PREÂMBULO À TRADUÇÃO DO ARTIGO
“A Parceria: A história secreta da guerra na Ucrânia”
José Catarino Soares
A
segunda guerra na Ucrânia (a que teve início em 24 de Fevereiro de 2022, com a “Operação Militar Especial” [OME] da Rússia) começou
por ser uma guerra entre, de um lado, a Rússia, a República Popular de Donetsk (RPD)
e a República Popular de Lugansk (RPL) ⎼ as duas últimas na Donbass, uma região situada no extremo leste
da Ucrânia e no sudoeste da Rússia ⎼ e a Ucrânia, do outro.
Porém,
rapidamente se tornou numa guerra entre a Rússia (+ RPD + RPL), de um lado, e o
chamado “Ocidente alargado” (com os EUA, o
Reino Unido, a OTAN [/NATO] e a União Europeia [UE] em grande destaque), do
outro. Mas com esta característica especial: essa guerra do “Ocidente alargado” contra a Rússia seria travada por
intermédio da Ucrânia, cujo regime aceitou cumprir um mandato de procurador camicase para enfraquecer militarmente a Rússia,
enquanto os seus mandantes a acossavam economicamente com sanções económicas ⎼ 24.387 (!!) sanções, 2.695 antes do
início da OME e mais 21.692 depois dessa data [1] ⎼ na esperança de abrir caminho à
derrocada interna da Rússia e, eventualmente, ao seu posterior desmembramento
num mosaico heterogéneo de pequenos Estados impotentes [2].
A
aceitação desse mandato de procurador camicase do
“Ocidente alargado” data da 2.ª semana de Abril
de 2022. Foi nessa data que Zelensky repudiou o acordo de paz, muito vantajoso,
que tinha negociado com a Rússia em Istambul nas semanas anteriores. Fê-lo em
troca da promessa que lhe foi feita, em pessoa e de viva-voz, por Boris Johnson
(à época primeiro-ministro do Reino Unido) de um apoio incondicional, e “pelo tempo que for necessário”, do “Ocidente alargado” à Ucrânia, se esta decidisse optar
por travar uma guerra sem quartel contra a Rússia, em vez de fazer as pazes com
ela [3].
Em
13 de Junho de 2022, dois meses depois deste infausto episódio de chantagem (Boris
Johnson), estultícia (Johnson e Zelensky) e perdição (Zelensky), o então presidente
do México, Andrés López Obrador, definiu muito bem o teor prático desse mandato
de procurador camicase:
«Nós [Ucrânia] fornecemos os
mortos. Vós [“Ocidente alargado”] forneceis as armas».
No
Outono de 2022, o general americano Christopher T. Donahue, muito citado no
artigo de Adam Entous, disse a mesma coisa, com toda a candura, ao general Zabrodskyi,
o seu camarada ucraniano (ver trecho destacado a amarelo).
E
assim aconteceu, de facto, não só com as armas, mas também com as munições, o
treino e o aconselhamento militar, as informações militares, a contra-informação
e a logística militar que há três anos têm vindo a ser fornecidas continuamente,
em quantidades gigantescas, à Ucrânia pelo “Ocidente alargado”
— além do apoio económico e financeiro (também ele gigantesco) para ajudar o
regime político, a administração pública e a economia da Ucrânia a manterem-se à
tona.
Só não sabíamos até que ponto e como, concretamente, é que os EUA e o Reino Unido (os dois principais patrocinadores e aliados militares da Ucrânia) estiveram e estão envolvidos no planeamento e na condução prática (incluindo comando e controlo) dessa guerra contra a Rússia por interposta Ucrânia.
Pois
bem, ficámos a sabê-lo muito recentemente por intermédio de dois extensos e
pormenorizados artigos: um da autoria de Adam Entous, no New York Times,
em 29 de Março de 2025, relativamente ao envolvimento dos EUA, e outro da
autoria de Larisa Brown, no The Times (de Londres), em 11 de Abril de
2025, relativamente ao envolvimento do Reino Unido.
É
o artigo de Adam Entous [4] no New York Times [5] que publicamos hoje, aqui, na tradução de Fernando Oliveira.
O
que mais (me) impressiona nesse artigo são os vários exemplos de quão perto
estivemos no decurso desta guerra, sobretudo nos últimos dois anos, da eclosão
de uma terceira (e derradeira) guerra mundial, graças ao aventureirismo e à húbris quer de
Zelensky e do seu regime, quer de Biden e do seu governo. Poder-se-ia supor a
priori que as chefias militares ucranianas e americanas directamente
envolvidas nessa guerra tivessem introduzido um módico de racionalidade e autocontenção
que evitassem a todo o transe essa escalada para o Apocalipse nuclear, mas o
artigo de Adam Entous corta cerce essa conjectura auspiciosa.
Tanto
de um lado como do outro, houve chefes militares impregnados de aventureirismo
hubrístico que marcaram presença ao mais alto nível. É o caso, entre outros, do
general Oleksandr Syrsky (actual comandante em chefe das Forças Armadas ucranianas
e o general preferido de Zelensky), e dos generais Christopher Donahue (actualmente
comandante em chefe do Comando Terrestre Aliado e do Exército dos EUA na Europa
e África) e Christopher Cavoli (Comandante Supremo Aliado da Europa, o cargo
militar de topo da OTAN [/NATO]). Mas os leitores ajuizarão por si próprios
lendo o artigo de Adam Entous.
Noutra ocasião, contamos publicar a tradução do artigo de Larisa Brown sobre o envolvimento do Reino Unido na 2.ª guerra na Ucrânia. Tudo vai depender de Fernando Oliveira conseguir encontrar, para além dos seus afazeres profissionais, o tempo e a disponibilidade para realizar mais essa exigente tarefa.
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Notas e
referências do Preâmbulo
[1] Fonte dos dados: Castellum.AI
[2] Em 23 de Junho de 2022, a
Comissão de Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) dos EUA, mais conhecida
como Comissão de Helsínquia, organizou uma sessão de esclarecimento intitulada,
Descolonizar
a Rússia: Um Imperativo Moral e Estratégico. Esta comissão afirma ser
“independente”, mas é uma agência do governo dos EUA criada, financiada e
supervisionada pelo Congresso americano. Nove comissários são membros do
Senado, nove são membros da Câmara dos Representantes e três são membros do
poder executivo (Departamento de Estado [= Ministério dos Negócios Estrangeiros],
Departamento da Defesa e Departamento do Comércio).
A Comissão de Helsínquia apoia o Fórum Nações Livres da Pós-Rússia, que realizou uma reunião no Parlamento Europeu em
Bruxelas no início de 2023 e mais três eventos em diferentes cidades americanas
em Abril de 2023. O Fórum Nações Livres da Pós-Rússia publicou um mapa da
Rússia desmembrada com a qual sonha, dividida em 41 Estados diferentes, num
mundo pós-Putin, partindo do pressuposto de que este é derrotado na Ucrânia e é
destituído pelos seus compatriotas (v. Anchal Vohra, “The West Is Preparing for
Russia’s Disintegration”, Foreign Policy, April 17, 2023). São sonhos fagueiros
que persistem apesar de Trump não os acarinhar (ao contrário de Biden). Para
11-13 de Junho de 2025, está anunciado um novo evento deste Fórum, em
Washington D.C.
[3] Sobre este
assunto, ver José Catarino Soares, “Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a
guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos”. Tertúlia Orwelliana, 9 de
Dezembro de 2023 [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/12/]
[4] Adam Entous é um jornalista do The New York Times.
Anteriormente, trabalhou em três outras empresas jornalísticas: Reuters,
The Wall Street Journal, The New Yorker. Entous autodefine-se
assim:
«Interesso-me pelo mundo da
espionagem e por histórias que revelam a verdadeira natureza das relações entre
indivíduos, instituições e Estados. Estas são frequentemente escondidas e
difíceis de alcançar» (https://www.nytimes.com/by/adam-entous)
[5] O The New York Times (NTY) é um jornal
diário americano com 174 anos de publicação ininterrupta. É propriedade da
mesma família (a família Ochs-Sulzberger) há 129 anos. É o jornal de maior
circulação do EUA (10 milhões e 800 mil assinantes em Agosto de 2024). Desde
1956 (eleição do candidato Dwight Eisenhower, do Partido Republicano, para
presidente dos EUA) que o NYT apoia os candidatos presidenciais do Partido
Democrático. A orientação política do NYT é assumidamente “liberal” — um termo que,
nos EUA significa, grosso modo, o mesmo que “social-democracia”
na Europa.
Convém
lembrar que o NYT tem sido, desde a primeira hora, um apoiante das decisões do
governo Biden de apoio incondicional à Ucrânia — em armas, munições, treino e
aconselhamento militar, informações militares, contra-informação, logística militar
e em tudo o mais que Adam Entous nos relata no seu artigo.
Assim
sendo, julgo que o artigo de Adam Entous só pode ser interpretado, dado o seu
teor, como tendo por objectivo principal preparar a opinião pública americana,
em particular a que vota no Partido Democrático, para a derrota na Ucrânia do
regime de Volodymyr Zelensky e do seu mais poderoso parceiro co-beligerante: os
EUA de Joe Biden — uma derrota que Donald Trump pretende mitigar e licitar em
proveito próprio.
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A Parceria: A história secreta
da guerra na Ucrânia
Adam Entous
(The New York Times, 29 de Março de 2025
Tradução de Fernando Oliveira [*]
Esta é a história desconhecida do
papel oculto da América nas operações militares ucranianas contra os exércitos
invasores da Rússia.
Adam Entous realizou mais de 300 entrevistas ao longo
de mais de um ano com funcionários governamentais, militares e agentes dos
serviços secretos na Ucrânia, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha, Polónia,
Bélgica, Letónia, Lituânia, Estónia e Turquia.
Numa manhã de primavera, dois meses depois de os exércitos
invasores de Vladimir Putin terem entrado na Ucrânia, um comboio de carros não
identificados parou numa esquina de Quieve e recolheu dois homens de meia-idade
vestidos à civil.
Ao deixar a cidade, o comboio – tripulado por comandos britânicos, sem
uniforme, mas fortemente armados – percorreu 640 quilómetros [400 milhas] para
oeste, até à fronteira polaca. A travessia foi perfeita, atendendo aos
passaportes diplomáticos. Mais à frente, chegaram ao aeroporto de
Rzeszów-Jasionka, onde um avião de carga C-130 os aguardava.
Os passageiros eram generais ucranianos de topo. O destino era a Clay
Kaserne, quartel-general do Exército dos EUA para a Europa e África, em
Wiesbaden, na Alemanha. A missão era ajudar a conceber o que viria a ser um dos
segredos mais bem guardados da guerra na Ucrânia.
Um dos homens, o tenente-general Mykhaylo Zabrodskyi, lembra-se de ter sido
conduzido por um lanço de escadas até um passadiço com vista para o vasto e
soturno salão principal da guarnição, o Auditório Tony Bass. Antes da guerra,
fora um ginásio, utilizado para reuniões dos efectivos, actuações da banda do
Exército e corridas de escuteiros (competições de Cub Scout Pinewood [1]). Agora, o general
Zabrodskyi observava oficiais dos países da coligação, num labirinto de
cubículos improvisados, a organizarem os primeiros carregamentos ocidentais
para a Ucrânia de baterias de artilharia M777 e obuses de 155 milímetros.
Foi em seguida conduzido ao gabinete do tenente-general Christopher T. Donahue, comandante do 18.º Corpo
Aerotransportado, que lhe propôs uma parceria.
Com uma evolução e um funcionamento interno apenas ao alcance de um pequeno
círculo de funcionários americanos e aliados, essa parceria de informações,
estratégia, planeamento e tecnologia viria a tornar-se a arma secreta que o
governo Biden enquadrou como o seu esforço para salvar a Ucrânia e proteger a
ordem ameaçada do pós-Segunda Guerra Mundial.
Actualmente, essa ordem – juntamente com a defesa do território ucraniano – está no fio da navalha, já que o Presidente Trump procura uma aproximação a Putin e promete acabar com a guerra. Os prognósticos não são animadores para os ucranianos. Na disputa entre as grandes potências pela segurança e influência após a derrocada da União Soviética, uma Ucrânia recém-independente tornou-se a nação do meio, e Moscovo receia cada vez mais a sua inclinação para Oeste. Agora, com o início das negociações, o Presidente americano acusou, sem qualquer fundamento, os ucranianos de terem iniciado a guerra, pressionou-os a cederem grande parte das suas riquezas minerais e pediu-lhes que aceitassem um cessar-fogo sem uma promessa de garantias concretas de segurança por parte dos americanos — uma paz sem certezas de continuação da paz.
Donald Trump já começou a pôr termo a elementos da parceria selada em
Wiesbaden naquela Primavera de 2022. No entanto, traçar a sua história é
compreender melhor como é que os ucranianos foram capazes de sobreviver durante
três longos anos de guerra, face a um inimigo muito maior e mais poderoso.
Significa também espreitar, através de um buraco de fechadura secreto, como a
guerra chegou à posição precária em que actualmente se encontra.
Com uma transparência notável, o Pentágono divulgou uma relação pública dos
66,5 mil milhões de dólares de armamento fornecido à Ucrânia — incluindo,
segundo a última contagem, mais de 500 milhões de munições para armas ligeiras
e granadas, 10.000 armas antiaéreas Javelin, 3000 sistemas antiaéreos Stinger,
272 obuses, 76 tanques, 40 sistemas de lançadores múltiplos de foguetes de
grande mobilidade [os
HIMARS, Nota do Tradutor], 20 helicópteros Mi-17 e três baterias de defesa antiaérea Patriot.
Mas uma investigação do New York Times revela que a América se
envolveu na guerra de uma forma muito mais profunda e alargada do que se
pensava. Em momentos críticos, a parceria foi a espinha dorsal das operações
militares ucranianas que, pelas contas dos EUA, mataram ou feriram mais de 700.000
soldados russos. (A Ucrânia colocou o seu balanço de baixas em 435.000. [2]) Lado a lado,
no centro de comando da missão em Wiesbaden, oficiais americanos e ucranianos
planeavam as contra-ofensivas de Quieve. Em termos gerais, a estratégia de
batalha foi orientada por um vasto esforço americano de recolha de informações,
que permitiu ainda canalizar dados precisos sobre os alvos para os soldados
ucranianos no terreno.
Um responsável por serviços secretos europeus recordou ter ficado
surpreendido ao saber como os seus homólogos da OTAN [/NATO] se tinham
envolvido tão profundamente nas operações ucranianas. «Agora fazem parte da cadeia de
morte,» disse.
A parceria era norteada pela ideia de que esta estreita cooperação poderia
permitir aos ucranianos realizar a mais improvável das proezas — desferir um
rude golpe contra os invasores russos. E, a cada ataque bem-sucedido nas
primeiras fases da guerra – possibilitado pela coragem e destreza dos ucranianos,
mas também pela incompetência russa –, essa ambição dos aparentes perdedores
parecia cada vez mais ao alcance destes.
Oficiais militares ucranianos, americanos e ingleses em reunião na Ucrânia, Agosto 2023. O general Valerii Zalujny, à época o chefe do Estado-Maior General das Força Armadas Ucranianas, é o homem à direita com ambos os cotovelos assentes na mesa. |
Uma das primeiras validações deste conceito foi uma campanha contra um dos
mais temidos grupos de combate da Rússia, o 58.º Exército de Armas Combinadas.
Em meados de 2022, dispondo de informações dos serviços secretos americanos e
também sobre os alvos, os ucranianos lançaram uma barragem de foguetes contra o
quartel-general do 58.º na região de Quérson, matando generais e oficiais do
estado-maior que se encontravam no interior. O grupo mudou várias vezes de
local, mas os americanos descobriram-no sempre e os ucranianos destruíram-no.
Mais a sul, os parceiros têm em mira o porto de Sebastopol, na Crimeia,
onde a Frota Russa do Mar Negro dispunha de mísseis destinados a alvos
ucranianos em navios de guerra e submarinos. No auge da contra-ofensiva
ucraniana de 2022, um enxame de drones marítimos, com o apoio da Agência
Central de Informações (CIA), atacou o porto de madrugada, danificando vários
navios de guerra e levando os russos a iniciar a retirada.
Mas a parceria acabou por se desgastar – e o arco da guerra mudou – por
entre rivalidades, ressentimentos e imperativos e agendas divergentes.
Umas vezes, os ucranianos viam os americanos como prepotentes e
controladores — o protótipo do americano paternalista. Outras vezes, os
americanos não conseguiam compreender por que é que os ucranianos não se
limitavam a aceitar bons conselhos.
Os americanos concentravam-se em objectivos mensuráveis e exequíveis e viam
os ucranianos como estando constantemente à procura da grande vitória, do
grande prémio. Os ucranianos, por seu lado, viam muitas vezes os americanos
como um empecilho. O objectivo dos ucranianos era ganhar a guerra de uma vez
por todas. Mesmo partilhando essa esperança, o que os americanos pretendiam era
certificar-se de que os ucranianos não a perdiam.
À medida que os ucranianos iam adquirindo maior autonomia na parceria, iam rodeando
as suas intenções de um secretismo cada vez maior. Estavam sempre zangados com
o facto de os americanos não poderem, ou não quererem, dar-lhes todas as armas
e outro equipamento que pretendiam. Os americanos, por sua vez, estavam
irritados com o que consideravam ser as exigências pouco razoáveis dos
ucranianos e a sua relutância em tomar medidas politicamente arriscadas para
reforçar as suas forças, cuja desvantagem numérica era clara.
De um ponto de vista táctico, a parceria ia produzindo triunfo atrás de
triunfo. No entanto, num momento crucial da guerra – em meados de 2023, quando
os ucranianos montaram uma contra-ofensiva para ganharem uma dinâmica vitoriosa
após os sucessos do primeiro ano – a estratégia delineada em Wiesbaden foi
vítima da política interna fracturante da Ucrânia: o presidente, Volodymyr
Zelensky, contra o seu chefe militar (e potencial rival eleitoral), e o chefe
militar contra o seu obstinado comandante subalterno. Quando Zelensky se
colocou do lado do subalterno, os ucranianos despejaram grandes quantidades de
homens e recursos numa campanha que se revelaria inútil para reconquistar a
cidade devastada de Bakhmut. Em poucos meses, toda a contra-ofensiva, condenada
à partida, redundou num fracasso.
Soldado ucraniano dispara sobre posições russas perto de Bakhmut. Foto Tyler Hicks/The New York Times |
A parceria funcionava à sombra do mais profundo receio geopolítico — que
Putin pudesse considerar que estava a ser transposta uma linha vermelha de
envolvimento militar e concretizasse as suas ameaças nucleares, muitas vezes
proclamadas. A história da parceria mostra até que ponto os americanos e os
seus aliados se aproximaram por vezes dessa linha vermelha, até que ponto situações
cada vez mais graves os forçaram – alguns alegam que demasiado devagar – a avançar
para terrenos mais perigosos e até que ponto conceberam, com todo o cuidado,
protocolos que lhes permitissem ficar do lado seguro da linha.
Repetidamente, o Governo Biden autorizou operações clandestinas que
anteriormente proibira. Foram enviados conselheiros militares americanos para Quieve,
que mais tarde receberam autorização de se deslocar para mais perto dos
combates. Oficiais militares e da CIA em Wiesbaden ajudaram a planear e a
apoiar uma campanha de ataques ucranianos na Crimeia anexada pela Rússia [3]. Finalmente,
os militares, e a CIA depois, receberam luz verde que lhes permitia realizar
ataques pontuais no interior da própria Rússia.
De certa forma, a Ucrânia constituía, numa perspectiva mais abrangente, uma
desforra numa longa história de guerras por procuração entre EUA e Rússia — Vietname
nos anos 60, Afeganistão nos anos 80, Síria três décadas mais tarde.
Constituía de igual modo uma excelente experiência de combate, que não só
ajudaria os ucranianos, mas também daria aos americanos lições para qualquer
guerra futura.
No decurso das guerras contra os talibãs e a Al Qaeda no Afeganistão e
contra o Estado Islâmico no Iraque e na Síria, as forças americanas conduziram
as suas próprias operações no terreno e apoiaram as dos seus parceiros locais.
Na Ucrânia, pelo contrário, as forças armadas americanas não estavam
autorizadas a colocar nenhum soldado no campo de batalha e qualquer ajuda teria
de ser remota.
Será que a precisão da localização dos alvos, aperfeiçoada contra grupos
terroristas, seria eficaz num conflito com uma das forças armadas mais
poderosas do mundo? Será que os artilheiros ucranianos iriam disparar os seus
obuses sem hesitar, seguindo as coordenadas enviadas por oficiais americanos
num quartel-general a mais de 2000 quilómetros [1300 milhas] de distância? Será
que os comandantes ucranianos, a partir de informações transmitidas por vozes
americanas não identificadas a dizer: “Não há ninguém ali – avancem”, iriam ordenar aos soldados de
infantaria que entrassem numa aldeia atrás das linhas inimigas?
As respostas a estas perguntas – na verdade, toda a trajectória da parceria
– dependeriam da confiança mútua entre oficiais americanos e ucranianos.
O general Zabrodskyi recorda o que o general Donahue lhe disse na primeira
reunião entre ambos: «Eu
nunca lhe vou mentir. Se me mentir, estamos tramados.» «É exactamente essa a minha opinião,» respondeu o ucraniano.
Parte 1: Fevereiro-Maio de 2022
Construir confiança — e uma máquina
de matar
Soldado ucraniano de vigia em Kharkiv, a 25 de Fevereiro de 2022, um dia depois de a Rússia ter invadido a Ucrânia. Tyler Hicks/The New York Times. |
Kyiv = Quieve
Ukraine = UCrÂnIA
Dnipro R. = Rio Dniepre
Kherson = Quérson
Crimea= CrimeIa
Recuperado pela Ucrânia [azul]
Avanços russos [vermelho]
Na posse da Rússia desde 2014 [cor-de-rosa]
………………………………………………………………………………………….
EUA e Aliados
·
Secretário da Defesa Austin
·
General Baldwin
·
Presidente Biden
·
General Cavoli
·
General Donahue
·
General Milley
Ucrânia
·
Ministro da Defesa Reznikov.
·
General Syrsky
·
General Zabrodskyi
Em meados de abril de 2022, cerca de duas semanas antes da
reunião de Wiesbaden, oficiais navais americanos e ucranianos estavam numa
reunião de rotina de partilha de informações quando algo inesperado surgiu nos
radares. Segundo um antigo oficial superior das Forças Armadas americanas, «Os americanos disseram: ‘Oh, é o Moskva!’
Os ucranianos disseram: ‘Oh, meu Deus. Muito obrigado. Adeusinho.’»
O Moskva era o navio-almirante da Frota Russa do Mar Negro. Os
ucranianos afundaram-no.
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Uma Nota sobre as fontes
Ao
longo de mais de um ano de reportagem, Adam Entous realizou mais de 300
entrevistas com actuais e antigos responsáveis políticos, oficiais do
Pentágono, agentes dos serviços secretos e militares na Ucrânia, Estados
Unidos, Grã-Bretanha e vários outros países europeus. Embora alguns tenham
concordado em falar oficialmente, a maioria pediu que os seus nomes não fossem
utilizados para discutir operações militares e secretas sensíveis.
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O afundamento foi um sinal de triunfo — uma demonstração da perícia ucraniana e da inépcia russa. Mas o episódio reflectia também o estado de desarticulação das relações ucraniano-americanas nas primeiras semanas da guerra.
Os americanos estavam enfurecidos, porque os ucranianos não tinham avisado
ninguém; surpreendidos, porque a Ucrânia possuía mísseis capazes de atingir o
navio; e em pânico, porque o Governo Biden não tinha qualquer intenção de
permitir que os ucranianos atacassem um símbolo tão forte do poderio russo.
Quanto aos ucranianos, por seu lado, partiam de uma posição de cepticismo
profundamente enraizado.
A guerra que travavam, no seu entender, começara em 2014, quando Putin
conquistou a Crimeia e fomentou revoltas separatistas no leste da Ucrânia. O
Presidente Barack Obama condenou a tomada da Crimeia e impôs sanções à Rússia, mas
temendo que o envolvimento americano pudesse provocar uma invasão em grande
escala, autorizou apenas uma partilha de informações rigorosamente limitada e
rejeitou os pedidos de armas defensivas. «Cobertores e óculos de visão nocturna são importantes,
mas cobertores não ganham guerras,» queixou-se o então Presidente da Ucrânia, Petro O.
Poroshenko. Obama acabou por, de certa forma, abrandar as restrições quanto a
informações, e Trump, no primeiro mandato, abrandou-as ainda mais e forneceu
aos ucranianos os primeiros Javelin antitanque.
Depois, nos prodigiosos dias que antecederam a invasão russa de 24 de
Fevereiro de 2022, o Governo Biden encerrou a embaixada em Quieve e retirou
todo o pessoal militar do país. (Uma pequena equipa de oficiais da CIA foi
autorizada a ficar.) Segundo os ucranianos, um oficial superior das forças
armadas dos EUA afirmou, «Nós
dissemos-lhes, ‘Os russos vêm aí – até já.’»
Quando os generais americanos ofereceram ajuda após a invasão, enfrentaram
um muro de desconfiança. «Nós
estamos a lutar contra os russos. Vocês não. Porque é que havemos de vos dar
ouvidos?» disse o comandante das forças
terrestres da Ucrânia, o coronel-general Oleksandr Syrsky, aos americanos
quando se encontraram pela primeira vez.
Mas o general Syrsky rapidamente virou a página: os americanos podiam dar o
tipo de informações sobre o campo de batalha que o seu pessoal nunca
conseguiria dar.
Naqueles primeiros dias, isto significava que o general Donahue e os seus
auxiliares, com pouco mais do que os telefones que possuíam, passavam
informações sobre os movimentos das tropas russas ao general Syrsky e ao seu
Estado-maior. No entanto, até mesmo esse acordo ad hoc colocou o dedo na
ferida da rivalidade no seio das Forças Armadas ucranianas entre o general
Syrsky e o seu superior, o Comandante das Forças Armadas Ucranianas general
Valerii Zalujny. Para os fiéis de Zalujny, o general Syrsky já estava a tirar
partido do relacionamento para obter vantagens.
Para complicar ainda mais a situação, o general Zalujny tinha uma relação
difícil com o seu homólogo americano, general Mark A. Milley, chefe do
Estado-Maior Conjunto dos EUA.
Em conversas telefónicas, o general Milley questionava os pedidos de
equipamento dos ucranianos e dava conselhos sobre o campo de batalha com base
em informações de satélite no ecrã do seu gabinete no Pentágono. Seguia-se um
silêncio embaraçoso e o general Zalujny acabava com a conversa. Por vezes,
chegava mesmo a ignorar os telefonemas do americano.
Para os manter a falar, o Pentágono elaborou um complicado sistema de
comunicações telefónicas: um assistente de Milley ligava ao major-general David
S. Baldwin, comandante da Guarda Nacional da Califórnia, que telefonava a Igor
Pasternak, um rico fabricante de dirigíveis de Los Angeles que cresceu em Levive
com Oleksii Reznikov, Ministro da Defesa da Ucrânia à época. Reznikov localizava
o general Zalujny para, segundo o general Baldwin, lhe dizer «Eu sei que estás furioso com o Milley,
mas tens de lhe ligar.»
A rápida sequência de acontecimentos transformou uma aliança desorganizada
numa parceria.
Em Março, com a estagnação do ataque contra Quieve, os russos reorientaram
as suas ambições e o seu plano de guerra, enviando forças adicionais para Leste
e Sul — uma acção logística que os americanos estimavam que demoraria meses. Duas
semanas e meia bastaram.
A não ser que a coligação reorientasse as suas próprias ambições, os generais
Donahue e Christopher G. Cavoli, comandante do Exército dos EUA na Europa e em
África, concluíram que os ucranianos, irremediavelmente ultrapassados em homens
e armas, perderiam a guerra. Por outras palavras, a coligação teria de começar
a fornecer armas ofensivas pesadas — baterias de artilharia M777 e munições.
O Governo Biden organizara anteriormente carregamentos de emergência de armas antiaéreas e antitanque. Os M777 eram algo completamente diferente — o primeiro grande salto no sentido de apoiar uma grande guerra terrestre.
O Secretário da Defesa, Lloyd J. Austin III, e o general Milley encarregaram
a 18.ª Aerotransportada de entregar as armas e aconselhar os ucranianos sobre a
sua utilização. Quando o Presidente Joseph R. Biden Jr. aprovou os M777, o
Auditório Tony Bass passou a ser um quartel-general de pleno direito.
Um general polaco assumiu a posição de adjunto do general Donahue, um
general britânico seria responsável por gerir o centro logístico no antigo
campo de basquetebol e a formação ficaria a cargo de um canadiano.
A cave do auditório transformou-se naquilo que é conhecido como um centro
de fusão, produzindo informações sobre posições, movimentos e intenções russas
no campo de batalha. Aqui, segundo funcionários dos serviços secretos,
trabalhavam em conjunto oficiais da CIA, da Agência Nacional de Segurança
(NSA), da Agência de Informações da Defesa (DIA) e da Agência Nacional de
Informação Geoespacial (NGA) e ainda oficiais dos serviços secretos da
coligação.
A 18.ª Aerotransportada é conhecida como o Corpo do Dragão; a nova operação
seria a Força de Intervenção do Dragão. Só faltava o relutante comando superior
ucraniano para que as peças estivessem todas juntas.
Numa conferência internacional realizada a 26 de Abril na Base Aérea de
Ramstein, na Alemanha, o general Milley apresentou Reznikov e um adjunto de
Zalujny aos generais Cavoli e Donahue. «Estes são os vossos homens,» disse-lhes o general Milley, acrescentando:
«Vão ter de trabalhar com eles. São
eles que vos irão ajudar.»
Estavam a ser criados laços de confiança. Reznikov aceitou conversar com o general
Zalujny. De regresso a Kiev, «discutimos
a composição de uma delegação» para Wiesbaden, disse Reznikov. «E foi assim que tudo começou.»
No centro da parceria estavam dois generais — o ucraniano
Zabrodskyi e o americano Donahue.
O general Zabrodskyi seria o principal contacto ucraniano de Wiesbaden,
embora com um estatuto não oficial, uma vez que estava no Parlamento. Em todos
os outros aspectos, ele era um nacional.
Tenente-General Mykhaylo Zabrodskyi, personalidade chave da Ucrânia na parceria de Wiesbaden. Nicole Tung para o The New York Times |
A exemplo de muitos dos seus contemporâneos nas Forças Armadas ucranianas,
o general Zabrodskyi conhecia bem o inimigo. Nos anos de 1990, frequentara a
Academia Militar de São Petersburgo e serviu no exército russo durante cinco
anos.
E também conhecia os americanos: de 2005 a 2006, estudou na Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército de Fort Leavenworth, Kansas. Oito anos
depois, o general Zabrodskyi chefiou uma perigosa missão na retaguarda das
linhas das forças apoiadas pela Rússia no leste da Ucrânia, inspirada em parte
numa missão que tinha estudado em Fort Leavenworth — a famosa missão de
reconhecimento do general Confederado J.E.B. Stuart à volta do Exército do
Potomac do general George B. McClellan. Esta missão atraiu a atenção de pessoas
influentes no Pentágono, para quem o general era o tipo de chefe com quem
poderiam trabalhar.
O general Zabrodskyi recorda aquele primeiro dia em Wiesbaden: «A minha missão era descobrir: quem
é este general Donahue? Quais são os seus poderes? O que é que ele pode fazer
por nós?»
O general Donahue era uma estrela no mundo clandestino das forças especiais.
Juntamente com equipas de assassinos da CIA e parceiros locais, perseguiu
chefes terroristas nas sombras de Iraque, Síria, Líbia e Afeganistão. Como chefe
do destacamento de elite Força Delta, ajudou a construir uma parceria com os
combatentes curdos na luta contra o Estado Islâmico na Síria. O general Cavoli comparou-o
a um «herói de acção da banda desenhada.»
Tenente-General Christopher T. Donahue, ao centro, sem capacete, no Afeganistão por volta de 2020. |
Mostrava agora ao general Zabrodskyi e ao seu companheiro de viagem, o major-general
Oleksandr Kyrylenko, um mapa do Leste e Sul do país sitiado, com as forças
russas a superarem as ucranianas. Invocando o grito de guerra «Glória à Ucrânia», lançou o desafio: «Podem gritar ‘Slava Ukraini’
quantas vezes quiserem com outros. A vossa coragem não me interessa. Vejam os
números». Depois, apresentou-lhes um plano
para ganharem vantagem no campo de batalha até ao Outono, recordou o general
Zabrodskyi.
A primeira fase estava em curso — a formação de artilheiros ucranianos para
os novos M777. A Força de Intervenção do Dragão iria depois ajudá-los a
utilizar as armas que lhes permitiram deter o avanço russo. A seguir, era
preciso que os ucranianos montassem uma contra-ofensiva.
Nessa noite, o general Zabrodskyi escreveu aos seus superiores em Kiev.
«Como sabem, muitos países queriam
apoiar a Ucrânia», recordou. Mas «era
preciso que alguém coordenasse, organizasse tudo, que resolvesse os problemas
actuais e que pensasse no que seria necessário no futuro. Eu disse ao
comandante-chefe: ‘Encontrámos o nosso parceiro.’»
Rapidamente os ucranianos, cerca de 20 no total – oficiais dos
serviços secretos, planeamento operacional, comunicações e especialistas de
controlo do fogo – iam chegando a Wiesbaden. Todas as manhãs, recordam os
oficiais, ucranianos e americanos reuniam-se para analisar os sistemas de
armamento e as forças terrestres russas e determinar os alvos mais adequados e
de maior valor. As listas de prioridades eram então entregues ao centro de
fusão de informações, onde os oficiais analisavam os fluxos de dados para
identificar a localização dos alvos.
No seio do Comando Europeu dos EUA este processo suscitou um debate
linguístico refinado, embora tenso: atendendo à delicadeza da missão, seria
excessivamente provocador designar os alvos como “alvos”?
Alguns oficiais entendiam que “alvos” estava bem. Outros preferiam “informações oscilantes”, porque os russos estavam sempre em movimento e a informação
tinha de ser verificada no terreno.
O debate foi encerrado pelo major-general Timothy D. Brown, Chefe de
Informações do Comando Europeu: as localizações de forças russas serão “pontos interessantes.” As informações sobre ameaças
aerotransportadas serão “pistas
interessantes.”
«Se alguma vez alguém perguntar,
‘Comunicou um alvo aos ucranianos?’ é legítimo que não esteja a mentir quando
diz ‘Não, não comuniquei,’» esclareceu um oficial americano.
Cada ponto interessante teria de cumprir regras de partilha de informações
concebidas para reduzir o risco de retaliação russa contra os parceiros da OTAN
[/NATO].
Não haveria qualquer ponto interessante em solo russo. Se os comandantes
ucranianos quisessem atacar dentro da Rússia, explicou o general Zabrodskyi, teriam
de recorrer às suas próprias informações e a armas produzidas internamente. «A nossa mensagem para os russos era,
‘Esta guerra deve ser travada dentro da Ucrânia,’» disse um alto oficial dos EUA.
Soldados ucranianos preparam-se para disparar um obus M777 contra forças russas na região de Donetsk. Ivor Prickett para o The New York Times. |
A Casa Branca proibiu igualmente a partilha de informações sobre a
localização de dirigentes russos “estratégicos”, como o chefe das Forças Armadas, o general Valery
Gerasimov. «Imaginem o que
faríamos se soubéssemos que os russos ajudaram outro país a assassinar o nosso Presidente,» referiu outro alto oficial dos
EUA. «Claro que iríamos para a guerra.» De igual modo, a Força de
Intervenção do Dragão não podia partilhar informações que identificassem a
localização de personalidades russas.
Pela forma como o sistema funcionava, a Força de Intervenção do Dragão dizia
aos ucranianos onde estavam as posições dos
russos. Mas, para proteger as fontes e os métodos dos serviços de informações
contra os espiões russos, não dizia como sabia o que sabia. Tudo o que
os ucranianos veriam numa nuvem segura eram cadeias de coordenadas,
compartimentadas – Prioridade 1, Prioridade 2 e assim por diante. Como o general
Zabrodskyi recorda, se os ucranianos perguntassem por que razão deviam confiar
nas informações, o general Donahue dizia: «Não se preocupem com a forma como descobrimos. Basta
confiarem que, quando dispararem, o tiro atinge o alvo, e os resultados serão
do vosso agrado. E se não gostarem dos resultados, digam-nos, procuraremos
fazer melhor.»
O sistema ficou pronto em Maio. O primeiro alvo
seria um veículo blindado equipado com radar, conhecido como Zoopark, utilizado
pelos russos para detectar sistemas de armas como os M777 ucranianos. O centro
de fusão encontrou um Zoopark perto de Donetsk, ocupada pelos russos, no leste
da Ucrânia.
Cabia aos ucranianos montar a armadilha: primeiro, disparavam em direcção
às linhas russas. Quando os russos ligassem o Zoopark para localizar o fogo, o
centro de fusão iria identificar as coordenadas do Zoopark na preparação para o
ataque.
No dia escolhido, lembrou o general Zabrodskyi, o general Donahue ligou ao
comandante de batalhão com um discurso animador: «Tudo bem consigo?» perguntou. «Excelente,» respondeu o ucraniano. O general
Donahue verificou então as imagens de satélite para ter a certeza de que o alvo
e o M777 estavam bem posicionados. Só então é que o artilheiro abriu fogo,
destruindo o Zoopark. «Todos
gritaram, ‘Conseguimos!’» recordou um oficial EUA.
Mas subsistia uma questão crítica: tendo feito isto contra um só alvo
estacionário, poderiam os parceiros utilizar o sistema contra vários alvos numa
verdadeira batalha de grande dimensão?
Essa poderia ser a batalha em curso a norte de Donetsk, em Sievierodonetsk,
onde os russos procuravam montar uma ponte flutuante que lhes permitisse
atravessar o rio para depois cercar e conquistar a cidade. O general Zabrodskyi
chamou-lhe «um alvo do
diabo.»
O confronto que se seguiu foi largamente noticiado como uma primeira e
importante vitória ucraniana. As pontes flutuantes tornaram-se armadilhas
mortais; pelas estimativas ucranianas, foram mortos pelo menos 400 russos. O
que não se disse foi que os americanos forneceram os pontos interessantes que
ajudaram a frustrar o assalto russo.
Nos primeiros meses, os combates concentraram-se em grande parte no leste
da Ucrânia. Mas os serviços de informações americanos seguiam também os
movimentos russos a sul, sobretudo uma forte concentração de tropas perto da
grande cidade de Quérson. Rapidamente se reposicionaram várias equipas de M777,
e a Força de Intervenção do Dragão começou a definir pontos interessantes para
atacar as forças russas aqui.
Com a prática, a Força de Intervenção do Dragão começou a criar pontos interessantes
mais rapidamente, e os ucranianos atingiam-nos mais depressa. Quanto mais
revelavam a sua eficácia na utilização dos M777 e sistemas semelhantes, mais a
coligação enviava novos sistemas — que Wiesbaden fornecia com cada vez mais pontos
interessantes.
«Sabe quando é que começámos a
acreditar?» lembrou o general
Zabrodskyi. «Quando Donahue
disse, ‘Aqui está uma lista de posições.’ Verificámos a lista e dissemos, ‘Estas
100 posições são boas, mas precisamos de mais 50.’ E eles enviaram mais 50.»
Os M777 transformaram-se em burros de carga do exército ucraniano. Mas como geralmente não conseguiam
lançar os seus projécteis de 155 milímetros a mais de 24 quilómetros [15 milhas],
não estavam à altura da vasta superioridade dos russos em termos de homens e
equipamento.
Para dar aos ucranianos vantagens compensatórias em termos de precisão,
velocidade e alcance, os Generais Cavoli e Donahue de imediato propuseram um
salto ainda maior — o fornecimento de sistemas de lançadores múltiplos de
foguetes de grande mobilidade, conhecidos como HIMARS, que dispunham de
foguetes orientados por satélite para ataques até 80 quilómetros [50 milhas].
O debate que se seguiu reflectiu a evolução do pensamento dos americanos.
Os oficiais do Pentágono resistiram, mostrando-se relutantes em enfraquecer
as limitadas capacidades do Exército em HIMARS. Mas em Maio, o general Cavoli deslocou-se
a Washington e apresentou uma argumentação que acabou por levar a melhor.
Celeste Wallander, à época Secretária-adjunta da Defesa para os Assuntos de
Segurança Internacional, lembrou que «Milley dizia sempre, ‘Temos um pequeno exército russo a
combater um grande exército russo, e eles combatem da mesma maneira, pelo que
os ucranianos nunca ganharão.’» O argumento do general Cavoli, dizia ela, era que «com os HIMARS, eles podem combater
como nós, e é assim que eles vão começar a vencer os russos.»
Na Casa Branca, o Presidente Biden e os seus conselheiros ponderavam esse argumento contra os receios de a pressão sobre os russos só resultar em provocar o pânico em Putin e alargar a guerra. Quando os generais solicitaram os HIMARS, lembrou um funcionário, o momento foi como «estar sobre aquela linha, a perguntar, se dermos um passo em frente, começa a Terceira Guerra Mundial?» E quando a Casa Branca decidiu dar esse passo, disse o funcionário, a Força de Intervenção do Dragão transformou-se «na verdadeira retaguarda da guerra.»
Cabia a Wiesbaden supervisionar cada ataque dos HIMARS. O general Donahue e
os seus adjuntos analisavam as listas de alvos dos ucranianos, aconselhavam o
posicionamento dos lançadores e a temporização dos ataques. Partia-se do
pressuposto de que os ucranianos utilizariam apenas as coordenadas fornecidas
pelos americanos. Para disparar uma ogiva, os operadores de HIMARS necessitavam
de um cartão-chave electrónico especial, que os americanos podiam desactivar a
qualquer momento.
Os ataques de HIMARS que provocaram 100 ou mais mortos ou feridos russos
ocorreram quase todas as semanas. As forças russas estavam atordoadas e
confusas. O moral caiu e, com ele, a vontade de combater. E à medida que o
arsenal de HIMARS passava de 8 para 38 e que os artilheiros ucranianos se tornavam
mais eficazes, referiu um oficial americano, o balanço quintuplicou.
«Tornámo-nos uma pequena parte,
talvez não a melhor parte, mas uma pequena parte, do vosso sistema,» explicou o general Zabrodskyi, que
acrescentou: «Muitos países
passaram por isto ao longo de um período de 10, 20, 30 anos. Mas nós fomos
obrigados a fazê-lo em poucas semanas.»
Em conjunto, os parceiros estavam a aperfeiçoar uma máquina assassina.
Derrocada de forças russas no vale do rio Oskil, abandonando material na fuga. Nicole Tung para o The New York Times. |
Parte 2: Junho-Novembro de 2022
“Quando
derrotarem a Rússia, vamos tornar-vos azuis para sempre”
Kiev= Quieve
Kharkiv = Carquive ou Carcóvia
Oskil R.= Rio Oskil
Izium
Dnipro R.= Rio Dniepre
UKRAINE= UCrÂnIA
Zaporizhzhia = Zaporíjia (ou
Zaporójia em Russo)
Mykolaiv = Micolaíve
Melitopol
Kherson= Quérson
Odesa = Odessa
Russia = RÚssia
Crimea = CrimeIa
Recuperado pela Ucrânia [azul]
Avanços russos [vermelho]
Na posse da Rússia [cor-de-rosa]
EUA e Aliados
·
Presidente Biden
·
General Donahue
·
Ministro
da Defesa do Reino Unido Wallace
Ucrânia
·
General Syrsky
·
[sem foto]
General Tarnavskyi
·
General Zabrodskyi
·
Presidente Zelensky
Na sua primeira reunião, o general Donahue mostrou ao general
Zabrodskyi um mapa colorido da região, com as forças americanas e da OTAN [/NATO]
a azul, as forças russas a vermelho e as forças ucranianas a verde. «Por que razão é que somos verdes?», perguntou o general Zabrodskyi. «Devíamos ser azuis.»
No início de Junho, quando se encontraram para simular a contra-ofensiva
ucraniana, sentados lado a lado e tendo à frente os mapas do campo de batalha
em cima da mesa, o general Zabrodskyi reparou que os pequenos blocos que
marcavam as posições ucranianas eram agora azuis — uma medida simbólica para reforçar
os laços de um objectivo comum. «Quando derrotarem a Rússia,» disse o general Donahue aos
ucranianos, «vamos fazer
com que sejam azuis para sempre.»
Tinham passado três meses desde a invasão, e a história da guerra contada
pelos mapas era a seguinte:
No Sul os ucranianos tinham bloqueado o avanço russo em Micolaíve, centro
de construção naval do Mar Negro. Mas os russos controlavam Quérson, e um corpo
de cerca de 25.000 soldados ocupava território na margem ocidental do Rio Dniepre.
A Leste, os russos tinham sido travados em Izium. Mas detinham território daqui
até à fronteira, incluindo o vale do rio Oskil, estrategicamente importante.
A estratégia dos russos passara da decapitação – o infrutífero assalto a Quieve
[4] – para um lento
estrangulamento. Os ucranianos precisavam de passar ao ataque.
O seu comandante máximo, general Zalujny, juntamente com os britânicos,
preferiu a opção mais ambiciosa – a partir das cercanias de Zaporíjia, no
Sudeste, em direcção à ocupada Melitopol. Esta manobra, acreditavam, cortaria
as rotas terrestres transfronteiriças que sustentavam as forças russas na
Crimeia.
Teoricamente, o general Donahue concordou. Mas, de acordo com colegas, ele
entendia que Melitopol não era viável, dado o estado das forças armadas
ucranianas e a capacidade limitada da coligação em fornecer M777 sem prejudicar
a prontidão americana. Para comprovar a sua posição nas simulações, assumiu a
parte do comandante russo. Sempre que os ucranianos tentavam avançar, o general
Donahue destruía-os com uma força de combate esmagadora.
O que acabaram por acordar foi um ataque em duas partes para confundir os
comandantes russos que, de acordo com os serviços de informações americanos,
acreditavam que os ucranianos só tinham soldados e equipamento suficientes para
uma única ofensiva.
O principal esforço seria reconquistar Quérson e proteger a margem
ocidental do Dniepre, para que o corpo de exército não avançasse em direcção ao
porto de Odessa e se posicionasse para outro ataque a Quieve.
O general Donahue tinha defendido uma segunda frente igual a Leste, a
partir da região de Carcóvia [/Carquive], para alcançar o vale do rio Oskil.
Mas os ucranianos defenderam, em vez disso, uma pequena manobra de apoio para
atrair as forças russas para Leste e abrir caminho para Quérson.
Isso aconteceria primeiro, por volta de 4 de Setembro. Os ucranianos
iniciariam então duas semanas de ataques de artilharia para enfraquecer as
forças russas no Sul. Só então, por volta de 18 de Setembro, marchariam em
direcção a Quérson.
E se ainda tivessem munições suficientes, atravessariam o Dniepre. O general
Zabrodskyi lembra-se de o general Donahue dizer, «Meus caros, se querem atravessar o
rio e entrar na Crimeia, então cumpram o plano.»
Esse era o plano até o plano deixar de existir.
Por vezes, Zelensky falava directamente com os comandantes regionais, e na
sequência de uma dessas conversas, os americanos foram informados de que a
ordem de batalha mudara.
Quérson seria mais rápido — e seria a primeira, a 29 de Agosto.
O general Donahue disse ao general Zalujny que era necessário mais tempo
para preparar o terreno para Quérson; a mudança, disse ele, punha em risco a contra-ofensiva
e todo o país. Mais tarde, os americanos ficaram a saber a história:
Zelensky esperava estar presente na reunião de meados de Setembro da
Assembleia Geral das Nações Unidas. Ele e os seus conselheiros acreditavam que
uma exibição dos progressos no campo de batalha reforçaria o seu argumento a
favor de apoio militar adicional. Por isso, alteraram o plano à última hora — uma
antevisão de uma desconexão fundamental que iria moldar cada vez mais o arco da
guerra.
O resultado não foi o que estava previsto.
Os russos responderam deslocando reforços de Leste em direcção a Quérson. O
general Zalujny apercebeu-se então de que o enfraquecimento das forças russas a
Leste poderia muito bem permitir que os ucranianos fizessem o que o general
Donahue tinha defendido – alcançar o vale do rio Oskil. Um oficial europeu
recordou o que o general Donahue disse ao comandante ucraniano, general Syrsky:
«Avance, avance – eles estão
encostados às cordas».
As forças russas colapsaram ainda mais depressa do que o previsto,
abandonando o equipamento na fuga. O comando ucraniano nunca esperara que as
suas forças chegassem à margem ocidental do Oskil e, quando o fizeram, a
posição do general Syrsky junto do Presidente subiu em flecha.
No Sul, os serviços de informações americanos comunicaram que o corpo de
exército na margem oeste do Dniepre estava a ficar sem alimentos e munições.
Os ucranianos vacilaram. O general Donahue apelou ao comandante no terreno,
o major-general Andrii Kovalchuk, para que avançasse. E os superiores do
americano, os generais Cavoli e Milley, logo levaram o assunto ao general Zalujny.
Mas também esta instância não funcionou.
O Ministro da Defesa inglês, Ben Wallace, perguntou ao general Donahue o
que faria se o general Kovalchuk fosse seu subordinado.
«Já o teríamos despedido,» respondeu Donahue.
«Já percebi,» disse Wallace. Os militares
britânicos tinham uma influência considerável em Kiev; ao contrário dos americanos,
tinham colocado pequenas equipas de oficiais no país após a invasão. Agora, o
Ministro da Defesa exercia essa influência e exigia que os ucranianos
destituíssem o comandante.
É provável que nenhum pedaço de solo ucraniano fosse mais
precioso para Putin do que a Crimeia. À medida que os ucranianos avançavam, com
muitas hesitações, sobre o Dniepre na esperança de o atravessarem e avançarem
em direcção à península, surgiu aquilo a que um oficial do Pentágono chamou a “tensão central”:
― Para incentivar o Presidente russo a negociar um acordo, explicou o
funcionário, os ucranianos teriam de exercer pressão sobre a Crimeia. Mas isso
poderia levá-lo a pensar em fazer «algo desesperado.»
Os ucranianos já pressionavam no terreno. E o Governo Biden autorizara a
ajuda aos ucranianos para desenvolver, fabricar e instalar uma frota emergente
de drones marítimos que pudessem atacar a Frota Russa do Mar Negro. (Os
americanos deram aos ucranianos um protótipo inicial destinado a combater um
ataque naval chinês a Taiwan.) Primeiro, a Marinha recebeu autorização para
partilhar pontos interessantes relativos a vasos de guerra russos, mesmo para
além das águas territoriais da Crimeia. Em Outubro, com margem de manobra para actuar
na própria Crimeia, a CIA começou a apoiar secretamente ataques de drones
ao porto de Sebastopol.
No mesmo mês, os serviços de secretos norte-americanos ouviram por acaso o
comandante russo na Ucrânia, general Sergei Surovikin, a falar de algo
desesperado: utilizar armas nucleares tácticas para impedir que os ucranianos
atravessassem o rio Dniepre e se dirigissem directamente à Crimeia.
Até àquele momento, os serviços secretos americanos tinham estimado em 5 a 10% a probabilidade de a Rússia utilizar armas nucleares na Ucrânia. Agora, afirmavam que se as linhas russas no Sul colapsassem, a probabilidade era de 50%.
Essa tensão central parecia estar a chegar ao auge.
Na Europa, os generais Cavoli e Donahue imploravam ao substituto do general
Kovalchuk, o brigadeiro-general Oleksandr Tarnavskyi, que avançasse as suas
brigadas, expulsasse o corpo de exército da margem oeste do Dniepre e se
apoderasse do equipamento.
Em Washington, os principais conselheiros de Biden imaginavam nervosamente
o contrário — se teriam de pressionar os ucranianos a abrandar o avanço.
Este momento pode ter sido a melhor oportunidade para os ucranianos
desferirem um golpe decisivo nos russos. Poderia também ter sido a melhor
oportunidade para desencadear uma guerra mais alargada.
No fim de contas, numa espécie de grande ambiguidade, o momento nunca
chegou.
Para proteger as suas forças em fuga, os comandantes russos deixaram para
trás pequenos destacamentos de tropas. O general Donahue aconselhou o general
Tarnavskyi a destruí-los ou a contorná-los, concentrando-se no objectivo
principal — o corpo de exército. Mas sempre que os ucranianos encontravam um
destacamento, paravam, assumindo que uma força maior estava à espera.
O general Donahue disse-lhe que as imagens de satélite mostravam que as
forças ucranianas estavam bloqueadas por um ou dois tanques russos, de acordo
com oficiais do Pentágono. Mas como não podia ver essas imagens de satélite, o
comandante ucraniano hesitava, receoso de fazer avançar as suas forças.
Para conseguir que os ucranianos se movimentassem, a Força de Intervenção
do Dragão enviou pontos interessantes, e os operadores de M777 destruíam os
tanques com mísseis Excalibur — acções demoradas que tinham de ser repetidas
sempre que os ucranianos encontravam um destacamento russo.
Ucranianos celebram a reconquista de Quérson. Lynsey Addario para o The New York Times. |
Os ucranianos ainda reconquistaram Quérson e limparam a margem oeste do
Dniepre, mas a ofensiva ficou por aí. Os ucranianos, com poucas munições, não conseguiram
atravessar o Dniepre. Nem avançar em direcção à Crimeia, como eles próprios
esperavam e os russos temiam.
E à medida que os russos escapavam para o outro lado do rio, mais para dentro do território ocupado, enormes máquinas iam rasgando a terra, abrindo longas e profundas linhas de trincheiras no seu rasto.
Mesmo assim, os ucranianos estavam em clima de festa e, na viagem que fez a
seguir a Wiesbaden, o general Zabrodskyi ofereceu ao general Donahue uma “recordação de combate”: um colete táctico que pertencera
a um soldado russo cujos camaradas marchavam já para Leste, rumo ao que se
tornaria no caldeirão de 2023 — Bakhmut.
Soldados ucranianos em Bakhmut, onde se travaram combates prolongados e que o Presidente Volodymyr Zelensky denominou de “bastião da nossa moral.” Tyler Hicks/The New York Times. |
Parte 3: Novembro 2022-Novembro 2023
Os melhores planos
Kiev= Quieve
Kharkiv= Carcóvia (ou Carquive)
Oskil R. = Rio Oskil
Luhansk=
Lugansk
Bakhmut
Dnipro R.= Rio Dniepre
Ukraine= UCrÂnIA
Makiivka
Robotyne
Tokmak
Melitopol
Russia =rússia
Crimea=CrimeIa
Recuperado pela Ucrânia [azul]
Avanços russos [vermelho]
Na posse da Rússia [cor-de-rosa]
EUA e Aliados
·
General Aguto
·
Secretário
da Defesa dos EUA Austin.
·
General Cavoli
·
General Donahue
·
General Milley
Ucrânia
·
General Syrsky
·
[Sem foto]
General Tarnavskyi
·
General Zabrodskyi
·
Presidente Zelensky
O planeamento para 2023 começou de imediato, num momento que,
em retrospectiva, foi de exuberância irracional.
A Ucrânia controlava as margens ocidentais dos rios Oskil e Dniepre. No
seio da coligação, a opinião dominante era que a contra-ofensiva de 2023 seria
a última da guerra: os ucranianos reivindicariam o triunfo absoluto, ou Putin
seria forçado a pedir a paz.
«Vamos ganhar tudo isto», disse Zelensky à coligação,
recordou um alto funcionário americano.
Para isso, explicou o general Zabrodskyi quando os parceiros se reuniram em
Wiesbaden no final do Outono, o general Zalujny insistiu mais uma vez que o
esforço principal incidisse numa ofensiva em direcção a Melitopol, para
estrangular as forças russas na Crimeia — o que ele acreditava ter sido a
grande oportunidade negada em 2022 de dar um golpe de misericórdia no inimigo.
E, mais uma vez, alguns generais americanos recomendaram prudência.
No Pentágono, os oficiais estavam preocupados com a capacidade de fornecerem
armas suficientes para a contra-ofensiva; talvez os ucranianos, na sua posição
mais forte possível, devessem considerar a hipótese de fazerem um acordo.
Quando o chefe do Estado-Maior Conjunto, general Milley, lançou essa ideia num
discurso, muitos dos apoiantes da Ucrânia (incluindo os Republicanos do
Congresso, que na altura apoiavam maioritariamente a guerra) clamaram por um apaziguamento.
Em Wiesbaden, em conversas privadas com o general Zabrodskyi e com os
britânicos, o general Donahue apontou as trincheiras russas que estavam a ser
cavadas para defender o Sul. Apontou ainda a paragem do avanço dos ucranianos
para o Dniepre, poucas semanas antes. «Eles estão a cavar, rapazes», disse-lhes ele. «Como é que vão atravessar isto?»
O que ele defendeu em vez disso, segundo o general Zabrodskyi e um oficial
europeu, foi uma pausa: se os ucranianos passassem o ano seguinte, ou mesmo
mais tempo, a construir e a treinar novas brigadas, estariam em muito melhor
posição para combater até Melitopol.
Os britânicos, por seu lado, argumentavam que, se os ucranianos iam avançar de qualquer modo, a coligação precisava de os ajudar. Não tinham de ser tão bons como os britânicos e os americanos, diria o general Cavoli; tinham apenas de ser melhores do que os russos.
Não haveria qualquer pausa. O general Zabrodskyi diria ao general Zalujny, «Donahue tem razão.» Mas acabaria também por admitir
que «ninguém gosta das recomendações de Donahue,
só eu.»
E para além disso, o general Donahue estava de saída.
O destacamento da 18.ª Aerotransportada sempre fora temporário. Haveria
agora uma organização mais permanente em Wiesbaden, o Grupo de Assistência à
Segurança-Ucrânia, com o indicativo de chamada Erebus — a personificação
mitológica grega das trevas.
Nesse dia de Outono, terminada a sessão de planeamento e o tempo que
passaram juntos, o general Donahue acompanhou o general Zabrodskyi ao aeródromo
de Clay Kaserne. Aí, ofereceu-lhe um escudo ornamental — a insígnia do Dragão da
18.ª Aerotransportada, rodeada por cinco estrelas.
A mais ocidental representava Wiesbaden e, ligeiramente a Leste, o
aeroporto de Rzeszów-Jasionka. As outras estrelas eram Quieve, Quérson e Carcóvia
— para o general Zalujny e os comandantes do Sul e do Leste.
E, por baixo das estrelas, «Obrigado».
«Perguntei-lhe, ‘Porque
é que me está a agradecer?’» recordou o general Zabrodskyi. ‘Eu é que devia
agradecer.’»
O general Donahue explicou que eram
os ucranianos que combatiam e morriam, que testavam os equipamentos e as
tácticas dos americanos e que partilhavam as lições aprendidas. «Graças a vós,»
disse, «fizemos todas estas coisas que nunca poderíamos ter feito.»
Gritando por entre o vento e o ruído do aeródromo, discutiram sobre quem
merecia mais agradecimentos. Depois apertaram as mãos e o general Zabrodskyi entrou
no C-130 com os motores a trabalhar.
O “novo elemento na sala” era o tenente-general Antonio A.
Aguto Jr., um tipo de comandante diferente, com um tipo de missão diferente.
Donahue era um homem que corria riscos. O general Aguto construíra uma
reputação de homem ponderado e especialista em formação e operações de grande
escala. Depois da conquista da Crimeia em 2014, o Governo Obama alargou a
formação que dava aos ucranianos, incluindo numa base no extremo oeste do país;
o programa foi supervisionado pelo general Aguto. Em Wiesbaden, a sua
prioridade N.º 1 seria preparar novas brigadas. «Tem de os preparar para o combate,» disse-lhe Lloyd Austin, Secretário
da Defesa.
Isto significava uma maior autonomia para os ucranianos, um reequilíbrio de
relações: no início, Wiesbaden trabalhou para ganhar a confiança dos
ucranianos. Agora eram os ucranianos que pediam a confiança de Wiesbaden.
Em breve iria surgir a oportunidade desejada.
Os serviços secretos ucranianos tinham detectado um quartel russo
improvisado numa escola na região ocupada de Makiivka. «Confiem em nós», disse o general Zabrodskyi ao general
Aguto. O americano fê-lo, e o ucraniano recordou: «Fizemos todo o processo de selecção
de alvos de forma absolutamente independente». O papel de Wiesbaden seria apenas o de transmitir
as coordenadas.
Imagem de satélite de uma escola em território ocupado de Makiivka, onde os russos estabeleceram um quartel. Maxar Technologies |
O local após um ataque com a ajuda de informações dos EUA. Maxar Technologies |
Nesta nova fase da parceria, os oficiais americanos e ucranianos
continuavam a reunir-se diariamente para definir prioridades, que o centro de
fusão transformava em pontos interessantes. Mas os comandantes ucranianos
tinham agora mais liberdade de utilizar os HIMARS para atingir alvos
adicionais, fruto das suas próprias informações — se houvesse acordo sobre as
prioridades.
«Vamos recuar e observar e estaremos
atentos para garantir que não fazem nenhuma loucura», disse o general Aguto aos
ucranianos. «O objectivo» acrescentou, «é que, a dada altura, possam operar
sozinhos».
Como um reflexo de 2022, as simulações de Janeiro de 2023 deram
origem a um plano com duas vertentes.
A ofensiva secundária, das forças do general Syrsky, a Leste, centrar-se-ia em Bakhmut – onde os combates se travavam há meses – com uma simulação em direcção à região de Lugansk, uma área anexada por Putin em 2022. A razão desta manobra era fixar as forças russas no Leste e abrir caminho para o esforço principal, no Sul — o ataque a Melitopol, onde as fortificações russas apodreciam e se desmoronavam com a humidade e o frio do Inverno.
Mas o novo plano começava a sofrer de outros problemas.
Independentemente de o general Zalujny ter sido o supremo comandante da
Ucrânia, a sua supremacia era cada vez mais posta em causa pela concorrência do
general Syrsky. Segundo oficiais ucranianos, a rivalidade remontava à decisão
de Zelensky, em 2021, de promover Zalujny em detrimento do seu antigo chefe,
Syrsky, e intensificou-se após a invasão, quando os comandantes lutavam pelo
acesso às limitadas baterias de HIMARS. O general Syrsky nascera na Rússia e
servira no seu exército; enquanto não começou a trabalhar em ucraniano, o russo
era a língua que habitualmente utilizava nas reuniões. Por vezes, ironicamente,
Zalujny referia-se a Syrsky como «aquele general russo».
Os americanos sabiam que o general Syrsky estava descontente com o apoio
recebido na contra-ofensiva. Quando o general Aguto lhe telefonou para se
certificar de que entendia o plano, ele respondeu, «Não concordo, mas tenho as minhas
ordens.»
A contra-ofensiva deveria começar a 1 de Maio, e os meses seguintes foram
passados a treinar para o ataque. A contribuição do general Syrsky seria de
quatro brigadas de combate – 3000 a 5000 soldados cada uma – para treino na
Europa, às quais se juntariam quatro brigadas de novos recrutas.
Mas o general tinha outros planos.
Em Bakhmut, os russos destacavam e perdiam um grande número de soldados. O general
Syrsky viu uma oportunidade de os derrotar e lançar a discórdia nas fileiras. «Levem todos os novos homens» para Melitopol, disse ele ao general
Aguto, segundo oficiais americanos. E quando Zelensky o apoiou, apesar das
objecções do seu próprio comandante supremo e dos americanos, uma base decisiva
da contra-ofensiva acabou de facto por ser destruída.
Os ucranianos iriam então enviar apenas quatro brigadas não testadas para
treino no estrangeiro. (Preparariam mais oito na Ucrânia.) Além disso, os novos
recrutas já não eram novos — tinham na sua maioria 40 a 50 anos. Quando
chegaram à Europa, um alto funcionário americano recordou: «O que pensámos foi: isto não é nada
bom.»
A idade de recrutamento na Ucrânia era de 27 anos. O general Cavoli, que fora
promovido a comandante supremo aliado para a Europa, pediu ao general Zalujny
que «colocasse os seus jovens de 18 anos
em jogo». Mas os americanos concluíram que
nem o Presidente nem o general aceitariam uma decisão tão difícil do ponto de
vista político.
Uma dinâmica paralela desenrolava-se do lado americano.
No ano anterior, os russos tinham imprudentemente colocado postos de
comando, depósitos de munições e centros de logística a menos de 80 quilómetros
[50 milhas] das linhas da frente. Mas novas informações mostraram que os russos
tinham deslocado instalações críticas afastando-as do alcance dos HIMARS.
Assim, os Generais Cavoli e Aguto recomendaram um novo salto qualitativo, dando
aos ucranianos os Sistemas de Mísseis Tácticos do Exército – conhecidos como
ATACMS, que podem percorrer até cerca de 300 quilómetros [190 milhas] – para
dificultar a ajuda das forças russas na Crimeia na defesa de Melitopol.
Os ATACMS eram um assunto particularmente sensível para o Governo Biden. O
chefe militar russo, general Gerasimov, tinha-se referido indirectamente a eles
no mês de Maio anterior, quando avisou o general Milley que o que quer que percorresse
300 quilómetros [190 milhas] estaria a violar uma linha vermelha. Havia também
a questão do fornecimento: o Pentágono avisara já que não dispunha de ATACMS
suficientes se a América tivesse de travar a sua própria guerra.
A mensagem era clara: «Deixem
de pedir ATACMS».
Os pressupostos subjacentes tinham sido derrubados. Ainda
assim, os americanos viam um caminho para a vitória, ainda que estreito. A
chave para a vitória era iniciar a contra-ofensiva a tempo, a 1 de Maio, não
dando tempo aos russos de repararem as suas fortificações e deslocarem mais
tropas para reforço de Melitopol.
Mas a data-limite chegou e passou. Algumas entregas de munições e
equipamento que estavam prometidas atrasaram-se e, apesar das garantias do general
Aguto de que havia o suficiente para começar, os ucranianos não se comprometiam
enquanto não tivessem tudo.
A certa altura, com a frustração a aumentar, o general Cavoli virou-se para o general Zabrodskyi e disse-lhe: «Misha, adoro o teu país. Mas se não avançares com isto, vais perder a guerra».
«A minha resposta foi: ‘Compreendo o
que me diz, Christopher. Mas peço-lhe que me compreenda. Eu não sou o
comandante supremo. E não sou o Presidente da Ucrânia’», lembrou o general Zabrodskyi,
acrescentando: «Se
calhar, eu estava a precisar de chorar tanto como ele.»
No Pentágono, os oficiais começavam a sentir a abertura de uma fissura mais
grave. O general Zabrodskyi lembra-se de o general Milley perguntar: «Diga-me a verdade. O plano mudou?»
«Não, não, não», respondeu ele. «Não mudámos o plano e não vamos
mudar.»
Quando proferiu estas palavras, acreditava genuinamente que estava a dizer
a verdade.
Em finais de Maio, as informações mostravam que os russos estavam a
montar rapidamente novas brigadas. Os ucranianos não tinham tudo o que queriam,
mas tinham o que pensavam que era necessário. E teriam de avançar.
Foi o general Zalujny que delineou o plano final numa reunião do Stavka,
órgão governamental que supervisiona assuntos militares. O general Tarnavskyi
teria 12 brigadas e a maior parte das munições para o assalto principal, em
Melitopol. O comandante dos fuzileiros, tenente-general Yurii Sodol, iria
dirigir-se a Mariupol, a cidade portuária em ruínas tomada pelos russos depois
de um cerco devastador no ano anterior. O general Syrsky chefiaria o esforço de
apoio no Leste, à volta de Bakhmut, recentemente perdida após meses de guerra
de trincheiras.
Foi então que Syrsky se pronunciou. De acordo com oficiais ucranianos, o general
disse que queria romper com o plano e executar um ataque em grande escala para
expulsar os russos de Bakhmut. Depois, avançaria para Leste, em direcção à
região de Lugansk, para o que necessitaria de mais homens e munições.
Os americanos não foram informados do resultado da reunião, mas depois os
serviços secretos americanos observaram tropas e munições ucranianas a
moverem-se em direcções inconsistentes com o plano acordado.
Pouco tempo depois, numa reunião organizada à pressa na fronteira polaca, o
general Zalujny admitiu aos generais Cavoli e Aguto que os ucranianos tinham,
de facto, decidido montar ataques em três direcções ao mesmo tempo.
«Não é esse o plano!» gritou o general Cavoli.
O que aconteceu, segundo oficiais ucranianos, foi o seguinte: depois da
reunião do Stavka, Zelensky ordenou que as munições da coligação fossem
divididas em partes iguais entre os generais Syrsky e Tarnavskyi. O general
Syrsky ficaria também com cinco das brigadas recém-formadas, deixando sete para
o combate em Melitopol.
«Foi como assistir ao
desaparecimento da ofensiva de Melitopol mesmo antes de ser lançada», comentou um oficial ucraniano.
Quinze meses depois do início da guerra, tudo estava neste ponto de
viragem.
«Devíamos ter-nos afastado», disse um oficial superior
americano. Mas não o fizeram.
«Estas decisões, que envolvem vida e
morte, territórios que valorizamos mais e territórios que valorizamos menos,
são, no fundamental, decisões soberanas», explicou um oficial superior da Administração
Biden. «Tudo o que podíamos fazer era
dar-lhes conselhos».
O líder do assalto a Mariupol, o general Sodol, era um fervoroso
adepto dos conselhos do general Aguto, e a colaboração entre ambos produziu um
dos maiores êxitos da contra-ofensiva: depois de os serviços secretos
americanos terem identificado um ponto fraco nas linhas russas, as forças do
general Sodol, utilizando os pontos interessantes de Wiesbaden, reconquistaram
a aldeia de Staromaiorske e um território de quase 20 quilómetros quadrados [8
milhas quadradas].
Essa vitória colocava uma questão aos ucranianos: será que o combate em
Mariupol seria mais prometedor do que o de Melitopol? Mas o ataque estagnou por
falta de efectivos.
O problema estava bem patente no mapa do campo de batalha no gabinete do
general Aguto: o ataque do general Syrsky a Bakhmut estava a atrofiar o
exército ucraniano.
O general Aguto instou-o a enviar brigadas e munições para Sul, para o ataque a Melitopol. Mas, segundo oficiais americanos e ucranianos, o general Syrsky não cedeu. Como também não se mexeu quando Yevgeny Prigojin, cujos paramilitares do Wagner tinham ajudado os russos a capturar Bakhmut, se revoltou contra as chefias militares de Putin e enviou forças para Moscovo.
Os serviços secretos americanos avaliaram que a rebelião poderia desgastar
a moral e a coesão dos russos; as intercepções detectaram comandantes russos
surpreendidos pelo facto de os ucranianos não estarem a insistir mais na ténue
defesa de Melitopol, disse um oficial dos serviços secretos americanos.
Mas, na opinião do general Syrsky, a rebelião validava a sua estratégia de
semear a divisão ao entalar os russos em Bakhmut. Enviar algumas das suas
forças para o Sul só iria prejudicá-la. «Eu tinha razão, Aguto. A sua ideia estava errada», disse o general Syrsky, segundo
recorda um oficial americano. E acrescentou: «Vamos chegar a Lugansk.»
Zelensky definira Bakhmut como o «bastião da nossa moral». O que acabou por ser foi uma demonstração sangrenta
da situação difícil dos ucranianos, ultrapassados em números.
Embora os balanços variem muito, não há dúvida de que as baixas dos russos
– na ordem das dezenas de milhares – ultrapassaram de longe as dos ucranianos.
No entanto, o general Syrsky nunca chegou a reconquistar Bakhmut, nunca avançou
em direcção a Lugansk. E enquanto os russos recompunham as suas brigadas e se
mantinham no Leste, os ucranianos não conseguiam recrutar homens tão
facilmente. (Prigojin recuou os seus rebeldes antes de chegar a Moscovo; dois
meses depois, morreu num acidente de avião que os serviços secretos americanos
acreditam ter as características de um assassinato encomendado pelo Kremlin.)
O que deixava Melitopol.
Uma das principais virtudes da máquina de Wiesbaden era a rapidez – reduzir
o tempo entre o ponto interessante e o ataque ucraniano. Mas essa virtude, e
com ela a ofensiva de Melitopol, foi prejudicada por uma mudança fundamental na
forma como o comandante ucraniano utilizou esses pontos interessantes. As
munições à sua disposição eram muito inferiores ao que estava planeado; em vez
de se limitar a disparar, começou a utilizar primeiro os drones para
confirmar as informações.
Este padrão corrosivo, alimentado também pela prudência e por um défice de
confiança, atingiu o pico quando, ao fim de semanas de progressos lentos e
penosos numa paisagem infernal de campos de minas e fogo de helicóptero, as
forças ucranianas se aproximaram da aldeia ocupada de Robotyne.
Os oficiais americanos relataram a batalha que se seguiu. Os ucranianos
martelavam os russos com artilharia; as informações americanas indicavam que
estavam a recuar.
«Podem avançar e conquistar o
terreno,» disse o general Aguto ao general
Tarnavskyi.
Mas os ucranianos tinham avistado um grupo de russos no cimo de uma colina.
Em Wiesbaden, as imagens de satélite mostravam o que parecia ser um pelotão
russo, 20 a 50 soldados — para o general Aguto, não havia justificação para
abrandar a marcha.
Só que o general Tarnavskyi não se mexia enquanto a ameaça não fosse
eliminada. Por isso, Wiesbaden enviou as coordenadas dos russos e aconselhou-o
a abrir fogo e avançar em simultâneo.
Em vez disso, o general Tarnavskyi enviou drones para a colina para
verificar as informações.
Tudo isto levou tempo, e só depois é que ordenou aos seus homens que
disparassem
A seguir ao ataque, reenviou os drones, para confirmar que o topo da
colina estava de facto livre, e só depois é que ordenou às suas forças que
avançassem sobre Robotyne, que tomaram em 28 de Agosto.
O vai-e-vem custou entre 24 e 48 horas, segundo as estimativas dos
oficiais. E, entretanto, a sul de Robotyne, os russos começaram a construir
novas barreiras, a colocar minas e a enviar reforços para travar o avanço
ucraniano. «A situação
mudara completamente», disse o general Zabrodskyi.
Veículo militar abandonado nas proximidades da linha da frente de Robotyne. Reuters. |
O general Aguto gritou para o general Tarnavskyi: «‘Continue.’» Mas os ucranianos tinham de fazer
a rotação das tropas da linha da frente para a retaguarda e, com apenas sete
brigadas, não conseguiam trazer novas forças com rapidez suficiente para prosseguirem.
De facto, o avanço ucraniano foi retardado por uma mistura de factores. Mas
em Wiesbaden, os americanos frustrados continuavam a falar do pelotão na
colina. «A contra-ofensiva
parou por causa de um malfadado pelotão», comentou um oficial.
Os ucranianos não conseguiriam chegar a Melitopol e seriam
obrigados a reduzir as suas ambições.
O objectivo passou a ser a pequena cidade ocupada de Tokmak, a meio caminho
de Melitopol, perto de linhas ferroviárias e estradas críticas.
O general Aguto concedeu aos ucranianos maior autonomia, mas decidiu
elaborar um plano de artilharia pormenorizado, a Operação Rolling Thunder
[Trovoada Contínua] [5] que prescrevia o que é que os
ucranianos deviam disparar, com que armas e por que ordem, de acordo com
oficiais americanos e ucranianos. Só que o general Tarnavskyi se opôs a alguns
alvos, insistiu na utilização de drones para verificar os pontos
interessantes e a Rolling Thunder foi interrompida.
Desesperada para salvar a contra-ofensiva, a Casa Branca autorizou o
transporte secreto de um pequeno número de ogivas de fragmentação com um
alcance de cerca de 160 quilómetros [100 milhas], e os generais Aguto e
Zabrodskyi planearam uma operação contra os helicópteros de ataque russos que
ameaçavam as forças do general Tarnavskyi. Pelo menos 10 helicópteros foram
destruídos e os russos retiraram todas as suas aeronaves para a Crimeia ou para
o continente. Mesmo assim, os ucranianos não conseguiram avançar.
A última e desesperada recomendação dos americanos era que o general Syrsky
assumisse o combate contra Tokmak, mas foi rejeitada. Sugeriram então que o general
Sodol enviasse os seus fuzileiros para Robotyne para romperem a linha russa,
mas o general Zalujny ordenou-lhes que fossem antes para Quérson e abrissem uma
nova frente numa operação que os americanos consideraram estar condenada ao
fracasso — tentar atravessar o Dniepre e avançar em direcção à Crimeia. Os
fuzileiros atravessaram o rio no início de Novembro, mas ficaram sem homens e
sem munições. O objectivo da contra-ofensiva era desferir um golpe de
misericórdia. Em vez disso, teve um fim inglório.
O general Syrsky recusou responder a perguntas sobre a sua interacção com
os generais americanos, mas um porta-voz das forças armadas ucranianas afirmou:
«Estamos convencidos de que o
momento vai chegar e que, após a vitória da Ucrânia, os generais ucranianos e
americanos que referiu se vão reunir para falar sobre o seu trabalho e as suas
negociações amigáveis durante a luta contra a agressão russa.»
Andriy Yermak, chefe do gabinete presidencial da Ucrânia e por certo o
segundo funcionário mais poderoso do país, disse ao The Times que a
contra-ofensiva tinha sido «enfraquecida
sobretudo» pela «hesitação política» dos aliados e pelos atrasos «constantes» no fornecimento de armas.
Mas para outro alto funcionário ucraniano, «a verdadeira razão pela qual não tivemos sucesso foi o
facto de ter sido destacado um número inadequado de forças para executar o
plano.»
Seja como for, para os parceiros o resultado devastador da contra-ofensiva
deixou feridas dos dois lados. «As relações importantes mantiveram-se», disse Wallander, a funcionária
do Pentágono. «Mas
já não havia aquele sentimento de fraternidade inspiradora e confiante de 2022
e do início de 2023.»
O Presidente Volodymyr Zelensky e o general Christopher G. Cavoli em Wiesbaden, Dezembro de 2023. |
Parte 4: Dezembro
de 2023-Janeiro de 2025
Quebras de
confiança e brechas nas fronteiras
Ofensiva de Kursk
Sumy
Russia= RÚssia
Kiev= Quieve
Kharkiv= Carcóvia (ou Carquive)
Ukraine = UCrÂNIA
Dnipro R. = Rio Dniepre
Pokrovsk
Black Sea= Mar Negro
Kerch Strait Bridge = Ponte do
Estreito de Kerch
Crimea= CrimeIa
Sevastopol= Sebastopol
Avanços ucranianos [azul-escuro]
Recuperado pela Ucrânia [azul]
Avanços russos [vermelho]
Na posse da Rússia [cor-de-rosa]
EUA e Aliados
·
General Aguto
·
Secretário da Defesa Austin
·
General Baldwin
·
Presidente Biden
·
General Cavoli
·
General Donahue
·
Presidente Trump
Ucrânia
·
General Syrsky
·
General Zabrodskyi
·
Presidente Zelensky
Pouco tempo antes do Natal, Zelensky deslocou-se a Wiesbaden
para a sua primeira visita ao centro secreto da parceria.
Ao entrar no Auditório Tony Bass, foi escoltado por entre troféus de
batalhas partilhadas — fragmentos retorcidos de veículos, mísseis e aviões
russos. Quando subiu ao passadiço por cima do antigo campo de basquetebol – como
o general Zabrodskyi fizera naquele primeiro dia de 2022 – os oficiais que
trabalhavam lá em baixo rebentaram em aplausos.
No entanto, o Presidente não viera a Wiesbaden para festejar. Logo a seguir
à falhada contra-ofensiva, com um terceiro e duro Inverno de guerra a chegar,
as perspectivas tinham piorado. Para tirar partido da nova vantagem adquirida,
os russos estavam a despejar forças a Leste. Na América, Donald Trump, céptico
em relação à Ucrânia, estava em plena ressurreição política; alguns Republicanos
do Congresso resmungavam sobre os cortes de financiamento.
Há um ano, a coligação falava de vitória. Com a chegada e o avanço de 2024,
o Governo Biden viu-se forçado a continuar a ultrapassar as suas próprias
linhas vermelhas apenas para manter os ucranianos à tona.
Mas primeiro, os assuntos prementes de Wiesbaden: os Generais Cavoli e
Aguto explicaram que não viam uma forma plausível de recuperar território
significativo em 2024. Nem a coligação tinha condições de fornecer todo o equipamento
necessário para uma grande contra-ofensiva, nem os ucranianos conseguiam reunir
um exército suficientemente forte para a executar.
Os ucranianos precisavam de moderar as expectativas, concentrando-se em
objectivos exequíveis para se manterem na luta, ao mesmo tempo que desenvolviam
capacidade de combate que lhes permitisse organizar uma contra-ofensiva em
2025: tinham de erguer linhas defensivas no Leste para impedir que os russos
conquistassem mais território, e tinham de refazer as brigadas existentes e de
formar novas brigadas, que a coligação ajudaria a treinar e a equipar.
Zelensky expressou o seu apoio.
No entanto, os americanos sabiam que ele o fazia de má vontade. Zelensky
deixara claro repetidamente que queria e precisava de uma grande vitória que
fortalecesse o moral no seu país e lhe permitisse reforçar o apoio do Ocidente.
Poucas semanas antes, o Presidente dera instruções ao general Zalujny para empurrar os russos de volta às fronteiras da Ucrânia de 1991 até ao Outono de 2024. Zalujny chocou os americanos ao apresentar um plano para o fazer que exigia cinco milhões de obuses e um milhão de drones. Ao que o general Cavoli respondeu, num russo fluente, «A partir de onde?»
Algumas semanas mais tarde, numa reunião em Kiev, o comandante ucraniano
fechou-se com o general Cavoli numa cozinha do Ministério da Defesa e, bufando
furiosamente, fez um último e inútil apelo. «Foi apanhado entre dois fogos, o do Presidente e o dos
parceiros», disse um
dos seus colaboradores.
A título de compromisso, os americanos apresentaram a Zelensky o que
pensavam ser uma vitória retumbante – uma campanha de bombardeamento, com
recurso a mísseis de longo alcance e drones, que obrigasse os russos a
retirarem as infra-estruturas militares que tinham na Crimeia e a regressarem à
Rússia. Teria o nome de código Operação Lunar Hail [Granizo Lunar].
Até essa altura, os ucranianos, com a ajuda da CIA e das marinhas americana
e britânica, tinham utilizado drones marítimos, juntamente com mísseis
de longo alcance britânicos Storm Shadow e franceses SCALP para atacar a Frota
do Mar Negro, enquanto Wiesbaden contribuiu com informações.
Para levar a cabo a campanha mais alargada na Crimeia, os ucranianos iriam
precisar de mais mísseis, iriam precisar de centenas de ATACMS.
No Pentágono mantinham-se as velhas cautelas, mas depois de o general Aguto
ter informado Lloyd Austin sobre tudo o que a Operação Lunar Hail poderia
alcançar, um assessor recordou o que ele disse: «Muito bem, há aqui um objectivo estratégico muito
convincente. Não se trata apenas de atacar coisas.»
Zelensky iria acabar por receber os seus tão desejado ATACMS. Mesmo assim,
um funcionário dos EUA disse: «Sabíamos que, lá bem no fundo, ele ainda queria fazer outra coisa, algo
mais.»
O General Zabrodskyi estava no centro de comando de Wiesbaden, no
final de Janeiro, quando recebeu uma mensagem urgente e saiu para o exterior.
Quando regressou, pálido como um fantasma, levou o general Aguto para uma
varanda e, puxando de um cigarro, revelou-lhe o desfecho da luta pela chefia
militar ucraniana: o general Zalujny ia ser demitido. A aposta passava pela
promoção do seu rival, o general Syrsky.
Os americanos não ficaram muito surpreendidos; tinham ouvido muitos
murmúrios sobre o descontentamento presidencial, que os ucranianos atribuíam à
política, ao receio de que o muito popular general Zalujny pudesse desafiar
Zelensky para a presidência. Houve também a reunião do Stavka, em que o
Presidente atingiu profundamente o general Zalujny, e a subsequente decisão deste
de publicar um artigo no The
Economist declarando que a guerra estava num impasse, os ucranianos procuravam um
avanço tecnológico qualitativo. Isto mesmo quando o seu Presidente apelava à
vitória total.
O general Zalujny, a julgar pela afirmação de um oficial americano, era um «homem condenado.»
A nomeação do general Syrsky trouxe um alívio contido. Os americanos
acreditavam que iriam passar a ter um parceiro que o Presidente ouvia e
respeitava, e esperavam que a tomada de decisões passasse a ser mais
consistente.
Além disso, o general Syrsky era conhecido.
Parte desse conhecimento, é claro, era a memória de 2023, a cicatriz de
Bakhmut – a maneira como o general às vezes desprezava as recomendações dos
americanos, tentando mesmo miná-las. Ainda assim, dizem os colegas, os generais
Cavoli e Aguto sentiam que compreendiam as suas idiossincrasias; ele pelo menos
ouvia-os e, ao contrário de alguns comandantes, apreciava e normalmente
confiava nas informações que eles apresentavam.
Para o general Zabrodskyi, no entanto, a reorganização foi um golpe pessoal
e uma incógnita estratégica. Considerava o general Zalujny um amigo e tinha
renunciado ao seu lugar parlamentar para se tornar seu adjunto para os planos e
operações. (Em breve seria afastado do cargo e do seu papel em Wiesbaden.
Quando o general Aguto soube, telefonou-lhe com um convite permanente para a
sua casa de praia na Carolina do Norte, onde poderiam ir velejar. «Talvez na minha próxima encarnação», respondeu o general Zabrodskyi.)
E a rendição da guarda ocorreu num momento particularmente incerto para a
parceria: incitados por Trump, os Republicanos do Congresso retinham uma nova
ajuda militar de 61 mil milhões de dólares. Durante a batalha de Melitopol, o
comandante insistiu em recorrer aos drones para validar todos os pontos interessantes.
Agora, com muito menos foguetes e obuses, os comandantes ao longo da frente
adoptavam o mesmo protocolo. Wiesbaden continuava a produzir pontos
interessantes, mas os ucranianos mal os utilizavam.
«Não precisamos disso neste momento,» disse o general Zabrodskyi aos
americanos.
As linhas vermelhas continuavam a deslocar-se.
Havia os ATACMS, que chegaram secretamente no início da Primavera, para que
os russos não se apercebessem de que a Ucrânia podia agora atacar através da
Crimeia.
E havia os “especialistas na matéria [ou “subject matter expert” em inglês, no acrónimo SME]. Alguns meses
antes, o general Aguto tinha sido autorizado a enviar uma pequena equipa, cerca
de uma dúzia de oficiais, para Quieve, atenuando a proibição de botas
americanas em solo ucraniano. De modo a não evocar as memórias dos conselheiros
militares americanos enviados para o Vietname do Sul na corrida para a guerra
em grande escala, seriam conhecidos como “especialistas na matéria”. Depois, após o abanão da chefia ucraniana e no
sentido de criar confiança e coordenação, o Governo Biden mais do que triplicou
o número de oficiais em Quieve, passando a cerca de três dúzias; podiam agora
ser chamados claramente de conselheiros, embora continuassem confinados à região
de Quieve.
Talvez a linha vermelha mais difícil, no entanto, fosse a fronteira russa. Também
essa seria em breve redesenhada.
Em Abril, o impasse financeiro foi finalmente desbloqueado e começaram a
chegar da Polónia mais 180 ATACMS, dezenas de veículos blindados e 85.000 munições
de 155 milímetros.
Os serviços secretos da coligação, porém, estavam a detectar outro tipo de
movimentos: elementos de uma nova formação russa, o 44.º Corpo de Exército, deslocando-se
em direcção a Belgorod, mesmo a norte da fronteira ucraniana. Os russos, vendo
uma janela limitada enquanto os ucranianos esperavam que a ajuda americana lhes
chegasse às mãos, estavam a preparar-se para abrir uma nova frente no norte da
Ucrânia.
Os ucranianos acreditavam que os russos esperavam atingir uma estrada
principal que circunda Carcóvia, o que lhes permitiria bombardear a cidade, a
segunda maior do país, com fogo de artilharia e ameaçar a vida de mais de um
milhão de pessoas.
A ofensiva russa expôs uma assimetria fundamental: os russos podiam apoiar
as suas tropas com artilharia do outro lado da fronteira; os ucranianos não
podiam ripostar recorrendo a equipamento ou informações dos americanos.
No entanto, com o perigo surgiu a oportunidade. Os russos revelavam-se complacentes em relação à segurança, acreditando que os americanos nunca deixariam os ucranianos disparar contra o interior da Rússia. Havia unidades inteiras com o respectivo equipamento sem abrigo, em grande parte sem defesa, em campos abertos.
Os ucranianos pediram autorização para utilizar armas fornecidas pelos EUA
para além da fronteira. Além disso, os Generais Cavoli e Aguto propuseram que
Wiesbaden ajudasse a orientar esses ataques, como fizera na Ucrânia e na
Crimeia — fornecendo pontos interessantes e coordenadas de precisão.
Ainda a Casa Branca debatia estas questões quando, a 10 de Maio, os russos
atacaram.
Este foi o momento em que o governo Biden mudou as regras do jogo. Os Generais
Cavoli e Aguto foram encarregados de criar uma “caixa de operações” – uma zona em solo russo na qual os ucranianos
poderiam disparar armas fornecidas pelos EUA e Wiesbaden poderia apoiar os esses
ataques.
Inicialmente, defenderam uma caixa alargada, para englobar uma ameaça
concomitante: as bombas planadoras – bombas rudimentares da era soviética
transformadas em armas de precisão com asas e barbatanas – que espalhavam o
terror sobre Carcóvia. Uma caixa com cerca de 300 quilómetros [190 milhas]
permitiria aos ucranianos utilizar os seus novos ATACMS para atingir campos de
bombas planadoras e outros alvos no interior da Rússia. Mas Lloyd Austin viu
isto como um desvio de missão: não queria desviar os ATACMS da Operação Lunar
Hail.
Em vez disso, solicitou-se aos generais que elaborassem duas opções
— uma que se estendia cerca de 80 quilómetros [50 milhas] para dentro da Rússia, alcance normal dos HIMARS,
— e outra quase duas vezes mais profunda.
Contra a recomendação dos generais, Biden e os seus conselheiros acabaram por escolher a opção mais limitada — mas para proteger a cidade de Sumy, bem como Carcóvia, acompanhava a maior parte da fronteira norte do país, abrangendo uma área quase tão grande como Nova Jersey. Também a CIA foi autorizada a enviar agentes para a região de Carcóvia para ajudar os seus homólogos ucranianos nas operações dentro da caixa.
A caixa entrou em funcionamento no final de Maio, apanhando os russos de
surpresa: com os pontos interessantes e as coordenadas de Wiesbaden, bem como
com as informações dos próprios ucranianos, os ataques com HIMARS na caixa de
operações ajudaram a defender Carcóvia. Os russos sofreram algumas das mais
pesadas baixas da guerra.
O impensável tornara-se real. Os Estados Unidos estavam agora envolvidos na
morte de soldados russos em solo russo.
Verão de 2024: os exércitos ucranianos no Norte e no Leste estavam
perigosamente estirados. Mesmo assim, o general Syrsky continuava a dizer aos
americanos: «Preciso de uma
vitória.»
Uma antecipação surgiria em Março, quando os americanos descobriram que a
agência de informações militares da Ucrânia, a HUR, estava a planear
furtivamente uma operação terrestre no sudoeste da Rússia. O chefe da delegação
da CIA em Quieve confrontou o comandante da HUR, o general Kyrylo Budanov: se
ele entrasse na Rússia, fá-lo-ia sem armas americanas ou apoio dos serviços
secretos. Fê-lo, apenas para ser forçado a recuar.
Em momentos como este, os membros do Governo Biden brincavam amargamente
com o facto de saberem mais sobre o que os russos estavam a planear ao
espiá-los do que sobre o que os seus parceiros ucranianos estavam a planear.
No entanto, para os ucranianos, «não perguntar, não dizer» era «melhor do que perguntar e parar», explicou o tenente-general
Valeriy Kondratiuk, um antigo comandante dos serviços secretos militares
ucranianos, acrescentando: «Somos
aliados, mas temos objectivos diferentes. Nós protegemos o nosso país e vocês
protegem os vossos medos fictícios da Guerra Fria.»
Em Agosto, em Wiesbaden, a comissão do general Aguto chegou ao fim, tendo
partido no dia 9. No mesmo dia, os ucranianos fizeram uma referência enigmática
a algo que estava a acontecer no Norte.
A 10 de Agosto, o chefe da delegação da CIA também saiu para um lugar no
quartel-general. Na agitação dos comandos, o general Syrsky fez a sua jogada — enviou
tropas através da fronteira sudoeste da Rússia, para a região de Kursk.
Para os americanos, o desenrolar da incursão foi uma quebra de confiança
significativa. Não se tratava apenas do facto de os ucranianos os terem mantido
de novo na ignorância; eles tinham atravessado secretamente uma linha
mutuamente acordada, levando equipamento fornecido pela coligação para
território russo incluído na caixa de operações, em violação das regras definidas
aquando da sua criação.
A caixa fora criada para evitar uma catástrofe humanitária em Carcóvia, não
para que os ucranianos a aproveitassem para se apoderarem de solo russo. «Não foi uma quase chantagem, foi uma
chantagem», disse um
alto funcionário do Pentágono.
Os americanos podiam ter desactivado a caixa de operações, mas sabiam que se
o fizessem, explicou um membro do Governo Biden, «poderia conduzir a uma catástrofe»: os soldados ucranianos em Kursk
morreriam desprotegidos pelos foguetes HIMARS e pelos serviços secretos
americanos.
Kursk, concluíram os americanos, era a vitória que Zelensky procurava desde
o início. Era também uma prova dos seus cálculos: ele ainda falava de vitória
total. Mas um dos objectivos da operação, explicou aos americanos, era a
alavancagem – capturar e manter terras russas que poderiam ser trocadas por terras
ucranianas em futuras negociações.
As operações de provocação, anteriormente proibidas, eram
agora autorizadas.
Antes de o general Zabrodskyi ser afastado, ele e o general Aguto tinham
seleccionado os alvos para a Operação Lunar Hail. A campanha exigia um grau de
controlo que não se via desde os tempos do general Donahue. Praticamente todos
os aspectos de cada ataque seriam supervisionados por oficiais americanos e
britânicos, desde a determinação das coordenadas até ao cálculo das
trajectórias de voo dos mísseis.
Dos cerca de 100 alvos na Crimeia, o mais cobiçado era a Ponte do Estreito de Kerch, que liga a península ao continente russo. Putin via a ponte como uma poderosa prova física da ligação da Crimeia à pátria. Derrubar o símbolo do Presidente russo tornou-se, por sua vez, a obsessão do Presidente ucraniano.
Também fora uma linha vermelha americana. Em 2022, o Governo Biden proibiu
a ajuda aos ucranianos para a atingir; mesmo as aproximações do lado da Crimeia
deviam ser tratadas como território russo soberano. (Os próprios serviços
secretos ucranianos tentaram atacá-la, causando alguns danos).
Mas depois de os parceiros terem chegado a acordo sobre a Operação Lunar
Hail, a Casa Branca autorizou os militares e a CIA a trabalharem secretamente
com os ucranianos e os britânicos num plano de ataque para derrubar a ponte: os
ATACMS enfraqueceriam os pontos vulneráveis do tabuleiro, enquanto os drones
marítimos explodiriam junto aos pilares.
Mas enquanto os drones estavam a ser preparados, os russos reforçaram
as suas defesas à volta dos pilares.
Os ucranianos propuseram atacar apenas com ATACMS. Os Generais Cavoli e
Aguto opuseram-se: o trabalho não podia ser feito só com o ATACMS, os
ucranianos tinham de esperar até os drones estarem prontos ou cancelar o
ataque.
No final, os americanos desistiram e, em meados de Agosto, com a ajuda
relutante de Wiesbaden, os ucranianos dispararam uma salva de ATACMS contra a
ponte. A ponte não se desmoronou; o ataque deixou alguns “buracos”, que os
russos repararam, resmungou um funcionário americano, acrescentando: «Às vezes, é preciso que tentem e
falhem para verem que temos razão.»
Para além do episódio da ponte de Kerch, a colaboração com a Operação Lunar
Hail foi considerada um êxito significativo. Navios de guerra, aviões, postos
de comando, depósitos de armas e instalações de manutenção russos foram
destruídos ou deslocados para o continente para escapar ao ataque.
Para o Governo Biden, o ataque falhado a Kerch, juntamente com a escassez
de ATACMS, reforçou a importância de ajudar os ucranianos a utilizarem a frota
de drones de ataque de longa distância que possuíam. O principal desafio
era iludir as defesas aéreas russas e localizar alvos.
Uma política de longa data proibia a CIA de fornecer informações sobre
alvos em solo russo. Assim, o Governo Biden permitia que a CIA solicitasse “desvios”, excepções que autorizam a
agência de espionagem a apoiar ataques no interior da Rússia para atingir alvos
específicos.
As informações identificaram um grande depósito de munições na cidade
costeira de Toropets, a cerca de 470 quilómetros [290 milhas] a norte da
fronteira com a Ucrânia, que fornecia armas às forças russas em Carcóvia e
Kursk. O Governo Biden aprovou o desvio. Toropets iria ser um teste conceptual.
Os agentes da CIA partilharam informações sobre as munições e
vulnerabilidades do depósito, bem como sobre os sistemas de defesa russos no trajecto
até Toropets. Calcularam quantos drones a operação exigiria e mapearam
as suas sinuosas trajectórias de voo.
A 18 de Setembro, um grande enxame de drones atingiu o depósito de
munições. A explosão, tão forte como um pequeno terramoto, abriu uma cratera do
tamanho de um campo de futebol. Os vídeos mostraram imensas bolas de fogo e
colunas de fumo a subir por cima do lago.
Depósito de munições em Toropets, Rússia. Maxar Technologies. |
O mesmo depósito depois de um ataque de drones com o apoio da C.I.A. |
No entanto, como aconteceu com a operação da Ponte de Kerch, a colaboração
com os drones apontou para uma dissonância estratégica.
Os americanos argumentaram que a concentração de ataques com drones em
alvos militares estrategicamente importantes — o mesmo tipo de argumento que
usaram, sem resultados, a propósito da concentração em Melitopol na contra-ofensiva
de 2023. Mas os ucranianos insistiram em atacar uma lista mais ampla de alvos,
incluindo instalações de petróleo e gás e locais politicamente sensíveis em
Moscovo e arredores (embora o fizessem sem a ajuda da CIA).
«A opinião pública russa vai
virar-se contra Putin,» disse Zelensky ao Secretário de Estado americano, Antony Blinken, em Kiev
em Setembro. «Está enganado,
nós conhecemos os russos.»
Lloyd Austin e o General Cavoli deslocaram-se a Quieve em
Outubro. Ano após ano, o Governo Biden fornecera aos ucranianos um arsenal de
armas cada vez mais sofisticado, ultrapassando muitas das suas linhas
vermelhas. Ainda assim, o Secretário da Defesa e o general Cavoli estavam
preocupados com a mensagem representada pelo enfraquecimento da situação no
terreno.
Os russos faziam progressos lentos, mas seguros, contra forças ucranianas
enfraquecidas no Leste, em direcção à cidade de Pokrovsk — o “grande alvo,” como lhe chamou um oficial americano.
Estavam também a reconquistar algum território em Kursk. Sim, as baixas russas
aumentaram para 1000 a 1500 por dia, mas eles continuavam a chegar.
Lloyd Austin contaria mais tarde como olhou para esta incompatibilidade de
homens enquanto olhava pela janela do seu SUV blindado serpenteando pelas ruas
de Quieve. Contou aos assessores que ficou impressionado ao ver tantos homens
na casa dos 20 anos, quase nenhum deles fardado. Numa nação em guerra,
explicou, os homens desta idade estão geralmente longe, a combater.
Esta era uma das mensagens difíceis que os americanos vieram entregar a Quieve,
à medida que expunham o que podiam e não podiam fazer pela Ucrânia em 2025.
Zelensky já dera um pequeno passo ao baixar a idade de recrutamento para os
25 anos. Ainda assim, os ucranianos não conseguiam recompor as brigadas
existentes, muito menos preparar novas.
Lloyd Austin pressionava Zelensky para que desse um passo maior e mais
ousado passando o recrutamento para 18 anos, ao que Zelensky retorquiu, segundo
um oficial que estava presente, «Por que razão iria recrutar mais gente? Não temos
equipamento para lhes dar.»
«E os vossos generais dizem que as
vossas unidades estão com falta de efectivos», respondeu Lloyd Austin, ainda segundo o oficial. «Não têm soldados suficientes para o
equipamento de que dispõem.»
Era neste impasse permanente que se vivia:
— Na opinião dos ucranianos, os americanos não estavam dispostos a fazer o
que era necessário para os ajudar a ganhar.
— Na opinião dos americanos, os ucranianos não estavam dispostos a fazer o
que era necessário para serem ajudados a ganhar.
Zelensky dizia muitas vezes, em resposta à questão preliminar, que o país
estava a lutar pelo seu futuro, que os jovens entre os 18 e os 25 anos eram os
pais desse futuro.
Para um responsável americano, porém, «não é uma guerra existencial se eles não obrigarem o
seu povo a lutar.»
O General Baldwin, que desde o início foi crucial em ajudar a fazer a
ligação entre os comandantes dos parceiros, visitou Quieve em Setembro de 2023.
A contra-ofensiva estava parada, as eleições nos EUA vinham no horizonte e os
ucranianos continuavam a fazer perguntas sobre o Afeganistão.
Os ucranianos, recordou, estavam com medo de que também eles fossem abandonados. Estavam sempre a ligar, queriam saber se a América ia manter o rumo, perguntando: «O que vai acontecer se os Republicanos ganharem o Congresso? O que vai acontecer se Trump ganhar a Presidência?»
Ele disse que sempre procurou encorajá-los. Ainda assim, acrescentou: «Eu fazia figas atrás das costas,
porque realmente já não sabia nada.»
Donald Trump ganhou, e o medo rapidamente se instalou.
Nas últimas semanas do final de mandato, Biden tomou uma série de medidas
que procuravam manter o rumo, pelo menos por enquanto, e reforçar o seu projecto
para a Ucrânia.
Ultrapassou uma última linha vermelha – a expansão da caixa de operações
para permitir ataques de ATACMS e Storm Shadow ingleses na Rússia – depois de a
Coreia do Norte ter enviado milhares de soldados para ajudar os russos a
desalojar os ucranianos de Kursk [6]. Um dos primeiros ataques apoiados
pelos EUA visou o comandante norte-coreano, coronel-general Kim Yong Bok, que
ficou ferido quando se encontrava com os seus homólogos russos num bunker
de comando.
O Governo Biden autorizou também o apoio de Wiesbaden e da CIA aos ataques
com mísseis de longo alcance e drones numa zona do sul da Rússia
utilizada como área de preparação para o assalto a Pokrovsk, e permitiu que os
conselheiros militares trocassem Quieve por postos de comando mais próximos dos
combates.
Em Dezembro, o general Donahue recebeu a sua quarta estrela e regressou a
Wiesbaden como comandante do Exército dos EUA na Europa e em África. Tinha sido
o último soldado americano a partir na caótica queda de Cabul. Agora, teria de
navegar no novo e incerto futuro da Ucrânia.
O general Cavoli, ao centro, entrega a bandeira ao general Donahue numa cerimónia de rendição de comando em Wiesbaden. Volker Ramspott/U.S. Army |
Muita coisa mudara desde a partida do general Donahue, dois anos antes, mas
no que toca à questão nua e crua do território, as mudanças não eram muitas. No
primeiro ano de guerra, com a ajuda de Wiesbaden, os ucranianos tinham tomado a
dianteira, reconquistando mais de metade do território perdido após a invasão
de 2022. Agora, combatiam por pequenas fracções de terreno no Leste (e em
Kursk).
Um dos principais objectivos do general Donahue em Wiesbaden, segundo um
oficial do Pentágono, seria fortalecer o sentimento de fraternidade e dar novo
fôlego à máquina — para travar, talvez mesmo fazer recuar, o avanço russo. (Nas
semanas que se seguiram, com Wiesbaden a fornecer pontos interessantes e
coordenadas, a marcha russa em direcção a Pokrovsk abrandaria e, nalgumas áreas
do Leste, os ucranianos conseguiriam ganhos. Mas no sudoeste da Rússia, à
medida que o Governo Trump reduzia o apoio, os ucranianos acabaram por perder
grande parte da moeda de troca de que dispunham, Kursk.)
No início de Janeiro, os generais Donahue e Cavoli deslocaram-se a Quieve
para um encontro com o general Syrsky e para garantirem que este concordava com
os planos de reconstituir as brigadas ucranianas e reforçar as suas linhas, disse
um oficial do Pentágono. Daqui, seguiram para a Base Aérea de Ramstein, onde se
encontraram com Lloyd Austin na que seria a última reunião dos chefes de defesa
da coligação antes de tudo mudar.
De portas fechadas à imprensa e ao público, os homólogos de Austin
saudaram-no como o “padrinho” e o “arquitecto” da parceria que, apesar da
confiança quebrada e das traições, tinha sustentado a rebeldia e a esperança
dos ucranianos, verdadeiramente iniciada naquele dia da Primavera de 2022,
quando os generais Donahue e Zabrodskyi se reuniram pela primeira vez em
Wiesbaden.
Loyd Austin é um homem decidido e com uma forte compleição física, mas a
voz vacilou ao devolver os cumprimentos.
«Em vez de nos despedirmos,
permitam-me que vos agradeça,» disse, com lágrimas nos olhos. E acrescentou: «Os meus votos de sucesso, coragem e
determinação. Minhas senhoras e meus senhores, continuem.»
…………………………………………………………………………................
Oleksandr Chubko e Julie Tate
contribuíram com trabalhos de pesquisa. Produção de Gray Beltran, Kenan Davis e
Rumsey Taylor. Mapas de Leanne Abraham. Produção adicional de William B. Davis.
Produção áudio de Adrienne Hurst.
Fontes e metodologia
Em cada mapa da guerra, recorremos
aos dados do Institute for the Study of War e do American Enterprise
Institute’s Critical Threats Project para calcular as alterações no controlo territorial.
As forças russas no leste da Ucrânia incluíam os separatistas com apoio russo. A
imagem composta na Introdução é feita com dados do Moderate Resolution Imaging
Spectroradiometer (MODIS), pertencente à NASA e foi compilada com recurso ao Google
Earth Engine. Combinámos imagens Janeiro e Fevereiro de cada ano desde 2020 para
criar uma imagem de satélite sem nuvens.
Ver mais em: Russia-Ukraine War, U.S. Politics, National Intelligence Estimates, U.S. Department of Defense
……………………………………………………………………………………………………………
O artigo original pode ser lido aqui: https://archive.ph/2025.03.30-104236/https://www.nytimes.com/interactive/2025/03/29/world/europe/us-ukraine-military-war-wiesbaden.html
…………………………………………………………………………………….
NOTAS e REFERÊNCIAS
[*] Fernando Oliveira é um cidadão português, engenheiro químico e tradutor-intérprete de conferência. Esta sua tradução do artigo de Adam Entous ― que aqui publico com a devida vénia e um forte abraço ― é encarada por ele (e também por mim) como um serviço pro bono prestado ao público leitor português ou de língua portuguesa que não quer ficar dependente da propaganda, omissões selectivas e desinformação veiculadas em doses cavalares pelo sistema mediático oligopolista de comunicação social (SMOCS) do chamado “Ocidente alargado”.
O SMOCS é
constituído pelos jornais e revistas mundanas de grande circulação (incluindo
os jornais e revistas ditos de referência, como, por exemplo, The Times no
Reino Unido e The New York Times, nos EUA); pelos canais de televisão e
emissoras de rádio de grande audiência; pelas agências noticiosas globais mais
importantes [Associated Press (AP), Agence France Press (AFP), Reuters, Agencia
EFE, Deutsche Presse-Agentur (DPA)]; e pelas grandes agências de comunicação
estratégica [e.g., Bellingcat, Coda Media, Hill & Knowlton Strategies,
National Endowment for Democracy].
Na sua
tradução, Fernando Oliveira seguiu a ortografia anterior ao [Des]Acordo
Ortográfico de 1990 — uma opção que é também a deste blogue. Editei
ligeiramente o texto para o adequar às normas tipográficas e estilísticas
da Tertúlia Orwelliana [n.e.= Nota do Editor, J.C.S.]
[1] Competições organizadas por
agrupamentos de escuteiros nos EUA com carros em miniatura, cuja construção
segue regras rigorosas, lançados em pistas descendentes. Ver mais em https://scoutlife.org/pinewood-derby/ [N.T.=
Nota do Tradutor, F.O.]
[2] Estes números
são fantasiosos. Ver, a este propósito, José Catarino Soares, «Fantasias
macabras na ementa variada da desinformação.» Tertúlia Orwelliana, 25
Janeiro 2025 [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/01/fantasias-macabras-na-ementa-variada-da.html].
[n.e.]
[3] A Crimeia não
foi anexada pela Rússia, mas pela Ucrânia. A Crimeia foi integrada, isso sim ⎼ a pedido da
sua população, livremente expressa em referendos democráticos ⎼ na Rússia.
Ver, a este propósito, José Catarino Soares, «Quem anexou a Crimeia: foi a
Rússia ou a Ucrânia?», Tertúlia Orwelliana, 22-08-2022 [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/ 2022/08/falsidades-e-mentiras-1.html]; “A colossal patranha da
anexação da Crimeia pela Rússia”, secção 3 do livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra:
um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento
nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo, Agosto
de 2023). [n.e.]
[4] Esta
interpretação de Entous (compartilhada, aliás, por muitos comentadores,
deputados e governantes que o antecederam na sua formulação) é falsa e
fantasiosa. A tese segundo a qual a
Rússia tinha a intenção de “decapitar” o
governo ucraniana é falsa porque Zelensky pediu para encetar negociações com
Putin logo em 25 de Fevereiro de 2022 (o dia seguinte ao início da OME), um
pedido que foi imediatamente aceite. Para que isso acontecesse, contribuíram os
bons ofícios de dois homens que Zelensky tinha contactado previamente para o
efeito: (i) Igniazio Cassis, ministro suíço dos Negócios Estrangeiros (e
actualmente também Presidente da Suíça) e (ii) Naftali Bennett, à época primeiro-ministro
de Israel. Zelensky pediu a ambos que servissem de mediadores na organização de
uma conferência de Paz com a Rússia. As negociações entre a Rússia e Ucrânia
começaram dia 28 de Fevereiro de 2022 (1.ª ronda) de 2022 em Gomel, uma cidade
da Bielorrússia perto da fronteira da Ucrânia, e continuaram em 4 de Março (2.ª
ronda) na mesma cidade. Zelensky fez também um pedido especial a Bennett: que
intercedesse pessoalmente junto a Putin para que este garantisse a sua
segurança física (ou seja, em linguagem mais terra-a-terra, que não tentasse
assassiná-lo com um míssil ou por outro qualquer meio). Em 5 de Março, Bennett
encontra-se com Putin em Moscovo e negoceia com ele um acordo. Nesse acordo,
Putin garantia que não tinha quaisquer planos para assassinar ou derrubar
Zelensky do poder e deixava cair a exigência de “desnazificação”
da Ucrânia. Por seu turno, Zelensky comprometia-se a adoptar um estatuto de
neutralidade militar para a Ucrânia, em que esta renunciava concomitantemente
ao objectivo de entrar na OTAN [/NATO] Por conseguinte, a terceira (7 de Março
de 2022), quarta (10 de Março), quinta (14-17 de Março) e sexta (29-30 de
Março) rondas de negociação que tiveram lugar em Gomel, por videoconferência,
em Antalya (Turquia) e em Istambul (Turquia), respectivamente, decorreram já
sob o signo desse acordo preliminar entre os dois Presidentes.
Tudo isso está
bem documentado. Ver, por
exemplo, Olga Rudenko, «Ukraine ready to negotiate with Russia». The Kyiv
Independent, February 25, 2022; Arthur Rutishauser, «Schweiz will Friendenskonferenz
in Gent organisieren», Tages Anzeiger, 26. Februar 2022; «Russia no
longer requesting Ukraine be “denazified” as part of ceasefire talks», Financial
Times, 28 Mars 2022; Samuel Charap & Seguey Radchenko, «The Talks That
Could Have Ended the War in Ukraine. A Hidden History of Diplomacy That Came Up
Short — but Holds Lessons for Future Negotiations», Foreign Affairs,
April 16, 2024; “Bennett speaks out”
[https://www.youtube.com/watch?v=qK9tLDeWBzs]. O trecho deste
vídeo que é relevante para o assunto desta nota vai do momento 2h31m22s até ao
momento 3h0m39s, durante o qual Bennett descreve o acordo entre Putin e
Zelensky feito com a sua mediação, e como os EUA, o Reino Unido, a França e a
Alemanha impediram que fosse por diante.
A alegação de que
os Russos queriam tomar Quieve, não é apenas falsa, é também fantasiosa e
absurda. Com 22 grupos tácticos de batalhão ⎼ ou seja, um efectivo de cerca de 20.000 combatentes
[os números são do Pentágono] ⎼
destacados para a investida contra Quieve era impossível tomar essa cidade de
2.962.180 habitantes [números de 2021]. Para se ter uma ideia do carácter fantasioso
e absurdo dessa alegação, basta comparar numericamente as tropas russas
destacadas para o sector de Quieve, com as que foram empregadas (40.000) na
tomada de Mariupol (na Donbass), uma cidade com muitíssimo menos habitantes: 425.681
[números de 2022]. Na verdade, o objectivo da investida secundária russa
sobre Quieve foi o de “fixar” as forças
armadas ucranianas desse sector e retê-las aí por acções de combate,
impedindo-as de irem acudir as tropas ucranianas estacionadas na Donbass, onde
ocorreu, simultaneamente, a investida principal russa. Por outras
palavras, a investida principal sobre a Donbass foi uma operação
decisiva (decisive operation, na terminologia militar
americana), enquanto a investida secundária sobre Quieve foi uma operação
de moldagem (shaping
operation, na mesma terminologia). Para a definição destes termos, consultar o Glossário dos Termos Militares (Edição Instituto Universitário Militar e Academia das
Ciências de Lisboa, Lisboa 2020).
É interessante notar a extrema dificuldade cognitiva que os governantes e
deputados dos EUA, do Reino Unido e da UE, assim como os comentadores e
jornalistas do SMOCS [ver nota 1 sobre o significado deste acrónimo],
tiveram em aceitar este facto, quando ele foi enunciado e explicado pelo coronel-general
Sergei Rudskoy, em 25 de Março de 2022.
«O público e os especialistas perguntam-se o que
estamos a fazer no território das cidades ucranianas bloqueadas», disse Rudskoy. «Estas acções estão a ser levadas a
cabo com o objectivo de danificar as infra-estruturas militares, o equipamento
e o pessoal das Forças Armadas ucranianas, para que possamos não só amarrar as
suas forças e impedi-las de reforçar o seu agrupamento na Donbass, mas também
para que não o possam fazer até que o exército russo liberte totalmente os
territórios da RPD e RDN.
«“Em geral, as principais tarefas da
primeira fase da operação [militar especial] foram concluídas”, disse o coronel-general Sergei Rudskoy, primeiro Vice-Chefe
do Estado-Maior da Rússia, num ponto de situação feito na sexta-feira. “O
potencial de combate das forças armadas da Ucrânia foi significativamente
reduzido, o que nos permite, sublinho mais uma vez, concentrar os principais
esforços para alcançar o objectivo principal: a libertação da Donbass”» (Nathan Hodge, «Russia says first phase of war is
over as its advances in Ukraine appear to have stalled». CNN, March 26, 2022).
De uma forma geral, estas declarações suscitaram o comentário de que a Rússia, ao produzi-las, procurava disfarçar o facto de sido derrotada nos seus objectivos de tomar Quieve, derrubar o governo de Zelensky e conquistar a Ucrânia — objectivos que a Rússia nunca formulou nem perseguiu! Para uma análise aprofundada da Operação Militar Especial e da 2.ª guerra na Ucrânia, assim como da incapacidade dos próceres do “Ocidente alargado” de compreenderem e explicarem as suas causas, o seu desenrolar e os seus efeitos, ver, de Jacques Baud, L’Art de la Guerre Russe. Comment l’Occident a conduit l’Ukraine à l’échec (Max Milo, Paris 2024). [n.e.]
[5] Com este mesmo nome decorreu uma campanha gradual e sustentada de bombardeamentos aéreos dos EUA (Força Aérea e Marinha) em conjunto com a Força Aérea da República do Vietname (do Sul) contra Vietname do Norte, China e Coreia do Norte, de 2 de Março de 1965 até 2 de Novembro de 1968. Durante este período, foram lançadas duas vezes mais bombas sobre o Vietname do Norte do que durante toda a Segunda Guerra Mundial Foi a mais intensa batalha solo/ar da Guerra Fria e acabaria por ser cancelada em Novembro de 1968 devido à sua limitada eficácia e início do processo de paz. [N.T.]
[6] Não
há quaisquer provas da presença de milhares de soldados norte-coreanos que
combatam ou tivessem combatido em Kursk. [n.e.]
Talvez porque o texto seja muito "pesado" (i.e. extenso), o blogspot não me permite, agora, editá-lo. Recorro, por isso, a este comentário para corrigir duas gralhas. Na nota 5 do Preâmbulo, 1.º parágrafo, onde se lê, * um termo que, nos EUA significa, grosso modo, o mesmo que “social-democracia”*, deve ler-se, «um termo que, nos EUA, significa, grosso modo, o mesmo que "social-democrata"». Na nota 4 do artigo de Adam Entous, no 5.º parágrafo, onde se lê, *os territórios da RPD e RDN*, deve ler-se, «os territórios da RPD e RPL».
ResponderEliminarCom meus sinceros agradecimentos ao blog Tertúlia Owelliana, e principalmente ao Estátua de Sal, q me trouxe aqui, obtive enorme proveito intelectual da tradução de Fernando Oliveira - sim, pois, da tradução didatica da intervenção russa na Ucrânia, acrescidas dos demais conflitos horrorosos em andamento, sendo nascida e vivente no Brasil, constato q nosso país permanece perigosamente a mercê de forças vis, mesquinhas e traidoras, q nos leva ao declínio absoluto de sociedade soberana, livre e feliz em prol de alinhamento explícito aos interesses infames dos norte-americanos. No corpo de nossa elite (política e financeira) - c ênfase nos membros do judiciário, inexiste o menor vestígio de pudor de nos impor a dor, a pobreza e a morte decorrentes da perdas de direitos e desconexão clara c os princípios constitucionais - exemplos nao faltam. Nossos Generais, corruptos e vaidosos, desdenham sua missão ao garlhadarem na política e altos proventos, imiscuídos do eterno desejo de nos matar - como sempre o fizeram desde a República. Na toada da atual gestão Trump, c a Cia e seus parceiros sionistas e apadrinhados (australianos) cada vez nais detentores de terras e empresas nacionais, se avizinham tempos cinzentos e mortíferos, na qualidade de subservientes fornecedores de insumos p a guerra - vide o ocorrido no Equador!
ResponderEliminarTexto extraordinário. Assim se faz o material para a história do futuro, já que a do presente dominada pela controlada imprensa ocidental "ciesca".
ResponderEliminar«Quanto aos ucranianos, por seu lado, partiam de uma posição de cepticismo profundamente enraizado.»
ResponderEliminarSabem o que têm a esperar do Império Russo.
Os 'vitimados' do império americano nunca se detêm a refletir sobre o que seja essa alternativa; o que tal justifique fica indefinido entre um conformismo a um passado idealizado e o puro ódio aos poderes que a modernidade configura.
Aditamento e correcção à nota final [6]. O general Valery Guerasimov, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Russas revelou, no dia 26 de Abril de 2025, por ocasião do anúncio da libertação de Kursk (oblast da Rússia), que um regimento [1200-1800 homens] norte-coreano combateu ao lado das tropas russas, elogiando «a sua resiliência e o seu heroísmo».
ResponderEliminarNa sequência desta declaração, o órgão mediático público de comunicação social RT [Russia Today] publicou um artigo intitulado: «'Nem um único norte-coreano violou o seu juramento’: Como os nossos aliados nos ajudaram a libertar Kursk», sublinhando que as unidades do Exército Popular Coreano «mostraram disciplina, coordenação e desprezo pela morte, contribuindo grandemente para a derrota dos invasores ucranianos".
Sobre a conduta militar dos soldados norte-coreanos que, para além do seu reduzido número (muito longe dos 12.000 efectivos alegados pelos serviços secretos ucranianos e sul-coreanos), os tornaram tão difíceis de detectar pelos ucranianos, o artigo da RT adianta: «No início, foram treinados em campos militares, familiarizando-se com tácticas de combate modernas, dominando as capacidades de operação de drones e adaptando-se às realidades do terreno. Depois, os “Buriates de combate” [os Buriates são um povo mongol da Buriácia, uma república da Federação russa, n.e.] como os nossos militares lhes chamavam, de forma jocosa e em privado, foram transferidos para a região de Kursk. Viviam em acampamentos para evitar chamar a atenção. Inicialmente, ocuparam a terceira linha de defesa, depois a segunda e, por fim, foram testados em fortificações e, finalmente, em assaltos».
Relativamente ao seu desempenho, o artigo da RT observa: «Os soldados coreanos distinguiram-se pela sua coordenação, disciplina, desprezo fatalista pela morte e uma resistência notável. É compreensível que assim seja --- eram na sua maioria homens jovens, fortes e bem constituídos, decentemente treinados no seu país, em particular as unidades das Forças de Operações Especiais. Contribuíram de forma significativa para a libertação do distrito de Korenevsky, combateram nas batalhas perto de Staraya e Novaya Sorochina e chegaram a Kurilovka.» (Fonte: «Russia Details North Korea’s Key Role in Repelling Ukraine’s Kursk Offensive». Military Watch Magazine, April 26, 2025).