Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

08 agosto, 2025

 

Governar por meio das Fake News [*]

Jacques Baud

4.º Capítulo.  O Irão 

(tradução de Fernando Oliveira)


Parte II




A Parte I deste artigo está aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/08/governacao-engenharia-do-consentimento.html

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3.1. O contexto e os atentados de 23 de Outubro de 1983

A principal razão para associar o Irão ao terrorismo internacional é o seu apoio ao Hezbollah libanês, mas estas acusações são alimentadas mais pela nossa ignorância do que por factos concretos.

Foi a intervenção israelita de 1982 que levou à criação do Hezbollah. Após a guerra de 1967 e os acontecimentos de Setembro de 1970 na Jordânia, cerca de 300 000 refugiados palestinianos estabeleceram-se no sul do Líbano. Esta presença desestabilizou a economia local e afectou a população xiita, que vivia em paz com o vizinho israelita. O estabelecimento do comando da OLP em Beirute e as frequentes incursões dos Fedayeen na fronteira libanesa levaram Israel a intervir no Líbano em Junho de 1982. O alvo da Operação PAZ NA GALILEIA foi a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat.

A população xiita libanesa acolhe os israelitas com entusiamo e «uma chuva de grãos de arroz[i]». Mas em vez de se apoiar nesta população e nas dissensões intra-árabes para combater a OLP, os israelitas combatem indiscriminadamente xiitas libaneses e sunitas palestinianos, criando rapidamente uma unanimidade contra si. Os serviços secretos israelitas não compreendem a situação e as tropas são apanhadas numa espiral de violência[ii]. Daqui resulta uma reacção negativa da comunidade judaica americana, que ameaça deixar de apoiar a política israelita[iii].

Des pompiers et un sauveteur dans la rue des Rosiers après l’attentat ayant visé le restaurant de charcuterie Jo Goldenberg, à Paris, le 9 août 1982.
Bombeiros e um socorrista na Rue des Rosiers após o atentado que visou o restaurante e charcutaria Jo Goldenberg em Paris, a 9 de Agosto de 1982.Foto: JACQUES DEMARTHON /AFP


É neste ponto que – segundo fontes de serviços de informações – ocorre o atentado da Rue des Rosiers em Paris (9 de Agosto de 1982), operação especial destinada a gerar um sentimento de unidade à volta da política israelita.

Em Setembro de 1982, na sequência dos acordos de cessar-fogo entre Israel e a OLP, foi destacada para Beirute uma Força Multinacional de Segurança (MNF), com base na Resolução 521 do Conselho de Segurança, que previa a ajuda ao governo libanês para proteger a população. No ano seguinte, as forças americanas foram alvo de uma série de escaramuças atribuídas a comandos israelitas[iv]. A 18 de Abril de 1983, um atentado à bomba contra a embaixada americana em Beirute reivindicado pela Organização da Jihad Islâmica (ODI) provoca 63 vítimas.

Em 23 de Outubro de 1983, dois atentados atingiram a Força Multinacional de Segurança (MNF) em Beirute: o primeiro matou 241 pessoas no quartel-general dos US Marines e o segundo, dois minutos depois, destruiu o «Drakkar» [Nota do tradutor: edifício de oito andares na cidade de Beirute], matando 58 pára-quedistas franceses.

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Atentado contra o quartel dos Marines

Attentat du Drakkar : 58 paras de Pamiers tués au Liban il y a 30 ans -  ladepeche.fr
Atentado do Drakkar




Foram avançados vários motivos, incluindo o facto de a França ter entregado aviões Super-Étendard ao Iraque alguns dias antes. A linha oficial culpa o Hezbollah e faz dos ocidentais as vítimas do terrorismo iraniano. Mas isso é falso: o Irão está muito longe do Líbano e as razões residem na forma como o Ocidente interpreta o seu mandato. Um assunto delicado…A MNF era uma força de segurança, que devia ser imparcial, mas os ocidentais não o eram. A França efectua patrulhas conjuntas com o exército libanês: embora não participe em operações de combate, torna-se protagonista do conflito[v].

Quanto aos americanos, a sua presença é ambígua. Antes de mais, importa recordar que a legislação americana proíbe os militares americanos de obedecerem a qualquer autoridade que não seja a do Presidente dos Estados Unidos. O resultado é que, sempre que uma força americana faz parte de uma estrutura multinacional, surgem estruturas de liderança híbridas. No Líbano, em simultâneo com a participação na MNF (sob mandato da ONU), as forças americanas apoiavam o Exército Libanês. Em Abril de 1983, sem grande consulta no seio da Administração, Robert Mcfarlane, Representante Especial do Presidente para o Médio Oriente, ordenou que o navio de guerra USS New Jersey fosse destacado ao largo da costa do Líbano para bombardear aldeias libanesas ocupadas pela oposição – causando cerca de um milhar de vítimas civis e inocentes. Foi este o motivo do atentado de retaliação de 23 de Outubro. Com uma ingenuidade tipicamente americana, o comando americano tinha-se abstido de elevar o nível de alerta do seu contingente da MNF, a fim de sublinhar que nada tinham a ver com as forças americana que combatiam noutros locais do Líbano[vi], subtileza jurídica que os terroristas claramente não entenderam. Os americanos vão cometer exactamente o mesmo erro em Mogadíscio, na Somália, dez anos mais tarde, e no Afeganistão, trinta anos mais tarde.

Apesar de a Itália ter fornecido armas ao Iraque durante a guerra[vii], o seu contingente, colocado entre os americanos e os franceses, manteve-se no seu papel inicial e não foi visado por qualquer atentado. Victor Ostrovsky, ex-agente da Mossad, revelará mais tarde que os israelitas estavam ao corrente deste atentado, mas não o comunicaram aos americanos para que estes se envolvessem no conflito[viii].

Os dois atentados são imediatamente atribuídos ao ODI (como o atentado de Abril), mas são reivindicados pelo Movimento da Revolução Islâmica Livre (MRIL)[ix], desconhecido até à data. Os americanos associam-no ao Irão, mas não têm provas: é o inimigo da moda. Foi só mais tarde, para atribuir a culpa a uma entidade conhecida, que Israel e vários países ocidentais, incluindo os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, acusaram o Hezbollah, afirmando que este fora fundado em 1982.

Na realidade o Hezbollah não existe em 1983[x] e as publicações sobre terrorismo dos anos 1982-1984 não o referenciam[xi]. É por isso que, à excepção de um punhado de países ocidentais que alinham a sua política externa com Washington – e, portanto, com Israel –, a maioria dos países não a considera uma organização terrorista. A sua criação foi marcada pelo estabelecimento de uma Carta em 16 de Fevereiro de 1985[xii], no momento em que Israel terminava a primeira fase da sua retirada do Líbano[xiii]. Antes desta data, nenhum grupo armado libanês se referia ou se definia em relação ao Partido de Deus (Hezbollah). O principal grupo de resistência xiita na altura era o ODI, uma entidade vaga cujos contornos nunca foram definidos com precisão, um pouco como a «Al-Qaeda» vinte anos mais tarde. A antecipação da criação do Hezbollah permitiu associar indivíduos suspeitos de estarem ligados ao ODI, tais como Imad Mougnieh[xiv], a uma estrutura identificável. Os juristas americanos irão utilizar o mesmo artifício vinte anos mais tarde com a «Al-Qaeda», de modo a poderem utilizar a legislação nacional. Voltaremos a este assunto mais tarde.

Em Setembro de 2001, Caspar Weinberger, Secretário da Defesa em 1983, afirmou numa entrevista:

(…) Continuamos sem saber quem perpetrou o atentado à bomba contra o quartel dos Marines no aeroporto de Beirute, e tão pouco o sabíamos nessa altura[xv].

Em 2009, o Presidente Obama foi criticado por não ter mencionado o Hezbollah durante as comemorações do atentado[xvi], mas a razão dessa «omissão» é muito simples: até hoje, ninguém sabe exactamente quem o cometeu. /…/

4. «O general Qasem Soleimani preparava ataques iminentes contra os Estados Unidos»[xvii]

4.1. O assassinato

O assassinato do general Soleimani foi motivado pela reivindicação de Donald Trump em relação à autoridade americana sobre o petróleo iraquiano, em troca de investimentos no país! Para pressionar o Iraque, Trump ofereceu ao primeiro-ministro Adil Abdul-Mahdi a possibilidade de concluir a reconstrução das infra-estruturas do país em troca de 50% do petróleo iraquiano. Mas Abdul-Mahdi recusou, preferindo assinar um acordo com a China em Setembro de 2019. Trump pediu-lhe então que cancelasse o acordo, sem o que ameaçava provocar manifestações populares para derrubar o regime; ameaçou mesmo utilizar atiradores dos US Marines para abater manifestantes e assim agravar a situação[xviii]. Verdade ou não, o facto é que, em Outubro de 2019, eclodiram manifestações violentas em Bagdade, com 63% dos apelos provenientes da Arábia Saudita, 5% dos Emirados, 2% da Alemanha e 1% da Suíça[xix], criando um clima explosivo no país.

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General Qasem Soleimani

 

A faísca surgiu em 27 de Dezembro de 2019: foguetes FAJR-1 de 107 mm de fabrico iraniano atingiram a base militar K-1 em Kirkuk, onde se encontravam unidades iraquianas e americanas dedicadas à luta contra o Estado Islâmico, tendo morrido um mercenário americano. Os autores do ataque não são conhecidos, mas os Estados Unidos atribuem-no imediatamente às Kataeb Hezbollah (Falanges do Hezbollah), uma organização xiita iraquiana (sem ligações ao Hezbollah libanês), representada no parlamento iraquiano e que tinha combatido o Estado Islâmico com os curdos. O Presidente americano acusou o Irão e os Guardas da Revolução e, em 29 de Dezembro, foram lançados ataques de retaliação na Síria e contra uma base militar pertencente ao seu aliado iraquiano, que albergava soldados iraquianos e tropas das Kataeb[xx]. Estes ataques provocaram motins que culminaram na intrusão na embaixada americana de Bagdade, a 31 de Dezembro, dando a Trump um pretexto para abater Qasem Soleimani a 3 de Janeiro de 2020.

Em Fevereiro de 2020, o New York Times revelou que a decisão americana não fora objecto de qualquer consulta aos serviços secretos iraquianos, baseando-se apenas na identificação dos foguetes utilizados como tendo origem iraniana. Mas, de facto, o Irão tinha fornecido foguetes ao Iraque para combater o Estado Islâmico, e sabe-se que um certo número fora roubado dos depósitos do exército iraquiano. Além disso, as provas materiais encontradas após o incidente de 27 de Dezembro mostram que os tiros foram disparados pelo Estado Islâmico[xxi].

Em 3 de Janeiro de 2020, o major-general iraniano Qasem Soleimani foi eliminado em Bagdade por ordem de Donald Trump, que o acusou de preparar operações contra 4 embaixadas americanas no Médio Oriente: uma «ameaça iminente» tendo as informações sido fornecidas por Israel[xxii]. Na verdade, a decisão de Trump baseou-se em três elementos[xxiii]: as visitas de Soleimani às milícias xiitas na Síria e no Iraque; uma comunicação desconhecida ao Presidente iraniano, que poderia muito bem ter sido um pedido de licença; e a situação tensa em Bagdade, onde um mercenário americano fora morto num motim. A ideia do assassinato partiu de Richard Goldberg, membro do Conselho Nacional de Segurança e – ao mesmo tempo – conselheiro da Fundação para a Defesa da Democracia (FDD)[xxiv], uma entidade financiada pelo governo israelita.

Simultaneamente, os americanos procuram abater Abdoul Reza Shahlai, dirigente Huti, no Iémen, mas falharam[xxv]. Esta tentativa tende a desacreditar a justificação de uma «ameaça iminente». Manifestamente, a equipa presidencial joga com os factos, como comprova a sua recusa de fornecer ao Congresso elementos justificativos[xxvi]. O Vice-presidente Mike Pence chega mesmo a afirmar que Soleimani ajudara os terroristas a preparar o «11 de Setembro»[xxvii], dando voz a uma lenda que os americanos adoram: o envolvimento do Irão. No entanto, o relatório da Comissão Parlamentar sobre o 11 de Setembro refere que não há qualquer indicação de que o Irão estivesse envolvido:

(…) existem provas sólidas de que o Irão facilitou a passagem de membros da Al-Qaeda de e para o Afeganistão antes do 11 de Setembro (…) Não encontrámos qualquer prova de que o Irão ou o Hezbollah estivessem ao corrente do planeamento do que viria a ser o ataque do 11 de Setembro[xxviii].

É evidente que lhe pode ser imputado o mesmo erro que à Alemanha, muito abaixo da responsabilidade dos próprios Estados Unidos (que sabiam, mas não agiram!). Para além disso, o relatório não menciona Soleimani uma única vez.

Portanto, como de costume, Trump, Pompeo e Pence mentem tentando justificar uma acção que é ilegal à luz da legislação americana. A Ordem Executiva 12333, assinada pelo Presidente Ronald Reagan em 1981[xxix], define os papéis e as missões da comunidade de serviços secretos dos EUA e estipula que «nenhuma pessoa empregada ou actuando em nome do Governo dos Estados Unidos se envolverá, ou conspirará para se envolver, em assassinatos», o que formaliza assim uma política já estabelecida pelo Presidente Gerald Ford em 1976.

Os meios de comunicação anglo-saxónicos – de todos os quadrantes – questionaram a noção de «ameaça iminente» que justificava o assassinato, porque esta desmoronava-se a cada dia que passava[xxx]. A 12 de Janeiro, o Secretário da Defesa, Mark Esper, declarou ao canal CBS que não tinha visto qualquer informação sobre essas ameaças[xxxi], tal como a administração do Departamento de Estado[xxxii]. Quando questionado na France 24 sobre o envolvimento de Israel na operação, o porta-voz do exército israelita, tenente-coronel Jonathan Conricus, optou pela via mais fácil, afirmando que a operação fora chefiada pelos Estados Unidos e que Israel não fazia parte dela. Esta é apenas uma parte da verdade, porque a informação sobre a «ameaça iminente» veio de Israel[xxxiii]. E a 13 de Janeiro, Mike Pompeo confessa:

Qasem Soleimani planeou uma série de ataques iminentes, embora não saibamos quando ou onde exatamente, mas planeou[xxxiv].

No mesmo dia, Donald Trump confessou que o problema não era a «ameaça iminente», mas sim o «passado horrível[xxxv]» do general!

Estava a referir-se à sua alegada responsabilidade pela morte de 600 soldados americanos no Iraque desde 2003. Esta acusação é difundida em França por meios de comunicação pró-israelitas, como Dreuz.info[xxxvi], mas é falsa: o porta-voz do Pentágono confessa que «não dispõe de estudos, documentação ou dados para disponibilizar aos jornalistas que possam confirmar estes números[xxxvii]». Sem confirmação, o número 600 não foi originalmente atribuído a Soleimani, mas ao Irão[xxxviii]. O que também é uma mentira: teve origem em Janeiro de 2007, quando o Vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, procurava pretextos para atacar o Irão. Após a recusa unânime e categórica dos generais do Joint Chiefs of Staff [Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas] em atacar as capacidades nucleares iranianas sobre as quais não havia qualquer informação[xxxix], Cheney afirmou que o Irão tinha fornecido minas direcionais anti-carro (responsáveis pelas mortes em causa)[xl]. Nova mentira: os engenhos foram fabricados no Iraque[xli], com material comprado nos Emirados Árabes Unidos, como confirma a muito insuspeita Janes Intelligence Review[xlii].

Em França, os meios de comunicação dividem-se entre o ódio a Donald Trump e o apoio cego à sua política para o Médio Oriente, mas a mensagem do Governo Trump é transmitida de forma bastante subserviente. No programa «C dans l’air» de 3 de Janeiro, o jornalista François Clemenceau disse que o General Soleimani é [uma] «figura central que tem estado constantemente a confrontar os Estados Unidos há muito tempo, não só desde o início da guerra no Iraque em 2003, mas mesmo antes disso[xliii]O que ele fez foi retransmitir um tweet de Trump[xliv], mas isto é desinformação. O Irão não só apoiou os Estados Unidos no Afeganistão, tirando partido das suas boas relações com a comunidade Hazara, como também os ajudou durante a revolta de Herat em 2001:

As equipas de operações especiais americanas eram constituídas pelos US Army Rangers e pela Força Delta, sob o comando do general Tommy Franks do CENTCOM. As forças iranianas eram constituídas por agentes da Força Al-Quds sob o comando do major-general Yahya Rahim Safavi, Comandante dos Guardas da Revolução, e do major-general Qasem Soleimani, Comandante da Força Al-Quds do Irão[xlv].

O Courrier International faz mesmo o título com «Boa solução»[xlvi], sem felicitar nem culpar os americanos. Ironicamente, é também esta a posição adoptada pelo EI na sua revista de propaganda Al-Nabd[xlvii]!... Em 2015, o Irão apoiou a coligação internacional no Iraque na sua luta contra o EI. Na reconquista da cidade de Tikrit, as forças apoiadas pelo Irão beneficiaram mesmo de apoio aéreo americano, tendo a revista Newsweek citado o general Dempsey:

(…) sem a ajuda iraniana e os conselhos de Soleimani, a ofensiva sobre Tikrit não teria sido possível[xlviii].

O papel do Irão está imerso numa atmosfera de distorção dos factos, em linha com a retórica israelita. Por exemplo, France 5 afirma que, no Verão de 2006, o General Soleimani «combateu ao lado do Hezbollah[xlix]» contra Israel, o que não é verdade. Soleimani esteve no Líbano durante alguns dias como observador[l], o que não é incongruente tendo em conta os ataques regulares de Israel fora das suas fronteiras, mas não tomou parte nos combates (nem é claro por que razão o teria feito). Circulam listas de «crimes» de Soleimani[li], mas não passam de um conjunto de rumores.

Soleimani foi eliminado com Abou Mahdi al-Mohandes, apresentado pela France 24 como «lugar-tenente» de Soleimani no Iraque[lii]. Na realidade, ele não tinha qualquer ligação orgânica com os Guardas da Revolução Iraniana, mas era o chefe das Unidades de Mobilização Popular (PMU) iraquianas. As PMU foram criadas para colmatar as falhas do exército iraquiano na luta contra o Estado Islâmico no norte do país. Classificadas como «milícias pró-iranianas» pela imprensa ocidental, o seu carácter iraquiano é minimizado[liii], mas reflectem a composição do país na medida em que incluem uma maioria de xiitas, com sunitas, turcomanos, curdos e iazidis.

De facto, em 5 de Janeiro de 2020, durante os debates no Parlamento iraquiano sobre a manutenção da presença militar estrangeira, Adil Abdul-Mahdi, primeiro-ministro iraquiano, revelou que Soleimani estava numa missão diplomática de paz: deveriam ter um encontro a 3 de Janeiro para transmitir a resposta do Irão tendo em vista um abrandamento das tensões com a Arábia Saudita, negociado pelo Iraque. Foi por essa razão que Soleimani se dirigiu a Bagdade num voo regular e passou pela imigração com o seu passaporte diplomático, o que torna bastante improvável a ideia de que estivesse a preparar uma acção clandestina. Na verdade, é muito provável que os serviços americanos estivessem a par desta iniciativa de paz e opunham-se a essa eliminação, o que explicaria por que razão o comunicado do Pentágono de 2 de Janeiro enfatiza a origem presidencial da decisão[liv]. Mas nenhum meio de comunicação tradicional deu conta desta informação.

Em 6 de Janeiro, de forma bastante decepcionante, a declaração conjunta de Alemanha, França e Grã-Bretanha (signatárias do JCPOA) menciona «o papel negativo» do Irão no Médio Oriente, mas não o assassinato[lv]. Além disso, a França não condena o assassinato de um emissário em missão diplomática, mas apenas a reacção iraniana[lvi]. Em Julho de 2020, a ONU condenará este ataque, qualificado como injustificado e ilegal[lvii]. No que diz respeito ao Médio Oriente, verifica-se que os meios de comunicação tradicionais tendem a seguir uma linha bastante favorável a Trump, ao arrepio dos valores e do respeito pelo direito internacional que dizem professar.

Independentemente do que se pense do general Soleimani, o problema aqui é que se aceita o princípio de que «os fins justificam os meios»: é exactamente o mesmo raciocínio dos terroristas do Estado Islâmico e choca contra os «valores» que pretendemos defender. Além disso, os únicos que realmente se alegraram com este assassinato – além dos americanos e israelitas, o que não é muito surpreendente – são os jihadistas do enclave de Idlib, na Síria[lviii], e do Estado Islâmico[lix]. A página da Internet do ministério paquistanês da Defesa refere mesmo que esta eliminação poderia conduzir a um renascimento do Estado Islâmico[lx]! Como de costume, os dirigentes ocidentais privilegiam políticas baseadas em acções tão pouco ponderadas e espectaculares quanto inúteis. /…/

5. Conclusões sobre a ameaça iraniana

A ameaça iraniana é artificial. Alimentada por um sentimento profundo de vingança por parte dos americanos, que não conseguiram antecipar a revolução de 1979, tem agora um único objetivo: fracturar o eixo Teerão-Damasco [Nota do tradutor: fractura concretizada com a tomada do poder na Síria pelos terroristas islâmicos do Hayat Tahrir al-Sham, em finais de 2024], criado pela intervenção americano-britânica no Iraque e que assusta as monarquias do Golfo. Quanto à ameaça contra Israel, é igualmente artificial e não tem qualquer fundamento histórico. Em contrapartida, alimenta um discurso musculado de ambos os lados, destinado a criar uma unidade nacional para fins de política interna. Neste contexto, a instabilidade regional serve Benjamin Netanyahu, que se esforça por reunir uma maioria a seu favor para as eleições de 2019-2020. É por isso que lança repetidas provocações contra os seus vizinhos, a Palestina, a Síria e o Irão[lxi].

O Ocidente nunca compreendeu o Irão e o funcionamento do Médio Oriente: as suas políticas só tiveram efeito contrário aos objectivos que pretendiam alcançar. As sanções e acções clandestinas, directas ou indirectas, com o apoio de grupos terroristas, apenas serviram para que a população cerrasse fileiras. Com uma população iraniana muito pró-ocidental, uma mudança de regime poderia ser efectuada quase de imediato, aliviando todas as sanções que pesam sobre o país e encorajando a sua prosperidade... Mas o Ocidente está demasiado preso aos seus preconceitos. Em Maio de 2019, no decurso de uma visita a Bagdade, Ali Khamenei, Dirigente Supremo da Revolução, afirmou:

Graças a Deus por nos ter concedido inimigos tão estúpidos[lxii]!

Ali Khamenei
O dirigente supremo do Irão, Ayatollah Ali Khamenei


/…/



Notas e Referências


[*] Conservei a expressão Fake News [notícias fraudulentas] porque faz parte do título original do livro de Jacques Baud (em francês): Gouverner par les Fake NewsNota do Tradutor.

[i] Greg Myre, «Israelis in a Shiite Land: Hard Lessons From Lebanon», The New York Times, 27 de Abril de 2003

[ii] Ronen Bergman, The Secret War with Iran, Oneworld, Oxford, 2008 (p. 58)

[iii] Dov Waxman, Trouble in the Tribe: The American Jewish Conflict over Israël, Princeton University Press, 2016 (pp. 316)

[iv] Donald Neff, «Israël Charged with Systematic Harassment of U.S. Marines», Washington Report on Middle East Affairs, Março de 1995, pp. 79-81.

[v] Alain Brouillet, « La seconde force multinationale à Beyrouth (24 de Setembro de 1982-31 de Março de 1984) », Annuaire français de droit international, volume 31, 1985. pp. 115-166

[vi] Nir Rosen, «Lesson Unlearned », Foreign Policy, 29 de Outubro de 2009 (http://foreignpolicy. com/2009/10/29/lesson-unlearned/).

[vii] «La prima guerra del golfo: Iran-Iraq (1980-1988)», archivio900.it, 8 de Agosto de 2006

[viii] Ostrovsky, Victor & Claire Hoy, By Way of Deception, New York, St. Martin's Press, 1990, p. 321.

[ix] Jornal televisivo das 20 horas, Antenne 2, 23 de Outubro de 1983; William E. Farrell, "Unanswered Question: Who Was Responsible?", The New York Times, 25 de Outubro de 1983

[x] Nir Rosen, "Lesson Unlearned", Foreign Policy, 29 de Outubro de 2009

[xi] Ver, por exemplo, Samuel M. Katz & Lee E. Russell, Armies in Lebanon 1982-84, Osprey Publishing Ltd, Londres, 1985

[xii]  https://www.cia.gov/library/readingroom/docs/DOC_0000361273.pdf; Jonathan Masters & Zachary Laub, «Hezbollah», Council on Foreign Relations, 3 de Janeiro de 2014; «Profile: Lebanon's Hezbollah movement», BBC News, 15 de Março de 2016

[xiii] Jean-Jacques Mevel, « L’UE place le Hezbollah sur la liste noire du terrorisme », lefigaro.fr, 22 de Julho de 2013

[xiv] Será misteriosamente assassinado em Damasco em 2008, provavelmente por um israelita.

[xv] Frontline - Target America, Entrevista de Caspar Weinberger, (http://www.pbs.org/ wgbh/pages/frontline/shows/target/interviews/weinberger.html) (consultado no dia 16 de Agosto de 2019)

[xvi] http://archive.defense.gov/home/features/2008/1008_beirut/

[xvii] Veronica Stracqualursi & Jennifer Hansler, «Pompeo: Strike on Soleimani disrupted an 'imminent attack' and 'saved American lives'», CNN, 3 de Janeiro de 2020

[xviii] Discurso de Adil Abdul-Mahdi perante o Parlamento iraquiano, 5 de Janeiro de 2020.

[xix] https://twitter.com/aseyedp/status/1179852662449135616

[xx] Julian E. Barnes, «U.S. Launches Airstrikes on Iranian-Backed Forces in Iraq and Syria», The New York Times, 29 de Dezembro de 2019

[xxi] Alissa J. Rubin, «Was U.S. Wrong About Attack That Nearly Started a War With Iran? », The New York Times, 6 de Fevereiro de 2020

[xxii] «Pompeo, Netanyahu discuss Iran's 'malign influence after Soleimani strike», The Times of Israël, 4 de Janeiro de 2020

[xxiii] https:/ /twitter.com/rcallimachi/status/1213421769777909761

[xxiv] www.fdd.org/ analysis/2020/01/02/u-s-kills-irans-qods-force-commander-and-iraqs-deputy­-leader-in-strike-in-baghdad

[xxv] Eric Schmitt, Edward Wong & Julian E. Barnes, «U.S. Unsuccessfully Tried Killing a Second Iranian Military Official», The New York Times, 10 de Janeiro de 2020

[xxvi] Rebecca Klar, «Esper: Gang of 8 'did not think' further intelligence on Iranian threat should be with Congress», The Hill, 12 de Janeiro de 2020

[xxvii] Steve Benen, «Why Pence's falsehood about Soleimani and 9/11 matters», MSNBC News, 6 de Janeiro de 2020

[xxviii] The 9/11 Commission Report (Authorized Edition), Norton & Company, Nova Iorque, 22 de Julho de 2004, p. 241

[xxix] Executive Order 12333 - United States Intelligence Activities (As Amended by Executive Orders 13284 (2003), 13355 (2004) and 13470 (2008), 4 de Dezembro de 1981, número 2.11 (www.cia.gov/about­cia/eo12333.html)

[xxx] Aaron Blake, «Trump's 'four embassies' claim utterly falls apart», MSN News, 13 de Janeiro de 2020

[xxxi] Valerie Volcovici, «Pentagon chief says no specific evidence Iran was plotting to attack four U.S embassies», Reuters, 12 de Janeiro do 2020; Robert Burns, «Defense Secretary Mark Esper Says He 'Didn't See' Evidence That 4 U.S. Embassies Were Under Threat From Iran», Time/AP, 12 de Janeiro de 2020; Peter Baker & Thomas Gibbons-Neff, «Esper Says He Saw No Evidence Iran Targeted 4 Embassies, as Story Shifts Again», The New York Times, 12 de Janeiro de 2020.

[xxxii] Sonam Sheth, «Stace Department was reportedly unaware of an 'imminent threat' to 4 US embassies, blowing a hole through Trump's claims», Business Insider, 13 de Janeiro de 2020

[xxxiii] «Israeli intel helped US carry out strike that killed Iran's Soleimani - report», The Times of Israël, 12 de Janeiro de 2020

[xxxiv] Mike Pompeo a Laura Ingraham, FOX News, 9 de Janeiro de 2020

[xxxv] https://tiwitter.com/realDonaldTrump/status/1216754098382524422

[xxxvi] « Report : Iran Killed 600 U.S. Soldiers in the Iraq War », The National Interest, 3 de Abril de 2019 ; Jean-Patrick Grumberg, « Plus important que Ben Laden et Baghdadi, le chef militaire iranien Qasem Soleimani a ete éliminé », dreuz.info, 3 de Janeiro de 2020

[xxxvii] Gareth Porter, «Lies About Iran Killing US Troops in Iraq Are a Ploy to Justify War», Truthaut.org, 9 de Julho de 2019

[xxxviii] Kyle Rempfer, «Iran killed more US troops in Iraq than previously known, Pentagon says», Military Times, 4 de Abril de 2019

[xxxix] Gareth Porter, «Military Resistance Forced Shift on Iran Strike», Inter Press Service News Agency, 18 de Outubro de 2007

[xl] NdA: na realidade são dispositivos anticarro com projécteis formados por explosão (em inglês, Explosive Formed Penetrators ou EFP) concebidos para penetrarem as blindagens mais espessas dos veículos militares

[xli] Gareth Porter, «U.S. Military Ignored Evidence of Iraqi-Made EFPs», Inter Press Service News Agency, 25 de Outubro de 2007

[xlii] Michael Knights, «Struggle for Control», Jane's Intelligence Review, Janeiro de 2007, pp 18-23

[xliii] François Clemenceau clans l'émission « C clans l’air », « Trump/Iran : la guerre est-elle déclarée ? #cdanslair 03.01.2019», France5/YouTube, 4 de Janeiro de 2020, (06'16")

[xliv] https://twitter.com/ realDonaldTrump/stams/1213096352072294401

[xlv] Wikipedia, página «2001 uprising in Herat»

[xlvi] « Bete noire. La mort de Soleimani vue du Golfe : bon debarras », Courrier international, 3 de Janeiro de 2020

[xlvii] https:/ /twitter.com/Minalami/status/1215558269588201472

[xlviii] Jack Moore, «Iranian Military Mastermind Leading Battle to Recapture Tikrit from ISIS», Newsweek, 5 de Março de 2015

[xlix] « Crash du Boeing 737: l'Iran accusé #cdanslair 10.01.2019», France5/YouTube, 11 de Janeiro de 2020 (48'48")

[l] « Shadowy Iran commander gives interview on 2006 Israël-Hezbollah war », France24.com, 10 de Janeiro de 2019

[li] Jean-Patrick Grumberg, « La liste terrifiante des activités terroristes et criminelles de Qassem Soleimani », dreuz.info, 7 de Janeiro de 2020

[lii] Jornal das 12h30, France 24, 24 de Janeiro de 2020

[liii] Wikipedia, artigo «Hachd al-Chaabi»

[liv] Statement by the Department of Defense, 2 de Janeiro de 2020, (www.defense.gov/Newsroom/ Releases/Release/Article/2049534/statement-by-the-department-of-defense/)

[lv] Declaração conjunta do Presidente da República Francesa, da Chancelaria Federal da Alemanha, do primeiro-ministro do Reino Unido, Elysee.fr, 6 de Janeiro de 2020

[lvi] « Après la mort de Soleimani, Macron veut « éviter une escalade dangereuse » », Reuters, 3 de Janeiro de 2020

[lvii] « Frappe US « illégale et arbitraire », selon une experte des Nations unies », www.20min.ch, 7 de Julho de 2020

[lviii] https://twitter.com/naveedkhizer/status/1213145880250998784

[lix] Ryan Fahey, «ISIS welcomes the death of lran's Qaseem Soleimani and declare it an act of ‘divine intervention' that will let them regroup in Iraq», Daily Mail, 10 de Janeiro de 2020; Jeremy Bowen, «Qassem Soleimani: Why his killing is good news for IS jihadists», BBC News, 10 de Janeiro de 2020; Jeremy Bowen, «"L’assassinat de Qassem Soleimani est une bonne nouvelle pour le groupe "Etat islamique"», BBC News, 10 de Janeiro de 2020

[lx] «ISIS praises US assassination of Iranian general Soleimani as 'divine intervention that will help rise again», defence.pk, 11 de Janeiro de 2020

[lxi] Dahlia Scheindlin, « Netanyahu Needs Conflict to Survive », Foreign Policy, 16 de Maio de 2018; Bel Trew, « Netanyahu's gamble with Gaza may save his political career but spark a complex drawn-our conflict », The Independent, 13 de Novembro de 2019

[lxii] https://afaq.tv/contents/view/details?id=87510.

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