezes, lhe dá uma vista de
olhos. Vale a pena notar que as obras completas de Ilyin totalizam 32 volumes.
O facto de Putin ter uma cópia de um deles (provavelmente a colectânea de
ensaios intitulada As Nossas Tarefas)
dificilmente faz dele um especialista em Ilyin.
Ivan Ilyin (1883-1954). Fonte: Alamy Stock Photo |
Seja como for,
a descrição de Ilyin como sendo um “fascista”
representa uma leitura muito selectiva da sua obra. Há, de facto, passagens na
obra de Ilyin que são decididamente autoritaristas, mas há muitas outras
passagens que são distintamente liberais. Em meados da década de 1930, Ilyin
foi despedido do seu posto de professor em Berlim, depois de recusar instruções
nazis para propagar opiniões antisemíticas. Depois de se ter mudado para a
Suíça em 1938, escreveu algumas das mais apaixonadas defesas da liberdade
jamais escritas em russo (por exemplo, o seu ensaio Liberdade de 1939). Enquanto alguns vêem Ilyin como
um fascista, outros chamam-lhe “liberal”, um “conservador liberal”, e um
defensor do “modelo político liberal da sociedade e do Estado”.
Consequentemente, “paradoxal” é uma palavra frequentemente utilizada para
descrever os pontos de vista de Ilyin. /…/
Em suma, quem quiser encontrar um Ilyin
fascista, consegue fazê-lo. Mas quem quiser encontrar um Ilyin liberal, também
o consegue fazer. Ora, acontece que as citações de Ilyin que Putin utilizou
reflectem este último Ilyin, não o primeiro. Em Abril de 2005, Putin citou
Ilyin ao dizer que «o poder do Estado tem os seus limites. /.../ Ele não pode regular os aspectos científicos, religiosos
e artísticos da criação. /.../ Não
deve interferir na moral, na família e na vida quotidiana, nem restringir a
iniciativa económica, excepto em situações de extrema necessidade». Em
2013, Putin citou Ilyin novamente, dizendo que «o exército russo nunca esquecerá a tradição de Suvorov,
que afirmou que o soldado é um indivíduo». E em
Dezembro de 2014, ele usou as seguintes palavras de Ilyin: «Quem ama a Rússia deve desejar-lhe a liberdade; antes de
mais liberdade para a própria Rússia /…/ e, finalmente, liberdade para o povo russo, liberdade
para todos de nós; a liberdade de religião, a busca pela justiça, a criatividade,
o trabalho e a propriedade». Nada disto é, ainda
que só remotamente, fascista [43].
Em 2018, Marlene Laruelle já tinha dedicado todo um
artigo à refutação da afirmação de que “Ilyin é o
filósofo favorito de Putin”, uma afirmação quase tão peregrina como a de
que “Dugin é o guru (ou cérebro) de Putin”.
Argumento aqui não só que Ilyin não é o
“guru” de Putin, mas também que o legado ideológico de Ilyin na Rússia
contemporânea é mais complexo do que o do “fascismo”. Ilyin não se tornou a
referência ideológica oficial de Putin, nem o “filósofo de Putin”. Putin só
citou Ilyin em cinco ocasiões (em 2005, 2006, 2012, 2013 e 2014); três delas
foram dirigidas às assembleias federais e duas a audiências militares. Este
número de citações é muito menor do que as de muitos outros pensadores do
panteão do regime. /…/
As citações de Ilyin por Putin ⎼
assim como por [Vladislav] Surkov [conselheiro de Putin de 2013 a 2020, N.E.] ou as do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov ⎼ são
das mais estereotipadas, celebrando o Estado russo como encarnação da lei, o
soldado como personificação da nação, o eterno Estado da Rússia, e, em 2014,
Putin citava-o dizendo: “Aquele que ama a Rússia deve desejar-lhe liberdade.” /…/
Contudo, a obra de Ilyin é muito volumosa,
enchendo vários tomos, e a sua visão da “essência” e do regime político ideal
da Rússia estava de facto entre as mais clássicas e não inventivas: como muitos
outros pensadores políticos russos, Ilyin viu a essência da Rússia na
autocracia, na condição de Estado, no messianismo e no excepcionalismo cultural.
Não há aqui nada de particularmente fascista, apenas a visão mais convencional
da Rússia [44].
4.3. Ainda sobre a patranha “Dugin é o guru de Putin”
Como vimos, a alegação de que “Dugin é o filósofo favorito (o cérebro, o guru, etc.) de Putin”
carece tanto ou mais de fundamento factual do que a alegação de que “Ilyin é o filósofo favorito de Putin”. Por isso, é
razoável conjecturar que se trata de mais uma tentativa de convencer o público
de que Putin não tem pensamento próprio. É uma missão impossível,
constantemente derrotada pela realidade, como procurarei mostrar num artigo
posterior desta série. Por agora, porém, detenhamo-nos um pouco mais sobre este
assunto, já que é uma das atoardas preferidas do sistema mediático dominante da
comunicação social do “Ocidente alargado”.
Quer Paul Robinson quer Marlene Laruelle, dois dos
mais profundos conhecedores da Rússia, convergem numa mesma apreciação. Comecemos
por dar a palavra a Marlene Laruelle, citando um artigo em que esta historiadora
e politóloga se interroga sobre as possíveis motivações ideológicas da invasão
da Ucrânia pelas tropas russas em 24 de Fevereiro de 2022.
Entre os ideólogos contemporâneos, Aléksandr
Dugin é também excitadamente citado pelos observadores ocidentais como tendo uma
forte influência sobre Putin. E Dugin sempre foi, de facto, um inimigo
virulento de uma Ucrânia independente (A Ucrânia, como Estado, não tem
significado geopolítico, escreveu ele no seu livro Fundações da Geopolítica). [A citação completa é: A Ucrânia, como Estado,
não tem significado geopolítico, não tem nenhum atributo cultural particular ou
significado universal, nenhuma singularidade geográfica, nenhuma exclusividade
étnica. N.E.] Ele apelou à sua
absorção quase completa pela Rússia, deixando apenas as regiões mais ocidentais
da Ucrânia permanecerem fora do domínio da Rússia.
Mas Dugin não segreda aos ouvidos do
Kremin. Dugin é demasiado radical nas suas formulações [para que isso pudesse ser
possível, N.E.], é demasiado obscuro e
esotérico e cultiva um nível “elevado” de referências intelectuais aos
clássicos europeus de extrema-direita que não podem satisfazer as necessidades
do governo de Putin. Dugin foi um dos promotores originais de uma noção
geopolítica da Eurásia e da Rússia como uma civilização distinta nos anos mil
novecentos e noventa, mas esses temas banalizaram-se independentemente e até
mesmo contra a utilização que Dugin deles fez nas décadas seguintes. Ele nunca
foi membro de nenhuma das muitas organizações da sociedade civil cooptadas pelo
Kremlin, mesmo que tenha sido capaz de angariar alguns patronos nos círculos
militar-industrial e dos serviços de segurança [45].
Esta apreciação data de 16 de Março de 2022, vinte
dias depois da invasão da Ucrânia pelas tropas russas. Mais recentemente, em
Agosto, Marlene Laruelle foi entrevistada a propósito do assassinato de Darya
Dugina. Como não podia deixar de acontecer, foi-lhe feita a pergunta sacramental.
Entrevistadora: /…/ Será que sabemos quão influente ele [Dugin] tem
sido no pensamento de Vladimir Putin? Estes dois homens estão próximos um do outro?
M. Laruelle: Não. Nós até… não tenho
a certeza de que se tenham conhecido. Putin nunca citou Dugin. Dugin não faz
parte de nenhuma instituição oficial, como acontece com várias outras
ideologias. Ele tem apenas um pequeno canal de Internet, que é um canal
ortodoxo de extrema-direita. Portanto, ele não pertencia ao tipo de
propagandista clássico que eu costumo convidar para um programa de debate [talk show, no original] — a sua filha sim. E é isso que é interessante: o facto de
que a sua filha era mais centrista [mainstream, no original, N.E.]
num certo sentido, do que ele é. E ela pôde ser
convidada em todos esses talk shows muito provocantes. Mas ele [Dugin]
tem sido bastante marginal, porque o seu pensamento não é realmente um pensamento
fácil de seguir. É um género de pensamento filosófico ou religioso exarcebado.
Portanto, não é algo que se possa transmitir na televisão muito facilmente e
conseguir uma grande audiência para isso [46]. [realce,
por meio de negrito, acrescentado ao original]
Por seu turno, Paul Robinson diz-nos o seguinte:
A ideia de Dugin como “cérebro de Putin”
remonta a um artigo de 2014, com esse título [Putin’s brain, no
original, N.E.] de
Anton Barbashin e Hannah Thoburn, publicado na [revista] Foreign Affairs. Desde
então, a afirmação tem sido repetida tão frequentemente que as pessoas assumem
que é verdade. De facto, não há provas de qualquer ligação entre os dois
homens. Até ter emitido uma mensagem de condolências [pela morte de
Darya Dugina, N.E.] esta segunda-feira, o
presidente russo nunca tinha mencionado Dugin, muito menos citado as suas palavras ou dado qualquer indicação de
que tinha lido a sua obra. Além disso, em 2014, Dugin perdeu o seu emprego na
Universidade Estatal de Moscovo e, desde então, tem-se encontrado sem qualquer
oportunidade de falar nos principais meios de comunicação social russos. Na
realidade, foi colocado na lista negra como demasiado radical.
Longe de serem “aliados” do Estado russo,
os chamados “nacionalistas,” como Dugin, têm sido muito críticos do dito Estado
por ele ser demasiado brando com o Ocidente e com a Ucrânia. Dugin pode ser
muitas coisas, mas o “aliado”, o “cérebro,” ou o “conselheiro espiritual” de
Putin não se encontram certamente entre elas. Seria difícil encontrar um
único estudioso sério dos assuntos russos que considere esse filósofo como algo
mais do que uma figura marginal no mundo da política russa. Se apenas um
meio de comunicação tivesse caracterizado incorrectamente Dugin, seria um
simples caso de má reportagem. O facto de que quase todo o corpo da imprensa
ocidental o ter feito é indicativo de uma falha mais sistémica. A imagem
empobrecida que se obtém do mundo como resultado desta falha leva a políticas
mal elaboradas, fundamentadas na ignorância. É um problema que necessita de
atenção urgente [47]. [realce, por meio de negrito,
acrescentado ao original, N.E.]
O próprio Dugin não tem ilusões (embora as tivesse
tido, durante algum tempo, há duas décadas, quando Putin chegou à ribalta do
poder central da Federação Russa) relativamente à sua influência sobre Putin. Em
2014, afirmou:
Foi assim que Putin regressou [ao cargo de presidente da Federação
Russa, em 2012, depois de um interregno de 4 anos (2008-2012) como
primeiro-ministro, N.E.] e continua a agir,
armado com estes erros fatais. Ele permanece sem uma ideia ou estratégia, sem
uma elite adequada, sem uma política externa adequada, sem uma política interna
socialmente orientada, sem um modelo para a organização nacional da sociedade, sem
um meio de comunicação social com uma missão de formação de cultura, no meio de
uma degradação intelectual. Quem culpar? Penso que o próprio Putin. Enfrentou
um desafio histórico no início dos anos 2000, e não conseguiu enfrentar o outro
desafio. Foi marcado pela indecisão, pela vacilação, pela escolha de
estratégias erradas e por quadros políticos totalmente medíocres. Sim, o seu
séquito, que é responsável pela supervisão dos processos políticos, engana-o.
Mas isto só significa que quer ser enganado e não
quer enfrentar a verdade [48].
E em 2017, ouvimo-lo declarar o seguinte:
Entrevistador: Finalmente, gostaria de
lhe perguntar sobre a influência das suas ideias. Lembra-se, sem dúvida, do
artigo O cérebro de Putin [Ingl. Putin’s Brain]. Aí está escrito que o
senhor tem uma influência significativa no pensamento geopolítico na Rússia.
Mas outros dizem que não tem influência e que é uma figura periférica.
A. Dugin: Aqueles que pensam que eu estou na
periferia do poder estão correctos. Eu não tenho influência. Não conheço
ninguém, nunca vi ninguém [no centro do poder, entenda-se, N.E.], apenas
escrevo os meus livros, e sou um pensador russo, nada mais. Eu escrevo livros,
alguém os lê [49].
Esta declaração não parece ser uma manifestação de falsa
modéstia, porque mesmo os inimigos assumidos de Putin na Rússia reconhecem que
Dugin nada tem a ver com Putin.
“Esta caricatura pseudo-intelectual que
nos é impingida [isto é,
Dugin, N.E.] não faz certamente parte do
sistema de decisão,” escreveu Leonid Volkov
‒ um aliado chave do crítico do Kremlin, Alexei Navalny, que está preso ‒ horas
após o atentado com o carro armadilhado [que
vitimou Darya Dugina, N.E.] [50].
Os franceses têm uma expressão metafórica, “histoires à dormir debout” [à letra, “histórias para dormir em pé”], que não tem
equivalente em Português. Serve para qualificar histórias fantasticamente absurdas,
nas quais é impossível acreditar, mas que, precisamente por serem
inacreditáveis, têm o condão de nos sugerir que estamos a sonhar acordados, a
sonhar em pé [debout].
A afirmação de que “Dugin é o
cérebro (o guru, a eminência parda, o mentor, o filósofo, o filósofo favorito,
o aliado chave, o ajudante mais íntimo, o principal ideólogo, o Rasputin) de
Putin” é uma “histoire à dormir debout”,
uma história para dormir em pé.
5. O assassinato de Estado à luz do direito internacional público
À luz da ética agatonista, o assassinato de alguém a
sangue-frio e, por maioria de razão, o assassinato de Estado ‒ que pressupõe
sempre premeditação, planeamento e uma superioridade descomunal de forças e
meios dos assassinos e dos seus mandantes relativamente aos assassinados ‒ são
crimes hediondos. É o caso do assassinato de
Darya Dugina a mando do governo ucraniano de Volodymir Zelensky.
Estou bem ciente de que a ética agatonista [51] é inencontrável como norma de conduta individual em 99,9% dos governantes, dirigentes políticos e gestores empresariais, efectivos ou potenciais, do mundo inteiro. Mas há uma coisa que a grande maioria deles gosta de dizer que leva muito a peito: o Direito Internacional Público e, muito em particular, o Direito Internacional Humanitário, também conhecido como Direito Internacional dos Conflitos Armados (vulgo, “as leis da guerra”) [52].
O núcleo do Direito Internacional Humanitário (DIH) é
composto essencialmente pelas quatro Convenções de Genebra (1949) e pelos seus dois
Protocolos Adicionais (1977). Estas convenções protegem especificamente as
pessoas que não participam nas hostilidades (civis, profissionais da saúde e
agentes humanitários) e as que deixaram de participar (como os soldados que se
rendem, os soldados feridos, os enfermos, os náufragos e os prisioneiros de
guerra).
5.1. A questão central
Tanto a Ucrânia como a Rússia subscreveram estas convenções
e os seus protocolos adicionais [53]. Por conseguinte, a questão
central (QC, para abreviar) que pode e deve ser levantada por quem
queira examinar o assassinato de Darya Dugina à luz do direito internacional humanitário
é a seguinte:
(QC): Pode alguém que não
participa numa guerra ‒ por exemplo, um civil identificado como jornalista ou como
comentador político ‒ ser legalmente visado como alvo de um assassinato de
Estado a pretexto de que dissemina propaganda e desinformação consideradas odiosas?
A resposta é Não. Um Estado que cometa um tal
assassinato comete um crime de guerra. O que diz o DIH sobre o assassínio de
civis? Muita coisa. Na realidade, talvez o princípio mais fundamental do DIH
seja a exigência de distinguir entre civis e combatentes, porque só são legais os ataques dirigidos contra os últimos.
É a norma 1 do DIH — ou seja, o princípio da distinção entre civis e combatentes.
Norma 1. As partes em conflito devem distinguir
entre civis e combatentes em todas as circunstâncias. Os ataques só podem ser
dirigidos contra os combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra os
civis [54].
O Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), a
força motriz do Direito Internacional Humanitário (DIH) desde 1863, lembra:
Emblema do Comité Internacional da Cruz Vermelha (em Francês) com sigla em Português. Fonte: Wikipédia |
O DIH aplica-se às partes beligerantes,
independentemente das razões do conflito ou da justeza das causas pelas quais
estão a lutar. Se assim não fôsse, a aplicação da lei seria impossível, uma vez
que todas as partes afirmariam ser uma vítima de agressão. Além disso, o DIH destina-se
a proteger as vítimas de um conflito armado, independentemente da sua ligação a
qualquer das partes. É por isso que o jus in bello [= a parte do direito internacional
público que regula a conduta das partes envolvida num conflito armado, N.E.]
deve permanecer independente do jus ad bellum
[= a parte do direito internacional público que determina a
legalidade ou a ilegalidade do recurso à força militar por uma entidade
política (geralmente um Estado) contra outra(s) entidade(s) política(s) do
mesmo escalão ou de escalão inferior. Por outras palavras e numa linguagem
política, o jus ad bellum determina o que é um “acto de guerra” legal ou um
“acto de guerra” ilegal N.E.] [55].
Por outras palavras e mais concretamente, o facto de, no
âmbito do jus ad bellum, a Rússia ser a entidade agressora na segunda
guerra na Ucrânia (a que começou a 24 de Fevereiro de 2022) e a Ucrânia a
entidade agredida, não obvia a aplicação do DIH na situação de jus in bello decorrente
desse conflito armado — o qual prossegue. Do mesmo modo, o facto de, no âmbito
do jus ad bellum, a Ucrânia ser a entidade agressora na primeira guerra
na Ucrânia (a que começou em Maio de 2014) e as Repúblicas populares de Donetsk
e Luhansk serem as entidades agredidas, não obvia a aplicação do DIH na situação de
jus in bello decorrente desse conflito armado — o qual prossegue.
Além disso, a norma 89 do DIH consuetudinário estipula
muito claramente:
Norma 89. São proibidos os homicídios intencionais.
No comentário a esta norma, que se aplica tanto nos
conflitos armados internacionais como nos conflitos armados não internacionais,
o CICV relembra que o assassinato (homicídio intencional) de civis em tempo de
guerra há muito que é considerado um crime de guerra.
A proibição de matar civis já era
reconhecida pelo Código Lieber [1863]. Matar civis e prisioneiros de guerra foi
incluído como crime de guerra na Carta do Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg [1945]. O artigo 3º. comum às
Convenções de Genebra [1949] proíbe “os atentados à vida e à integridade corporal, nomeadamente
o homicídio sob qualquer das suas formas” dos
civis e pessoas fora de combate [entenda-se, pessoas que não são
combatentes, ou que deixaram de ser combatentes por falta de condições, N.E.]. As quatro Convenções de Genebra listam o “homicídio
intencional” das pessoas protegidas como uma infracção grave. A proibição de
matar é reconhecida como uma garantia fundamental pelos Protocolos Adicionais I
e II [das Convenções de Genebra]. Os homicídios
intencionais também são definidos como crime de guerra pelo Estatuto do
Tribunal Penal Internacional relativamente a conflitos armados, tanto internacionais
como não internacionais, pelos Estatutos dos Tribunais Penais da ex-Jugoslávia
e do Ruanda e pelo Tribunal Especial para a Serra Leoa. A proibição de matar
civis e pessoas fora de combate figura em inúmeros manuais militares e na
legislação de muitos Estados. Foi mantida em larga escala na jurisprudência
nacional e internacional. Além disso,
está amparada por declarações oficiais e outras práticas [56].
A definição de “crimes de
guerra” constitui o teor da norma 156 do direito internacional
humanitário.
Norma 156. Violações graves do Direito Internacional
Humanitário constituem crimes de guerra [57].
As violações graves do Direito Internacional Humanitário,
que constituem crimes de guerra, incluem as infracções graves das Convenções de
Genebra. São infracções graves das Convenções de Genebra
no caso de um conflito armado
internacional, quaisquer dos seguintes actos cometidos contra indivíduos ou
bens protegidos pelas disposições da respectiva Convenção de Genebra:
• Homicídio intencional; [realce, por meio de negrito,
acrescentado ao original, N.E.]
• Tortura ou outros tratamentos desumanos,
incluindo experiências biológicas;
• O acto de causar intencionalmente grande
sofrimento ou danos graves à integridade física ou à saúde;
• Destruição ou apropriação de bens em
larga escala, não justificadas pela necessidade militar e executadas de modo
ilegal e arbitrário;
• O acto de compelir um prisioneiro de
guerra ou outra pessoa sob proteção a servir nas forças armadas de uma Potência
inimiga;
• Privação intencional a um prisioneiro de
guerra ou outra pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento justo e
imparcial;
• Deportação ou transferências ilegais;
• Privação ilegal de liberdade;
• Tomada de reféns. [58]
Como salientou uma especialista em direito
Internacional Humanitário:
Os crimes de guerra referem-se às graves
violações do direito humanitário internacional. Esses crimes estão agora
listados no Artigo 8 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional,
adoptado em 1998. Alguns Estados não estão sujeitos à jurisdição do Tribunal
por não terem ratificado o Estatuto (neles se incluindo a Rússia e a Ucrânia).
Contudo, todos os Estados concordam com a definição de crimes de guerra — esta
definição é, portanto, o instrumento de referência nesta área [59].
5.2. A posição da Ucrânia sobre o direito internacional humanitário
No entanto, um artigo do Washington Post
(WP) de Março de 2022 relatou uma afirmação discrepante que foi feita por um assessor
do presidente Zelensky já nosso conhecido. Refiro-me ao espantoso Oleksiy
Arestovych, o homem que, em Março de 2019, revelou, com total exactidão de
pormenores, o plano do governo ucraniano para provocar e travar uma guerra com
a Rússia (v. José Catarino Soares, A Guerra na Ucrânia (4.ª parte). A luta contra a
guerra [secção 11]. Tertúlia Orwelliana.
Arquivo do Blogue, 13 de Julho de 2022). Evocarei um excerto desse plano quando
tornarmos a encontrar Oleksiy Arestovych mais adiante, na secção 6.1.
Antes de passarmos a citar a afirmação de Arestovych
relativamente ao direito internacional humanitário, é necessário conhecer o
contexto em que foi produzida. A repórter Susan Raghavan, do WP, escreveu:
Cada vez mais, os ucranianos estão a
confrontar-se com uma verdade incómoda: o impulso compreensível dos militares
para se defenderem de ataques russos poderia estar a colocar civis na mira.
Praticamente todos os bairros da maioria das cidades foram militarizados, uns
mais do que outros, tornando-os alvos potenciais para as forças da Rússia que
tentam derrubar as defesas ucranianas. /…/
Isso transformou o conflito numa guerra
largamente urbana, travada mais por meio de armamento aéreo e bombardeamentos
do que pelos tradicionais combates de rua a rua em muitas áreas. Com as forças
russas a atacar as cidades, os ucranianos responderam fortificando áreas civis
para defender Kyiv, implantando sistemas de defesa aérea, armamento pesado,
soldados e voluntários para patrulhar enclaves. As baixas civis estão a
aumentar. /…/
Durante o último mês, jornalistas do Washington Post testemunharam foguetes antitanque ucranianos, armas antiaéreas e veículos blindados de transporte de pessoal colocados perto de edifícios de apartamentos. Num lote vago, os jornalistas do Post avistaram um camião com um lançador múltiplo de foguetes Grad. Postos de controlo com homens armados, barricadas de sacos de areia e pneus, e caixas de cocktails Molotov estão omnipresentes nas auto-estradas da cidade e nas ruas residenciais. O som de foguetes e artilharia disparados a partir da cidade pode ser ouvido constantemente em Kyiv, a capital, com os rabiscados rastros brancos de mísseis visíveis no céu. /…/
Os militares ucranianos têm «a responsabilidade,
nos termos do direito internacional, de retirar as suas forças e equipamento de
áreas povoadas por civis, e se isso não for possível, de deslocar civis para
fora dessas áreas,»
disse [Richard] Weir [investigador da divisão de crise e conflitos da
Human Rights Watch, que está a trabalhar na Ucrânia, N.E.]. «Se não o fizerem, isso é uma violação das leis da guerra,» acrescentou ele. «Porque
o que eles estão a fazer é a pôr em risco os civis. Porque todo esse
equipamento militar é um alvo legítimo» [60].
Recorde-se que o emprego de escudos humanos é
um crime de guerra, expressamente proibido pela Terceira Convenção de Genebra
(relativa aos prisioneiros de guerra), pela Quarta Convenção de Genebra
(relativa aos civis protegidos), pelo Protocolo Adicional I (relativa aos civis
em geral), assim como pelo estatuto do Tribunal Penal Internacional [61]. Por “emprego de escudos humanos” entende-se,
especificamente,
o emprego da presença (ou do movimento) de civis ou outras pessoas protegidas para tornar certos pontos ou áreas (ou forças militares) imunes às operações militares
ou ainda,
uma colocação intencional
de civis ou pessoas fora de combate junto a objectivos militares [tais como forças
militares, obuses, tanques de guerra, depósitos de munições, centros de radares
e de comunicação, N.E.] com a finalidade específica de tentar evitar
os ataques a esses objetivos [62].
Oleksiy Arestovych. Fonte: Gabinete do presidente da Ucrânia |
Perante o emprego generalizado de escudos humanos
pelas tropas ucranianas, o Washington Post pediu a Oleksiy Arestovych (descrito pelo WP como sendo o “conselheiro do chefe de gabinete do Presidente ucraniano
Volodymyr Zelensky”) uma resposta a algumas perguntas escritas sobre esta
situação.
Em resposta às perguntas escritas do The
Post, Oleksiy Arestovych, disse que a doutrina militar do país, aprovada
pelo parlamento, prevê o princípio da “defesa total.” Isto significa que os
voluntários nas Forças de Defesa Territorial ou noutras unidades de autodefesa
têm a autoridade legal para protegerem as suas casas, que se encontram na sua
maioria em áreas urbanas. Além disso, argumentou que o direito internacional
humanitário ou as leis da guerra não se aplicam a este conflito porque «a principal tarefa da
campanha militar de Putin é a destruição da nação ucraniana». Arestovych disse que o
Presidente russo Vladimir Putin tem negado, repetidamente, a existência da Ucrânia
como uma nação independente. «Por conseguinte, o que está a acontecer aqui não é uma
competição entre exércitos europeus de acordo com as regras estabelecidas, mas
uma luta do povo pela sobrevivência, perante a uma ameaça existencial», disse Arestovych [63]. [realce, por meio de negrito, acrescentado ao
original, N.E.]
Estamos esclarecidos. Estas declarações de Arestovych
mostram bem que o direito internacional humanitário ou as leis da guerra (jus
in bello) são um verbo de encher para o governo presidido por Vladomyr
Zelensky. Este governo quer ter as mãos
livres para actuar a seu bel-prazer, subordinando e sacrificando os seus
concidadãos civis aos seus objectivos militares, quer empregando-os como
escudos humanos, quer (no caso dos cidadãos russófonos de Donbass) bombardeando-os diariamente e, nas zonas que controla, assassinando-os “como porcos” (sic), sempre
que entender que isso é conveniente e oportuno [64]. O assassinato de
Darya Dugina que o governo ucraniano mandou executar aos seus esbirros não
constitui, neste quadro, senão um pequeno exemplo dos crimes de guerra que é capaz de cometer.
Antes de concluirmos esta secção convém notar que Arestovych
mente descaradamente quando afirma que Vladimir Putin tem negado repetidamente a
existência da Ucrânia como nação independente. Num ensaio recente, intitulado Sobre a unidade histórica dos Russos e dos Ucranianos,
publicado em 12 de Julho de 2021, Putin reconhece sem ambiguidade a
existência da Ucrânia, caracterizando-a como um «Estado
livre» e evocando claramente a «soberania da
Ucrânia.»
Ao explicar, nesse ensaio, que as populações de ascendência
russa e de ascendência ucraniana estão unidas historicamente desde há séculos,
o objectivo de Putin não é, manifestamente, o de propor uma reunificação da
Rússia e da Ucrânia. Para quem se dê ao trabalho de ler esse ensaio, inserindo-o
no seu contexto político (voltarei a este ponto mais adiante), ressalta claramente
que o seu objectivo é (i) o de fazer compreender à Ucrânia que ela não
tem nenhuma razão para hostilizar a Rússia, e (ii) o de fazer
compreender aos governantes da Ucrânia – sem nunca se lhes dirigir directamente
‒ que não têm nenhuma razão para tratarem os cidadãos ucranianos de ascendência
russa como cidadãos de segunda classe, como o têm feito há mais de 8 anos,
especialmente na região de Donbass onde eles formam a maioria da população.
Respeitamos a língua e as tradições
ucranianas, o desejo dos ucranianos de verem o seu Estado livre, seguro e
próspero. Estou convencido de que é em parceria com a Rússia que a verdadeira
soberania ucraniana é possível. Os nossos laços espirituais, humanos e
civilizacionais foram forjados durante séculos, remontam às mesmas origens, foram
fortalecidos por provas, realizações e vitórias comuns. O nosso parentesco é
transmitido de geração em geração. Está nos corações, nas memórias das pessoas
que vivem na Rússia e na Ucrânia modernas, nos laços de sangue que ligam
milhões das nossas famílias. Juntos sempre fomos e seremos muito mais fortes e
mais bem-sucedidos. Pois nós formamos um só povo.
Hoje em dia, estas palavras são entendidas
com hostilidade por alguns. Podem ser mal interpretadas. Mas muitos irão
ouvir-me. Direi uma coisa: a Rússia nunca foi e nunca será “antiUcrânia.” E o
que deveria ser a Ucrânia? Isso cabe aos seus cidadãos decidir [65].
Este ensaio de Putin não surgiu de uma súbita epifania
historiográfica do seu autor. Putin não pretende fazer obra de historiador,
muito menos de historiador revisionista. O seu objectivo é bem mais modesto.
Ao trabalhar neste artigo, não me baseei em
arquivos secretos, mas em documentos abertos que contêm factos bem conhecidos.
Os dirigentes da Ucrânia moderna e os seus mecenas externos preferem não se
lembrar desses factos.
Na realidade, o teor e o momento de publicação deste ensaio só se deixam apreender completamente se tivermos em conta um facto que foi passado em silêncio pelo sistema mediático dominante de comunicação social, a saber: o ensaio Sobre a unidade histórica dos Russos e dos Ucranianos é a resposta directa e imediata de Putin à Lei sobre os povos autóctones da Ucrânia que Zelensky apresentou ao parlamento ucraniano e que este aprovou em 1 de Julho de 2021. Entre as datas de publicação destes dois textos medeiam apenas 11 dias.
Relembro (ou informo, para quem não saiba) que a Lei sobre os
povos autóctones da Ucrânia estipula que os cidadãos ucranianos de língua
(e etnia) russa não terão os mesmos direitos constitucionais do que os cidadãos
ucranianos de língua (e etnia) ucraniana, nem terão os mesmos direitos do que
os Tártaros e os Caraítas da Crimeia — um território russo que o parlamento e o
governo ucranianos insistem fraudulentamente em considerar como parte
integrante da Ucrânia [66].
N.B. Aqui termina a segunda parte deste texto. Para quem
quiser fazer uma pausa antes de retomar a sua leitura noutra ocasião, este é um
bom momento de o fazer. A terceira e última parte começa na secção 6 e vai até ao fim da secção 9.
6. O moralismo farisaico em acção
Julgo ter estabelecido, sem deixar margem para dúvidas,
neste artigo e no artigo anterior a este [Qual é a morada dos assassinos de
Darya Dugina e o que é que isso tem a ver com as guerras na Ucrânia? In Tertúlia Orwelliana. Arquivo do blogue, 5 de novembro de 2022], que
o governo ucraniano de Vlodymir Zelensky não respeita o jus in bello, o direito
internacional humanitário que regula a conduta dos beligerantes numa guerra.
Pelo contrário, arroga-se o “direito” de o violar de todos os modos possíveis
que entenda serem-lhe convenientes.
Fica, pois, claro que o assassinato de Darya Dugina ‒
que sabemos hoje ter sido encomendado por esse governo e executado pelos seus
serviços secretos especiais ‒, não foi um acto “irreflectido,” um “erro”
trágico desse governo, que não se repetirá.
Foi, isso sim, um homicídio intencional, um assassinato, perpetrado secreta e cobardemente contra um civil estrangeiro e indefeso, na sua terra natal. Ao seu carácter ignóbil, acresce o facto de, como vimos, nem a vítima desse assassinato, Dugina, nem o seu pai, Dugin ‒ que seria a verdadeira vítima visada pelo atentado que vitimou a sua filha, segundo a opinião maioritária do sistema mediático dominante da comunicação social ocidental ‒ tinham ou têm qualquer valor táctico ou estratégico para o governo ucraniano. Foi, pois, um crime que atesta da maneira mais impressionante que o governo ucraniano tem no seu seio não só gente sem quaisquer escrúpulos, mas também gente que brilha pela imbecilidade.
Em suma, o homicídio intencional, o assassinato de civis, tal
como emprego de civis como escudos humanos, são crimes de guerra, mas, para o
governo ucraniano de Zelensky, são armas de guerra como quaisquer outras,
porque se trata de um governo que se auto-excluiu do cumprimento das “leis da guerra” e disso se vangloria (Oleksiy
Arestovych ipsi dixit).
6.1. Moralismo farisaico da espécie canónica
No entanto, é este governo celerado que o governo e o congresso
dos EUA, a OTAN, o governo e o parlamento do Reino Unido, a UE (Conselho
Europeu, Comissão Europeia, Parlamento Europeu, Alto Representante da União
para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança) têm vindo a apoiar, desde
2015 e sobretudo desde os finais de Março de 2022, com um fluxo
constante e gigantesco de armas, munições, informações estratégicas (obtidas
por meio de satélites, aviões-espiões e drones) e dinheiro, muito
dinheiro, além de apoio logístico, aconselhamento e treino militar dentro e
fora da Ucrânia.
O objectivo deste apoio ‒ incentivar a Ucrânia a preparar-se,
a provocar e, depois, a travar uma guerra (se possível vitoriosa) com a Rússia,
com o auxílio da OTAN, prometendo-lhe (uma promessa sempre acreditada de boa-fé
pelo promissário, mas nem sempre feita
de boa-fé por todos os promitentes) como recompensa a entrada, tão almejada, nessa
aliança militar ⎼ foi enunciado
e anunciado por Oleksiy Arestovych em 18 de Março de 2019 (três anos antes
do início da segunda guerra na Ucrânia!) e actualizado pelo ministro da Defesa
dos EUA, Lloyd Austin em 25 de Abril de 2022. Recordemo-lo:
Oleksiy Arestovych: Com uma probabilidade de 99,9%, o preço que
teremos de pagar para aderir à OTAN é uma grande guerra com a Rússia. E se não aderirmos
à OTAN [= NATO no
acrónimo inglês, N.E.] a Rússia absorver-nos-á completamente dentro de 10-12
anos. É esta a encruzilhada em que nos encontramos. E agora, ide votar em
Zelensky! /…/
Entrevistadora: E se o senhor pudesse
escolher, o que é que seria melhor?
Oleksiy Arestovych: Seria, bem entendido, uma grande guerra com
a Rússia e a entrada na OTAN no seguimento da vitória sobre a Rússia. /…/
Entrevistadora: Quando [seria essa guerra]?
Oleksiy
Arestovych:2021 ou 2022, enfim, entre 2020 e 2022. O período mais crítico /…/ Mas,
nesse conflito, seremos apoiados muito activamente pelo Ocidente. Armas.
Equipamentos. Assistência. Novas sanções contra a Rússia. Muito provavelmente a
introdução de um contingente da OTAN. Uma zona de exclusão aérea e assim por
diante. Por outras palavras, não perderemos. É uma boa coisa [67].
Lloyd Austin, ministro da Defesa dos EUA. Foto de Sarah Silbiger, Getty Images |
Lloyd Austin: [A] O
primeiro passo para vencer é acreditar que se pode vencer. E eles [eles =
governo e Forças Armadas da Ucrânia, N.E.] acreditam
que podem vencer. Acreditamos que nós podemos vencer [nós = governo dos EUA
e OTAN, N.E.] – que eles podem vencer ‒ se
tiverem o equipamento certo, o apoio certo. [B] Vamos
continuar a fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para garantir que eles
recebem o equipamento de que necessitam o mais rapidamente possível. [C]
Queremos ver a Rússia enfraquecida ao ponto de não
poder fazer o tipo de coisas que fez na invasão da Ucrânia [68].
Não se trata, pois, de encorajar o governo ucraniano a
aceitar uma solução negociada ao conflito armado com a Rússia que acomode as exigências
de segurança militar da Rússia (neutralidade da Ucrânia e o seu desligamento
militar da OTAN) e os direitos autonómicos (incluindo o direito à secessão) das
populações russófonas e russófilas da região de Donbass. Trata-se, bem pelo
contrário, de enfraquecer a Rússia ao máximo ‒não só no plano militar evocado
por Austin, mas também no plano económico e financeiro (através de sanções
económicas draconianas e do congelamento e sequestro sine die ou mesmo o confisco [que, no caso em apreço, seria um roubo] dos avultadíssimos activos do Banco Central russo que estão depositados em bancos estrangeiros) ‒ mesmo
que isso acarrete a destruição material de grande parte do espaço urbano
edificado e da infraestrutura da Ucrânia, concomitantemente com o êxodo em
massa (7.891.977 ucranianos em 29 de Novembro de 2022, segundo a ONU) e a brusca
e brutal pauperização da sua população.
Não admira, por conseguinte, que o governo dos EUA, o
governo do Reino Unido, a UE, e a OTAN façam vista grossa sobre os crimes de
guerra cometidos (ou alegadamente cometidos) pelo governo ucraniano chefiado
por Zelensky, em acentuado contraste com a publicidade estentórea que fazem aos
crimes de guerra cometidos (ou alegadamente cometidos) pelo governo russo
chefiado por Putin, incluindo nesse rol aqueles “crimes” que basta um módico de
lógica para serem imediatamente descartados como grosseiras invencionices.
É o caso, por exemplo, da destruição com explosivos submarinos
do gasoduto Nordstream 2 pela Rússia…que é a principal proprietária desse
gasoduto através da empresa Gazprom e que pode controlar os seus fluxos sem
qualquer necessidade de lhe causar danos, bastando-lhe para tal abrir ou fechar
a torneira; ou o bombardeamento constante pelas tropas russas da central
nuclear de Zaporíjia…que elas ocupam e controlam há muitos meses! É a velha
máxima que consiste em aplicar dois pesos e duas medidas, sem hesitar, em
muitos casos, em tomar-nos (a nós, a arraia miúda) por imbecis.
6.2. O tratamento mediático dos crimes de guerra
Não devemos acalentar ilusões sobre o comportamento dos
beligerantes numa guerra, sendo a pior de todas a que consiste em dividi-los em
santos e pecadores. Os crimes de guerra fazem parte da guerra. Esta não existe
sem aqueles. É precisamente por isso que existe o direito internacional
humanitário: para os mitigar e, se possível, para os punir. Os crimes de guerra são praticados, deliberadamente
ou não, por todos os beligerantes nela envolvidos.
A grande diferença entre os beligerantes (neste caso,
a Rússia, a Ucrânia e as Repúblicas Populares de Donetsk e Luhansk) reside na
sua exploração mediática dos crimes de guerra para fins propagandísticos e militares.
De uma maneira geral, constata-se que a
comunicação ucraniana é essencialmente ofensiva. Ela baseia-se na omnipresença
de Zelensky, com um código de vestuário e um tom de voz que assinalam a vontade
de se bater e a determinação. Em contrapartida, a comunicação russa é menos
“ocidental,” mais sóbria e mais defensiva [69].
Os crimes de guerra atribuídos à Rússia seguem uma
estratégia comunicacional bem rodada, que, no caso do sistema mediático
dominante de comunicação social do Ocidente, assenta em pressupostos muito
simples: 1) As únicas fontes de informação credíveis são o governo
ucraniano (Ministério dos Negócios Estarngeiros, departamento de informação do Ministério da Defesa da Ucrânia,
Ministério para a Transformação Digital, etc.) e os órgãos de informação
ucranianos autorizados pelo governo ucraniano; 2) Todas as denúncias de
alegados crimes de guerra russos feitas pelas autoridades ucranianas são
verdadeiras, até prova em contrário; 3) Todas as denúncias de alegados
crimes de guerra ucranianos feitas pelo governo russo ou por jornalistas
independentes na região de Donbass ‒ o sistema mediático dominante de comunicação
social do Ocidente foge como da peste de ter correspondentes permanentes nesta
região, a não ser que fiquem nas zonas controladas pelas tropas ucranianas ‒ são falsas, e devem, por conseguinte, ser desvalorizadas,
silenciadas, ou apagadas como “propaganda russa”
ou “incitações ao ódio.” É o que fazem
zelosamente as estações de televisão de grande audiência e as redes sociais de
comunicação universal (como o Twitter, Facebook, YouTube, TikTok, Reddit).
Um bom exemplo disso são os crimes de guerra e abusos de
que a Rússia tem sido acusada de ter cometido contra civis em áreas ucranianas
que ocupou. O caso mais célebre foi o do alegado morticínio de Bucha, uma
cidade perto de Kiev, imputado às tropas russas em 3 de Abril de 2022. A Rússia
repudiou veementemente o seu envolvimento nesse morticínio, denunciando um “acontecimento encenado” ucraniano destinado, segundo
Moscovo, a denegrir a imagem dos soldados russo. Os pedidos feitos pela Rússia no
Conselho de Segurança da ONU para se agendar a constituição de uma comissão internacional
de inquérito multipartida e independente que averiguasse o que se passou
esbarraram três vezes contra o veto do Reino Unido, na altura a presidir a esse
órgão. O Conselho dos Direitos Humanos da ONU acabou por constituir uma
comissão de inquérito com esse mandato, mas a independência dessa comissão está
comprometida ab initio, porque a Rússia foi suspensa do Conselho dos
Direitos Humanos pela Assembleia Geral da ONU em 7 de Abril de 2022, sob a
acusação… de ter cometido crimes de guerra cuja existência e autoria o Conselho
dos Direitos Humanos ficou encarregado de averiguar!
De facto, tanto o tratamento mediático dos crimes de
guerra pelo sistema mediático dominante de comunicação social, especialmente no
chamado Ocidente, como o tratamento legal dos crimes de guerra pelos órgãos da
ONU ignoraram completamente (e continuam a ignorar) a advertência do presidente
da Confederação da Suíça, Ignacio Cassis, a propósito do caso Bucha:
Trata-se de indícios de crimes de guerra. Não são
crimes de guerra enquanto um tribunal não os sentenciar [como tais]» [70].
Destarte, o tratamento mediático dos crimes de guerra (ou dos alegados crimes de guerra) tornou-se numa importantíssima ferramenta de propaganda, desinformação e dissimulação e, por essa razão, numa ferramenta auxiliar da conduta da guerra [71].
6.3. Moralismo farisaico da espécie conformista
O moralismo farisaico da espécie mais vivaz (vou
qualificá-lo de “canónico” apenas para efeitos de identificação rápida), de que
acabámos de ver algumas manifestações, é uma marca de água das elites políticas
dirigentes ao serviço dos «senhores da humanidade»
(“masters of mankind”, Adam Smith) e à sua «máxima vil: “tudo para
nós e nada para os outros”» (Adam Smith) [72]. É algo que exercitam
por inerência de funções e que cultivam, sobretudo no chamado Ocidente, com grande
desenvoltura, cinismo e até uma boa dose de displicência.
Veja-se, por exemplo, as recentes revelações de Boris
Johnson à CNN Portugal [73] sobre o modo como venceu a
resistências de Emmanuel Macron, Olaf Scholz e Mario Draghi em se comprometerem
a 100% com o apoio a Zelensky, ou as recentes revelações de Angela Merckel ao Der
Spiegel [e ao Die Zeit] [74] de que os Acordos de Minsk não foram feitos para serem
cumpridos pela Ucrânia, mas para permitir à Ucrânia ganhar tempo e rearmar as
suas forças armadas com ajuda da OTAN, a fim de poder lançar com êxito uma grande
ofensiva vitoriosa contra os autonomistas de Donbass: as repúblicas populares
de Donetsk e Luhansk.
Mas há uma outra espécie de moralismo farisaico, que
não é inerente ao exercício de certas funções, mas que resulta do conformismo, da
acomodação ⎼ ora subserviente, ora resignada, ora sonsa, ora calculista, ora jubilosa ‒ ao
mundo comandado e gerido pelos senhores da humanidade. Há um ditado latino que
define bem o moralismo farisaico da espécie conformista: “bonis nocet, qui malis parcit”. Esse ditado foi
retomado em vários idiomas. Em Português,
dizemos: “Ofende os bons quem poupa (ou protege) os
maus”.
7. Cinco exemplos
Eis cinco exemplos, com gente de carne e osso, dessas duas
espécies de moralismo farisaico: directora-geral da UNESCO, dirigentes da Federação
Europeia de Jornalistas e do Federação Internacional dos Jornalistas, Andrii
Yurash, membros do Colectivo Passa Palavra, Pedro de Tena Alfonso.
7.1. Directora-geral da UNESCO
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO, no acrónimo inglês) é uma agência especializada da
Organização das Nações Unidas (ONU). Tem a sua sede em
Sede da UNESCO em Paris |
Paris e foi fundada em 6 de Novembro de 1945
com o objectivo de «contribuir para a paz e segurança,
promovendo a colaboração entre as nações através da educação, ciência e
cultura, a fim de promover o respeito universal pela justiça, pelo Estado de
direito, pelos direitos humanos e pelos direitos fundamentais e pelas liberdades
fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião, que a
Carta das Nações Unidas reconhece a todos os povos» [75].
A UNESCO actua nas seguintes áreas de mandato: Educação, Ciências Naturais,
Ciências Humanas e Sociais, Cultura e Comunicação e Informação.
A UNESCO é governada por três órgãos: 1) a
Conferência Geral, composta pelos representantes de todos os Estados-membros ‒
são actualmente 193, cada um dos quais possui um voto ‒, que se reúne de dois
em dois anos; 2) a Comissão Executiva, composta por 58 membros eleitos
pela Conferência Geral; 3) o Secretariado, que é composto pelo
Director(a)-geral ‒ cargo desempenhado actualmente pela senhora Audrey Azoulay
‒ e 14 assessores por ela/ele escolhidos.
Em conformidade com o mandato emitido pelos Estados-membros
na resolução intitulada Condenação da violência contra jornalistas, aprovada
na 29ª. sessão da Conferência Geral da UNESCO, em 12 de Novembro de 1997, o
Director-geral desta organização ficou vinculado
a condenar os assassinatos e toda e
qualquer violência física dirigida contra jornalistas como um crime contra a
sociedade.
Audrey Azoulay foi renomeada [76] directora-geral da UNESCO para um novo mandato de 4 anos em Novembro de 2021. Foto: Christophe Petit Tesson. EPA |
No entanto, a directora-geral da UNESCO, Audrey
Azoulay, não condenou o assassinato da jornalista Darya Dugina, desrespeitando
assim o mandato que lhe foi dado pela Conferência Geral. Não se trata de um
lapso ou de uma distracção, mas de uma omissão deliberada. A prova disso é que a
directora-geral da UNESCO respondeu pronta e adequadamente na esfera pública a
uma série de outras mortes violentas de jornalistas dos meios de comunicação
social que ocorreram após o dia 20 de Agosto de 2022, nalguns
casos no próprio dia do assassinato de Darya Dugina.
O ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia afirmou,
em comunicado, que considerava esta situação
uma manifestação clara da abordagem
profundamente enviesada da direcção do Secretariado da UNESCO para o desempenho
das suas funções oficiais, e como uma violação grosseira do princípio de
imparcialidade e equidistância, tal como definido no parágrafo 5 do artigo VI
da Carta da Organização [77].
É um facto. Vejo nele um caso híbrido, uma combinação
das duas espécies de moralismo farisaico que qualifiquei de “canónico” e “conformista”,
respectivamente. Isto, porque não se pode dizer que a sra. directora-geral da
UNESCO estaria obrigada, por inerência de funções, a fazer vista grossa sobre o
assassinato de Darya Dugina. Neste caso, sucedia exactamente o contrário. A Conferência
Geral deu-lhe ‒ por inerência da sua qualidade de directora-geral ‒ não só o
mandato de denunciar publicamente esse e outros assassinatos do mesmo género,
como esse mandato lhe fornecia um escudo protector perante qualquer ataque
pessoal que viesse a sofrer por cumpri-lo, como era seu dever. Tudo indica,
portanto, que a sra. Audrey Azouley escolheu não abanar o barco (guardando
silêncio sobre o assassínio de Darya Dugina e sobre a identidade dos seus
mandantes), porventura para não incorrer no desagrado dos países que a
seleccionaram para o cargo que exerce e consolidar a sua estratégia para
promover o regresso dos EUA e Israel, que abandonaram a UNESCO aquando da sua
primeira nomeação [78].
7.2. Dirigentes das Federações Sindicais de Jornalistas
Seria de esperar que a Federação Europeia de Jornalistas e a Federação Internacional dos Jornalistas condenassem o assassinato de um membro da sua profissão (Darya Dugina), e que exigissem que os seus mandantes (membros do governo ucraniano) fôssem julgados pelo Tribunal Penal Internacional. Mas nem um nem outro o fizeram.
No sítio electrónico da Federação Europeia dos
Jornalistas, encontra-se, com data de 2 de Novembro de 2022, uma lista de 40
jornalistas assassinados ou desaparecidos na Europa desde 1993 até à data: 14
no Kosovo, 6 na Rússia, 6 na Ucrânia, 6 na Turquia, 2 no Azerbeijão, 1 em
Malta, 1 no Reino Unido, 1 in Chipre, 1 na Eslováquia, 1 na Sérvia, 1 no
Montenegro. Os responsáveis por 26 destes assassínios ou desaparecimentos
permanecem impunes.
A lista dos 40 é a seguinte:
- Jamal
Khashoggi (2018,
Turquia)
- Ján
Kuciak (2018,
Eslováquia)
- Daphne
Caruana Galizia (2017,
Malta)
- Saaed
Karimian (2017,
Turquia)
- Rohat
Aktaş (2016,
Turquia)
- Pavel
Sheremet (2016,
Ucrânia)
- Naji
Jerf (2015,
Turquia)
- Andrea
Rocchelli (2014,
Ucrânia)
- Andrei
Mironov (2014,
Ucrânia)
- Oleksandr
Kuchynsk (2014,
Ucrânia)
- Timur
Kuashev (2014,
Rússia)
- Akhmednabi
Akmednabiyev (2014,
Rússia)
- Viacheslav
Veremii (2014,
Ucrânia)
- Mikhail
Beketov (2013,
Rússia)
- Nikolai
Potapov (2013,
Rússia)
- Rafiq
Tagi (2011,
Azerbeijão)
- Gadzhimurad
Kamalov (2011,
Rússia)
- Hrant
Dink (2007,
Turquia)
- Anna
Politkovskaïa (2006,
Rússia)
- Elmar
Huseynov (2005,
Azerbeijão)
- Bardhyl
Ajeti (2005,
Kosovo)
- Dusko
Jovanovic (2004,
Montenegro)
- Martin
O’Hagan (2001,
Reino Unido)
- Bekim
Kastrati (2001,
Kosovo)
- Georgiy
Gongadze (2000,
Ucrânia)
- Marjan
Melonaši (2000,
Kosovo)
- Shefki
Popova (2000,
Kosovo)
- Xhemajl
Mustafa (2000,
Kosovo)
- Enver
Maluku (1999,
Kosovo)
- Ljubomir
Knežević (1999,
Kosovo)
- Milo
Buljević (1999,
Kosovo)
- Aleksandar
Simović (1999,
Kosovo)
- Krist
Gegaj (1999,
Kosovo)
- Momir
Stokuća (1999,
Kosovo)
- Đuro
Slavuj (1998,
Kosovo)
- Ranko
Perenić (1998,
Kosovo)
- Afrim Maliqi (1998, Kosovo)
- Kutlu
Adalı (1996,
Chipre)
- Dada
Vujasinovic (1994,
Sérvia)
- Uğur
Mumcu (1993,
Turquia)
Como se constata, desta lista não consta Darya Dugina.
Não há qualquer referência a esta jornalista nos documentos disponíveis nos
sítios electrónicos da Federação Europeia de Jornalistas e da Federação Internacional
dos Jornalistas. Pelo menos, eu não encontrei nenhuma e bem procurei.
A Federação Europeia de Jornalistas informa também que
esta lista não tem em conta 21 jornalistas que foram assassinados na Europa desde
2020 e que ainda não foram considerados “casos de
impunidade.” Mas também não há qualquer menção a Darya Dugina
relativamente a estes 21 casos, apesar de sabermos, de fonte fidedigna, quem
são os responsáveis pelo seu assassinato e que permanecem impunes. Como
explicar este estranho silêncio dos dirigentes da Federação Europeia de
Jornalistas e da Federação Internacional dos Jornalistas? Parece-me ser um caso
de moralismo farisaico da espécie conformista. Os dirigentes destas duas
organizações sindicais ‒ conjecturo ‒ escolheram não fazer ondas, para não
incorreram no desagrado das firmas proprietárias dos grandes meios de comunicação
social (jornais, revistas, estações de televisão e de rádio de grande
circulação e audiência) — todos eles, apoiantes incondicionais do governo
liberticida e fascizante de Volodymir Zelensky [79].
7.3. Andrii Yurash
Andrii Yurash é embaixador da Ucrânia no Vaticano. Quando,
em 24 de Agosto de 2022, o Papa Francisco descreveu Darya Dugina como uma vítima «inocente» da guerra, «uma
pobre rapariga atirada aos ares por uma bomba posta debaixo do assento de um
carro em Moscovo», Andrii Yurash apressou-se a escrever no Tweeter (no
dia 24 de Agosto):
O discurso de hoje do Papa foi decepcionante
e fez-me pensar em muitas coisas: não posso falar nas mesmas categorias sobre
Agressor e Vítima, Violador e Violado; como é possível mencionar um dos ideólogos
do imperialismo russo como uma vítima inocente? Ela foi assassinada pelos
Russos como uma vítima sacrificial e está agora ao abrigo da guerra [a tradução da parte a negrito
é conjectural. No original lê-se: «as
sacred victim and is now on Shield of War»]
[Today’s speech of Pope was disappointing & made me think about many things: can’t speak in Same categories about Аggressor & Victim, Rapist and Raped; how Possible To Mention 1 of ideologists of 🇷🇺Imperialism As innocent victim? She was Killed By russians As Sacred Victim & is Now On Shield of War]
Andrii Yurash |
Para grande infortúnio do senhor Yurash, sabemos hoje
que foi o governo que o nomeou embaixador no Vaticano quem mandou secretamente assassinar
Dugina, uma civil protegida pela quarta convenção de Genebra, e, por
conseguinte, uma vítima inocente de um crime de guerra, como disse (e bem) o Papa. O
embaixador Andrii Yurash é um perfeito exemplo da espécie mais vil e vivaz do moralismo
farisaico: aquela que não olha a meios, incluindo os mais pérfidos, para alcançar
os seus fins, que rejubila com os seus resultados letais, mas que se recusa a assumir a sua autoria.
7.4. Colectivo Passa Palavra
Em 23 de Agosto de 2022, o economista Alan Freeman
escreveu no seu Facebook o seguinte texto:
Uma vez que os factos relativos ao
assassinato de Darya Dugina ainda estão sob investigação, ainda não estão
assentes, e muito menos ainda foram testados em qualquer tribunal, não me
parece adequado começar já a falar sobre “quem cometeu o assassinato”.
No entanto, há um ponto que tem de ser
salientado: se o leitor pensa que se pode construir uma sociedade viável na
qual as pessoas são assassinadas por causa daquilo que pensam, então feche as
portas, feche as janelas, olhe para debaixo do automóvel antes de cada viagem e
verifique cada porta antes de passar por ela — porque, então, não há limites,
nem há lei, nem há forma de responsabilizar os assassinos vulgares.
Este é o perigo da sugestão, que grassa no
sistema mediático liberal da comunicação social, de que a tentativa de
assassinato [de
Aléksandr Dugin] se justifica por causa das ideias de
Dugin. Até já vi pessoas afirmarem que a morte da sua filha foi uma coisa boa,
porque ela concordava com as ideias dele.
Que o Deus dessas pessoas lhes apodreça a alma. Estamos então a dizer
que não são só as pessoas, mas também as suas famílias, que constituem alvos
legítimos de violência hedionda, porque se dá o caso de não gostarmos do que
dizem?
Penso que as pessoas que dizem isto não
pensaram bem no assunto. Pelo menos espero que seja essa a explicação.
Dugin propaga as suas ideias através dos
seus escritos e dos seus livros. Ele não é um funcionário governamental ou um
militar e, tal como foi assinalado por Mercouris, ZeroHedge e outros, ele não
tem qualquer associação com Putin nem com ninguém no governo ou no Estado russo
que possa, de alguma forma, justificar a alegação de que ele é responsável
pelas acções do governo russo. Dugin é um escritor. A sua influência resulta do
que escreveu. Certo, podemos não concordar com o que ele escreve (eu não
concordo), mas não ando por aí a matar pessoas cujas opiniões não me agradam.
Assim, as pessoas que procuram justificar a
atrocidade [que foi o
assassínio da sua filha Darya Dugina, N.T.]
estão, de facto, a dizer que é legítimo assassinar pessoas por causa daquilo
que elas pensam.
Assassinar pessoas como se fosse um
substituto da justiça está errado seja de que maneira for. Os tribunais são a
forma de lidar com os perpetradores. A legitimação do assassinato como um
procedimento aceitável do Estado é algo que nenhum amante da justiça deveria
aceitar.
Mas, para além disso, assassinar pessoas apenas pelo que dizem é simplesmente
abrir um caminho para o inferno.
Traduzi este texto (do Inglês) da maneira acima
reproduzida por considerá-lo oportuno, pertinente e muito bem escrito — um aviso
à navegação de recorte “luxemburguiano” (elucidarei
este qualificativo no fim da secção 9) redigido com grande simplicidade. Como
não tinha título, dei-lhe um, consentâneo com o seu teor: A propósito do
assassinato de Darya Dugina.
Em seguida, enviei-o para o Passa Palavra ‒ uma
publicação electrónica diária, fundada em Fevereiro de 2009 «por um grupo de portugueses e brasileiros, independente
de partidos e demais poderes políticos e económicos, com o objetivo de noticiar
as lutas [dos trabalhadores], apoiá-las e
pensar sobre elas» ‒, pedindo que fosse publicada nesse sítio electrónico
e pudesse, desse modo, chegar ao conhecimento de um público de língua
portuguesa muito mais amplo do que o deste blogue, Tertúlia Orwelliana.
Logotipo do “Passa Palavra”. Fonte: captura de ecrã no sítio desse jornal electrónico |
Foi com grande surpresa, misturada com um sentimento
de revolta, que recebi a seguinte resposta do Colectivo Passa Palavra
[nome da comissão directora desse órgão mediático de comunicação social]:
Escrevemos para informar que, após
avaliação do texto pelo coletivo, deliberamos pela sua não aprovação.
Ou seja, o Colectivo Passa Palavra recusou
publicar o texto de Alan Freeman, sem dar qualquer justificação para essa sua
decisão censória.
Perante isto, escrevi de novo ao Colectivo Passa Palavra, para lhe dizer, entre outras coisas (como, por exemplo, a minha interpretação do significado da frase final de Freeman [«assassinar pessoas apenas pelo que dizem é simplesmente abrir um caminho para o inferno»]), que essa sua decisão (i) era um acto de censura prévia [80], (ii) completamente contrário à sua Declaração de Princípios [“O que é o Passa Palavra e como se organiza?”].
Seja como for, nada, absolutamente nada,
pode justificar essa vossa decisão à luz da declaração de princípios do Passa
Palavra. Mas mesmo que, por qualquer razão misteriosa que me escapa,
pudessem estar em desacordo total com o texto de Alan Freeman, o que é que vos
impede de o publicar e darem a conhecer aos leitores do Passa Palavra,
num texto separado, as razões do vosso desacordo? Não estariam, ao fazê-lo, a «estimular o confronto
de opiniões e o debate»
apregoado na vossa declaração de princípios?
Não tive qualquer resposta, o que não admira. Como é
que se pode defender a censura prévia quando se apregoa a liberdade de
expressão, o livre confronto de opiniões e o debate, sem, ao mesmo tempo, se
contradizer a cada passo?
No entanto, fica de pé a pergunta: quais terão sido as misteriosas razões (pelos vistos consideradas inefáveis pelos próprios) que levaram os membros do Colectivo Passa Palavra a censurar o texto A propósito do assassinato de Darya Dugina de Alan Freeman e a integrar, ao fazê-lo, volens nolens, as fileiras do moralismo farisaico da espécie conformista? Não sei ao certo. Só esse colectivo ‒ ou aqueles dos seus membros que, porventura, tenham votado contra essa decisão e ficado em minoria [81] ‒ o poderá dizer. Mas conjecturo que essas razões poderão bem ser idênticas ou muito semelhantes às que foram enunciadas pelo senhor que se segue, o último dos exemplos prometidos de moralismo farisaico.
7.5. Pedro de Tena Alfonso
Pedro de Tena Alfonso, que assina muitas vezes apenas
como Pedro de Tena, é um jornalista espanhol, da Andaluzia, que trabalha no
diário electrónico Libertad Digital. Politicamente falando, é um simpatizante
(ou militante?) assumido do Partido Popular, com o qual tem colaborado desde
1996, sobretudo com Javier Arenas, actualmente porta-voz do grupo parlamentar
do Partido Popular no parlamento da Andaluzia.
Pedro de Tena Alfonso com um dos seus livros na mão. |
Em 23 de Agosto de 2022, Pedro de Tena escreveu no Libertad
Digital um artigo intitulado España y el asesinato de Estado [Espanha e o
assassinato de Estado], a propósito do assassinato de Darya Dugina, de que vou
citar alguns excertos. Vou numerá-los para poder mencioná-los e comentá-los
mais adiante sem ter de os repetir:
1) Que os Estados ‒ leia-se impérios, reinos, dinastias ‒ matam é uma verdade antiquíssima. Séculos de evolução técnica, científica e económico-política não tiveram como consequência a elevação do sentido moral dos Estados e dos seus governos. /…/
2) Agora, com o assassinato de Daria Dugina, a filha de
Alexander Dugin, o filósofo do Eurasianismo nacionalista russo, muitos levaram
as mãos à cabeça condenando o atentado como método político e apontando o dedo
à Ucrânia e aos seus serviços secretos. /…/
3) Nesta altura da minha vida, não me alegro com o
assassinato de ninguém, mas também não me surpreende que os Estados, todos
eles, tenham entre os seus planos matar pessoas quando lhes convém ou quando
acreditam que o seu patriotismo está em perigo. É por isso que existem serviços
secretos e agentes 007 ou 035. /…/
4) Não sabemos, nem nunca saberemos, quem ordenou o
assassinato de Dugin ou da sua filha, nem tão pouco sabemos qual dos dois era a
vítima escolhida. /…/
5) O único caso que conheço em que um Estado se recusou
a exterminar os terroristas que matavam os seus cidadãos tem sido a Espanha
democrática herdeira da transição. Além disso, quando Felipe González e o PSOE [Partido Socialista Operário
Espanhol] reagiram aos assassínios através da
constituição de uma anti-ETA tão criminosa como a original, nem sequer o PP [Partido
Popular] ‒ o partido que mais assassinatos sofreu,
juntamente com as forças de Segurança do Estado ‒ preconizou o olho por olho,
dente por dente. /…/ Neste caso, a Espanha
deu um exemplo de integridade patriótica e superioridade ética sobre os
assassinos.
6) Sim, sinto-me muito confortado pelo comportamento da
Espanha no seu sacrifício voluntário sob as balas assassinas da ETA, mas não
posso deixar de me perguntar para que serviu. Que ninguém me diga o que o bando
já não mata. Se não o faz é porque conseguiu o que queria e está a caminho de
conseguir atingir alcançar todos os seus objectivos políticos e militares.
7) Portanto, ficar indignado com o assassinato do pobre
Dugina no meio da invasão russa da Ucrânia parece-me ser uma superlativa
indecência intelectual e moral ou uma ingenuidade imperdoável. Tendo em conta
os factos, a verdade é que precisamos de nos defender quando os outros nos
querem matar. [realce, por meio de negrito, acrescentado ao original, N.E.]
8) Que nos ensinem a não nos defendermos e que se nos
impeça a autodefesa é um ultraje de que apenas beneficiam aqueles que nos
querem matar. Perdoem-me. Eu não gosto do que digo, mas é realismo político,
senso comum e economia de mortes próximas, que são mais importantes para nós do
que as remotas. Com todos os controlos legais e morais que se quiser, mas é o que
temos de fazer.
Até ao parágrafo 5 (inclusive) o artigo de Pedro de Tena vai
progredindo sem suscitar objecções de monta, salvo na primeira parte do parágrafo 4. Com o benefício da retrospectiva podemos todos verificar que o vaticínio de Pedro
de Tena [«Não sabemos, nem nunca saberemos, quem
ordenou o assassinato de Dugin ou da sua filha»] estava errado.
Porém, a partir do parágrafo 6 (inclusive) o texto revela
a sua mensagem principal: uma apologia do assassinato de Estado com os
argumentos mais usitados (e esfarrapados) do moralismo farisaico da espécie conformista. Neste
aspecto, o artigo de Pedro de Tena é um exemplo acabado dessa filosofia de
vida.
Regressando agora à pergunta que fiz no fim da secção
anterior, cumpre-me então dizer que a minha resposta conjectural a essa
pergunta é que o Colectivo Passa Palavra ‒ ou, pelo
menos, aqueles dos seus membros que votaram maioritariamente a favor da censura
do texto de Alan Freeman (se é que houve votos contra) ‒ compartilha(m) na
íntegra o parágrafo 7 do texto de Pedro de Tena, sendo essa a razão principal do
seu acto censório. Só que não têm a coragem de o dizer abertamente, como o fez
esse jornalista espanhol.
8. Darya Dugina e Rosa Luxemburgo
Há muita gente que acha que, perante pessoas como Darya Dugina ‒ ou, mais ainda, como o seu pai, Aléksandr Dugin ‒ tem o direito, se não mesmo o dever, de os assassinar ou de apoiar o seu assassinato pelos serviços secretos do Estado X, Y ou Z da sua predilecção.
Porquê? Por várias razões, que, no caso em apreço, podem
ser resumidas assim:
Aléksandr Dugin é um ideólogo fascista e,
ainda por cima o guru (ou o cérebro) de Putin. Os fascistas merecem ser
assassinados. Darya Dugina, a filha de Dugin, tinha as mesmas ideias do que pai
e, portanto, merece, também ela, ser assassinada. Já foi? Tanto melhor. Foi o
governo ucraniano a dar a ordem de a assassinar? Fez muito bem, porque foi um
acto de autodefesa do governo do heróico e democrático Volodymyr Zelenzky contra
o governo do ensandecido e autocrático Vladimir Putin. É pena não ter sido
Dugin, o pai de Dugina a ser assassinado, ou não terem sido ambos assassinados
ao mesmo tempo. Mas Dugin, que escapou desta vez, não perde pela demora. Os
fascistas não fazem cá falta nenhuma.
Estes argumentos são raramente assumidos em público,
mas são, de facto, sustentados em privado e em surdina pela legião dos seus
defensores — uma atitude típica do moralismo farisaico.
Seja como for, estes argumentos, em particular os que
dizem respeito às doutrinas de Dugin e à sua alegada influência sobre Putin e o
seu governo, foram aqui ‒ neste artigo e nos demais artigos desta série já
publicados ‒ minuciosamente analisados e refutados. Continuarão a sê-lo em próximos
artigos da mesma série, em particular no que diz respeita à natureza dos
regimes políticos que vigoram na Ucrânia e na Rússia sobre os quais reina a mais
crassa das confusões conceptuais.
Mas admitamos, contrafactualmente, o argumento de que
Dugin é, de facto, um ideólogo fascista e que a sua filha, Dugina, era outra
que tal. Presumo que seja inútil dizer às pessoas que pensam deste modo o que
elas sabem muito bem: que o fascismo não se combate assassinando ou apoiando o
assassinato de Estado de quem tem ideias fascistas, porque isso é, isso sim, um
comportamento tipicamente fascista.
É o comportamento, por exemplo, daqueles que decidiram,
planearam e executaram o homicídio de Rosa Luxemburgo — uma mulher cujas ideias
políticas estavam nos antípodas das de Darya Dugina, mas que foi vítima, tal como
ela, de um assassinato de Estado.
Em 15 de Janeiro de 1919, Rosa Luxemburgo foi raptada e levada para o hotel Eden em Berlin, que servia de sede à GKSD (Garde-Kavallerie-Schützen-Division) do Freikorps — uma formação paramilitar de extrema-direita ao serviço do ministério da defesa do governo…social-democrata. Depois de interrogada, para confirmar a sua identidade, levaram-na para uma viatura estacionada junto do hotel e à saída da porta do hotel um dos raptores deu-lhe uma coronhada na cabeça que a prostrou imediatamente, desmaiada. Em seguida, meteram-na na viatura, continuaram a agredi-la durante o trajecto com coronhadas e socos e, a cerca de 40 metros do hotel, acabaram por dar-lhe um tiro à queima-roupa atrás da orelha esquerda, que a matou instantaneamente. Lançaram depois o corpo no Landwehr, um dos canais do rio Spree, perto da ponte Cornelius. O cadáver só seria encontrado quatro meses depois. Minutos antes, Karl Liebknecht tinha sofrido a mesma sorte no parque Tiergarten, depois de ter estado detido no Hotel Eden, para onde também tinha sido previamente levado à força para identificação, depois de ter sido raptado por um destacamento do GKSD [82].
Rosa Luxemburgo (1871-1919). Foto: autor desconhecido. Fonte: Wikicommons |
Foram assassinatos de Estado, tal como o de Darya Dugina, feitos em grande estilo. Tal como no caso do assassinato de Dugina, sabemos quem foram os seus mandantes. Quem deu a ordem foi Gustave Noske (ministro da Defesa), com a aprovação prévia de Friedrich Ebert (primeiro-ministro) do governo social-democrata da Alemanha, à época. Ao contrário, porém, do que sucede ‒ pelo menos por enquanto ‒ no caso do assassinato de Darya Dugina (relativamente ao qual só se conhece o nome de uma mulher, suspeita de ser o principal carrasco), sabemos também o nome tanto dos carrascos de Rosa Luxemburgo ‒ o soldado Otto Runge e o tenente Hermann Souchon ‒ como dos seus cúmplices. Sabemos também o nome dos carrascos de Karl Liebknecht. Pertenciam todos à Garde-Kavallerie-Schützen-Division [Divisão de Espingardas da Guarda de Cavalaria], comandada pelo capitão Waldemar Pabst que, por sua vez, recebia ordens directamente de Noske [83].
Os assassinos de Rosa Luxemburgo ‒ tantos
os mandantes como os executantes como os coadjuvantes ‒ nunca chegaram a ser
punidos pelo seu crime mediante um julgamento justo. As Forças Armadas Alemãs,
cumprindo ordens de Noske, encenaram um simulacro de julgamento num tribunal
militar. A maior parte dos réus foi absolvida, com excepção do tenente Vogel (o
comandante da viatura onde Rosa Luxemburgo foi assassinada) e do soldado Runge.
O segundo foi condenado a quatro meses de prisão, o o primeiro a dois anos de
prisão. Depois, Noske ordenou
que a fuga de Vogel da prisão fosse facilitada. Vogel fugiu para a Holanda e
foi mais tarde amnistiado para poder regressar à Alemanha
O comandante operacional dos autores
materiais do homicídio de Rosa Luxemburgo, o capitão Pabst, foi chamado a tribunal
apenas como testemunha. Muitos anos
depois, nas décadas de 1950 e 1960, Pabst discorreu abertamente sobre o assassinato
de Rosa Luxemburgo e sobre o papel que nele desempenhou. Fê-lo na sua
correspondência privada, em notas privadas, conversas privadas e entrevistas.
Vale a pena lembrar o que ele declarou, na década de
1960: «Infelizmente, a execução das minhas ordens
não ocorreu como deveria [Pabst refere-se às coronhadas que o soldado
Runge deu em público a Rosa Luxemburgo (e a Karl Liebknetch) à saída do Hotel
Eden, que não faziam parte do seu plano, N.E.]. Mas
ocorreu, e por isso estes idiotas alemães deviam agradecer-nos, a mim e ao
Noske, de joelhos, erguer-nos monumentos e dar o nosso nome a ruas e praças.»
Isto, porque «as guerras civis têm as suas próprias
leis» [84].
É exactamente o mesmo que disseram, por outras
palavras e 60 anos depois, Mikhailo Podolyac, Anton Gerashchenko [ver nota 64], Oleksiy
Arestovych e Pedro de Tena, e que se pode resumir assim: “na guerra vale tudo, incluindo o assassinato de civis e pessoas fora de combate”.
9. A responsabilidade de ser um ser humano
Repudio completamente essa posição e contraponho-lhe
esta:
― Quem decide e comete assassinatos de Estado contra
civis e pessoas fora de combate; quem apoia publicamente ou em surdina tais assassinatos e quem se recusa
a condená-los por não gostar das ideias ou da personalidade dos assassinados, não
só se auto-exclui do campo da “esquerda” [85] ‒ caso
pretenda apresentar-se como tal (como é o caso, por exemplo, do Colectivo
Passa Palavra) ‒ mas também, acima de tudo, abdica cientemente da
responsabilidade moral de se comportar como um ser humano.
Em 28 de Dezembro de 1916, em plena guerra mundial, a
primeira do seu género, Rosa Luxemburgo ‒ na altura cativa numa cela da prisão
de Berlim-Alexanderplatz desde Junho de 1916 por ser contra a guerra (só seria
posta em liberdade em 8 de Novembro de 1918, três dias antes do armistício de 11
de Novembro de 1918) ‒ escreveu uma carta à sua amiga Mathilde Wurm, onde
disse:
Cuida de continuares a ser um ser humano [Mensch, no original, em língua Iídiche, que também pode ser traduzido como “pessoa íntegra”, N.E.]. Ser um ser humano, é a coisa mais importante de todas [86].
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NB. Este é o 5º. artigo da série Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia! [a série continua].
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Notas e
Referências Bibliográficas
[1] Alexey
Kovalev, “Putin’s New Martyr for the Russian Cause.” Foreign Policy. August 26,
2022.
[2] Complexo mito-simbólico e
mitomotor são dois termos técnicos empregados em tandem pelo sociólogo Anthony
D. Smith (1939-2016). Um complexo mito-simbólico
é o peculiar quarteto de mitos, memórias históricas, valores centrais e símbolos
característicos de uma etnia (= uma comunidade com um nome, mitos de descendência,
história, cultura e associação territorial comuns, assim como um sentido de
identidade e de solidariedade) ou de uma nação construída com base numa etnia
pré-existente. Um mitomotor (um termo cunhado por
Ramon d’Abadal i de Vynials) é o mito narrativo principal desse complexo
mito-simbólico, o elemento central que lhe confere unidade e coerência. «Sem um mitomotor um grupo [étnico] não consegue definir-se perante si mesmo ou perante os
outros e não consegue inspirar ou guiar a acção colectiva» (v. Anthony
D. Smith. The Ethnic Origins of Nations (New York: Basil Blackwell, 1986, pp.24-25). Quando um complexo
mito-simbólico é cientemente glosado ou desenvolvido por um indivíduo ou um
grupo de indivíduos adquire o estatuto de uma doutrina. Para mencionar esse
atributo extra, utilizarei, quando for caso disso, a expressão “complexo doutrinário mito-simbólico”.
[3] Aleksandr Dugin, The Foundations of Geopolitics (Osnovy geopolitiki).
1996, p.261, citado por Marlene Laruelle, “Aleksandr Dugin: A Russian Version of
the European Radical Right?” (Kennan Institute Occasional Paper #294, 2006), p.7.
[4] Andreas Umland, “Why Aleksandr Dugin`s ‘Neo-Eurasianism’ is not
Eurasianist”, The Politicon, 2018.
[5] Jonathan Rushbrook, Against the Thalassocracy: Sacred Geography, Nationhood and
Perennial Traditionalism in Alexander Dugin’s Neo-Eurasianist Philosophy
(2015). [Graduate Theses, Dissertations, and Problem Reports. 6542. https://researchrepository.wvu.edu/etd/6542],
pp.40-41.
[6] O Tradicionalismo Perene é
uma filosofia religiosa que sustenta que a maioria das religiões do mundo
compartilham uma verdade universal única, a qual constitui o fundamento de todo
o conhecimento religioso. Ver Rushbrook,
op. cit., p.56.
[7] Marlene Laruelle, “Aleksandr Dugin: A Russian Version of the European
Radical Right?” (Kennan Institute Occasional Paper #294, 2006), p.7.
[8] Marlene Laruelle, “Eurasianism and the European Far Right, introduction,” in Eurasianism and
the European Far Right— Reshaping the Europe‒Russia Relationship, edited
by Marlene Laruelle. Lexington Books. Laham, Maryland, 2015).
[9] Paul Robinson, “Interview with Alexander Dugin.” Irrussianality,
September 17, 2017.
[9] Marlene Laruelle, “Eurasianism and the European Far Right, introduction”.
[10] Harold Hongju Koh, “On American Exceptionalism.” Standford Law Review,
Vol.55, May 2003, 1481, nota 4.
[11] Alexis de Tocqueville, Democracy in America. Tradução de
Henri Reeve. The Pennsylvania State University, 2002, p.518.
[12] Esta declaração é uma parte da resposta de Obama a uma
pergunta feita por Edward Luce (Financial Times, April 4, 2009), onde
Obama acaba por dizer o que caracteriza, segundo ele, o excepcionalismo
americano.
[13] É o Acordão conhecido como District of Columbia v. Heller (2008).
[14] Traduzo assim a expressão de Koh “double standards”.
[15] Harold Hongju Koh, “On
American Exceptionalism.” Standford Law Review, Vol.55, May 2003, p.1483.
[16] Harold Hongju Koh, op.cit. Julgo que esta faceta central do complexo doutrinário mito-simbólico denominado Exceptionalismo Americano é uma decorrência directa do seu mitomotor. Tenho para mim que esse mitomotor foi bem expresso, pela primeira vez, por Thomas Jefferson, o principal autor da declaração de independência dos Estados Unidos e o terceiro presidente dos Estados Unidos: «A América tem um hemisfério para si própria. Deve ter o seu sistema de interesses separado, que não deve estar subordinado aos da Europa. O estado isolado em que a natureza colocou o continente americano, serviu-lhe até agora para que nenhuma faísca de guerra que se tenha acendido nos outros quadrantes do globo se tenha espalhado pelos vastos oceanos que nos separam deles. E assim será.» Thomas Jefferson, “Carta a Alexander von Humboldt, 6 de Dezembro de 1813.” The Letters of Thomas Jefferson 1743-1826. American History from Revolution to Reconstruction and beyond,
[17] “A Defense
of Drones”. The Wall Street Journal. April 2, 2010.
[18] Rushbrook, op.cit., p.28.
[19] A. Dugin, The Foundations of Eurasianism (Osnovy evraziistva, p.762), citado
por Marlene Laruelle, “Aleksandr Dugin: A Russian Version of the European
Radical Right?” Kennan Institute Occasional Papers, Nº. 294, 2006.
[20] A. Dugin, A quarta teoria política. (Porto Alegre:
Editora Austral: 2012), p.28.
[21] A. Dugin, ibidem, p.29
[22] Esta afirmação de Dugin, como
tantas outras deste autor, não é exacta. Aplica-se ao nazismo alemão, mas,
relativamente ao fascismo original (o italiano), só é possível fazê-lo com
muitas qualificações. E é falsa, por exemplo, em relação ao Estado Novo de Oliveira
Salazar. Isto, claro está, se considerarmos que estamos perante três variantes
distintas de “fascismo”.
[23] Jussi Backman, “Russian Radical Conservative Challenge to the Liberal
Global Order: Aleksandr Dugin” (in Contestations of Liberal Order: The West in Crisis?
edited by Marko Lehti, Henna-Riikka Pennanen, and Jukka Jouhki, 289–314.
London: Palgrave Macmillan, 2019) pp.11, 12, 13. Marlene Laruelle abona no
mesmo sentido: «A sua definição
[a de Dugin] de Eurasianismo coincide com a de revolução
conservadora à la russe» (M. Laruelle, “Eurasianism
and the European Far Right, introduction,” in Eurasianism and the European Far
Right— Reshaping the Europe‒Russia Relationship, edited by Marlene
Laruelle. Lexington
Books. Laham, Maryland, 2015).
[24] Daniel Guérin, Fascism and Big Business (1939), Pathfinder Press, Seventeenth printing, 2016. Esta edição inclui os prefácios do autor de 1945 e 1965 à edição original francesa, Fascisme et Grand Capital (1936). Alguns dos elementos da análise de Guérin estavam já presentes em escritos de outros autores. Refiro-me, neomeadamente, a Andreu Nin, Les dictadures dels nostres dies [As ditaduras dos nossos dias. Resposta ao senhor Cambó] (1930), em especial o terceiro capítulo “O fascismo italiano”]. 2ª. ed. (d’Edicions Lluita). 1984, publicado também em Marxists’ Internet Archive ⎼ Secció Catalana e em Marxists’ Internet Archive ⎼ Sección en Español; Andreu Nin, Les possibilités d’un fascisme espagnol (1933). L’Archive Internet des Marxistes; Léon Trotsky, Comment vaincre le fascisme? (colectânea de textos do autor sobre este tema), em particular os textos Démocratie et fascisme (Janeiro de 1931), La clé de la situation mondiale est en Alemagne (Novembro de 1931), Qu’est-ce que le national-socialisme? (Junho de 1933), L’Archive Internet des Marxistes; e ainda L. Trotsky, Bonapartism, Fascism and War [o último artigo de Trotsky antes de ser assassinado, que ficou incompleto]», Fourth International, Vol.1, Nº.5, Outubro de 1940, reproduzido em https://wikirouge. net/.
[*] Refiz a redacção deste ponto em 11-12-2022.
[**] Desenvolvi e aprimorei, por meio de inserção de aditamentos entre colchetes, a redacção inicial deste ponto, em 13-12-2022.
[25] Ver Barbara Salazar Torreon & Sofia Plagakis, “Instances of Use of United States Armed Forces Abroad, 1798-2022”. Congressional Research Service, March 8, 2022; Sidita Kushi & Monica
Duffy Toft, “Introducing the Military Intervention Project: A New Dataset on US
Military Interventions, 1776–2019.” Journal of Conflict Resolution, August 2, 2022.
[26] Refiro-me ao livro de A. Dugin intitulado Templars of the
Proletariat (Tampliery proletariata), publicado em 1997,
nomeadamente ao texto “Fascism borderless and red” que dele faz parte. Uma versão electrónica desse texto encontra-se em http://anticompromat.panchul.com/dugin/fashizm.html. Em 2009, Andreas Umland fez uma
tradução inglesa desse texto, que se encontra em Russian-Studies Archives
(https://www.jiscmail.ac.uk/cgi-bin/webadmin?A2=russian-studies;4a3176b4. 0905).
[27] A. Dugin, “Fascism borderless
and red” (1997), tradução de A. Umland.
[28] A. Dugin, Templars of the
Proletariat (Tampliery proletariata), citado
por M. Laruelle, op.cit. 1997.
[29] Paul
Robinson, “Interview with Alexander Dugin.” Irrussianality, September 17, 2017.
[30] A declaração de Aléksandr Dugin sobre o assassinato da
sua filha foi publicada na íntegra, em caixa separada, no artigo “Guru de Putin
diz que ‘regime nazista ucraniano’ matou filha”, Poder 360. 22 de Agosto de 2022.
[31] David Von Drehle, “The man known as ‘Putin’s
brain’ envisions the splitting of Europe — and the fall of China”. Washington
Post, March 22, 2022; Wahid Azal, “Dugin’s Occult Fascism and the Hijacking
of Left Anti-Imperialism and Muslim Anti-Salafism.” CounterPunch,
February 10, 2016.
[32] “Car explosion kills daughter
of key Putin ally, Russia says.” Washington Post, 21 August 2022.
[33] Editorial, “El atentado contra Dugin como epítome de
la violência.” El Mundo, 21 Agosto
2022.
[34] Zoe Tidman, “Daughter of Putin’s ‘spiritual guide’ killed in car bomb ‘meant for her father’”. Independent, 21 August 2022.
[35] Will Stewart
& Katie Davis, “BOMB HORROR Putin’s ‘war mastermind’ Alexander Dugin in
hospital after dodging bomb that killed daughter in ‘assassination attempt’.” The
Sun, 21 August 2022.
[36] Laurence Dollimore, Will Stewart, Tim Brown, “Moment Putin’s closest aide Alexander
Dugin holds head in his hands amid aftermath of Moscow car bomb that killed his
daughter: Ukraine war mastermind is spotted at scene after Darya Dugin, 35, was
‘assassinated in attack meant for her father’.” DailyMail, 21 August
2022.
[37] Stephen Shenfield, Russian Fascism: Traditions, Tendencies and Movements. Routledge, 2000.
[38] Em Setembro de 2014, na sequência de um
abaixo-assinado pedindo a sua demissão, Dugin perdeu o seu posto de professor
de Sociologia na Universidade Estatal de Moscovo, onde tinha sido admitido em
2008. Desde então, nunca mais conseguiu voltar a ingressar no sistema
universitário russo. Como conciliar este grande desaire pessoal com a posição
de “guru (ou cérebro ou aliado-chave ou ajudante mais
íntimo, etc.) de Putin” que lhe é frequentemente atribuída, é coisa que
não parece preocupar minimamente os autores dessa atribuição.
[39] Ressalvemos três pontos que não posso aqui aprofundar
sem me desviar demasiadamente do tema deste artigo. 1º.) O tipo de
regime que Shekhovstov apelida de “democracia liberal”,
nada tem a ver com o conceito de “democracia.”
Trata-se, de facto, de um tipo de regime bem diferente, para o qual o nome mais
adequado é o de oligarquia electiva liberal. Num
artigo ulterior desta série, abordarei a natureza do regime russo de que Putin
é actualmente o representante máximo. 2º.) Contrariamente ao que
Shekhovstov afirma (sem qualquer prova), Putin nunca foi “antiocidental.”
Aliás, até 2007, foi mesmo, claramente, pró-ocidental. Entre 2008 e 2022, já
sem grandes ilusões sobre o lugar que o EUA e o “Ocidente colectivo” (grosso
modo, G7 + UE + Coreia do Sul + Austrália +Nova Zelândia) reservam à Rússia
na divisão mundial do trabalho e nas alianças político-militares
internacionais, tentou, no entanto, afincadamente, chegar a um acordo de fundo
com os EUA e com a OTAN. Essa tentativa falhou, mas outras se lhes seguirão, necessariamente,
durante e após as negociações que porão fim às guerras na Urânia. 3º.) Quanto
ao “expansionismo de Putin”,
alegado (sem qualquer prova) por Shekhovstov, basta substituir Putin por OTAN e
“de” por “da,” para restabelecer a verdade dos factos (ver a este propósito,
José Catarino Soares, A Guerra na Ucrânia (2.ª parte). OTAN: natureza e
historial, antes e depois de 1991. Tertúlia
Orwelliana, Arquivo do Blogue, 21 de Maio de 2022).
[40] Anton Shekhovtsov, “Putin’s brain?” New Eastern Europe 8-9/2014,
republicado em Eurozine, September 12, 2014.
[41] Alexey Kovalev, “Putin’s New Martyr for the Russian Cause.” Foreign
Policy. August 26, 2022.
[42] Ivan Ilyin não “emigrou.” Foi obrigado a exilar-se
pelo regime bolchevique da União Soviética em 1922, que o deportou, juntamente
com mais 160 filósofos, historiadores e economistas.
[43] Paul Robinson, “The philosophers behind Putin and the fascism label”, IAI-TV,
8th April 2022.
[44] Marlene Laruelle, “In search of Putin’s philosopher. Why Ivan Ilyin is not
Putin’s Ideological Guru.” Riddle, 19 April 2018.
[45] Marlene Laruelle, “The intellectual origins of Putin’s invasion.” Unherd,
March 16, 2022.
[46] Mary Louise Kelly, Ayen Bior, Patrick Jarenwhatananon, “How Daria Dugina’s
death impacts security for Putin allies in Russia”, NPR, August 23,
2022.
[47] Paul Robinson, “Putin’s ‘ally’—a case of misreporting”. Canadian
Dimension, August 23, 2022.
[48] A. Dugin, Putin vs Putin. Renovamen Verlag, 2014 (apud Edgar Straehle,
“El poder y la filosofía. El otro viaje de Siracusa,” CTXT, nº. 283,
Abril 2022).
[49] Paul Robinson, “Interview with Alexander Dugin.” Irrussianality, September
17, 2017.
[50] Pjotr Sauer, “Alexander Dugin: who is Putin
ally and apparent car bombing target?” The Guardian, 21 August 2022.
[51] Agatonismo (um neologismo cunhado por Mario Bunge a partir do
Grego antigo αγαθος: [agathós] “de boa constituição,” “de boa natureza,” “bom,”
“honesto,” “virtuoso,” “meritório,” “nobre”) é o nome de uma ética humanista
que postula que os direitos e os deveres andam emparelhados (os direitos
implicam deveres), que as acções devem justificar-se moralmente e que os
princípios morais devem avaliar-se pelas suas consequências. O princípio básico
da ética agatonista é o seguinte: «Desfrute a vida,
sem explorar nem oprimir ninguém, e ajude a viver uma vida desfrutável, sem
exploração nem opressão do homem pelo homem». Este princípio é uma expansão de um
outro, da autoria do filósofo e físico Mario Bunge (1919-2020): «Desfrute a vida e ajude a viver uma vida desfrutável».
A sua expansão da maneira indicada constitui, creio, um melhor resumo, e quase
tão conciso como o original, do agatonismo. O princípio de Bunge não exclui
alguém como, por exemplo, Bill Gates, que poderia mesmo gabar-se, à sua luz, de
ser um exemplo canónico de conduta agatonista. A expansão que proponho exclui
liminarmente essa possibilidade.
[52] O Direito Internacional
Humanitário (DIH) ou Direito Internacional
dos Conflitos Armados (DICA) é um conjunto de leis que protege as pessoas
em tempos de conflitos armados. É composto essencialmente pelas Convenções de Genebra
(1949) e pelos seus Protocolos Adicionais (1977), além de uma série de outras
convenções e protocolos que abrangem aspectos específicos do Direito
Internacional dos Conflitos Armados. Entre as principais novidades, os
Protocolos Adicionais de 1977 incluiram disposições para proteger os civis
contra os efeitos das hostilidades – por exemplo, ao banir os ataques que pudessem
ferir os civis indiscriminadamente. O Protocolo I lida com conflitos armados
internacionais, enquanto o Protocolo II lida com conflitos de natureza não
internacional. As Convenções de Genebra e os seus Protocolos Adicionais,
alargaram e aperfeiçoaram as convenções anteriores existentes, incluindo as Convenções
de Haia (1899, 1907), que foram reescritas. As Convenções de Genebra e os seus Protocolos
Adicionais compõem o núcleo do Direito Internacional Humanitário, o ramo do
Direito Internacional que regula a condução dos conflitos armados, buscando
limitar os seus efeitos. Protegem especificamente as
pessoas que não participam nas hostilidades (civis, profissionais da saúde e agentes
humanitários) e as que deixaram de participar (como os soldados feridos, os enfermos,
os náufragos e os prisioneiros de guerra). As Convenções de Genebra e os
seus Protocolos Adicionais estipulam medidas a serem tomadas para evitar ou pôr
um fim a todas as violações dos seus preceitos. Contêm normas estritas para
lidar com as chamadas “infracções graves”. Estipulam
que os indivíduos responsáveis pelas infracções graves devem ser encontrados,
julgados ou extraditados, seja qual for a sua nacionalidade. As Convenções de
Genebra de 1949 foram adotadas por todos os países no mundo. Os protocolos
adicionais têm uma aceitação muito ampla e suas disposições são consideradas
Direito Internacional Humanitário Consuetudinário.
[53] Cf. International Committee of
the Red Cross. Treaties, States Parties and Commentaries. (https://ihl-databases.icrc. org/applic/ihl/ihl.nsf/vwTreatiesByCountrySelected.xsp?xp_countrySelected=UA;https://ihldatabases.icrc.org/applic/ihl/ihl. nsf/vwTreatiesByCountrySelected.xsp?xp_countrySelected=RU&nv=4).
[54] Jean-Marie Henckaerts e Louise Doswald-Beck, Direito
Internacional Humanitário Consuetudinário. Volume 1. Normas (CICV. 2007),
p.3. Ver também, em alternativa, Base de dados do DIH. DIH consuetudinário. CICV
[https://ihl-databases. icrc.org/customary-ihl/por/docs/v1_rul_rule1]
[55] Charlie Dunlap Jr., “Law and
the Kiling of a Russian propagandist. Some Q&A.” Lawfire, October 2022.
[56] Jean-Marie
Henckaerts e Louise Doswald-Beck, Direito Internacional Humanitário Consuetudinário.
Volume 1. Normas (CICV. 2007), p.351.
[57] Jean-Marie Henckaerts e Louise Doswald-Beck, op.cit.,
p.657.
[58] Jean-Marie Henckaerts e Louise Doswald-Beck, op.cit.,
pp. 643-44.
[59] “International Law and the War
in Ukraine.Three questions to Julia
Grignon”. Interview. Institut Montaigne, May 2022.
[60] Susan Raghavan,
“Russia has killed civilians in Ukraine. Kyiv’s defense tactics add to the
danger.” Washington Post. March 22, 2022.
[61] Jean-Marie Henckaerts e Louise
Doswald-Beck, Direito Internacional Humanitário Consuetudinário. Volume 1.
Normas. (CICV. 2007), p.37.
[62] ibidem, pp. 381-82.
[63] Susan Raghavan, “Russia has
killed civilians in Ukraine. Kyiv’s defense tactics add to the danger.” Washington Post.
March 22, 2022.
[64] «Foi declarada uma caça aos
colaboracionistas e a sua vida não está protegida pela lei», disse Anton
Gerashchenko, conselheiro do Ministério da Administração Interna da Ucrânia [no Brasil seria o Ministério da Justiça e Segurança Pública]. «Os nossos serviços secretos estão a eliminá-los, matando-os
como porcos» (Ian Birrell, “«We’re hunting
them down and shooting them like pigs»: How the Ukrainians are taking brutal
revenge on the collaborators who've betrayed their neighbours ‒ and country ‒
to the Russians”. Daily Mail, 5 October 2022).
[65] Este ensaio de Vladimir Putin está disponível em Francês no sítio electrónico da embaixada da Rússia em França: “Sur l’unité historique des Russes et des Ukrainiens” [https://france.mid.ru/fr/presse/russes_ukrainiens/]. Está disponível em Inglês no sítio electrónico da Presidência da Rússia: “On the Historical Unity of Russians and Ukrainians” [http://en. kremlin.ru/events/president/news/66181].
[66] José Catarino Soares, Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia
ou a Ucrânia? Tertúlia Orwelliana.
Arquivo do Blogue. 22 de Agosto de 2022.
[67] Pode vê-lo e ouvi-lo expor de viva-voz parte desta linha de pensamento AQUI https://www.youtube.com/watch?v=DwcwGS FPqIo [com legendas em inglês] ou AQUI https://www.youtube.com/watch?v=M855YIAjMh8 [com legendas em francês]
[68] A citação
resulta da junção, ipsis verbis, de declarações de Lloyd Austin feitas
no mesmo dia, mas reportadas, no todo ou em parte, por órgãos mediáticos de
comunicação social diferentes: [A] e [C] “United States believes Ukraine can
win war against Russia with «right equipment».” Anews, 25 April, 2022 [https:// www.anews.com.tr/world/2022/04/25/united-states-believes-ukraine-can-win-war-against-russia-with-right-equipment];
[B] Lloyd Austin, Twitter, April 25, 2022; [C] Missy Ryan &
Annabelle Timsit, “U.S. wants Russian military ‘weakened’ from Ukraine
invasion, Austin says.” The Washington Post, April 25, 2022.
[69] Jacques
Baud, Opération
Z (Max Milo, Paris, 2022), p.272.
[70] Ignacio Cassis, “Ce ne sont pas des
crimes de guerre tant qu’un tribunal ne l’a pas décrété “, rts.ch, 7
avril 2022.
[71] Jacques Baud, Opération Z, p.282.
[72] «“Tudo para
nós, e nada para os outros,” parece ter sido, em todas as épocas do mundo, a
vil máxima dos senhores da humanidade». Adam Smith, An inquiry into
the nature and causes of the Wealth of the Nations (1776). Livro
III, capítulo IV (The Electronic Classics Series, Pittsburg State University,
2005) p.374.
[73] Rob Picheta, “Boris Johnson
claims France was ‘in denial’ before Russia’s invasion of Ukraine.” CNN,
November 23, 2022.
[74] Alexander Osang, Ein Jahr mit Ex-Kanzlerin Merkel. “Das Gefühl war ganz klar: Machtpolitisch bist du durch.” Der Spiegel, 24.11.2022; P.S. [acrescentado em 10.12.2022] “Hatten Sie gedacht, ich komme mit Pferdeschwanz?”. Die Zeit, 7, Dezember 2022.
[75] Acto
constitutivo da UNESCO, aprovado em Londres no dia 16 Novembro de 1945, art. I.
[76] «Impõem-se duas
observações. Em primeiro lugar, ao contrário da crença comum, o Director-Geral
da UNESCO não é realmente eleito: de facto, ele é proposto, seleccionado e
depois nomeado. Este é muito mais um processo de recrutamento do que uma
eleição propriamente dita. Em qualquer caso, na prática, o comportamento e as
práticas podem levar-nos a acreditar que existe uma eleição. Por outro lado, é
interessante notar que não são os “chefes” da Organização como um todo [entenda-se: os representantes dos
Estado-membros, N.E.] que escolhem o Director-geral,
mas um número limitado deles: aqueles que estão no Conselho Executivo na altura
da nomeação do Director-Geral.» Yvonne
Donders e Christine Alan de Lavenne, “Quel directeur général pour l’UNESCO?”
(2010), www.afri-ct.org
[77] “Russia slams UNESCO for not
condemning Darya Dugina’s killing.” India Narrative, 12 September, 2022.
[78] Sobre a questão do processo de selecção e nomeação (e
não de eleição) do director-geral da UNESCO ver a nota 76, supra.
Quanto à nomeação de Audrey Azouley para um novo mandato, julgo ser fácil de
entender à luz das seguintes informações: «A
responsável [da UNESCO] sublinhou também “a
unidade”, o “apoio de todo o mundo” que lhe foi manifestado “muito cedo”, o que
considerou um sinal de “confiança mútua” dentro de uma instituição outrora
muito dividida, que ela contribuiu para apaziguar durante o seu primeiro
mandato. Em meados de outubro, o conselho executivo da organização (que tem 58
membros) tomou a decisão, por 55 votos de 57 membros presentes, de “recomendar”
a sua candidatura, para cuja validação apelou na 41.ª sessão da UNESCO, que
começou esta terça-feira em Paris. A reeleição de Azoulay parece consagrar a
estratégia de despolitização da instituição que ela defendeu desde a sua eleição.
A segunda mulher a liderar a UNESCO, Audrey Azoulay assumiu o cargo num
contexto de deterioração das relações dentro da organização, devido à saída dos
Estados Unidos e de Israel, que coincidiram com a sua eleição. Os dois países
acusavam a instituição de um viés pró-palestiniano, num cenário de
questionamento frontal do multilateralismo pela Administração Trump. Desaparecidas
essas tensões, a equipa da diretora-geral considera provável o retorno desses
dois países à organização a médio-prazo.» “Francesa Audrey Azoulay reeleita
diretora-geral da UNESCO.” Agência Lusa, 9 Novembro 2021.
[79] Tenciono fundamentar devidamente esta classificação do
governo/regime vigente na Ucrênia num próximo artigo desta série
[80] Os portugueses que viveram no tempo do regime
oligárquico liberticida e fascizante de Óscar Carmona, Oliveira Salazar e
Marcelo Caetano (que se seguiu à ditadura militar resultante do golpe de Estado
militar de 1926), sabem, por experiência, que este regime, que durou 48 anos e que
passou a autodenominar-se Estado Novo a partir
de 1933, criou um serviço, localizado no chamado “Secretariado Nacional da
Informação” a partir de 1944, encarregado de censurar previamente todos os
textos publicados na imprensa e demais publicações periódicas, bem como em «folhas volantes, folhetos, cartazes e outras publicações,
sempre que em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social».
Munidos com o célebre “lápis azul”, os censores
cortavam, no todo ou em parte, todo e qualquer texto considerado impróprio. Era
a chamada censura prévia, cuja função António
de Oliveira Salazar explicou assim, na inauguração do Secretariado Nacional da
Informação: «Politicamente, só existe aquilo que o
público sabe que existe.»
[81] Espero que esses elementos existam, por muito minoritários que sejam, porque só eles poderão eventualmente garantir a sobrevivência dessa publicação em conformidade com a sua declaração de princípios.
[82] Karl Liebknecht, o principal companheiro de Rosa Luxemburgo
na sua longa trajectória política, foi o único deputado que, em 4 de Dezembro
de 1914, no Reichstag (Parlamento alemão), votou contra os créditos de guerra
para financiar a presença da Alemanha na Primeira Guerra Mundial. Em Janeiro de
1915, o deputado Otto Rühle votou também contra os créditos de guerra. Em 30 de
Março de 1915 votaram ambos, Liebknecht e Rühle, contra os créditos de guerra. Liebknecht
foi raptado e assassinado no mesmo dia que Rosa Luxemburgo. Os seus assassinos
pertenciam também ao GKSD comandado por Waldemar Pabst, embora não se conheçam os
pormenores do seu assassinato tão bem como os de Rosa Luxemburgo.
[83] Klaus Gietinger, The murder of
Rosa Luxemburg. Verso. 2019.
[84] “Ich Lies
Rosa Luxemburg Richten” [entrevista com Waldemar Pabst]. Der Spiegel,
17.04.1962; Klaus Gietinger, Der Konterrevolutionär. Waldemar Pabst — eine deutsche
Karriere [O contra-revolucionário Waldemar Pabst — uma carreira alemã].
Hamburg: Verlag Lutz Schulenburg. 2009.
[85] Emprego aqui a expressão “campo da esquerda” para significar, de forma abreviada e cómoda, “o campo das pessoas que são a favor, por palavras e actos, da auto-emancipação económica e política dos trabalhadores” e não para significar outra coisa qualquer.
[86] Carta de
Rosa Luxemburgo de 28/12/1916 a Mathilde Wurm (in Rosa Luxemburg, Briefe an
Freunde, Europaeische
Verlagsanstalt, Hamburg, 1950). Tradução inglesa na revista Dissent,
Winter 1954.
N.B. Salvo indicação em contrário, a tradução de todas as citações de textos originalmente escritos em línguas estrangeiras é minha.
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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana