Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

22 fevereiro, 2025

 

Ucrânia: da negociação à negociata

Rui Pereira [*]

 

Antes da declaração de Trump admitindo que a Ucrânia pode vir a ser integrada na Rússia, declaração de  11 de Fevereiro de 2025, complementada com as notícias de 12 de Fevereiro, sobre os telefonemas entre os presidentes dos países beligerantes, Estados Unidos e Rússia, com conhecimento ao encarregado de negócios norte-americano em Quieve, Volodymyr Zelenski, a notícia destes dias era a de que Zelensky jurara, por todas as almas e quaisquer armas, que entregaria o que lhe sobra de solo ucraniano a Trump para este explorar como melhor lhe aprouver.


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«Zelensky oferece a Trump as jazidas minerais da Ucrânia em troca de um acordo de segurança com os EUA». Foto: Reuters, 7 de Fevereiro de 2025.

Na sua lógica de negociata, para Zelensky, entre atores de televisão e especuladores imobiliários com processos por corrupção, alguma coisa se há-de sempre arranjar. Para Trump não é bem assim. Fez contas, certamente por alto, e disse que só para despesas e encomendas transatas o partner terá de arranjar qualquer coisa no valor de 500 mil milhões de dólares.

Nos estúdios televisivos da Entidade a que chamamos União Europeia (doravante “a Entidade”), há quem se indigne. Refaçam-se as contas. Ao que parece mais de 300 mil milhões de dólares ficaram logo nos Estados Unidos, por conta das armas “enviadas” (ambíguo e por isso mesmo bem escolhido este verbo). Blinken já o tinha explicado, num intervalo das suas viagens pelo mundo: mais de 90 por cento da “ajuda” que vai para a Ucrânia não vai para a Ucrânia, fica cá. Cá quer dizer lá, no complexo militar-industrial norte-americano. 

O que estava ainda por explicar melhor e assim continua é que Volodymyr Zelenski está a vender, pela segunda vez, os mesmos lotes e frações de terras e riquezas que já vendera antes à Chevron, ao sistema bancário sombra da Blackrock, à Monsanto… 40% das terras aráveis ucranianas já não o são. Nem aráveis nem ucranianas por terem sido vendidas, bombardeadas, minadas ou ocupadas.

Continuando no papel de chefe de Estado que desempenhou pela primeira vez numa estação ucraniana de televisão e pela segunda vez nas estações de televisão de todo o chamado “Ocidente alargado”, em especial nos estúdios televisivos da Entidade, Zelensky exigiu não apenas que a Ucrânia estivesse presente em negociações sobre a paz na Ucrânia, algo que está longe de ser pacífico, como reclamou que também a Entidade o estivesse, coisa que não parece nada pacífica também.

A Entidade também diga-se assim o exige. Numa rábula de quem quer casar com a Carochinha, os seus capatazes assomam à janela à procura de quem queira casar com ela ou, pelo menos, levá-la ao bodo da partilha da Ucrânia. Mas a Entidade, tal como Zelensky, pode exigir pouca coisa.

Este, aliás, nunca pôde exigir muito. Nem quis. Eleito com a complacência de Putin a troco de parar com os massacres perpetrados contra os russófilos e russófonos ucranianos de Donetsk e Lugansk massacres dirigidos, a partir do golpe de Estado de 2014, pela dupla Nulland-Poroshenko o ator rapidamente deu o dito por não feito.

Percebeu que a rapaziada das suásticas não estava para brincadeiras, que os democratas da Entidade e dos Estados Unidos não se incomodavam nada com a amizade deles estendendo-lhes a mão enquanto eles esticavam o braço na velha saudação.


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O general Valery Zalujny (à esquerda), quando era Comandante-em-Chefe das Forças Armadas ucranianas, abraça Dmytro Yarosh (à direita), na altura (Novembro de 2021) seu conselheiro. Yarosh foi fundador e dirigente do “Sector de Direita” (um partido banderista) e foi também fundador e dirigente do “Exército Voluntário Ucraniano” (uma formação paramilitar banderista, composta por voluntários ucranianos e estrangeiros que acabou por ser absorvida e integrada sob a cadeia de comando das Forças Armadas Ucranianas, oficialmente designada como Centro de Operações Especiais “Corpo Voluntário Ucraniano”). Dmytro Yarosh foi entrevistado pelo órgão noticioso ucraniano Obozrevatel, em 27 de Maio de 2019, uma semana depois da tomada de posse de Volodymyr Zelensky como presidente da república da Ucrânia. Nessa entrevista, Yarosh ameaçou assassinar Zelensky, afirmando que ele seria enforcado em Quereshchatyk, a avenida principal de Quieve, se cumprisse qualquer parte dos Acordos de Minsk. «Zelensky disse no seu discurso de tomada de posse que estava pronto a perder taxas de aprovação, popularidade, posição...Não, o que ele perderá é a vida. Ele será enforcado numa árvore qualquer em Quereshchatyk — se trair a Ucrânia e as pessoas que morreram na Revolução [entenda-se: no golpe de Estado sangrento de 22 de Fevereiro de 2014 que derrubou inconstitucionalmente o presidente livremente eleito, Viktor Yanukovych, n.e.e na Guerra» [travada na Donbass contra as milícias de autodefesa das repúblicas populares Lugansk e Donetsk, n.e.] [n.e.= nota editorial]. Fonte da foto: FaceBook de Yarosh.

E, a troco de prosseguir os caminhos que tornariam a Ucrânia num centro de treino para neonazis de todo o mundo, num centro para perigosas investigações de guerra biológica que os Estados Unidos não queriam ter no seu território, como a troco de tentar enganar os russos, com a colaboração da má-fé dos então dirigentes da Entidade europeia, Merkel e Hollande, vendeu alegremente a retalho o que agora quer lotear e vender de novo. O seu país.

De caminho, Zelensky declarou não se lembrar em que bolso guardou cem mil milhões dos dólares que recebeu a troco de «desgastar a Rússia até ao último ucraniano», como disse o antigo secretário norte-americano da defesa Lloyd Austin.

Por seu lado, a Entidade a que por cá chamamos “a Europa” começou por ter uma relação difícil com a verdade e acabou tendo um problema irresolúvel com a realidade. Começaram por esquecer que, por mais proposicional que possa ser (e só proposicional pode ser), a verdade requer, porém, a factividade, a natureza factual das coisas determináveis. E foi assim que acabaram a fantasiar que a verdade, aliás, nunca existiu.

De facto, cada um dos elementos das cliques dirigentes geradas pelo chamado centrão europeu dos interesses começa pela sua própria mediocridade para acabar enlaçado na mediocridade de cada um dos outros. O resultado dificilmente poderia ser outro que não a autointoxicação generalizada de todos eles, num cenário geral de medíocres que se reclamam tão fanaticamente da moderação, como qualquer outro fanático se reclamará do seu extremismo próprio.

Não é compreensível como conseguiram os analistas políticos dos serviços de informações da Entidade não perceber ou não conseguirem explicar a quem lhes paga o ordenado que Trump ia esmagar o travesti dos neoconservadores disfarçados de democratas nas eleições norte-americanas e que isso seria o princípio do fim da loja de fantasias em que têm vivido em festa todos estes anos, na sua cultura de, como diria Mikhail Bakhtin, «carnaval permanente».

Nestes momentos em que a mentira sobre a Ucrânia estrebucha penosamente a um tal ponto que os seus cultores deveriam escolher entre as categorias da hipocrisia ou da estupidez em qual delas gostariam mais de se rever, lembremo-nos, pois, de algumas das “teses”, ou mais bem-dito: das linhas de propaganda, que foram adoptando desde o início da intervenção militar russa na Ucrânia.

A primeira é que Putin estava louco (a clássica teoria da “psiquiatrização” do oponente) e por isso decidiu invadir e conquistar a Ucrânia.

A segunda explicava que, por estar louco e mal assessorado, não percebeu que o seu exército nem sequer tinha peúgas e botas; que os seus blindados ficavam parados em fila indiana por uma razão desconhecida; que os seus soldados tinham de aprender a manejar as metralhadoras através da Wikipédia. Em suma, a Rússia, como por cá se disse, era uma estação de serviço, munida de armas nucleares.


Na manchete lê-se: «Muitos soldados russos não conhecem o que vêem na Ucrânia: Eles telefonam para casa porque vêem estradas asfaltadas pela primeira vez».

A terceira explicava-nos a corrupção dos seus generais e oligarcas. Esta seria responsável por atrasos técnicos de tal ordem, que, para fabricar os seus mísseis, os russos tinham de se socorrer dos tambores das máquinas de lavar que roubavam nas localidades ucranianas que   sem se saber como ⎼ conquistavam.

Tudo isto demonstrava não apenas a vitória ucraniana, como, mais do que isso, a queda do regime russo. O facínora mal-disposto do Kremlin cairia sem apelo nem agravo sob os escombros da sua aventura «ilegal e injustificada» contra uma nação pacífica e soberana, lutando em defesa da liberdade e da democracia. Antes disso, porém, atingiria todos os civis e as suas casas, os teatros, hospitais, escolas e infantários, centros comerciais e parques de estacionamento que pudesse, sem esquecer os vendedores de gelados, os quiosques de rua e os lares de anciãos. Era o episódio do Outono de 2022, no qual Volodymyr Zelensky, no papel de presidente da Ucrânia, anunciava que já iria passar esse Natal à Crimeia.

Estranhamente não foi assim. E talvez por isso surgiu uma outra tese insólita. Os russos tinham o mau hábito de bombardear as suas próprias posições e infraestruturas. Destruíram assim uma prisão em Poltava, onde tinham prisioneiros de guerra ucranianos. Assim bombardearam a ponte de Querch que ligava a Crimeia ao restante continente. E, ainda assim, das quatro centrais nucleares existentes na Ucrânia, resolveram bombardear a única que ocupavam, em Zaporíjia. Nada se compararia, porém, à destruição que perpetraram do gasoduto Nordstream-2 que tinham construído conjuntamente com a Alemanha para venderem gás natural à Europa e que assim viam destruído. Isolados do mundo, sucumbindo às poderosas sanções ocidentais, a contraofensiva ucraniana de 2023 pô-los-ia no lugar em pouco tempo.

Não foi assim. E não só não foi assim como os russos, afinal, tinham o apoio da China e, em parte, até da índia. O seu ministro dos Negócios Estrangeiros viajou por toda a África fixando contratos económicos e militares um pouco por todo o lado. Expandiram os BRIC, multiplicaram contactos, relações, transações económicas e financeiras marginalizando o dólar… a tudo isto chamou-se por cá, o isolamento russo perpetrado pelo “Ocidente alargado”.

Não só não foi, portanto, como começámos por dizer, como acabámos a dizer que temos de nos armar, porque os mesmos russos que não tinham botas nem peúgas e que não sabiam disparar estavam preparados para chegar a Lisboa enquanto o diabo esfrega um olho, caso não desviássemos o dinheiro dos nossos pensionistas, serviços de saúde, escolas, etc., para comprar armas ao complexo militar-industrial norte-americano.

No momento em que os norte-coreanos desapareceram dos noticiários ocidentais onde estavam colocados em posição de combate, é nesta tese que estamos: “Cuidado que vêm aí os russos!”. Agora com uma diferença. Zelensky já não vai de férias à Crimeia pelo Natal. Pelo contrário, está desesperado. Diz que entrega a Trump o que tem e, sobretudo, o que não tem da nova Ucrânia que ainda não se sabe muito bem em que consistirá. Como se disse, é um facto que há muito que a clique dirigente de Quieve imposta pelo golpe de Estado que a senhora Victoria Nulland dirigiu em 2014, declarando então «fuck Europe!», tem à venda o país que corruptamente trocou pelas suas fortunas pessoais e em nome do qual diz falar.

É certo ou pelo menos muito provável que, se não acontecer nada de pior, dir-se-á que Zelensky e a sua corte mediática europeia estavam às portas do Kremlin que só não conquistaram porque Trump os impediu de o fazerem. Estava quase, mas… Um longo “mas” que servirá para falsificar a realidade da crise fatal que se abateu sobre a Entidade europeia ou mais precisamente sobre os seus povos, porque quanto aos seus dirigentes, não parece que parem de dizer, sem a ironia das paredes parisienses em Maio de 1968, «não vos inquieteis, é a realidade que se engana».

Entretanto, estima-se em mais de um milhão o número de jovens russos e ucranianos mortos ou feridos por quantos tudo fizeram para que isto não fosse evitado. Refiro-me aos governos norte-americanos e europeus, refiro-me à insanidade deletéria reinante em Quieve que ficará na História daquela terra por ter condenado uma geração inteira dos seus com a mesma frieza com que mentiu ao mundo, na guerra que confessamente escolheu travar em nome do património da OTAN(/NATO) e do seu próprio.


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As bombas nucleares americanas, as bases militares onde estão depositadas essas bombas em silos, os aviões que as poderão lançar e os Estados da Europa onde estão essas bombas, bases e aviões. Essas armas nucleares só podem ser accionadas pelos EUA — o criador, patrocinador e mentor da OTAN (/NATO).

O que aqui há uns meses era indizível por ser verdade é hoje evidente por se confirmar que era verdade.

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[*] Nota Editorial

O autor deste artigo, Rui Pereira, é professor associado da Universidade Lusófona do Porto (na Faculdade de Comunicação, Arquitectura, Artes e Tecnologias da Informação e na Faculdade de Direito e Ciência Política da mesma Universidade).  

O seu artigo, que aqui reproduzo com a devida vénia e um forte abraço, foi originalmente uma comunicação oral feita numa sessão do Conselho Português para a Paz e a Cooperação (CPPC) realizada em Rio Tinto, Porto, a 13 de Fevereiro de 2025.

Editei ligeiramente o artigo para o adequar às normas tipográficas e estilísticas da Tertúlia Orwelliana.

JCS