Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

30 julho, 2025

 Temas 1 e 2

Para quem irá, desta vez,

o Prémio Nobel da Paz?

José Catarino Soares

1. Introdução

Benjamim Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, propôs Donald Trump, presidente dos EUA, para o prémio Nobel da Paz. Os chefes dos dois Estados mais belicosos e belicistas do planeta, cujas guerras, genocídios (Hiroshima, Nagasaki, Gaza) e assassinatos selectivos fizeram milhões de mortos, feridos e estropiados desde 1947 (para não ir mais atrás no caso dos EUA) zombam do mundo inteiro apresentando-se, respectivamente, como padrinho e campeão mundial da paz.

É uma proposta grotesca, bem ao estilo da Novilíngua em vigor na Oceania (no universo romanesco de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell), onde Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão e Ignorância é Força.  

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Ilustração das quatro gigantescas pirâmides que servem de sedes aos quatro grandes ministérios de Oceania, em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro o “Ministério da Paz” (encarregado da guerra); o “Ministério da Verdade” (encarregado da desinformação e propaganda); o “Ministério da Abundância” (encarregado da produção e do racionamento) e o “Ministério do Amor” (encarregado da tortura). Na extrema-esquerda da gravura, no frontispício do Ministério da Verdade, estão as três palavras de ordem do partido que governa Oceania: “Guerra é Paz”; “Liberdade é escravatura”; “Ignorância é força”. Fonte da gravura: https://waithinktank.com/Project-198


Todavia ‒ temos de o reconhecer ‒ a proposta de Netanyahu não é completamente destituída de sentido, porque a Novilíngua é o idioma favorito do Comité norueguês que atribui o Prémio Nobel da Paz. A razão para tal reside no facto desse comité ter sido, há muitas décadas, capturado por forças que deturparam as intenções do instituidor e financiador do prémio, Alfred Nobel.

Alfred Nobel aos 50 anos (1883)


Desenvolvi esta linha de argumentação aqui: “O pseudoprémio Nobel da Paz — edição de 2022”, in Tertúlia Orwelliana, 17 de Outubro, 2022 

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/10/o-pseudopremio-nobelda-paz-edicao-de.html

Por essa razão, não vou repeti-la aqui. Limitar-me-ei a salientar uma conclusão que dela decorre: não é impossível que Donald Trump venha a ganhar o prémio Nobel da Paz.

Há alguma maneira de impedir que isso aconteça — ou, pelo menos, de dificultar ao máximo que aconteça, tornando a eventual atribuição do prémio a Trump um objecto internacional de irrisão e opróbrio?

Há. Consiste em reforçar a campanha em curso para propor Francesca Albanese como candidata ao Prémio Nobel da Paz.

2. Quem é Francesca Albanese e qual é o seu mandato?

Francesca Albanese foi nomeada relatora especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinianos ocupados desde 1967 pelo Conselho dos Direitos Humanos da ONU na sua 49.ª sessão, em Março de 2022, e assumiu funções a partir de 1 de Maio de 2022.

«Francesca Albanese é bolseira afiliada do Instituto para o Estudo das Migrações Internacionais da Universidade de Georgetown, bem como conselheira sénior em matéria de migração e deslocação forçada de um grupo de reflexão, Arab Renaissance for Democracy and Development (ARDD). Tem publicado amplamente sobre a situação jurídica em Israel e no Estado da Palestina e dá regularmente aulas e palestras sobre direito internacional e deslocações forçadas em universidades na Europa e na região árabe. Trabalhou também como perita em direitos humanos para as Nações Unidas, nomeadamente para o Gabinete do Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos e para a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestin[1].

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O Relator Especial é um perito independente nomeado pelo Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas após um concurso público e encarregado de acompanhar e apresentar relatórios sobre a situação dos direitos humanos nos Territórios Palestinianos Ocupados.

«A tarefa do Relator Especial consiste em avaliar a situação dos direitos humanos nos Territórios Palestinianos Ocupados, apresentar relatórios públicos sobre a mesma e trabalhar com os governos, a sociedade civil e outros para promover a cooperação internacional. O relator especial efectua visitas ou missões regulares aos Territórios Palestinianos Ocupados e apresenta relatórios anuais ao Conselho dos Direitos do Homem. O Gabinete do Alto-Comissário para os Direitos Humanos (GACDH) das Nações Unidas e presta assistência logística e técnica ao titular do mandato.

O mandato do relator especial decorre da resolução de 1993 do Comité dos Direitos do Homem. O mandato convida o relator especial a

― investigar as violações por parte de Israel dos princípios e fundamentos do direito internacional, do direito humanitário internacional e da Convenção de Genebra relativa à Protecção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra, de 12 de Agosto de 1949, nos territórios palestinianos ocupados por Israel desde 1967;

― receber comunicações, ouvir testemunhas e utilizar as modalidades de procedimento que considere necessárias para o seu mandato; e

― apresentar um relatório, com as suas conclusões e recomendações, à Comissão dos Direitos do Homem nas suas futuras sessões, até ao fim da ocupação israelita desses territórios». [2]

3. Desempenho de Francesca Albanese

Francesca Albanese tem tido um desempenho impecável no exercício das suas funções. Em particular, dois dos seus relatórios fizeram história.

Refiro-me ao seu relatório de 1 de Outubro de 2024, intitulado, Genocídio como forma colonial de erradicação. Na sua introdução pode ler-se:

«Em Março de 2024, a Relatora Especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinianos ocupados desde 1967, Francesca Albanese, concluiu que havia motivos razoáveis para crer que Israel tinha cometido actos de genocídio em Gaza. No presente relatório, a Relatora Especial alarga a sua análise da violência cometida contra Gaza após 7 de Outubro de 2023 à Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental. Presta especial atenção à intenção genocida, colocando a situação no contexto de um processo de décadas de expansão territorial e limpeza étnica destinado a eliminar a presença palestiniana na Palestina. A relatora propõe que o genocídio seja visto como parte integrante do objectivo de Israel de colonização total das terras palestinianas, eliminando o maior número possível de palestinianos, e como um meio para atingir esse fim.

O presente relatório baseia-se em investigação e análise jurídicas, entrevistas com vítimas e testemunhas, em especial na Jordânia e no Egipto, informações livremente disponíveis e contributos de peritos e organizações da sociedade civil. A Relatora Especial, a quem continua a ser negado o acesso aos Territórios Palestinianos Ocupados, salienta que Israel não tem o poder de impedir o acesso dos mecanismos de apuramento de factos ao território que ocupa ilegalmente.

A recusa persistente de permitir o acesso aos mecanismos das Nações Unidas e aos investigadores do Tribunal Penal Internacional pode constituir uma obstrução à justiça, desafiando a ordem do Tribunal Internacional de Justiça, que ordenou a Israel que garantisse o acesso à Faixa de Gaza a qualquer comissão internacional de inquérito e que tomasse medidas para assegurar a preservação das provas.

Embora a escala e a natureza do ataque de Israel aos palestinianos variem de região para região, é evidente que a totalidade dos actos de destruição de Israel é dirigida contra todo o povo palestiniano, com o objectivo de conquistar todo o território da Palestina. Os padrões de violência dirigidos contra o grupo no seu conjunto são suficientes para desencadear a aplicação da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (Convenção sobre o Genocídio), a fim de travar, prevenir e punir o genocídio em todo o Território Palestiniano Ocupado» [3].

O seu relatório mais recente (16 Junho de 2025), Da economia de ocupação à economia de genocídio, teve também um grande impacto. Na sua Introdução pode ler-se:

«1. Os empreendimentos coloniais e os genocídios que lhes estão associados têm sido historicamente impulsionados e viabilizados pelo sector empresarial. Os interesses comerciais têm contribuído para a desapropriação de povos e terras indígenas — um modo de dominação conhecido como “capitalismo racista colonial”. O mesmo se aplica à colonização israelita das terras palestinianas, à sua expansão para o território palestiniano ocupado e à institucionalização de um regime de apartheid colonial.

Depois de negar a autodeterminação palestiniana durante décadas, Israel está agora a pôr em perigo a própria existência do povo palestiniano na Palestina.

2. O papel das entidades empresariais na sustentação da ocupação ilegal de Israel e da campanha genocida em curso em Gaza é o tema desta investigação, que se centra na forma como os interesses empresariais sustentam a lógica colonial dos colonos israelitas de deslocação forçada  e substituição destinada a desapossar e erradicar os palestinianos das suas terras.

O estudo aborda entidades empresariais de vários sectores: fabricantes de armas, empresas de tecnologia, empresas de construção civil, indústrias extractivas e de serviços, bancos, fundos de pensões, seguradoras, universidades e instituições de caridade. Estas entidades permitem a negação da autodeterminação e outras violações estruturais nos territórios palestinianos ocupados, incluindo a ocupação, a anexação e os crimes de apartheid e genocídio, bem como uma longa lista de crimes acessórios e violações dos direitos humanos, desde a discriminação, a destruição gratuita, a deslocação forçada e a pilhagem, a execução extrajudicial e a fome.

3. Se tivessem sido feitas as devidas diligências em matéria de direitos humanos, as entidades empresariais há muito que se teriam desvinculado da ocupação israelita. Em vez disso, após o 9 de Outubro de 2023, os actores empresariais contribuíram para a aceleração do processo de deslocação e substituição ao longo da campanha militar que pulverizou Gaza e deslocou o maior número de palestinianos na Cisjordânia desde 1967.

4. Embora seja impossível captar totalmente a escala e a extensão de décadas de conivência empresarial na exploração do território palestiniano ocupado, este relatório expõe a integração das economias da ocupação colonial e do genocídio colonial. Apela à responsabilização das entidades empresariais e dos seus directores executivos, tanto a nível nacional como internacional: os empreendimentos comerciais que permitem e lucram com a destruição da vida de pessoas inocentes devem cessar. As entidades empresariais devem recusar-se a ser cúmplices de violações dos direitos humanos e de crimes internacionais ou devem ser responsabilizadas por isso» [4]

Este relatório de Francesca Albanese valeu-lhe um recrudescimento das ameaças anónimas de morte, dos actos de censura por parte do sistema mediático oligopolista de comunicação social do “Ocidente alargado” e dos actos de hostilidade por parte de governos e deputados da mesma entidade geopolítica — com particular destaque para os EUA, a Alemanha, a França, as Terras Baixas [Holanda], o Reino Unido, a Hungria, a Argentina e, claro está, Israel.

A cereja no topo deste bolo de vitupérios e exorcismos ao estilo Vodu foram as sanções que Donald Trump e o seu governo decidiram impor a Francesca Albanese, as quais poderão incluir o congelamento de contas bancárias, a interdição de entrar nos EUA (onde está a sede da ONU!) e a retirada de imunidade diplomática — tudo medidas ilegais à luz do direito internacional público, para além de ilegítimas e grotescas.

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É bom que se saiba, que, antes como depois destes bramidos e carantonhas para meter medo à corajosa Francesca Albanese, nunca o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse uma palavrinha que fosse (em público ou em privado) de solidariedade e apoio ao seu trabalho. É ela quem o revela aqui [https://www.youtube.com/watch?v=H2UX5wIb3RE&t=26s], quando perguntada sobre o assunto por um jornalista.

O seu último relatório lista 48 empresas e instituições, incluindo a Palantir Technologies Inc., a Lockheed Martin, a Alphabet Inc. (Google), a Amazon, a International Business Machine Corporation (IBM), a Caterpillar Inc., a Microsoft Corporation e o Massachusetts Institute of Technology (MIT), juntamente com bancos e empresas financeiras como a BlackRock e a Vanguard, seguradoras, imobiliárias e instituições de caridade, que, em violação do direito internacional público, estão a ganhar milhares de milhões de dólares com a ocupação e o genocídio dos palestinianos.

As imagens abaixo mencionam algumas dessas empresas, assim como os seus principais accionistas, que participam na economia do genocídio. A fonte de informação é, como já foi dito, o relatório de Francesca Albanese Da economia de ocupação à economia do genocídio (UN Human Rights Council) e o arranjo gráfico é da Al Jazeera. 

Algumas das 48 empresas que participam na economia do genocídio em Gaza nas seguintes áreas (de cima para baixo e da esquerda para a direita): militar, tecnologia, electricidade, expansão dos colonatos israelitas, agricultura e finanças.


Principais accionistas (Blackrock e Vanguard) das empresas que participam na economia do genocídio em Gaza e as percentagens que possuem no capital de cada uma delas


O ataque contra Francesca Albanese reforça a ideia de que o chamado “Ocidente alargado” é um mundo assente na duplicidade de critérios, onde Estados delinquentes, como os EUA e Israel, têm permissão para cometer crimes de guerra e genocídio sem qualquer responsabilização ou restrição. Ele expõe os subterfúgios que as oligarquias dirigentes desses Estados usam para tentar enganar os seus cidadãos e para tentarem manter um semblante de respeitabilidade. Ele revela a sua hipocrisia, a sua crueldade e o seu desprezo pelo direito internacional público de que se autoproclamam os paladinos.

A partir de agora, serão em número cada vez menor os cidadãos que levarão a sério as suas declarações de amor acrisolado pelos direitos humanos e pelo primado da lei. E quem pode culpá-los? Elas escondem mal os actos de força e crueldade extremas, o comportamento de brutamontes, a realidade do morticínio, a intenção do genocídio.

«Os assassinatos, o morticínio em grande escala, a imposição de tortura psicológica e física, a devastação, a criação de condições de vida que não permitem que as pessoas em Gaza possam viver, desde a destruição de hospitais, o deslocamento forçado em massa e a falta de habitação em grande escala, enquanto as pessoas são bombardeadas diariamente e passam fome — como podemos interpretar esses actos isoladamente?», perguntou Francesca Albanese  numa entrevista que lhe foi feita por Chris Edges com base no seu relatório, Genocídio como forma colonial de erradicação.

4. Uma digna candidata ao prémio Nobel da Paz

Destarte, foi em muito boa hora que a organização Avaaz [Port. “Voz”] lançou uma campanha destinada a propor Francesca Albanese e os médicos de Gaza para o Prémio Nobel da Paz.

No momento em que escrevo estas linhas [29 de Julho de 2025, 20h12] já 968.522 pessoas de todo o mundo (entre as quais me incluo) subscreveram  a petição que propõe Francesca Albanese para o Prémio Nobel da Paz.

Ela merece-o, quer consideremos a sua acção e o seu magistério à luz do critério que o comité norueguês do Nobel da Paz adoptou sub-repticiamente (e ainda por cima de um modo venal e inconsistente) para a atribuição desse prémio (“a defesa dos direitos humanos”) -- em desrespeito pela vontade expressa em testamento de Alfred Nobel --, quer os consideremos à luz dessa mesma vontade: a saber, que o prémio Nobel da Paz seja dado

«à pessoa que fez mais ou melhor para fazer progredir a fraternidade entre as nações, a abolição ou a redução dos exércitos permanentes e o estabelecimento e a promoção de congressos da paz.»

Isto foi o que Alfred Nobel deixou escrito no seu testamento [5]. Por outras palavras, o prémio Nobel da paz é um prémio que foi concebido para galardoar quem se distingue na luta contra o militarismo e o belicismo, pela desmilitarização das sociedades, para prevenir ou extinguir as guerras e, acima de tudo, por fazer progredir a fraternidade entre as nações.

É esta última tarefa (mas primeira na hierarquia de objectivos de Alfred Nobel) que Francesca Albanese tem desempenhado com uma coragem, diligência e competência exemplares.

Quem quiser juntar-se à campanha pela nomeação de Francesca Albanese como candidata ao prémio Nobel da Paz de 2025  cujo vencedor ou vencedora será anunciado no próximo dia 10 de Outubro poderá fazê-lo aqui:

https://secure.avaaz.org/campaign/en/stand_with_francesca_loc/?whatsapp

 

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Notas e Referências

[1] Special Rapporteur on the situation of human rights in the Palestinian territories occupied since 1967” [https://www.ohchr.org/en/special-procedures/sr-palestine]

[2] ibidem

[3] https://www.un.org/unispal/document/genocide-as-colonial-erasure-report-francesca-albanese-01oct24/

[4] https://www.un.org/unispal/document/a-hrc-59-23-from-economy-of-occupation-to-economy-of-genocide-report-special-rapporteur-francesca-albanese-palestine-2025/

[5] https://www.nobelprize.org/alfred-nobel/alfred-nobels-will/.

18 julho, 2025

 Temas 1 e 2

A Rússia é o nosso Rorschach

Emanuel Todd

(In Substack, 17-07-2025, tradução de José Catarino Soares [*])

 

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O teste de Rorschach é uma das mais antigas e conhecidas técnicas de psicodiagnóstico projectivo para avaliar certos distúrbios do pensamento e da personalidade.


Em Abril passado, quando fui entrevistado por um canal de televisão russo sobre a russofobia ocidental, tive um lampejo de inspiração. Respondi mais ou menos isto:

«O que vou dizer não será agradável de ouvir, mas a nossa russofobia não tem nada a ver convosco. É uma fantasia, uma patologia das sociedades ocidentais, uma necessidade endógena de imaginar um monstro russo

Pela primeira vez em Moscovo desde 1993, experienciei um choque de normalidade. Os meus indicadores habituais — mortalidade infantil, suicídio e homicídio — mostraram-me, sem sair de Paris, que a Rússia se tinha salvo, após a crise da saída do comunismo [1]. Mas Moscovo, sendo tão normal, estava além de tudo que eu jamais havia imaginado. Tive a intuição de que a russofobia era uma doença.

Essa intuição soluciona todo o tipo de questões. Persisti, por exemplo, em buscar na história as raízes da russofobia inglesa, a mais teimosa de todas. O choque entre os impérios britânico e russo no século XIX parecia justificar tal abordagem. Mas, ainda assim, durante as duas guerras mundiais, a Grã-Bretanha e a Rússia eram aliadas e deviam a sua sobrevivência durante a segunda guerra mundial uma à outra. Então, porquê tanto ódio?

A hipótese geopsiquiátrica fornece-nos uma solução. A sociedade inglesa é a mais russofóbica, simplesmente porque é a mais doente da Europa. Importante agente e principal vítima do ultraliberalismo, a Inglaterra continua a produzir sintomas graves: derrocada universitária e hospitalar, subnutrição dos idosos, sem mencionar Liz Truss, a primeira-ministra britânica de vida mais curta e mais louca, uma alucinação deslumbrante na terra de Disraeli, Gladstone e Churchill. Quem ousaria reduzir a receita dos impostos sem a segurança de uma moeda, não apenas nacional, mas imperial, a moeda de reserva mundial? Trump também faz o que lhe dá na gana com o seu orçamento, mas não está a ameaçar o dólar. Não imediatamente.

Em poucos dias, Truss destronou Macron da parada de êxitos [no original hit-parade, n.d.t.] do absurdo ocidental. Confesso ter [neste particular, n.d.t.] grandes expectativas em relação a Friedrich Merz, cujo potencial belicista antirrusso ameaça a Alemanha com muito mais do que uma derrocada monetária. A destruição das pontes do Reno por mísseis Oreshnik? Apesar da protecção nuclear francesa? Na Europa, todos os dias são Carnaval.

A França está numa situação cada vez pior, com seu sistema político bloqueado, o seu sistema económico e social baseado no crédito bancário, com a sua crescente taxa de mortalidade infantil. Estamos a afundar-nos. E pronto, lá temos uma onda de russofobia. Macron, o Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e o patrão da DGSE [2] acabaram de cantarolar em coro a canção: “França, o inimigo número um da Rússia”. É difícil de acreditar. A nossa insignificância militar e industrial faz da França a menor das preocupações da Rússia, já que ela está suficientemente preocupada com seu confronto global com os Estados Unidos da América.

Este último absurdo macroniano torna essencial o recurso à geopsiquiatria. Um diagnóstico de erotomania é inevitável. A erotomania é aquela condição, predominantemente feminina, mas não exclusivamente, que leva o indivíduo a acreditar que é universalmente desejado sexualmente e ameaçado de penetração por, digamos, todos os homens ao redor. A penetração russa, portanto, ameaça...

Devo confessar que estou cansado de criticar Macron (outros já se encarregam de o fazer, apesar do servilismo jornalístico geral). Felizmente para mim, fomos preparados para o discurso do Presidente em 14 de Julho por algo de novo: as intervenções de dois soldadinhos do regime, Thierry Burkhard (Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas) e Nicolas Lerner (patrão da DGSE). Não sou constitucionalista e não sei se é um bom presságio para a democracia que os gestores do monopólio estatal da violência legítima abram as suas asas nas ondas do rádio, em conferências de imprensa (Burkhard) ou em divagações angustiadas no canal de televisão LCI (Lerner) para definir antecipadamente a política externa da França.

O facto é que a expressão pública e livre de seu discurso russofóbico é um tesouro para o geopsiquiatra. Tirei disso duas lições essenciais sobre o estado de espírito das classes dominantes francesas (essas intervenções foram recebidas como normais pela maioria do mundo político-jornalístico e, portanto, falam-nos da classe que nos dirige).

Vamos ouvir Burkhard primeiro. Vou repetir a transcrição do Le Figaro, com as suas imperfeições óbvias. Não vou tocar em nada. Como é que o nosso Chefe do Estado Maior da Forças Armadas define a Rússia e os russos?

 «É também pela capacidade de resistir da sua população, mesmo que a situação seja complicada. Aqui também, histórica e culturalmente, é um povo capaz de suportar coisas que nos parecem completamente inimagináveis. Este é um aspecto importante para a resistência e a capacidade de apoiar o Estado

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General Thierry Burkhard, Chefe do Estado Maior das Forças Armadas de França

 

Eu traduzo: o patriotismo russo é inimaginável para os nossos militares. Não é sobre a Rússia que ele nos fala, é sobre si mesmo e o seu povo. Ele não sabe, eles não sabem, o que é patriotismo. Graças à fantasia russa, descobrimos porque é que a França perdeu a sua independência, visto que, integrada na OTAN [/NATO], se tornou um procurador [no original, proxy, n.d.t] dos Estados Unidos da América. Os nossos dirigentes já não amam o seu país. Rearmar-se, para eles, não é para a segurança da França, é para servir um império decadente que, depois de ter lançado os ucranianos e depois os israelitas ao assalto do mundo das nações soberanas, se prepara para mobilizar os europeus para continuar a semear a desordem na Eurásia. A França está longe da linha de frente. A nossa missão, se a Alemanha for um Hezbollah, será ser os Houthis do Império.

Passemos a Nicolas Lerner, que se pavoneia na LCI [um canal de televisão francês conhecido pela sua russofobia, n.d.t.]. Este homem parece estar em grande sofrimento intelectual. Descrever a Rússia como uma ameaça existencial à França... A Rússia que tem uma população em declínio, já pequena demais para seus 17 milhões de quilómetros quadrados. Só um doente mental pode acreditar que Putin queira invadir a França. A Rússia de Vladivostok a Brest?

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Nicolas Lerner, chefe da DGSE de França. Foto: Ludovic Marin, AFP


Ainda assim, na sua angústia, Lerner é útil para entendermos a mentalidade das pessoas que nos estão a levar para o abismo. Ele vê a Rússia como sendo imperial lá onde ela é nacional, visceralmente apegada à sua soberania. A Nova Rússia, entre Odessa e Donbass, é simplesmente a Alsácia-Lorena dos russos. Alguém descreveria a França de 1914, pronta para lutar para resistir ao Império Alemão e recuperar a suas províncias perdidas, como imperial? Burkhard não entende o patriotismo. Lerner não entende a nação.

Uma ameaça existencial à França? Sim, claro, eles sentem-na, têm razão, estão à procura dela na Rússia. Mas deveriam estar à procura dela dentro de si mesmos. É uma dupla ameaça.

Ameaça n.º 1: As nossas elites já não amam o seu país.

Ameaça n.º 2: Estão a colocar-se ao serviço de uma potência estrangeira, os Estados Unidos da América, sem nunca levarem em conta os nossos interesses nacionais.

É quando falam da Rússia que os dirigentes franceses, britânicos, alemães ou suecos [“ou portugueses”, poder-se-ia acrescentar sem trair o pensamento de Todd, n.d.t.] nos dizem quem são. A russofobia é certamente uma patologia. Mas a Rússia tornou-se, acima de tudo, um formidável teste projectivo.  A sua imagem assemelha-se às pranchas do teste de Rorschach [3].

 

 O paciente descreve ao psiquiatra o que vê em formas aleatórias e simétricas. Assim, ele projecta elementos ocultos da sua personalidade. A Rússia é o nosso Rorschach.


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Aplicando o teste de Rorschach. Na foto, temos de frente o examinador e de costas o examinando.


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O artigo original encontra-se aqui:

https://substack.com/home/post/p-168540312?source=queue

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Notas e Referências

[*] A leitura dos livros e artigos de Emanuel Todd é sempre muito instigante, mesmo quando se discorda de muitas ou algumas das coisas que diz. É o que acontece com a hipótese “geopsiquiátrica” (o neologismo é dele) que explicaria a russofobia. Estamos aqui num terreno pouco explorado o da mentalidade [mais exactamente, do inconsciente social no modelo teórico de Todd] dos indivíduos e grupos dirigentes das classes dominantes do chamado “Ocidente alargadomas que vale a pena explorar. Por isso, achei que valia a pena traduzir e divulgar este seu artigo (Nota do Tradutor [n.d.t.]).

[1] Emanuel Todd apelida de “comunismo” o modo de produção e o regime político ‒ as duas noções são inextricáveis nos escritos de Todd ‒ vigentes na ex-URSS (vulgo, União Soviética). Mas convém saber que a ex-URSS nunca se definiu como tal (e por boas razões, acrescente-se). O que poderá ter dado azo à falsa caracterização de “comunismo” aplicada à União Soviética, prende-se com uma declaração de Nikita Khrushchev, secretário-geral do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), durante o 22.º congresso do PCUS, em 1961. No seu discurso aos congressistas, Khrushchev afirmou: «Somos guiados estritamente por cálculos científicos. E os cálculos mostram que, em 20 anos [ou seja, até 1981], construiremos no essencial uma sociedade comunista». Em conformidade, o novo programa do PCUS previa que, até 1981, a União Soviética teria alcançado «a tecnologia mais avançada, a maior produtividade do trabalho, o melhor nível de vida» e teria «ultrapassado os países capitalistas em termos de desenvolvimento económico». Nenhuma destas previsões se realizou, se tomarmos como termo de comparação os países capitalistas mais desenvolvidos à época. É verdade que, com o afastamento de Khrushchev do poder e a sua substituição por Brejnev (1962-1982) ‒ seguido de Andropov (1982-1984) e Chernenko (1984-1985) a URSS entrou, de novo, num período de crescimento económico. Todavia, durante esse período, a União Soviética não conseguiu alcançar os objectivos traçados por Khrushchev. Com a chegada ao poder de Gorbachev (1985-1991), esses objectivos foram definitivamente abandonados. Segundo os números do PNUD [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento], a União Soviética estava em 31.º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano em 1990 (https://pt.countryeconomy.com/demografia/idh?year=1990).   

Assim sendo, não podemos acompanhar Emanuel Todd quando ele se refere à «saída [da Rússia] do comunismo», porque não se pode sair de algo que não existia, nem na Rússia, nem na União Soviética, nem em parte nenhuma, tanto em 1991 como actualmente. Então, a Rússia saiu de onde ou de quê, em 1991, quando a União Soviética se dissolveu? Respondi a essa pergunta na 2.ª parte do ensaio, Uma breve panorâmica sobre a obra de Emmanuel Todd, seguida de um comentário crítico sobre um dos seus pontos cegos [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/06/uma-breve-panoramica-sobre-obra-de.html](in Tertúlia Orwelliana, 1 de Junho de 2025)

O “ponto cego” a que o título do ensaio se refere é, precisamente, o conceito de comunismo, que é objecto de uma análise aprofundada no ensaio (n.d.t.). 

[2] DGSE é a sigla de Direction Générale de la Sécurité Extérieure (Direçcão Geral da Segurança Externa). Mais concretamente, a DGSE é a agência estatal responsável pela recolha e análise de informações de importância estratégica para a França, nomeadamente no domínio da defesa e das relações internacionais. Em Portugal, o equivalente à DGSE francesa é o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED). Tal como a DGSE, o SIED actua sem limitação de área geográfica, ao contrário da DGSI (Direction Générale de Sécurité Intérieur) em França e do SIS (Serviço de Informações de Segurança) em Portugal, cuja actuação está limitada ao respectivo território nacional (n.d.t.).

[3] «O objectivo do teste de Rorschach é informar sobre a estrutura de personalidade [da pessoa testada]. Sua aplicação é extensiva tanto para crianças, como para adolescentes e adultos. É composto de dez lâminas ou pranchas que apresentam, cada uma, borrões de tinta de contorno não muito definido e de textura variável, mas com perfeita simetria, tendo como referência um eixo vertical (vide anexo II). Cinco dessas dez lâminas têm manchas em branco e preto. Duas apresentam também a cor vermelha e três outras são policromadas. Na situação de prova, as lâminas são apresentadas ao examinando em ordem determinada pela seqüência de um a dez. A instrução passada ao examinando é a de que ele deve responder a cada uma lâmina, indicando o que a mancha lhe parece, o que lhe sugere, ou o que lhe faz lembrar» (João Maria do Amaral Torres, “O Teste Rorschach na história da avaliação psicológica”. Rev. NUFEN vol.2 n.º.1 São Paulo. Jun. 2010) (n.d.t.).

 

12 julho, 2025

 Temas 1, 2, 3

A ECONOMIA DO GENOCÍDIO

 

José Catarino Soares

 

Francesca Albanese, relatora especial da ONU para a situação na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, acaba de apresentar o seu mais recente relatório (11 Julho 2025), onde caracteriza meticulosamente como Israel e os seus cúmplices (governos, Estados e firmas) passaram «Da economia de ocupação à economia do genocídio.»



Isso valeu-lhe um recrudescimento das ameaças anónimas de morte, dos actos de censura por parte do sistema mediático oligopolista de comunicação social do “Ocidente alargado” e dos actos de hostilidade por parte de governos e deputados da mesma entidade geopolítica — com particular destaque para os EUA, a Alemanha, a França, as Terras Baixas [Holanda], a Hungria, a Argentina e, claro está, Israel.

A cereja no topo deste bolo de vitupérios e exorcismos ao estilo Vodu foram as sanções que Donald Trump e o seu governo decidiram impor a Francesca Albanese, as quais poderão incluir o congelamento de contas bancárias, a interdição de entrar nos EUA (onde está a sede da ONU!) e a retirada de imunidade diplomática — tudo medidas ilegais à luz do direito internacional público, para além de ilegítimas e grotescas.

É bom que se saiba, que, antes como depois destes bramidos e carantonhas para meter medo à corajosa Francesca Albanese, nunca o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse uma palavrinha que fosse (em público ou em privado) de solidariedade e apoio ao seu trabalho. É ela quem o revela aqui [https://www.youtube.com/watch?v=H2UX5wIb3RE&t=26s], quando perguntada sobre o assunto por um jornalista.

As imagens abaixo mencionam as firmas principais, assim como os seus principais accionistas, que participam na economia do genocídio. A fonte de informação é o relatório de Francesca Albanese «Da economia de ocupação à economia do genocídio» (UN Human Rights Council) e o arranjo gráfico é da Al- Jazeera. 

As principais firmas que participam no economia dos genocídio em Gaza


 

Os principais accionistas das firmas que participam na economia do genocídio em Gaza

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P.S. Já depois de ter escrito este texto, recebi um apelo para uma campanha destinada a propor Francesca Albanese e os médicos de Gaza para o Prémio Nobel da Paz.

Subscrevi sem qualquer hesitação esta proposta (ver abaixo) -- embora ache que o argumento avançado para a fundamentar [a parte que coloquei entre “aspas” na tradução] não é o melhor) -- não só porque Francesca Albanese e os médicos de Gaza merecem essa distinção, mas também porque há muito tempo que nenhum dos galardoados com o Prémio Nobel da Paz merece esse galardão honorífico.

Desenvolvi este último argumento aqui: O pseudoprémio Nobel da Paz — edição de 2022, in Tertúlia Orwelliana, 17 de Outubro, 2022 

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/10/o-pseudopremio-nobelda-paz-edicao-de.html


Uma imagem com Cara humana, pessoa, óculos de sol, vestuário

Os conteúdos gerados por IA podem estar incorretos.
Hi! I just signed this campaign in support of a Nobel Peace Prize for Francesca Albanese, the UN Special Rapporteur for the West Bank and Gaza, and Gaza doctors. They have been fierce voices urging action on human rights abuses! Can you sign and share as well? Thank you 🙏


[Olá! Acabei de subscrever esta campanha de apoio ao Prémio Nobel da Paz para Francesca Albanese (a Relatora Especial da ONU para a Cisjordânia e Gaza) e para os médicos de Gaza. Eles têm sido vozes veementes que apelam à acção “contra as violações dos direitos humanos”! Queres assinar este apelo e também divulgá-lo? Obrigado 🙏]

https://secure.avaaz.org/campaign/en/stand_with_francesca_loc/?whatsapp