Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

12 fevereiro, 2025

 

A “Culpa” de Orwell

A Ucrânia de 2014 a 2024:

uma década a fabricar a novilíngua

Luís M. Loureiro [*]

 

Who controls the past controls the future. Who controls the present controls the past”. [Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado]George Orwell (1949), in Nineteen Eighty-Four

 

Preâmbulo

Se há quem tenha as costas largas pela tragédia que se abateu sobre o nosso modo de vida “democrático”, é George Orwell. Ele viu tudo, com quase um século de adianto. Viu tanto que hoje, facilmente, o vemos a ele na ficção tornada real em que passeamos os nossos dias. Em que passeamos a ilusão de viver num mundo onde somos livres de dizer o que pensamos, especialmente quando isso não interessa para nada — experimentemos dizer o que pensamos quando isso interessa, de facto, e veremos o que nos acontece.


Capa de uma das edições do romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, publicado pela primeira vez em 8 de Junho de 1949.


A “novilíngua é um dos conceitos orwellianos de excelência: Orwell viu como, rapidamente, o mundo do pós-segunda guerra mundial resvalava para um linguajar fugidio, eufemístico, escorregadio, as palavras tornadas forma sem conteúdo, mera designação vazia. A verdade substituída pela sua designação, a justiça substituída pela sua designação, a política substituída pela sua designação, como o Zizek dos bons escritos escreveu, a vida descafeinada.

A “novilíngua” aí está. Domina incontestada sobre as percepções que temos do mundo. Constrói, ela mesma, o mundo.

A “culpa”, do mundo de que apenas vemos esta superfície mediada por imagens-palavra, só pode ser de Orwell


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1. Controlar os média. A fábrica de produção de evidências. O “Ministério da Verdade” de Quieve

A interdição dos média russos no espaço europeu foi anunciada a 27 de Fevereiro de 2022. Nem três dias haviam passado da invasão da Ucrânia pelas tropas do Kremlin, e a Europa das “democracias avançadas” tão avançadas que qualquer truque de linguagem serve de máscara para exercícios de repressão do pensamento livre já fazia com a informação proveniente da Rússia, o que Israel só fez com a non grata cadeia de televisão árabe Al Jazeera oito meses após o início da sua invasão de Gaza.

Não é rigoroso afirmar, contudo, que a censura aos média russos tenha sido uma inovadora ideia europeia. Os decisores em Bruxelas limitaram-se a seguir o guião definido, desde 2014, pelos governos ucranianos saídos da mudança de regime dos protestos da praça Maidan, em Quieve.

Televisões, rádios, jornais e sites informativos, acusados de posicionamentos críticos, ditos pró-russos, ou de terem a sua propriedade efectivamente ligada a políticos e oligarcas com relações próximas a Moscovo, haviam sido condicionados, inicialmente, ou impedidos de operar, e as suas licenças revogadas, depois, desde que, em Dezembro de 2014, o governo do então presidente Petro Poroshenko e do primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk criou o Ministério para a Política de Informação (MPI).

O ministério esteve entregue, durante anos, ao homem-forte dos serviços para a Segurança da Informação na Guarda Nacional ucraniana, Yuriy Stets, antigo jornalista unha-com-carne com o oligarca Poroshenko. O aparecimento do MPI seria um dos primeiros momentos de choque e de desilusão para os sectores mais moderados da sociedade ucraniana, prenunciando o rápido esfumar das promessas de democratização ocidentalizada nascidas, menos de um ano antes, do sucesso da chamada “Revolução da Dignidade”.

Haviam decorrido apenas nove meses desde a deposição violenta e profundamente fracturante do presidente Viktor Yanukovych. Uma parte da sociedade ucraniana, a mais ocidentalizada, viu-a como uma revolução democrática, mas a outra, a leste e a sul da Ucrânia, contestou-a logo como um golpe de estado inconstitucional. Eleito em 2010, com um programa que advogava o reequilíbrio das relações comerciais e políticas com o vizinho russo e com o mundo ocidental, Yanukovych fora igualmente sufragado nas urnas, num processo validado pela comunidade internacional, ao reafirmar o estatuto constitucional de neutralidade militar da Ucrânia, o que era, na prática, um claro travão à anunciada adesão à OTAN(/NATO,) encetada dois anos antes pelo antecessor Viktor Yushchenko.

11 de Dezembro de 2013, Praça Maidan, Quieve. Victoria Nuland, Secretária de Estado para os Assuntos Europeus e Euroasiáticos do governo Obama, e Geoffrey Pyatt, embaixador dos EUA na Ucrânia, distribuem sandes e bolachas aos manifestantes anti-Yanukovych. Foto: Andrew Kravchenko/AP.


Jornalistas independentes e organizações mediáticas não alinhadas com a nova narrativa pró-ocidental, instalada em Quieve em Fevereiro de 2014, questionaram imediatamente as vastas competências de controlo dos média e os amplos poderes censórios do ministério de Stets, ao qual foi então atribuída, por muitos, a designação orwelliana de “Ministério da Verdade”.

As preocupações com a nova estrutura governamental circulariam de boca em boca, tomando conta de muitos debates internos, o que chamou a atenção de média internacionais como o jornal britânico Guardian, que lhes dedicou, por esses dias, uma reportagem — veiculando as profundas preocupações de jornalistas e de alguns sectores moderados da sociedade ucraniana, cada vez mais críticos do rumo que o processo político estava a seguir. E não apenas o processo político.

De facto, durante toda a segunda metade de 2014, jornalistas ucranianos deram, muitas vezes, conta do que se estava a passar na Donbass [região da bacia hidrográfica do Donets, abrangendo os oblasti de Lugansk e Donetsk, n.e.] e no sul da Ucrânia, o que tinha, igualmente, reflexos incómodos para o regime de Poroshenko em alguma da imprensa internacional mais atenta. [n.e.= nota editorial]

Conferiram, por exemplo, destaque a situações como o massacre de cerca de cinquenta manifestantes anti-Maidan, queimados vivos, a 2 de Maio, por elementos da extrema-direita ultranacionalista e de grupos neonazis ucranianos, em Odessa, num processo que nunca teve qualquer apuramento de responsabilidades.

A mesma imprensa referiu também os relatórios da ONU que denunciavam os crimes de guerra cometidos pelos batalhões Azov e Aidar no decurso da chamada operação anti-terrorista na Donbass, a partir de Abril, comparando-os aos métodos de terror sobre civis usados pelo ISIS no Iraque e na Síria.

Noticiou ainda as mortes de jornalistas ocidentais às mãos das forças governamentais, como o repórter fotográfico italiano Andrea Rocchelli, morto na Donbass, e deu voz às queixas das populações civis de Donetsk e Lugansk, vítimas, muitas vezes, da acção militar indiscriminada das forças enviadas por Quieve para reprimir a sublevação contra o Estado ucraniano pró-ocidental nascido meses antes com a deposição do presidente que haviam eleito, em 2010, de forma esmagadora, naquelas regiões — para um mandato que, constitucionalmente, só terminaria em finais de 2015.

O facto é que, muito cedo, após Maidan, a política ucraniana foi orientada para uma perseguição feroz aos média e aos jornalistas desalinhados com a nova afirmação ultranacionalista do país — que fazia coincidir um discurso europeísta (UE) e atlanticista (OTAN/NATO) com um processo político e legislativo efectivamente russofóbico, que culminaria, em Fevereiro de 2019, com a mudança na Constituição que deixou cair um estatuto de neutralidade militar que estava afirmado no texto fundamental desde a fundação do Estado ucraniano.

Alguns desses jornalistas foram mesmo assassinados ou forçados ao exílio, subsistindo hoje dezenas de situações que nunca ficaram totalmente esclarecidas. Poucos meses depois do aparecimento do Ministério para a Política de Informação, surgiam organismos estatais, como a Stratcom Ukraine, financiados directamente pela OTAN(/NATO), pela União Europeia e pelos principais governos ocidentais, que visavam organizar e articular a comunicação oficial do Estado ucraniano no espaço nacional e na esfera internacional e, de acordo com os relatórios públicos do organismo, reorganizar também toda a dinâmica interna de comunicação nas Forças Armadas da Ucrânia, desenvolvendo essa comunicação de acordo com os mais elevados padrões da OTAN(/NATO). Para estas acções e organismos foram, assim, orientadas, desde 2014, avultadas somas de dinheiro ocidental.

O copo com que se tem vindo a analisar a realidade ucraniana não pode, por isso, deixar de ser virado ao contrário: para podermos legitimamente questionar a produção informativa dos média russos que a Comissão Europeia paternalisticamente nos proibiu de ver, ouvir e ler em 2022, não teremos, igualmente, de interrogar o que se passou, na última década, na Ucrânia e nos seus aliados ocidentais, relativamente à produção informativa que nos tem chegado, sem qualquer possibilidade de um contraditório minimamente consistente (mesmo que este pudesse ser resolvido por nós como meramente propagandístico, esforço a que fomos convenientemente poupados)?

O nosso ângulo de análise passa a ser determinado por esta pergunta: o que é verdade e o que é mentira numa guerra de informação?

2. A captura da ciência. O novo complexo militar-industrial propagandístico

No trabalho científico que tenho dedicado, nos últimos anos, à questão da Ucrânia, indagando o modo como se foram desenhando campos metanarrativos completamente incompatíveis, com influência directa na produção jornalística e comunicacional que fariam facilmente adivinhar o conflito russo-ucraniano que entrou em modo aberto em 2022 , tenho usado inúmeras fontes provenientes da ciência ucraniana, produzida nas últimas décadas.

Vários autores podem ser facilmente referenciados, como a psicóloga social Karina Korostelina, hoje conselheira do Departamento de Estado norte-americano, mas, antes, cientista social com trabalhos de grande profundidade analítica acerca do processo linguístico-identitário que fracturou a sociedade ucraniana; a também psicóloga social Valeria Lazarenko, investigadora do Instituto de Psicologia Social e Política, em Quieve, cujos importantes trabalhos acerca da multiplicidade de narrativas emergentes na Ucrânia pós-2014 foram realizados em colaboração com o Centro de Estudos para a Paz da Universidade de Tromso, na Noruega; o cientista político Ivan Katchanovski, baseado na Universidade de Toronto, no Canadá; o também cientista político Volodymyr Kulyk, do Instituto de Estudos Étnicos e Políticos de Quieve; ou a economista Nadiia Koval, da Kyiv School of Economics.

Todos estes autores, e muitos outros, têm trabalho de mais de uma década que, pela sua seriedade metodológica e probidade analítica, pode e deve ser utilizado por quem prossegue estudos de intersecção do processo político com a comunicação e o jornalismo, como é o meu caso.

Tenho dado conta, no entanto, de um fenómeno emergente, altamente preocupante para um cientista: a ciência ucraniana e a que é feita sobre a situação ucraniana que tem vindo a ser publicada nos últimos anos, particularmente desde 2022, por revistas internacionais com revisão por pares, e mesmo a que, como revisor, tenho sido chamado a analisar, submetida para publicação em revistas portuguesas com indexação (Scopus, Web of Science, e outras), apresenta crescentes graus de enviesamento analítico, cientificamente inadmissíveis.

Essas publicações assumem, despudoradamente, como evidências prévias, não decorrentes da análise proposta pelos seus autores, formulações discursivas directamente derivadas dos manuais da comunicação estratégica propagandisticamente orientada, como os termos “Russian aggression”, “Putin’s war”, “unprovoked invasion”, entre muitas, que surgem dispersas pelos textos, sem qualquer discussão que as suporte teoricamente. O problema é que, tirando os casos em que é detectada quando o processo de revisão por pares é feito com atenção, esta pseudociência está a passar no crivo, sendo massivamente publicada, logo, ganhando aí uma perigosa autoridade evidencial, além da óbvia legitimidade científica. Os exemplos sobejam.

Ainda há pouco tempo, a Palgrave MacMillan, uma editora de referência nas ciências sociais, publicou “The War Against Ukraine and the EU”, um livro em acesso aberto, financiado por programas da União Europeia, cujos capítulos partem invariavelmente de um viés que desconsidera ou desvaloriza qualquer estudo crítico acerca da responsabilidade das chancelarias ocidentais no processo histórico-político que despoletou a guerra russo-ucraniana, apresentando-a como uma guerra de agressão não provocada, e uma expressão da luta global entre democracias e autocracias — o que, partindo de um espaço geopolítico que, como vimos, não perdeu mais do que umas horas a censurar os média do campo adversário, e se tem recusado a investigar situações altamente gravosas para a economia europeia veja-se o que se está a passar com a economia alemã , como a destruição dos gasodutos Nord Stream em Setembro de 2022, é, desde logo, um posicionamento (científico?), no mínimo, questionável.

Os efeitos do gigantesco investimento europeu na disseminação desta pseudociência sentem-se, igualmente, nas constantes visitas de académicos ucranianos a universidades do espaço europeu ocidental, entre as quais portuguesas. Só no programa Erasmus+, em 2023, a União Europeia atribuiu 4.43 mil milhões de euros à promoção de programas de intercâmbio com a Ucrânia.

O resultado, discursivamente apresentado como virtuoso, tem-se constituído, no entanto, numa subtil oferta, a jovens estudantes portugueses e da esfera ocidental, de aulas com títulos sugestivos como “How Russian Propaganda Functions in Social Networks”, cujos conteúdos assumem invariavelmente que só um lado da actual guerra de informação em torno do problema ucraniano é promotor e produtor de propaganda. O problema é que um exame atento a estes conteúdos revela uma total ausência de princípios metodológicos que permitam escrutinar o processo de recolha de informação e de constituição credível de um “corpus” analítico — o que corre o sério risco de transformar estes momentos de intercâmbio académico, pago por dinheiro europeu, em meras instâncias de doutrinação.

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Os conteúdos gerados por IA poderão estar incorretos.

“Os soldados russos combatem com pás”. Era assim que a BBC do Reino Unido noticiava o andamento da guerra na Ucrânia em 5 de Março de 2023, escarnecendo da  inteligência dos seus espectadores e leitores.


Estaremos, pois, perante um problema sério, do qual a Ucrânia foi tornada laboratório, na última década: a progressiva captura cruzada das instâncias de legitimação dos discursos fundados na verdade, quer o discurso científico, quer o discurso jornalístico, e a sua perigosa substituição por uma sofisticada fabricação de evidências cujas consequências históricas e geopolíticas estamos ainda longe de conhecer.

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[*] Nota Editorial

O autor deste artigo, Luís M. Loureiro, é professor de comunicação e jornalismo da Universidade do Minho, antigo jornalista de investigação, grande repórter e correspondente de guerra da RTP.

O seu artigo, que aqui reproduzo com a devida vénia e um forte abraço, foi originalmente publicado pela revista Ecossocialismo, revista quadrimestral, na sua edição de Janeiro a Abril de 2025, N.º 09.  

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Agradeço ao editor da Ecossocialismo, Rui Cortes, a permissão que concedeu ao autor para a sua divulgação neste blogue. Sem ela, o autor não teria podido responder positivamente à solicitação que lhe dirigi para o divulgar neste blogue.

O texto introdutório ao artigo A “Culpa” de Orwell foi escrito por Luís M. Loureiro posteriormente à sua publicação na Ecossocialismo, e publicado de maneira autónoma na página de Facebook do autor. Tomei a liberdade de o usar aqui como preâmbulo do artigo.

Editei ligeiramente o preâmbulo e o artigo para os adequar às normas tipográficas e estilísticas da Tertúlia Orwelliana.

 J.C.S.

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