A “Culpa” de
Orwell
A Ucrânia de 2014 a 2024:
uma década a fabricar a novilíngua
Luís M. Loureiro [*]
“Who controls the past controls the future. Who controls the present controls the past”. [Quem controla o passado controla o futuro. Quem controla o presente controla o passado]. George Orwell (1949), in Nineteen Eighty-Four
Preâmbulo
Se há quem tenha as costas largas pela tragédia que se abateu sobre o nosso modo de vida “democrático”, é George Orwell. Ele viu tudo, com quase um século de adianto. Viu tanto que hoje, facilmente, o vemos a ele na ficção tornada real em que passeamos os nossos dias. Em que passeamos a ilusão de viver num mundo onde somos livres de dizer o que pensamos, especialmente quando isso não interessa para nada — experimentemos dizer o que pensamos quando isso interessa, de facto, e veremos o que nos acontece.
Capa de uma das edições do romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, publicado pela primeira vez em 8 de Junho de 1949. |
A “novilíngua” é um dos conceitos orwellianos de excelência: Orwell viu como, rapidamente, o mundo do pós-segunda guerra mundial resvalava para um linguajar fugidio, eufemístico, escorregadio, as palavras tornadas forma sem conteúdo, mera designação vazia. A verdade substituída pela sua designação, a justiça substituída pela sua designação, a política substituída pela sua designação, como o Zizek dos bons escritos escreveu, a vida descafeinada.
A “novilíngua” aí está. Domina incontestada sobre as percepções que temos do mundo. Constrói, ela mesma, o mundo.
A “culpa”, do mundo de que apenas vemos esta superfície
mediada por imagens-palavra, só pode ser de Orwell…
1. Controlar os média. A fábrica de
produção de evidências. O “Ministério da Verdade” de Quieve
A interdição dos média russos no espaço europeu foi
anunciada a 27 de Fevereiro de 2022. Nem três dias haviam passado da invasão da
Ucrânia pelas tropas do Kremlin, e a Europa das “democracias avançadas” ⎼ tão avançadas que
qualquer truque de linguagem serve de máscara para exercícios de repressão do
pensamento livre ⎼ já fazia com a informação proveniente da Rússia, o que
Israel só fez com a non grata cadeia de televisão árabe Al Jazeera
oito meses após o início da sua invasão de Gaza.
Não é rigoroso afirmar, contudo, que a censura aos média
russos tenha sido uma inovadora ideia europeia. Os decisores em Bruxelas
limitaram-se a seguir o guião definido, desde 2014, pelos governos ucranianos
saídos da mudança de regime dos protestos da praça Maidan, em Quieve.
Televisões, rádios, jornais e sites informativos,
acusados de posicionamentos críticos, ditos pró-russos, ou de terem a sua
propriedade efectivamente ligada a políticos e oligarcas com relações próximas
a Moscovo, haviam sido condicionados, inicialmente, ou impedidos de operar, e
as suas licenças revogadas, depois, desde que, em Dezembro de 2014, o governo
do então presidente Petro Poroshenko e do primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk
criou o Ministério para a Política de Informação
(MPI).
O ministério esteve entregue, durante anos, ao homem-forte dos serviços para a Segurança da Informação na Guarda Nacional ucraniana, Yuriy Stets, antigo jornalista unha-com-carne com o oligarca Poroshenko. O aparecimento do MPI seria um dos primeiros momentos de choque e de desilusão para os sectores mais moderados da sociedade ucraniana, prenunciando o rápido esfumar das promessas de democratização ocidentalizada nascidas, menos de um ano antes, do sucesso da chamada “Revolução da Dignidade”.
Haviam decorrido apenas nove meses desde a deposição
violenta e profundamente fracturante do presidente Viktor Yanukovych. Uma parte
da sociedade ucraniana, a mais ocidentalizada, viu-a como uma revolução
democrática, mas a outra, a leste e a sul da Ucrânia, contestou-a logo como um
golpe de estado inconstitucional. Eleito em 2010, com um programa que advogava
o reequilíbrio das relações comerciais e políticas com o vizinho russo e com o
mundo ocidental, Yanukovych fora igualmente sufragado nas urnas, num processo
validado pela comunidade internacional, ao reafirmar o estatuto constitucional
de neutralidade militar da Ucrânia, o que era, na prática, um claro travão à
anunciada adesão à OTAN(/NATO,) encetada dois anos antes pelo antecessor Viktor
Yushchenko.
11 de Dezembro de 2013, Praça Maidan, Quieve. Victoria Nuland, Secretária de Estado para os Assuntos Europeus e Euroasiáticos do governo Obama, e Geoffrey Pyatt, embaixador dos EUA na Ucrânia, distribuem sandes e bolachas aos manifestantes anti-Yanukovych. Foto: Andrew Kravchenko/AP. |
Jornalistas independentes e organizações mediáticas não
alinhadas com a nova narrativa pró-ocidental, instalada em Quieve em Fevereiro
de 2014, questionaram imediatamente as vastas competências de controlo dos
média e os amplos poderes censórios do ministério de Stets, ao qual foi então
atribuída, por muitos, a designação orwelliana de “Ministério
da Verdade”.
As preocupações com a nova estrutura governamental
circulariam de boca em boca, tomando conta de muitos debates internos, o que
chamou a atenção de média internacionais como o jornal britânico Guardian,
que lhes dedicou, por esses dias, uma reportagem — veiculando as profundas
preocupações de jornalistas e de alguns sectores moderados da sociedade
ucraniana, cada vez mais críticos do rumo que o processo político estava a
seguir. E não apenas o processo político.
De facto, durante toda a segunda metade de 2014,
jornalistas ucranianos deram, muitas vezes, conta do que se estava a passar na Donbass
[região da bacia hidrográfica do Donets, abrangendo os oblasti de Lugansk e Donetsk, n.e.] e
no sul da Ucrânia, o que tinha, igualmente, reflexos incómodos para o regime de
Poroshenko em alguma da imprensa internacional mais atenta. [n.e.= nota
editorial]
Conferiram, por exemplo, destaque a situações como o
massacre de cerca de cinquenta manifestantes anti-Maidan, queimados vivos, a 2
de Maio, por elementos da extrema-direita ultranacionalista e de grupos
neonazis ucranianos, em Odessa, num processo que nunca teve qualquer apuramento
de responsabilidades.
A mesma imprensa referiu também os relatórios da ONU que
denunciavam os crimes de guerra cometidos pelos batalhões Azov e Aidar no
decurso da chamada operação anti-terrorista na Donbass, a partir de Abril,
comparando-os aos métodos de terror sobre civis usados pelo ISIS no Iraque e na
Síria.
Noticiou ainda as mortes de jornalistas ocidentais às
mãos das forças governamentais, como o repórter fotográfico italiano Andrea
Rocchelli, morto na Donbass, e deu voz às queixas das populações civis de
Donetsk e Lugansk, vítimas, muitas vezes, da acção militar indiscriminada das
forças enviadas por Quieve para reprimir a sublevação contra o Estado ucraniano
pró-ocidental nascido meses antes com a deposição do presidente que haviam
eleito, em 2010, de forma esmagadora, naquelas regiões — para um mandato que,
constitucionalmente, só terminaria em finais de 2015.
O facto é que, muito cedo, após Maidan, a política
ucraniana foi orientada para uma perseguição feroz aos média e aos jornalistas
desalinhados com a nova afirmação ultranacionalista do país — que fazia
coincidir um discurso europeísta (UE) e atlanticista (OTAN/NATO) com um
processo político e legislativo efectivamente russofóbico, que culminaria, em
Fevereiro de 2019, com a mudança na Constituição que deixou cair um estatuto de
neutralidade militar que estava afirmado no texto fundamental desde a fundação
do Estado ucraniano.
Alguns desses jornalistas foram mesmo assassinados ou
forçados ao exílio, subsistindo hoje dezenas de situações que nunca ficaram
totalmente esclarecidas. Poucos meses depois do aparecimento do Ministério para a Política de Informação, surgiam
organismos estatais, como a Stratcom Ukraine,
financiados directamente pela OTAN(/NATO), pela União Europeia e pelos
principais governos ocidentais, que visavam organizar e articular a comunicação
oficial do Estado ucraniano no espaço nacional e na esfera internacional e, de
acordo com os relatórios públicos do organismo, reorganizar também toda a
dinâmica interna de comunicação nas Forças Armadas da Ucrânia, desenvolvendo
essa comunicação de acordo com os mais elevados padrões da OTAN(/NATO). Para
estas acções e organismos foram, assim, orientadas, desde 2014, avultadas somas
de dinheiro ocidental.
O copo com que se tem vindo a analisar a realidade
ucraniana não pode, por isso, deixar de ser virado ao contrário: para podermos
legitimamente questionar a produção informativa dos média russos que a Comissão
Europeia paternalisticamente nos proibiu de ver, ouvir e ler em 2022, não
teremos, igualmente, de interrogar o que se passou, na última década, na
Ucrânia e nos seus aliados ocidentais, relativamente à produção informativa que
nos tem chegado, sem qualquer possibilidade de um contraditório minimamente
consistente (mesmo que este pudesse ser resolvido por nós como meramente
propagandístico, esforço a que fomos convenientemente poupados)?
O nosso ângulo de análise passa a ser determinado por
esta pergunta: o que é verdade e o que é mentira numa guerra de informação?
2. A captura da ciência. O novo
complexo militar-industrial propagandístico
No trabalho científico que tenho dedicado, nos últimos
anos, à questão da Ucrânia, indagando o modo como se foram desenhando campos
metanarrativos completamente incompatíveis, com influência directa na produção
jornalística e comunicacional ⎼ que fariam
facilmente adivinhar o conflito russo-ucraniano que entrou em modo aberto em
2022 ⎼, tenho usado inúmeras fontes provenientes da ciência
ucraniana, produzida nas últimas décadas.
Vários autores podem ser facilmente referenciados, como a
psicóloga social Karina Korostelina, hoje conselheira do Departamento de Estado
norte-americano, mas, antes, cientista social com trabalhos de grande
profundidade analítica acerca do processo linguístico-identitário que fracturou
a sociedade ucraniana; a também psicóloga social Valeria Lazarenko,
investigadora do Instituto de Psicologia Social e Política, em Quieve, cujos
importantes trabalhos acerca da multiplicidade de narrativas emergentes na Ucrânia
pós-2014 foram realizados em colaboração com o Centro de Estudos para a Paz da
Universidade de Tromso, na Noruega; o cientista político Ivan Katchanovski,
baseado na Universidade de Toronto, no Canadá; o também cientista político
Volodymyr Kulyk, do Instituto de Estudos Étnicos e Políticos de Quieve; ou a
economista Nadiia Koval, da Kyiv School of Economics.
Todos estes autores, e muitos outros, têm trabalho de
mais de uma década que, pela sua seriedade metodológica e probidade analítica,
pode e deve ser utilizado por quem prossegue estudos de intersecção do processo
político com a comunicação e o jornalismo, como é o meu caso.
Tenho dado conta, no entanto, de um fenómeno emergente,
altamente preocupante para um cientista: a ciência ucraniana e a que é feita
sobre a situação ucraniana que tem vindo a ser publicada nos últimos anos,
particularmente desde 2022, por revistas internacionais com revisão por pares,
e mesmo a que, como revisor, tenho sido chamado a analisar, submetida para
publicação em revistas portuguesas com indexação (Scopus, Web of
Science, e outras), apresenta crescentes graus de enviesamento analítico,
cientificamente inadmissíveis.
Essas publicações assumem, despudoradamente, como
evidências prévias, não decorrentes da análise proposta pelos seus autores,
formulações discursivas directamente derivadas dos manuais da comunicação
estratégica propagandisticamente orientada, como os termos “Russian aggression”, “Putin’s
war”, “unprovoked invasion”, entre
muitas, que surgem dispersas pelos textos, sem qualquer discussão que as
suporte teoricamente. O problema é que, tirando os casos em que é detectada
quando o processo de revisão por pares é feito com atenção, esta pseudociência
está a passar no crivo, sendo massivamente publicada, logo, ganhando aí uma
perigosa autoridade evidencial, além da óbvia legitimidade científica. Os
exemplos sobejam.
Ainda há pouco tempo, a Palgrave MacMillan, uma
editora de referência nas ciências sociais, publicou “The War Against Ukraine and the EU”,
um livro em acesso aberto, financiado por programas da União Europeia, cujos
capítulos partem invariavelmente de um viés que desconsidera ou desvaloriza
qualquer estudo crítico acerca da responsabilidade das chancelarias ocidentais
no processo histórico-político que despoletou a guerra russo-ucraniana, apresentando-a
como uma guerra de agressão não provocada, e uma expressão da luta global entre
democracias e autocracias — o que, partindo de um espaço geopolítico que, como
vimos, não perdeu mais do que umas horas a censurar os média do campo
adversário, e se tem recusado a investigar situações altamente gravosas para a
economia europeia ⎼ veja-se o que se está a passar com a economia alemã ⎼, como a destruição dos gasodutos Nord Stream em
Setembro de 2022, é, desde logo, um posicionamento (científico?), no mínimo,
questionável.
Os efeitos do gigantesco investimento europeu na
disseminação desta pseudociência sentem-se, igualmente, nas constantes visitas
de académicos ucranianos a universidades do espaço europeu ocidental, entre as
quais portuguesas. Só no programa Erasmus+, em 2023, a União Europeia
atribuiu 4.43 mil milhões de euros à promoção de programas de intercâmbio com a
Ucrânia.
O resultado,
discursivamente apresentado como virtuoso, tem-se constituído, no entanto, numa
subtil oferta, a jovens estudantes portugueses e da esfera ocidental, de aulas
com títulos sugestivos como “How Russian Propaganda Functions in Social Networks”,
cujos conteúdos assumem invariavelmente que só um lado da actual guerra de
informação em torno do problema ucraniano é promotor e produtor de propaganda.
O problema é que um exame atento a estes conteúdos revela uma total ausência de
princípios metodológicos que permitam escrutinar o processo de recolha de
informação e de constituição credível de um “corpus” analítico — o que corre o
sério risco de transformar estes momentos de intercâmbio académico, pago por
dinheiro europeu, em meras instâncias de doutrinação.
“Os soldados russos combatem com pás”. Era assim que a BBC do Reino Unido noticiava o andamento da guerra na Ucrânia em 5 de Março de 2023, escarnecendo da inteligência dos seus espectadores e leitores. |
Estaremos, pois, perante um problema sério, do qual a
Ucrânia foi tornada laboratório, na última década: a progressiva captura
cruzada das instâncias de legitimação dos discursos fundados na verdade, quer o
discurso científico, quer o discurso jornalístico, e a sua perigosa
substituição por uma sofisticada fabricação de evidências cujas consequências
históricas e geopolíticas estamos ainda longe de conhecer.
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[*]
Nota Editorial
O autor deste artigo, Luís M. Loureiro, é professor de
comunicação e jornalismo da Universidade do Minho, antigo jornalista de
investigação, grande repórter e correspondente de guerra da RTP.
O seu artigo, que aqui reproduzo com a devida vénia e um
forte abraço, foi originalmente publicado pela revista Ecossocialismo, revista
quadrimestral, na sua edição de Janeiro a Abril de 2025, N.º 09.
Agradeço ao editor da Ecossocialismo, Rui
Cortes, a permissão que concedeu ao autor para a sua divulgação neste blogue.
Sem ela, o autor não teria podido responder positivamente à solicitação que lhe
dirigi para o divulgar neste blogue.
O texto introdutório ao artigo A “Culpa” de Orwell foi
escrito por Luís M. Loureiro posteriormente à sua publicação na Ecossocialismo,
e publicado de maneira autónoma na página de Facebook do autor. Tomei a
liberdade de o usar aqui como preâmbulo do artigo.
Editei ligeiramente o preâmbulo e o artigo para os adequar às normas tipográficas e estilísticas da Tertúlia Orwelliana.
J.C.S.
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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana