Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

30 julho, 2025

 Temas 1 e 2

Para quem irá, desta vez,

o Prémio Nobel da Paz?

José Catarino Soares

1. Introdução

Benjamim Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, propôs Donald Trump, presidente dos EUA, para o prémio Nobel da Paz. Os chefes dos dois Estados mais belicosos e belicistas do planeta, cujas guerras, genocídios (Hiroshima, Nagasaki, Gaza) e assassinatos selectivos fizeram milhões de mortos, feridos e estropiados desde 1947 (para não ir mais atrás no caso dos EUA) zombam do mundo inteiro apresentando-se, respectivamente, como padrinho e campeão mundial da paz.

É uma proposta grotesca, bem ao estilo da Novilíngua em vigor na Oceania (no universo romanesco de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell), onde Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão e Ignorância é Força.  

Uma imagem com preto e branco, nuvem, edifício, ar livre

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Ilustração das quatro gigantescas pirâmides que servem de sedes aos quatro grandes ministérios de Oceania, em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro o “Ministério da Paz” (encarregado da guerra); o “Ministério da Verdade” (encarregado da desinformação e propaganda); o “Ministério da Abundância” (encarregado da produção e do racionamento) e o “Ministério do Amor” (encarregado da tortura). Na extrema-esquerda da gravura, no frontispício do Ministério da Verdade, estão as três palavras de ordem do partido que governa Oceania: “Guerra é Paz”; “Liberdade é escravatura”; “Ignorância é força”. Fonte da gravura: https://waithinktank.com/Project-198


Todavia ‒ temos de o reconhecer ‒ a proposta de Netanyahu não é completamente destituída de sentido, porque a Novilíngua é o idioma favorito do Comité norueguês que atribui o Prémio Nobel da Paz. A razão para tal reside no facto desse comité ter sido, há muitas décadas, capturado por forças que deturparam as intenções do instituidor e financiador do prémio, Alfred Nobel.

Alfred Nobel aos 50 anos (1883)


Desenvolvi esta linha de argumentação aqui: “O pseudoprémio Nobel da Paz — edição de 2022”, in Tertúlia Orwelliana, 17 de Outubro, 2022 

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/10/o-pseudopremio-nobelda-paz-edicao-de.html

Por essa razão, não vou repeti-la aqui. Limitar-me-ei a salientar uma conclusão que dela decorre: não é impossível que Donald Trump venha a ganhar o prémio Nobel da Paz.

Há alguma maneira de impedir que isso aconteça — ou, pelo menos, de dificultar ao máximo que aconteça, tornando a eventual atribuição do prémio a Trump um objecto internacional de irrisão e opróbrio?

Há. Consiste em reforçar a campanha em curso para propor Francesca Albanese como candidata ao Prémio Nobel da Paz.

2. Quem é Francesca Albanese e qual é o seu mandato?

Francesca Albanese foi nomeada relatora especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinianos ocupados desde 1967 pelo Conselho dos Direitos Humanos da ONU na sua 49.ª sessão, em Março de 2022, e assumiu funções a partir de 1 de Maio de 2022.

«Francesca Albanese é bolseira afiliada do Instituto para o Estudo das Migrações Internacionais da Universidade de Georgetown, bem como conselheira sénior em matéria de migração e deslocação forçada de um grupo de reflexão, Arab Renaissance for Democracy and Development (ARDD). Tem publicado amplamente sobre a situação jurídica em Israel e no Estado da Palestina e dá regularmente aulas e palestras sobre direito internacional e deslocações forçadas em universidades na Europa e na região árabe. Trabalhou também como perita em direitos humanos para as Nações Unidas, nomeadamente para o Gabinete do Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos e para a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestin[1].

Uma imagem com vestuário, Cara humana, pessoa, planta de interior

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O Relator Especial é um perito independente nomeado pelo Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas após um concurso público e encarregado de acompanhar e apresentar relatórios sobre a situação dos direitos humanos nos Territórios Palestinianos Ocupados.

«A tarefa do Relator Especial consiste em avaliar a situação dos direitos humanos nos Territórios Palestinianos Ocupados, apresentar relatórios públicos sobre a mesma e trabalhar com os governos, a sociedade civil e outros para promover a cooperação internacional. O relator especial efectua visitas ou missões regulares aos Territórios Palestinianos Ocupados e apresenta relatórios anuais ao Conselho dos Direitos do Homem. O Gabinete do Alto-Comissário para os Direitos Humanos (GACDH) das Nações Unidas e presta assistência logística e técnica ao titular do mandato.

O mandato do relator especial decorre da resolução de 1993 do Comité dos Direitos do Homem. O mandato convida o relator especial a

― investigar as violações por parte de Israel dos princípios e fundamentos do direito internacional, do direito humanitário internacional e da Convenção de Genebra relativa à Protecção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra, de 12 de Agosto de 1949, nos territórios palestinianos ocupados por Israel desde 1967;

― receber comunicações, ouvir testemunhas e utilizar as modalidades de procedimento que considere necessárias para o seu mandato; e

― apresentar um relatório, com as suas conclusões e recomendações, à Comissão dos Direitos do Homem nas suas futuras sessões, até ao fim da ocupação israelita desses territórios». [2]

3. Desempenho de Francesca Albanese

Francesca Albanese tem tido um desempenho impecável no exercício das suas funções. Em particular, dois dos seus relatórios fizeram história.

Refiro-me ao seu relatório de 1 de Outubro de 2024, intitulado, Genocídio como forma colonial de erradicação. Na sua introdução pode ler-se:

«Em Março de 2024, a Relatora Especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinianos ocupados desde 1967, Francesca Albanese, concluiu que havia motivos razoáveis para crer que Israel tinha cometido actos de genocídio em Gaza. No presente relatório, a Relatora Especial alarga a sua análise da violência cometida contra Gaza após 7 de Outubro de 2023 à Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental. Presta especial atenção à intenção genocida, colocando a situação no contexto de um processo de décadas de expansão territorial e limpeza étnica destinado a eliminar a presença palestiniana na Palestina. A relatora propõe que o genocídio seja visto como parte integrante do objectivo de Israel de colonização total das terras palestinianas, eliminando o maior número possível de palestinianos, e como um meio para atingir esse fim.

O presente relatório baseia-se em investigação e análise jurídicas, entrevistas com vítimas e testemunhas, em especial na Jordânia e no Egipto, informações livremente disponíveis e contributos de peritos e organizações da sociedade civil. A Relatora Especial, a quem continua a ser negado o acesso aos Territórios Palestinianos Ocupados, salienta que Israel não tem o poder de impedir o acesso dos mecanismos de apuramento de factos ao território que ocupa ilegalmente.

A recusa persistente de permitir o acesso aos mecanismos das Nações Unidas e aos investigadores do Tribunal Penal Internacional pode constituir uma obstrução à justiça, desafiando a ordem do Tribunal Internacional de Justiça, que ordenou a Israel que garantisse o acesso à Faixa de Gaza a qualquer comissão internacional de inquérito e que tomasse medidas para assegurar a preservação das provas.

Embora a escala e a natureza do ataque de Israel aos palestinianos variem de região para região, é evidente que a totalidade dos actos de destruição de Israel é dirigida contra todo o povo palestiniano, com o objectivo de conquistar todo o território da Palestina. Os padrões de violência dirigidos contra o grupo no seu conjunto são suficientes para desencadear a aplicação da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (Convenção sobre o Genocídio), a fim de travar, prevenir e punir o genocídio em todo o Território Palestiniano Ocupado» [3].

O seu relatório mais recente (16 Junho de 2025), Da economia de ocupação à economia de genocídio, teve também um grande impacto. Na sua Introdução pode ler-se:

«1. Os empreendimentos coloniais e os genocídios que lhes estão associados têm sido historicamente impulsionados e viabilizados pelo sector empresarial. Os interesses comerciais têm contribuído para a desapropriação de povos e terras indígenas — um modo de dominação conhecido como “capitalismo racista colonial”. O mesmo se aplica à colonização israelita das terras palestinianas, à sua expansão para o território palestiniano ocupado e à institucionalização de um regime de apartheid colonial.

Depois de negar a autodeterminação palestiniana durante décadas, Israel está agora a pôr em perigo a própria existência do povo palestiniano na Palestina.

2. O papel das entidades empresariais na sustentação da ocupação ilegal de Israel e da campanha genocida em curso em Gaza é o tema desta investigação, que se centra na forma como os interesses empresariais sustentam a lógica colonial dos colonos israelitas de deslocação forçada  e substituição destinada a desapossar e erradicar os palestinianos das suas terras.

O estudo aborda entidades empresariais de vários sectores: fabricantes de armas, empresas de tecnologia, empresas de construção civil, indústrias extractivas e de serviços, bancos, fundos de pensões, seguradoras, universidades e instituições de caridade. Estas entidades permitem a negação da autodeterminação e outras violações estruturais nos territórios palestinianos ocupados, incluindo a ocupação, a anexação e os crimes de apartheid e genocídio, bem como uma longa lista de crimes acessórios e violações dos direitos humanos, desde a discriminação, a destruição gratuita, a deslocação forçada e a pilhagem, a execução extrajudicial e a fome.

3. Se tivessem sido feitas as devidas diligências em matéria de direitos humanos, as entidades empresariais há muito que se teriam desvinculado da ocupação israelita. Em vez disso, após o 9 de Outubro de 2023, os actores empresariais contribuíram para a aceleração do processo de deslocação e substituição ao longo da campanha militar que pulverizou Gaza e deslocou o maior número de palestinianos na Cisjordânia desde 1967.

4. Embora seja impossível captar totalmente a escala e a extensão de décadas de conivência empresarial na exploração do território palestiniano ocupado, este relatório expõe a integração das economias da ocupação colonial e do genocídio colonial. Apela à responsabilização das entidades empresariais e dos seus directores executivos, tanto a nível nacional como internacional: os empreendimentos comerciais que permitem e lucram com a destruição da vida de pessoas inocentes devem cessar. As entidades empresariais devem recusar-se a ser cúmplices de violações dos direitos humanos e de crimes internacionais ou devem ser responsabilizadas por isso» [4]

Este relatório de Francesca Albanese valeu-lhe um recrudescimento das ameaças anónimas de morte, dos actos de censura por parte do sistema mediático oligopolista de comunicação social do “Ocidente alargado” e dos actos de hostilidade por parte de governos e deputados da mesma entidade geopolítica — com particular destaque para os EUA, a Alemanha, a França, as Terras Baixas [Holanda], o Reino Unido, a Hungria, a Argentina e, claro está, Israel.

A cereja no topo deste bolo de vitupérios e exorcismos ao estilo Vodu foram as sanções que Donald Trump e o seu governo decidiram impor a Francesca Albanese, as quais poderão incluir o congelamento de contas bancárias, a interdição de entrar nos EUA (onde está a sede da ONU!) e a retirada de imunidade diplomática — tudo medidas ilegais à luz do direito internacional público, para além de ilegítimas e grotescas.

Uma imagem com texto, Cara humana, óculos, mulher

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É bom que se saiba, que, antes como depois destes bramidos e carantonhas para meter medo à corajosa Francesca Albanese, nunca o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse uma palavrinha que fosse (em público ou em privado) de solidariedade e apoio ao seu trabalho. É ela quem o revela aqui [https://www.youtube.com/watch?v=H2UX5wIb3RE&t=26s], quando perguntada sobre o assunto por um jornalista.

O seu último relatório lista 48 empresas e instituições, incluindo a Palantir Technologies Inc., a Lockheed Martin, a Alphabet Inc. (Google), a Amazon, a International Business Machine Corporation (IBM), a Caterpillar Inc., a Microsoft Corporation e o Massachusetts Institute of Technology (MIT), juntamente com bancos e empresas financeiras como a BlackRock e a Vanguard, seguradoras, imobiliárias e instituições de caridade, que, em violação do direito internacional público, estão a ganhar milhares de milhões de dólares com a ocupação e o genocídio dos palestinianos.

As imagens abaixo mencionam algumas dessas empresas, assim como os seus principais accionistas, que participam na economia do genocídio. A fonte de informação é, como já foi dito, o relatório de Francesca Albanese Da economia de ocupação à economia do genocídio (UN Human Rights Council) e o arranjo gráfico é da Al Jazeera. 

Algumas das 48 empresas que participam na economia do genocídio em Gaza nas seguintes áreas (de cima para baixo e da esquerda para a direita): militar, tecnologia, electricidade, expansão dos colonatos israelitas, agricultura e finanças.


Principais accionistas (Blackrock e Vanguard) das empresas que participam na economia do genocídio em Gaza e as percentagens que possuem no capital de cada uma delas


O ataque contra Francesca Albanese reforça a ideia de que o chamado “Ocidente alargado” é um mundo assente na duplicidade de critérios, onde Estados delinquentes, como os EUA e Israel, têm permissão para cometer crimes de guerra e genocídio sem qualquer responsabilização ou restrição. Ele expõe os subterfúgios que as oligarquias dirigentes desses Estados usam para tentar enganar os seus cidadãos e para tentarem manter um semblante de respeitabilidade. Ele revela a sua hipocrisia, a sua crueldade e o seu desprezo pelo direito internacional público de que se autoproclamam os paladinos.

A partir de agora, serão em número cada vez menor os cidadãos que levarão a sério as suas declarações de amor acrisolado pelos direitos humanos e pelo primado da lei. E quem pode culpá-los? Elas escondem mal os actos de força e crueldade extremas, o comportamento de brutamontes, a realidade do morticínio, a intenção do genocídio.

«Os assassinatos, o morticínio em grande escala, a imposição de tortura psicológica e física, a devastação, a criação de condições de vida que não permitem que as pessoas em Gaza possam viver, desde a destruição de hospitais, o deslocamento forçado em massa e a falta de habitação em grande escala, enquanto as pessoas são bombardeadas diariamente e passam fome — como podemos interpretar esses actos isoladamente?», perguntou Francesca Albanese  numa entrevista que lhe foi feita por Chris Edges com base no seu relatório, Genocídio como forma colonial de erradicação.

4. Uma digna candidata ao prémio Nobel da Paz

Destarte, foi em muito boa hora que a organização Avaaz [Port. “Voz”] lançou uma campanha destinada a propor Francesca Albanese e os médicos de Gaza para o Prémio Nobel da Paz.

No momento em que escrevo estas linhas [29 de Julho de 2025, 20h12] já 968.522 pessoas de todo o mundo (entre as quais me incluo) subscreveram  a petição que propõe Francesca Albanese para o Prémio Nobel da Paz.

Ela merece-o, quer consideremos a sua acção e o seu magistério à luz do critério que o comité norueguês do Nobel da Paz adoptou sub-repticiamente (e ainda por cima de um modo venal e inconsistente) para a atribuição desse prémio (“a defesa dos direitos humanos”) -- em desrespeito pela vontade expressa em testamento de Alfred Nobel --, quer os consideremos à luz dessa mesma vontade: a saber, que o prémio Nobel da Paz seja dado

«à pessoa que fez mais ou melhor para fazer progredir a fraternidade entre as nações, a abolição ou a redução dos exércitos permanentes e o estabelecimento e a promoção de congressos da paz.»

Isto foi o que Alfred Nobel deixou escrito no seu testamento [5]. Por outras palavras, o prémio Nobel da paz é um prémio que foi concebido para galardoar quem se distingue na luta contra o militarismo e o belicismo, pela desmilitarização das sociedades, para prevenir ou extinguir as guerras e, acima de tudo, por fazer progredir a fraternidade entre as nações.

É esta última tarefa (mas primeira na hierarquia de objectivos de Alfred Nobel) que Francesca Albanese tem desempenhado com uma coragem, diligência e competência exemplares.

Quem quiser juntar-se à campanha pela nomeação de Francesca Albanese como candidata ao prémio Nobel da Paz de 2025  cujo vencedor ou vencedora será anunciado no próximo dia 10 de Outubro poderá fazê-lo aqui:

https://secure.avaaz.org/campaign/en/stand_with_francesca_loc/?whatsapp

 

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Notas e Referências

[1] Special Rapporteur on the situation of human rights in the Palestinian territories occupied since 1967” [https://www.ohchr.org/en/special-procedures/sr-palestine]

[2] ibidem

[3] https://www.un.org/unispal/document/genocide-as-colonial-erasure-report-francesca-albanese-01oct24/

[4] https://www.un.org/unispal/document/a-hrc-59-23-from-economy-of-occupation-to-economy-of-genocide-report-special-rapporteur-francesca-albanese-palestine-2025/

[5] https://www.nobelprize.org/alfred-nobel/alfred-nobels-will/.

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