Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

16 junho, 2025

 Temas 1 e 2

Indulgências para pecados imaginários, remorsos fictícios e ressentimentos melífluos

no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

José Catarino Soares

 

Na cidade algarvia de Lagos, a convite do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, a romancista e conselheira de Estado Lídia Jorge proferiu um longo discurso no dia 10 de Junho [de 2025] — “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”.

Lídia Jorge discursando em Lagos, no dia 10 de Junho de 2025


O seu discurso pode ser lido na íntegra aqui:  https://visao.pt/atualidade/ politica/2025-06-10-o-discurso-de-lidia-jorge-na-integra-a-mensagem-do-10-de-junho-que-sera-recordada/.

1. A primeira parte do discurso de Lídia Jorge

Até sensivelmente à primeira metade do seu discurso (de 15 páginas), a oradora vai discorrendo sobre Camões e sobre o tempo que ao poeta coube em sorte viver.

Uma imagem com desenho, Cara humana, quadro, homem

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Retrato de Luís Vaz de Camões (1577) por Fernão Gomes


A dado passo, porém, Lídia Jorge formula a seguinte tese: tal como Portugal entrou num novo e sombrio ciclo na sequência do desastre que representou a batalha de Alcácer Quibir (1578) e que Camões assinalou numa das últimas estrofes do Canto X de Os Lusíadas, também o mundo contemporâneo entrou num novo e sombrio ciclo.

«O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque [de pôr ao pescoço, n.e.]

E os cidadãos são apenas público, que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global. Porque nós, agora, somos outros».

E como escolheu a oradora desenvolver esta interessante tese? Recuando no tempo, até a um dia de calor tórrido em Agosto 1444, quando desembarcaram em Lagos 235 indivíduos raptados e escravizados nas costas da Mauritânia e como foram repartidos pelos seus proprietários escravistas (um deles o infante D. Henrique).

Lagos. Núcleo Museológico Rota da Escravatura, inaugurado em 2005, e instalado no antigo edifício da Vedoria, edificado no século XVII, e que desempenhou também as funções de Alfândega, Casa da Guarda e Prisão Militar. Este edifício foi construído perto do rossio onde, em 1444, se fez venda dos primeiros escravos chegados a Lagos, referenciado como Terreiro da Porta da Vila (medieval) nas fontes coevas.


Não consigo imaginar uma maneira mais abstrusa de desenvolver a tese de que um novo tempo está a acontecer à escala global. Mas o defeito poderá ser meu, que não entendo o alcance nem a pertinência do paralelismo com o que sucedeu em Lagos em 1444.

2. A segunda parte do discurso de Lídia Jorge

Seja como for, é a partir desse momento do seu discurso que Lídia Jorge se permite fazer toda uma série de entorses a factos da história de Portugal e da humanidade para sustentar um postulado (P) muito curioso [1], mas já enunciado frequentemente noutros fóruns nos últimos anos [2]: a de que

(P) ― os portugueses contemporâneos têm de expiar colectivamente os “pecados” (reais e imaginários), incluindo os crimes mais nefandos, cometidos pelos seus antepassados, para ganharem o reino dos céus na Terra.

Segundo a artista portuguesa Graça Quilomba, a residir em Berlim, a maneira de pôr em prática este postulado consiste em transformá-lo num processo,

«um processo psicológico que passa de negação a culpa, de culpa a vergonha, de vergonha a reconhecimento e de reconhecimento a reparação. Quando estou em Portugal sinto que estamos completamente na negação» [3].

Não preciso de analisar o modo como Lídia Jorge articula uma variante deste postulado na segunda parte do seu discurso, porque o historiador (e também romancista) João Pedro Marques já o fez com a sua habitual competência, sobriedade e clareza, num texto intitulado Considerações sobre um discurso de Lídia Jorge, publicado no seu blogue, Céu Enganador.

O texto de João Pedro Marques que pode ser lido aqui [https://ceuenganador.webnode.pt/] é uma breve mas incisiva lição de história contra a ignorância atrevida sobre os Descobrimentos portugueses e o tráfico transatlântico de escravos do século XVI a meados do século XIX.

E é também uma crítica acutilante da autoflagelação identitária que faz do remorso, da mágoa e do ressentimento por pecados imaginários como, por exemplo, o “pecado dos Descobrimentos” (?!) referido por Lídia Jorge os elementos progressistas (!!) indispensáveis da nova e redentora (!!) narrativa identitária do Portugal do século XXI.

O que eu me proponho fazer no resto deste artigo é prolongar a sua reflexão noutras direcções.

Regressemos, então, ao postulado P.

3.   O comércio das indulgências e os seus questores

Esse postulado é reminiscente do dos “perdoadores” profissionais, os questores de indulgências envolvidos, outrora (séculos XIII-XVI), no comércio das indulgências da Santa Sé.  

Os questores (Lat. quaestores) eram representantes de vários escalões da hierarquia da Igreja Católica Apostólica Romana, frequentemente membros de ordens religiosas, que eram enviados para arrecadar fundos para a Igreja Católica, geralmente em troca de indulgências. As indulgências, nesse contexto, eram remissões de penas temporais por pecados já perdoados, oferecidas em troca de doações financeiras.

4. O comércio das indulgências em versão woke

O comércio das indulgências não desapareceu nos desvãos da história. Mudou de promotores, de questores e de clientelas.

O caso mais notável é o do movimento activista woke [4], cujas bandeiras ideológicas foram explicitamente integradas nas práticas e nos comportamentos dos gestores empresariais de topo e dos gestores políticos de topo que têm vindo a pilotar o processo de globalização transnacional nos últimos 30 anos.

«As grandes empresas tecnológicas e muitas outras empresas proeminentes têm apoiado os direitos LGBTQ+, apesar do risco de alienarem os seus accionistas conservadores. Porque é que o fazem? De que forma é que ser amigo das pessoas LGBTQ+ beneficia as empresas? No seu estudo, Veda Fatmy, John Kihn, Jukka Sihvonen e Sami Vähämaa concluíram que as políticas empresariais favoráveis à comunidade LGBTQ+ têm um impacto positivo na avaliação do mercado de acções e no desempenho financeiro das empresas» [5].

Por outras palavras, uma das chaves do êxito do movimento woke consistiu  na sua capacidade de mostrar aos gestores de topo das grandes empresas e aos gestores de topo das instituições estatais (incluindo as que têm o monopólio legal do uso das armas de guerra e o monopólio legal do uso da violência repressiva contra cidadãos nacionais e estrangeiros) o muito que podem ganhar se actuarem como beneméritos concessores de direitos LGBTQ+, émulos, no estádio zero da religião (ver nota [8])dos questores do outrora próspero comércio das indulgências.

Um exemplo dessa actuação é a comemoração pela CIA do Mês do ORGULHO GAY e LÉSBICO [Ingl. “Gay and Lesbian Pride Month”] que começou a ser comemorado, a partir de 1999, em Junho, por força da Proclamação 7203 do presidente Bill Clinton, e que evoluiu, com o passar dos anos, para o Mês do ORGULHO LGBTQ+.

«Este mês [Junho de 2023, o mês do Orgulho LGBTQ+], estamos orgulhosos não só dos agentes homossexuais que nos ajudaram a dar golpes de Estado e a assassinar chefes de Estado, mas também dos agentes homossexuais que nos ajudaram a fomentar a dissidência e a fazer com que os golpes de Estado parecessem descontentamento orgânico” em sociedades com regimes que nos desagradam» (Jessica Burbank, agente da CIA, no X, 7 de Junho de 2023).

Uma imagem com texto, captura de ecrã, Tipo de letra

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5. Reciclagem do comércio das indulgências

O movimento woke é originário dos EUA. Mas bem depressa saltou fronteiras e chegou a outros países dos dois lados do Atlântico incluindo o Canadá, o Brasil, o Reino Unido, a França (muito fortemente em todos eles) e até Portugal (muito fracamente, mas com tendência a crescer) além de muitos países que foram, outrora, possessões ultramarinas do Reino Unido, da França, de Portugal, das Terras Baixas (Holanda), da Bélgica, da Espanha e da Alemanha, com especial destaque para os países da Comunidade do Caribe (Caricom).  

Nesse movimento migratório, o comércio das indulgências foi reciclado e posto de novo a circular sob um novo nome:  reparações. O movimento woke exige reparações monetárias (a indivíduos, comunidades e governos), no valor de 107,8 biliões de dólares americanos a 31 países (incluindo Portugal, que teria de pagar 20,6 biliões de dólares [=18 biliões de euros], números redondos),[6] além de reparações não monetárias (como, por exemplo, o cancelamento de dívidas de Estados) e materiais (como, por exemplo, a devolução de peças museológicas, artefactos e restos mortais). E exige também uma mudança na narrativa de factos passados e da memória colectiva.

Que factos passados? Apenas os factos passados dos últimos 500 anos e apenas os factos passados relativos aos africanos de pele muito escura e de cabelo encarapinhado — os “negros” na terminologia woke.              

Mas as reparações são a outra face, a face mais visível, de um objectivo impregnado de um elemento fortíssimo de niilismo: o objectivo de corrigir o passado. Os questores das reparações querem fazer justiça, olhando para o passado dos africanos “negros” nos últimos 500 anos com os olhos do presente (isto é, com os conceitos e com os juízos morais do presente, incluindo, em lugar proeminente, os do movimento woke), corrigindo com os olhos do presente aquilo que está mal no passado.   

E é aqui que a porca torce o rabo.                                                                  

«A história foi feita pelos homens que viveram cada momento e que avaliaram os problemas da sua época com os seus conceitos, com os seus valores, com a sua capacidade de intervenção. É possível, aceitável, corrigir coisas recentes. Agora, tentar corrigir coisas que aconteceram há 400, 500 anos, e que eram consideradas aceitáveis na altura é uma coisa completamente absurda. E o movimento woke é isso que quer. Neste caso concreto da escravatura, quer reparações pagas pelos brancos [*] – e apenas pelos brancos [*], esquecendo que o tráfico transatlântico de escravos foi um negócio com duas partes, os europeus de um lado e os potentados africanos do outro lado…Foi um negócio lucrativo para ambas as partes. E por isso os africanos não queriam largá-lo, tiveram de ser forçados muitas vezes manu militari, com navios de guerra, porque para eles era lucrativo.

O movimento woke considera que a culpa é exclusiva dos brancos [*], ignorando esse aspecto que referi e ignorando outra coisa igualmente importante: é que a escravidão e o comércio de escravos a larga distância já existiam em África antes de os brancos [*] lá chegarem. África já vendia escravos para o mundo muçulmano desde o séc. VII/VIII d.C. Quando os portugueses lá chegam, no século XV, já África tinha vendido mais de cinco milhões de escravos negros para o mundo muçulmano. Os woke ignoram isso tudo e querem que os brancos [*] assumam a responsabilidade exclusiva. E querem que paguem indemnizações fortíssimas. Os woke julgam-se Deus, julgam ter poderes de justiça divina, julgam ter capacidade para recompensar os justos e castigar os pecadores» [7].

[*] Apenas um reparo. “Brancos”, aqui, não é a palavra certa, porque os próceres do movimento woke não se interessam minimamente pelas responsabilidades na escravidão e no comércio de escravos “negros” que cabem aos árabes e berberes. Ora, estes são, na sua grande maioria, “brancos”. Para o movimento woke a culpa da escravidão e do comércio de escravos “negros” de longa distância é exclusivamente dos europeus brancos”. Os “brancos” não-europeus estão isentos de culpa, assim como os europeus “não-brancos”.

Uma imagem com mapa, texto

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Mapa das rotas do tráfico transatlântico de escravos africanos “negros” nos séculos XVI -XVIII. Fonte: Caricom


6. Uma conjectura sociológica

Regressando ao que ficou dito na nota [1], coloco-me a questão de saber se a má-consciência individual e o remorso postiço suscitados pelo discurso da alegada culpabilidade colectiva dos portugueses contemporâneos pelo tráfico atlântico e transatlântico de escravos africanos de meados do século XV a meados do século XIX, poderão ter uma explicação sociológica e não apenas psicológica.

Isto porque parece óbvio que nem todas as classes e camadas sociais são igualmente permeáveis a um discurso tão abertamente contra-intuitivo e falacioso — «pois então, se não foste tu, foi o teu pai! [ou foi o teu avô, ou o teu bisavô, ou o teu trisavô, ou o teu tetravô], o que no fim de contas vem a dar no mesmo».

Nesse sentido, conjecturo que o impacto emocional e ideológico que esse tipo de discurso culpabilizador poderá produzir no grande público seja especialmente apelativo naqueles sectores dos meso-assalariados CCS em processo acelerado de desreligionização (entender: de domiciliação no estádio zombi da religião cristã [8]).

O termo meso-assalariados CCS [um neologismo construído a partir de meso- (do Gr. mésos), elemento formador de palavras que exprime a ideia de algo que está num posição “central”, “média”, “intermédia” entre duas coisas, + assalariados, e onde CCS = com cursos superiores] deve entender-se, neste contexto, como denominação genérica de uma classe de assalariados diplomados do ensino superior (politécnico e universitário) e constituída quer por (i) gestores, supervisores, assessores, consultores, formadores, provedores, auditores jurídicos, curadores, técnicos, tecnólogos que trabalham nos escalões intermédios de empresas privadas, empresas públicas e na administração pública (central, regional e local), quer  por (ii) todos aqueles, nos órgãos do poder político (executivo, legislativo e judiciário), a quem é delegado poder político para assegurarem a reprodução social do sistema constitucional vigente (notários, oficiais de justiça, magistrados do ministério público, juízes, autarcas, deputados, governantes).

Convém salientar, a este propósito, que  os meso-assalariados CCS (que outros autores apelidam de “nova classe média” ou “nova pequena-burguesia”, termos que me parecem ambos inadequados) é a classe social ideologicamente mais instável e volúvel de todas em virtude das duas funções antagónicas que os seus membros exercem [a função de supervisão, vigilância e controlo dos processos de trabalho, que a vincula ao capital, e a função de coordenação e unidade dos processos de trabalho, que a vincula ao trabalhador colectivo] no processo de produção e apropriação dos bens e serviços (Guglielmo Carchedi, Frontiers of Political Economy. Verso, 1991).

É nesta duplicidade antagónica das funções laborais exercidas pelos meso-assalariados CCS, combinada com a ansiedade e desorientação cultural decorrentes do estádio zombi da religião, que vejo a brecha por onde se insinuam com êxito os sentimentos de culpabilidade vergonhosa pelo passado histórico instilados pelos novos questores de indulgências.

Naturalmente, será necessário desenvolver um projecto de investigação empírica para testar esta conjectura. Talvez haja algum(a) doutorando/a em ciências sociais que se atreva a pegar nesta sugestão.

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Notas e Referências

[1] É inegável que este tipo de mensagem tem um impacto emocional e ideológico muito forte junto de certos sectores do público, ao criar artificialmente um sentimento de má-consciência culposa. O historiador João Pedro Marques relatou, por exemplo, num dos seus artigos, o que ocorreu no Reino Unido, o país onde esse impacto é mais forte:

«Há várias entidades e cidadãos(ãs) britânicos(as) a pôr a corda ao pescoço, a vestir o hábito de penitente e a ceder jubilosamente a essa pressão e chantagem. Em Fevereiro de 2023, uma conhecida pivô e jornalista da BBC, tornou público que iria doar 100 mil libras para projectos comunitários na ilha de Granada como forma de reparação pela ligação de remotos familiares seus à escravatura e a plantações de cana-de-açúcar na ilha. E fez mais: abandonou a BBC para dedicar o seu tempo a campanhas públicas em favor de reparações pela escravatura. No seguimento da sua decisão, mais de 100 famílias britânicas com antepassados envolvidos no sistema escravista comprometeram-se publicamente a disponibilizar importantes quantias como forma de se purgarem desse pecado e de ajudarem as antigas colónias britânicas nas Caraíbas» (“Pela porta das traseiras”. Céu Enganador, 28-12-2023) E em Portugal também temos casos desses, como, por exemplo, o de Catarina Demony, uma jornalista portuguesa, correspondente da agência global de notícias Reuters, co-autora do filme Debaixo do Tapete, estreado em 2023 (v. João Pedro Marques, “A redenção de Catarina Demony”, Céu Enganador, 1-08.2024) e o de Alfredo de Sousa, co-fundador dos Celeste/ Mariposa, grupo DJ e editora de música (Joana Gorjão Henriques, «Há muito mais famílias que tiveram escravos.” Mas não se fala disso». Público, 23 de Setembro de 2017).

[2] Por exemplo, a que encontramos na “Declaração do Porto: reparar o irreparável”, de 7 de Julho 2023 (in Buala,

 https://www.buala.org/pt/mukanda/declaracao-do-porto-reparar-o-irreparavel).

[3] In Rui Braga, “Justiça racial e colonialismo em Portugal: da negação à reparação”. Open Democracy, 31 de Agosto 2020. Imagine-se o que significaria a generalização deste piedoso mandamento a todas as épocas e a todos os povos-nações do planeta, começando pelos Ingleses, os Alemães e os Americanos! João Pedro Marques trata o assunto no que se refere tão somente à chamadas reparações (uma variante contemporânea [e pós-zombi para os seus questores] do comércio de indulgências) pela escravatura transatlântica em muitos dos seus artigos no Céu Enganador. Ver, por exemplo, “A conta já chegou. São 20 biliões de dólares”,25-09-2023 “Reparações? O abuso de uma velha ideia”.17-02-2025¸ “Reparações: do pressuposto falso à ideia absurda”, “Reparações? O abuso de uma velha ideia”, 17-02-2025; “Tráfico de escravos: má ou boa consciência”, 08-05-2024; “Reparações nunca! Seriam um nó cego”, 16-12-2024; “Repitam comigo: o tráfico foi uma parceria”, 22-05-2024.  

[4] Pelo termo woke (Ingl. literalmente, “acordei[pretérito perfeito simples <past simple> do verbo wake]; em gíria norte-americana, “estar desperto e alerta para as injustiças e as segregações sociais”) deve entender-se, neste contexto, um movimento activista com três componentes interligadas: 1) constelação de direitos LGBTQ+; 2) teoria crítica da raça; 3) cultura do apagamento-censura-e-destruição [Ingl. cancel culture]. A terceira componente é uma componente niilista. [Niilismo: (do latim nihil: nada) designa uma concepção em que tudo o que existe (coisas, factos, valores, princípios, teorias, mundo) é ou pode ser negado e reduzido a nada por um acto de vontade; em que há uma necessidade de criar o vazio]. A primeira componente possui também um forte elemento niilista, representado pela letra T [= transexual] da sigla LGBTQ+, porque é evidentemente impossível, biologicamente, um homem transformar-se (ou ser transformado) em mulher ou uma mulher transformar-se (ou ser transformada) em homem. Por conseguinte, não existem nem podem existir pessoas “transsexuais” e qualificar de “transgéneros” as pessoas que negam essa impossibilidade e afirmam ter mudado de sexo não altera esse facto. As demais facetas do movimento woke (luta contra a desigualdade de direitos e a segregação no acesso ao emprego, à educação escolar, à saúde e à habitação com base no sexo, na escolha dos parceiros sexuais e nas características fenotípicas aparentes dos indivíduos impropriamente apelidadas de “raça”) têm um teor benévolo, positivo, nos seus intuitos. Mas também elas padecem de algo semelhante, no plano intelectual, ao “ouvido vertiginoso” pelo contacto permanente em que se encontram com as facetas ideológicas niilistas. A este propósito ver, por exemplo, White Fragility: Why It’s So Hard for White People to Talk About Racism (2018, Beacon Press), de Robin DiAngelo, vs Woke Racism: How a New Religion Has Betrayed Black People (2021, Portfolio), de John McWhorter, ou, em Português, Uma gota de sangue: história do pensamento racial (2009, Contexto), de Demétrio Magnoli.

[5] Veda Fatmy, John Kihn, Jukka Sihvonen. Sami Vähäma, “Why do corporations embrace the LGBTQ+ cause? LSE Business Review, February 23, 2023.

[6] Estes números são os do relatório, Quantification of Reparation for Transatlantic Chattel Slavery, Brattle, June 8, 2022.

[7] Entrevista a João Pedro Marques, “No movimento woke há sentimento de culpa, ingenuidade e fanatismo”. Sol, 20 de Março de 2024.

[8] Emprego aqui “zombi no sentido que lhe deu Emmanuel Todd na sua teoria dos três estádios da religião monoteísta, quer do cristianismo (católico, ortodoxo e protestante), quer do judaísmo e do islamismo: 1) um estádio activo da religião, no qual as pessoas são crentes e praticantes; 2) um estádio zombi da religião, na qual as pessoas já não são crentes e praticantes, mas conservam nos seus hábitos sociais, valores e comportamentos herdados da religião activa precedente, sem terem consciência disso; 3) um estádio zero da religião, no qual os hábitos sociais, valores e comportamentos herdados da religião desapareceram. Conjecturo que neste último caso o espaço ideológico deixado vago pela religião seja, amiúde (mas não necessariamente, bem entendido), ocupado por crenças e doutrinas niilistas entenda-se, baseadas num imperativo de apagamento-censura-e-destruição de monumentos, memórias, livros, factos, pessoas e da própria realidade, de criação do vazio.