Temas 1 e 2
Para quem irá, desta
vez,
o Prémio Nobel da Paz?
José Catarino Soares
1. Introdução
Benjamim
Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, propôs Donald Trump, presidente dos EUA,
para o prémio Nobel da Paz. Os chefes dos dois Estados mais belicosos e belicistas
do planeta, cujas guerras, genocídios (Hiroshima, Nagasaki, Gaza) e
assassinatos selectivos fizeram milhões de mortos, feridos e estropiados desde 1947 (para não ir mais atrás no caso dos EUA) zombam do mundo inteiro apresentando-se, respectivamente, como padrinho e
campeão mundial da paz.
É
uma proposta grotesca, bem ao estilo da Novilíngua
em vigor na Oceania (no universo romanesco de Mil Novecentos
e Oitenta e Quatro, de George Orwell), onde Guerra
é Paz, Liberdade é Escravidão e
Ignorância é Força.
Ilustração das quatro gigantescas pirâmides que servem de sedes aos quatro grandes ministérios de Oceania, em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro: o “Ministério da Paz” (encarregado da guerra); o “Ministério da Verdade” (encarregado da desinformação e propaganda); o “Ministério da Abundância” (encarregado da produção e do racionamento) e o “Ministério do Amor” (encarregado da tortura). Na extrema-esquerda da gravura, no frontispício do Ministério da Verdade, estão as três palavras de ordem do partido que governa Oceania: “Guerra é Paz”; “Liberdade é escravatura”; “Ignorância é força”. Fonte da gravura: https://waithinktank.com/Project-198 |
Todavia
‒ temos de o reconhecer ‒ a proposta de Netanyahu não é completamente
destituída de sentido, porque a Novilíngua
é o idioma favorito do Comité norueguês que atribui o Prémio Nobel da Paz. A
razão para tal reside no facto desse comité ter sido, há muitas décadas, capturado
por forças que deturparam as intenções do instituidor e financiador do prémio,
Alfred Nobel.
![]() |
Alfred Nobel aos 50 anos (1883) |
Desenvolvi esta linha de argumentação aqui: “O pseudoprémio Nobel da Paz — edição de 2022”, in Tertúlia Orwelliana, 17 de Outubro, 2022
https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/10/o-pseudopremio-nobelda-paz-edicao-de.html
Por essa razão, não vou repeti-la aqui. Limitar-me-ei a salientar uma conclusão
que dela decorre: não é impossível que Donald Trump venha a ganhar o prémio
Nobel da Paz.
Há
alguma maneira de impedir que isso aconteça — ou, pelo menos, de dificultar ao máximo
que aconteça, tornando a eventual atribuição do prémio a Trump um objecto internacional
de irrisão e opróbrio?
Há.
Consiste em reforçar a campanha em curso para propor Francesca Albanese como
candidata ao Prémio Nobel da Paz.
2. Quem é Francesca
Albanese e qual é o seu mandato?
Francesca
Albanese foi nomeada relatora especial sobre a situação dos direitos humanos
nos territórios palestinianos ocupados desde 1967 pelo Conselho dos Direitos
Humanos da ONU na sua 49.ª sessão, em Março de 2022, e assumiu funções a
partir de 1 de Maio de 2022.
«Francesca Albanese é bolseira afiliada do Instituto para o
Estudo das Migrações Internacionais da Universidade de Georgetown, bem como
conselheira sénior em matéria de migração e deslocação forçada de um grupo de
reflexão, Arab Renaissance for Democracy and Development (ARDD). Tem
publicado amplamente sobre a situação jurídica em Israel e no Estado da
Palestina e dá regularmente aulas e palestras sobre direito internacional e
deslocações forçadas em universidades na Europa e na região árabe. Trabalhou
também como perita em direitos humanos para as Nações Unidas, nomeadamente para
o Gabinete do Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos e para
a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina» [1].
O
Relator Especial é um perito independente nomeado pelo Conselho dos Direitos Humanos
das Nações Unidas após um concurso público e encarregado de acompanhar e
apresentar relatórios sobre a situação dos direitos humanos nos Territórios
Palestinianos Ocupados.
«A tarefa do Relator Especial consiste em avaliar a situação dos
direitos humanos nos Territórios Palestinianos Ocupados, apresentar relatórios
públicos sobre a mesma e trabalhar com os governos, a sociedade civil e outros
para promover a cooperação internacional. O relator especial efectua visitas ou
missões regulares aos Territórios Palestinianos Ocupados e apresenta relatórios
anuais ao Conselho dos Direitos do Homem. O Gabinete do Alto-Comissário para os
Direitos Humanos (GACDH) das Nações Unidas e presta assistência logística e
técnica ao titular do mandato.
O mandato do relator especial decorre da resolução de 1993 do
Comité dos Direitos do Homem. O mandato convida o relator especial a
― investigar as violações por parte de Israel dos princípios e
fundamentos do direito internacional, do direito humanitário internacional e da
Convenção de Genebra relativa à Protecção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra,
de 12 de Agosto de 1949, nos territórios palestinianos ocupados por Israel
desde 1967;
― receber comunicações, ouvir testemunhas e utilizar as modalidades
de procedimento que considere necessárias para o seu mandato; e
― apresentar um relatório, com as suas conclusões e recomendações,
à Comissão dos Direitos do Homem nas suas futuras sessões, até ao fim da
ocupação israelita desses territórios». [2]
3. Desempenho de Francesca
Albanese
Francesca
Albanese tem tido um desempenho impecável no exercício das suas funções. Em
particular, dois dos seus relatórios fizeram história.
Refiro-me ao seu relatório de 1 de
Outubro de 2024, intitulado, Genocídio como forma colonial de erradicação. Na
sua introdução pode ler-se:
«Em Março de 2024, a Relatora Especial sobre a situação dos
direitos humanos nos territórios palestinianos ocupados desde 1967, Francesca
Albanese, concluiu que havia motivos razoáveis para crer que Israel tinha
cometido actos de genocídio em Gaza. No presente relatório, a Relatora Especial
alarga a sua análise da violência cometida contra Gaza após 7 de Outubro de
2023 à Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental. Presta especial atenção à
intenção genocida, colocando a situação no contexto de um processo de décadas
de expansão territorial e limpeza étnica destinado a eliminar a presença
palestiniana na Palestina. A relatora propõe que o genocídio seja visto como
parte integrante do objectivo de Israel de colonização total das terras
palestinianas, eliminando o maior número possível de palestinianos, e como um
meio para atingir esse fim.
O presente relatório baseia-se em investigação e análise jurídicas,
entrevistas com vítimas e testemunhas, em especial na Jordânia e no Egipto,
informações livremente disponíveis e contributos de peritos e organizações da
sociedade civil. A Relatora Especial, a quem continua a ser negado o acesso aos
Territórios Palestinianos Ocupados, salienta que Israel não tem o poder de
impedir o acesso dos mecanismos de apuramento de factos ao território que ocupa
ilegalmente.
A recusa persistente de permitir o acesso aos mecanismos das Nações
Unidas e aos investigadores do Tribunal Penal Internacional pode constituir uma
obstrução à justiça, desafiando a ordem do Tribunal Internacional de Justiça,
que ordenou a Israel que garantisse o acesso à Faixa de Gaza a qualquer
comissão internacional de inquérito e que tomasse medidas para assegurar a
preservação das provas.
Embora a escala e a natureza do ataque de Israel aos palestinianos
variem de região para região, é evidente que a totalidade dos actos de
destruição de Israel é dirigida contra todo o povo palestiniano, com o objectivo
de conquistar todo o território da Palestina. Os padrões de violência dirigidos
contra o grupo no seu conjunto são suficientes para desencadear a aplicação da
Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (Convenção sobre o
Genocídio), a fim de travar, prevenir e punir o genocídio em todo o Território
Palestiniano Ocupado» [3].
O
seu relatório mais recente (16 Junho de 2025), Da economia
de ocupação à economia de genocídio,
teve também um grande impacto. Na sua Introdução pode
ler-se:
«1. Os empreendimentos coloniais e os genocídios que lhes
estão associados têm sido historicamente impulsionados e viabilizados pelo
sector empresarial. Os interesses comerciais têm contribuído para a
desapropriação de povos e terras indígenas — um modo de dominação conhecido
como “capitalismo racista colonial”. O mesmo se aplica à colonização israelita
das terras palestinianas, à sua expansão para o território palestiniano ocupado
e à institucionalização de um regime de apartheid colonial.
Depois de negar a autodeterminação palestiniana durante décadas,
Israel está agora a pôr em perigo a própria existência do povo palestiniano na
Palestina.
2. O papel das entidades
empresariais na sustentação da ocupação ilegal de Israel e da campanha genocida
em curso em Gaza é o tema desta investigação, que se centra na forma como os
interesses empresariais sustentam a lógica colonial dos colonos israelitas de
deslocação forçada e substituição
destinada a desapossar e erradicar os palestinianos das suas terras.
O estudo aborda entidades empresariais de vários sectores: fabricantes de armas, empresas de tecnologia, empresas de construção civil, indústrias extractivas e de serviços, bancos, fundos de pensões, seguradoras, universidades e instituições de caridade. Estas entidades permitem a negação da autodeterminação e outras violações estruturais nos territórios palestinianos ocupados, incluindo a ocupação, a anexação e os crimes de apartheid e genocídio, bem como uma longa lista de crimes acessórios e violações dos direitos humanos, desde a discriminação, a destruição gratuita, a deslocação forçada e a pilhagem, a execução extrajudicial e a fome.
3. Se tivessem sido feitas as
devidas diligências em matéria de direitos humanos, as entidades empresariais
há muito que se teriam desvinculado da ocupação israelita. Em vez disso, após o
9 de Outubro de 2023, os actores empresariais contribuíram para a aceleração do
processo de deslocação e substituição ao longo da campanha militar que
pulverizou Gaza e deslocou o maior número de palestinianos na Cisjordânia desde
1967.
4. Embora seja impossível captar
totalmente a escala e a extensão de décadas de conivência empresarial na
exploração do território palestiniano ocupado, este relatório expõe a
integração das economias da ocupação colonial e do genocídio colonial. Apela à
responsabilização das entidades empresariais e dos seus directores executivos,
tanto a nível nacional como internacional: os empreendimentos comerciais que
permitem e lucram com a destruição da vida de pessoas inocentes devem cessar.
As entidades empresariais devem recusar-se a ser cúmplices de violações dos
direitos humanos e de crimes internacionais ou devem ser responsabilizadas por
isso» [4].
Este relatório de Francesca Albanese valeu-lhe um
recrudescimento das ameaças anónimas de morte, dos actos de censura por parte
do sistema mediático oligopolista de comunicação social do “Ocidente alargado” e dos actos de hostilidade por
parte de governos e deputados da mesma entidade geopolítica — com particular
destaque para os EUA, a Alemanha, a França, as Terras Baixas [Holanda], o Reino
Unido, a Hungria, a Argentina e, claro está, Israel.
A cereja no topo deste bolo de vitupérios e exorcismos
ao estilo Vodu foram as sanções que Donald Trump e o seu governo decidiram
impor a Francesca Albanese, as quais poderão incluir o congelamento de contas
bancárias, a interdição de entrar nos EUA (onde está a sede da ONU!) e a
retirada de imunidade diplomática — tudo medidas ilegais à luz do direito
internacional público, para além de ilegítimas e grotescas.
É bom que se saiba, que, antes como depois destes bramidos e carantonhas para meter medo à corajosa Francesca Albanese, nunca o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse uma palavrinha que fosse (em público ou em privado) de solidariedade e apoio ao seu trabalho. É ela quem o revela aqui [https://www.youtube.com/watch?v=H2UX5wIb3RE&t=26s], quando perguntada sobre o assunto por um jornalista.
O seu último relatório lista
48 empresas e instituições, incluindo a Palantir Technologies Inc., a Lockheed
Martin, a Alphabet Inc. (Google), a Amazon, a International Business Machine
Corporation (IBM), a Caterpillar Inc., a Microsoft Corporation e o
Massachusetts Institute of Technology (MIT), juntamente com bancos e empresas
financeiras como a BlackRock e a Vanguard, seguradoras, imobiliárias e
instituições de caridade, que, em violação do direito internacional público,
estão a ganhar milhares de milhões de dólares com a ocupação e o genocídio dos
palestinianos.
As imagens abaixo mencionam algumas dessas empresas,
assim como os seus principais accionistas, que participam na economia do
genocídio. A fonte de informação é, como já foi dito, o relatório de Francesca
Albanese Da economia de
ocupação à economia do genocídio (UN Human Rights Council) e o arranjo gráfico é da Al
Jazeera.
Algumas das 48 empresas que participam na economia do genocídio em Gaza nas seguintes áreas (de cima para baixo e da esquerda para a direita): militar, tecnologia, electricidade, expansão dos colonatos israelitas, agricultura e finanças. |
Principais accionistas (Blackrock e Vanguard) das empresas que participam na economia do genocídio em Gaza e as percentagens que possuem no capital de cada uma delas |
O ataque contra Francesca Albanese reforça
a ideia de que o chamado “Ocidente
alargado” é um mundo assente na duplicidade
de critérios, onde Estados delinquentes, como os EUA e Israel, têm permissão
para cometer crimes de guerra e genocídio sem qualquer responsabilização ou
restrição. Ele expõe os subterfúgios que as oligarquias dirigentes desses Estados
usam para tentar
enganar os seus cidadãos e para tentarem manter um semblante de respeitabilidade.
Ele revela a sua hipocrisia, a sua crueldade e o seu desprezo pelo direito internacional público de que se autoproclamam
os paladinos.
A partir de agora, serão em número
cada vez menor os cidadãos que levarão a sério as suas declarações de amor
acrisolado pelos direitos humanos e pelo primado da lei. E quem pode culpá-los?
Elas escondem mal os actos de força e crueldade extremas, o comportamento de brutamontes, a
realidade do morticínio, a intenção do genocídio.
«Os
assassinatos, o morticínio em grande escala, a imposição de tortura psicológica
e física, a devastação, a criação de condições de vida que não permitem que as
pessoas em Gaza possam viver, desde a destruição de hospitais, o deslocamento
forçado em massa e a falta de habitação em grande escala, enquanto as pessoas são
bombardeadas diariamente e passam fome — como podemos interpretar esses actos
isoladamente?», perguntou Francesca Albanese numa entrevista que lhe foi feita por Chris
Edges com base no seu relatório, Genocídio como forma colonial de
erradicação.
4. Uma digna candidata ao prémio Nobel da Paz
Destarte,
foi em muito boa hora que a organização Avaaz [Port. “Voz”] lançou uma campanha destinada a propor
Francesca Albanese e os médicos de Gaza para o Prémio Nobel da Paz.
No momento em que escrevo estas linhas [29 de
Julho de 2025, 20h12] já 968.522 pessoas de todo o mundo (entre as quais me
incluo) subscreveram a petição que
propõe Francesca Albanese para o Prémio Nobel da Paz.
Ela
merece-o, quer consideremos a sua acção e o seu magistério à luz do critério que
o comité norueguês do Nobel da Paz adoptou sub-repticiamente (e ainda por cima
de um modo venal e inconsistente) para a atribuição desse prémio (“a defesa dos direitos humanos”) -- em desrespeito pela
vontade expressa em testamento de Alfred Nobel --, quer os consideremos à luz dessa
mesma vontade: a saber, que o prémio Nobel da Paz seja dado
«à pessoa que fez mais ou melhor para fazer progredir a
fraternidade entre as nações, a abolição ou a redução dos exércitos permanentes
e o estabelecimento e a promoção de congressos da paz.»
Isto
foi o que Alfred Nobel deixou escrito no seu testamento [5]. Por
outras palavras, o prémio Nobel da paz é um prémio que foi concebido para
galardoar quem se distingue na luta contra o militarismo e o belicismo, pela
desmilitarização das sociedades, para prevenir ou extinguir as guerras e, acima
de tudo, por fazer progredir a fraternidade entre as nações.
É
esta última tarefa (mas primeira na hierarquia de objectivos de Alfred Nobel)
que Francesca Albanese tem desempenhado com uma coragem, diligência e
competência exemplares.
Quem
quiser juntar-se à campanha pela nomeação de Francesca Albanese como candidata ao
prémio Nobel da Paz de 2025 ⎼ cujo
vencedor ou vencedora será anunciado no próximo dia 10 de Outubro ⎼ poderá fazê-lo aqui:
https://secure.avaaz.org/campaign/en/stand_with_francesca_loc/?whatsapp
Notas e Referências
[1] “Special
Rapporteur on the situation of human rights in the Palestinian territories
occupied since 1967” [https://www.ohchr.org/en/special-procedures/sr-palestine]
[2] ibidem
[3] https://www.un.org/unispal/document/genocide-as-colonial-erasure-report-francesca-albanese-01oct24/
[5] https://www.nobelprize.org/alfred-nobel/alfred-nobels-will/.
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