Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

19 agosto, 2020

Esta é 7ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto). 

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O “estado da nação”
em tempos de pandemia Covid-19 

José Catarino Soares 


«A atitude dominante no universo é o conservadorismo e a subserviência» disse, uma vez, Rui Costa, poeta português precocemente falecido (1972-2012).

Eu diria “conformismo”, em vez de “conservadorismo”, e acrescentaria, “em matéria política”. No entanto, a veracidade desse aforismo, em qualquer das suas duas versões, é muito duvidosa, porque se fosse levado à letra não haveria, por exemplo, progresso científico e tecnológico, como tem havido, nem teria havido, por exemplo, o golpe de Estado militar do 25 de Abril de 1974 e a revolução popular que se lhe seguiu [1].


1. O debate do estado da nação e a pandemia Covid-19

 

Seja como for, qualquer delas se ajusta como uma luva ao debate que teve lugar na Assembleia da República sobre «o estado da nação» na sexta-feira, dia 24 de Julho de 2020. Houve dois aspectos que me chamaram a atenção nesse debate (que vi do princípio ao fim) pela sua imponente ausência: um que me surpreendeu, o outro não.

O aspecto que me surpreendeu foi a ausência quase completa, por parte de todos os partidos parlamentares, sem excepção, de referências à pandemia da Covid-19 enquanto tal, enquanto doença viral altamente contagiosa, em franca expansão a nível mundial. Na data em que comecei a redigir este texto, 10 de Agosto, a pandemia já tinha ultrapassado as 20 milhões de pessoas infectadas, das quais 737.103 (3,6%) já faleceram e quase um terço (6 milhões, 306 mil e 61) permanecem ainda infectadas (fonte: Worldometer). E continua a progredir, sem tratamento específico e sem vacina segura e eficaz (pelo menos, por enquanto) e sem que nenhum país, portanto, esteja ao abrigo de um recrudescimento, mesmo aqueles que alcançaram grandes êxitos no seu estancamento, como a China, a Coreia do Sul e a Nova Zelândia.

Talvez esse silêncio sobre a situação pandémica em Portugal no debate sobre o «estado da nação» — poder-se-ia pensar — se justifique por ela não inspirar cuidados de maior. Mas não é verdade. Continuamos com uma elevada taxa de óbitos e uma elevada taxa de novos infectados em Portugal, se tomarmos por termo de comparação o conjunto dos 30 países da Área Económica Europeia mais o Reino Unido, como mostra a tabela seguinte. Portugal só se distingue pela positiva na taxa de testagem por 100 mil habitantes, que é bem superior à do termo de comparação, à data de referência, 2 de Agosto, seis dias depois do debate sobre «o estado da nação». 


Países

Taxa de novos casos de infecção durante 14 dias por 100 mil habitantes

Taxa de óbitos durante 14 dias por 1 milhão de habitantes

Taxa de testagem por 100 mil habitantes

Percentagem de testes positivos

Data de referência

2  Agosto 2020

2 Agosto 2020

Semana 30

Semana 30

Portugal

28,4

5,2

923, 3

1,6

AEE e RU

Total

21,5

4,1

710,4

1,4

 

Fonte: “Coronavirus disease 2019 (COVID-19) in the EU/EEA and the UK – eleventh update: resurgence of cases”, Relatório do Centro Europeu de Controlo das Doenças, 10 de Agosto de 2020. UE= União Europeia; AEE =Área Económica Europeia (os países da UE+ 3 dos 4 países da Associação Europeia de Comércio Livre [AECL, ou EFTA, na sigla inglesa]: Islândia, Liechtenstein e Noruega, mas não a Suíça); RU= Reino Unido.


No entanto, quem tivesse chegado de Marte e ouvisse falar os ministros e os deputados dos diferentes partidos parlamentares que intervieram nesse debate julgaria que a pandemia já teria sido vencida, ou que ainda persiste, mas tão-somente em estado residual. Durante o debate, a pandemia da Covid-19 só foi invocada nos seus efeitos económicos e sociais, nunca (que eu me lembre) nos seus efeitos sanitários sobre a população, sobre o estado de saúde, as expectativas de vida (e os riscos de morte) das pessoas como seres vivos, não como meros agentes económicos ou unidades estatísticas.

Mais surpreendente ainda: o efeito revelador mais importante da pandemia no plano económico, nunca foi sequer aflorado. Todavia, não é preciso ter olhar de águia ou grande sagacidade para relevar esse efeito. Ele está à vista de todos. O presidente da Argentina, Alberto Fernandez, não se esqueceu dele no seu discurso de 15 de Julho de 2020:

Com a pandemia descobrimos que o mundo tem um sistema económico muito frágil, tão frágil que um vírus, imperceptível à vista humana, foi capaz de desmoronar impérios económicos (Público, 29 de Julho de 2020).

O que o presidente da Argentina não explicou, nem poderia ter explicado — por lhe faltarem de todo as ferramentas teóricas para o fazer ou a vontade política de as utilizar —, foi a causa da fragilidade desse sistema económico que o fez soçobrar tão rápida e fragorosamente  perante o vírus SARS-CoV-2.

Toda a gente viu como esse sistema, cujos ideólogos não se cansam de bradar aos quatro ventos que só funciona bem quando não é tolhido pela acção castradora do “Estado Social” — oximoro que usam para designar (i) quer a legislação moderadora dos seus insaciáveis apetites económicos (limitação da jornada de trabalho a 8 horas diárias e 40 horas semanais, salário mínimo nacional, período anual de férias pagas com a duração mínima de 22 dias úteis, etc.) que não conseguiram evitar que fosse aprovada, quer (ii) os serviços públicos universais (serviço nacional de saúde, escolaridade obrigatória dos 6 aos 18 anos, segurança social, universidades e politécnicos da rede pública, etc.) que não conseguiram evitar que fossem instituídos, quer (iii) a parte do erário público destinada a financiar (i) e (ii)  — se viu, de um momento para o outro, na necessidade de implorar que esse mesmo “Estado Social” interviesse para o salvar. E foi assim que toda a gente pôde ver, espectáculo bem instrutivo, que se não fossem os biliões de euros, dólares, ienes, libras esterlinas, francos suíços, coroas norueguesas, etc. do erário público injectados nas firmas de todos os tamanhos e a legislação aprovada à pressa e em catadupas para as manter vivas, ainda que em estado comatoso, o sistema económico mundial vigente a que se referia o presidente da Argentina teria ido desta para melhor.

De 2 de Março até 15 de Agosto foram aprovados 88 diplomas legais (decretos-lei, leis, resoluções do Conselho de Ministros, despachos, portarias, declarações de rectificação, recomendações e decretos presidenciais) motivados pela pandemia da Covid-19 e com impacto directo nas firmas e nos trabalhadores, o que representa quase um documento legal a cada dois dias, nestes cinco meses e meio, sobretudo desde que a OMS declarou, em 11 de Março, estarmos perante uma pandemia (A Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho [DGERT] fez uma compilação dessa legislação que pode ser consultada aqui: https://www.dgert.gov.pt/covid-19/legislacao-relacionada-com-a-covid-19). 

É sabido que o governo actual tem de entregar à Comissão Europeia em Bruxelas um «plano de recuperação e resiliência», como condição de acesso ao Next Generation EU, o fundo de recuperação de 850 mil milhões de euros que a União Europeia aprovou como medida de resposta aos efeitos económicos da pandemia de Covid-19.

O economista José Castro Caldas observou a este propósito:

Incapaz de responder ao encargo por não dispor de capacidade de planeamento e estar absorvido em respostas de emergência, [o governo] decidiu subcontratar a tarefa, ou pelo menos parte dela, desta vez não a uma das consultoras do costume, mas a uma pessoa. A escolha recaiu sobre António Costa Silva, engenheiro, gestor e professor universitário. É preciso um plano ? [para aceder aos 15,3 mil milhões de euros prometidos a Portugal no quadro do Next Generation, a que se somarão os 29,8 mil milhões de euros do Quadro Financeiro Plurianual e os 12,8 mil milhões de euros não executados do programa Portugal 2020, num total de subvenções de 57,9 mil milhões de euros transferíveis entre 2021 e 2029] Faça-se o Plano (J. Castro Caldas, A Grande Ilusão. Le Monde Diplomatique- Edição Portuguesa, Agosto 2020).

O plano apresentado por António Costa Silva com o título «Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030» não surge, evidentemente, em consequência de uma conversão colectiva à ideia de planeamento, por efeito da Covid-19. Como observa J. Castro Caldas no artigo já citado

Acontece tão-só porque o Estado [entenda-se, o erário público e o “Estado Social”, com especial destaque para o Serviço Nacional de Saúde e a Segurança Social] foi posto pela pandemia em função de máquina de suporte de vida da “economia de mercado” [um eufemismo  para “economia capitalista”] e porque essa máquina, não se podendo programar  a si mesma a partir dos débeis sinais emitidos pelos mercados comatosos, precisa de sequências de instruções vindas “de fora”.

Billion (americano) = mil milhões; Grants = subvenções; Loans = empréstimos

O aspecto do debate sobre o «estado da nação» que não me surpreendeu — por ser corriqueiro, mas nem por isso menos revelador — foi precisamente a ausência completa, por parte de todos os partidos parlamentares que se consideram, ou que são considerados, como sendo de “esquerda” (PS, BE, PCP, PEV [não incluo o PAN porque esse partido diz que não é nem de “esquerda” nem de “direita”]), de qualquer explicação dessa fragilidade do sistema económico. Quem tenha escutado o que disseram os deputados desses partidos durante o debate sobre o «estado da nação», não terá conseguido sequer detectar qualquer menção à   existência e à natureza desse sistema económico cuja fragilidade o novo coronavírus pôs a nu tão impiedosamente, mas da qual NÃO é a causa.


2. A causa da fragilidade do sistema económico

 

A causa é a profunda crise sistémica — isto é, global e multidimensional (socioeconómica, socioambiental, sociobiótica, sociocultural, sociopolítica) — que afecta o modo capitalista de produção e apropriação de bens e serviços; o sistema económico a que se referiu, sem o nomear, o presidente da Argentina e que reina, supremo, embora com diferentes graus de entranhamento, em todos os países do planeta.

As manifestações mais salientes dessa crise sistémica nas últimas três décadas são as seguintes:

1) a manutenção de um elevado nível de desemprego [2]; 2) o aumento da precaridade do emprego; 3) a progressão da massa salarial a um nível inferior à produtividade do trabalho; 4) o declínio da parte dos salários no valor acrescentado; 5) o aumento constante da idade legal para a reforma; 6) a desigualdade dos salários (em paridades do poder de compra) entre países; 7) o aumento da desigualdade de rendimentos (em paridades de poder de compra) entre as pessoas mais ricas e as mais pobres tanto nos países industrial e tecnologicamente mais desenvolvidos como nos menos desenvolvidos; 8) a lenta mas persistente diminuição das taxas de crescimento económico do produto  interno bruto (PIB) [3] em todos os países capitalistas mais desenvolvidos (EUA, Canadá, UE, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong-Kong [hoje parte da China]) desde há mais de meio século [4], 9) alimentada pela desaceleração da progressão da produtividade do trabalho e da denominada “produtividade total (ou global) dos factores” ou “produtividade multi-factorial” (que mede a  influência da tecnologia e dos factores socioinstitucionais) ; 10) a escalada das dívidas públicas nos EUA, no Canadá, nos países da Zona do Euro, no Reino Unido, no Japão, na China, na Argentina, no Brasil, na África do Sul, a partir da crise de 2008; 11) acompanhada pelo enriquecimento mirabolante das camadas superiores (os 10% e o 1% dos membros mais ricos) das classes dominantes; 12) as deslocações e migrações massivas entre continentes e dentro de um mesmo continente de populações desesperadas, em fuga da guerra, do occídio e da fome; 13) o aumento da ameaça de um holocausto nuclear da humanidade [5];

O vice-almirante Vasili Alexandrovich Arkhipov (1926-1998), à esquerda, foi um oficial da Marinha Soviética que impediu uma guerra nuclear durante a Crise dos Mísseis de Cuba, em 1962. O tenente-coronel Stanislav Petrov (1929-2017), à direita, foi um oficial do Exército Soviético que impediu uma guerra nuclear em 1983. Ambos se recusaram a detonar armas nucleares em situações de total incerteza quanto às presumíveis acções hostis da potência nuclear inimiga: os EUA. Se não fosse a capacidade de discernimento, o sangue-frio e a coragem destes dois homens, teria ocorrido, em qualquer dessas ocasiões, um holocausto nuclear da humanidade e não estaríamos hoje aqui. 

14) a redução massiva da biodiversidade (e.g., deflorestação das florestas tropicais, introdução incontrolada de espécies exóticas e organismos geneticamente modificados); 15) a degradação acelerada do meio-ambiente (e.g., poluição da atmosfera e dos cursos e reservas subterrâneas de água doce, gases com efeito de estufa, acidificação e plastificação dos oceanos, fracturamento hidráulico do substrato rochoso para extrair gás de xisto e petróleo de xisto).

 

Em 24 de Julho de 2016, mais de 7.000 pessoas descem à rua em Filadélfia (EUA) para uma manifestação a favor da energia limpa. «O  fracturamento hidráulico prejudica a saúde», diz a tarja da foto. Foto de Mark Dixon.


3. A alternativa e as pseudo-alternativas


Outrora (da segunda metade do século 19 até ao fim da 1ª guerra mundial), a alternativa capaz de substituir o modo capitalista de produção e superar os seus malefícios insanáveis — sem abdicar, todavia, dos progressos científicos, tecnológicos e culturais alcançados durante a sua vigência — era resumida pelas palavras “socialismo” e “comunismo”.

Estas eram entendidas, pela positiva, como sinónimos de «movimento cooperativo, especialmente o movimento das fábricas cooperativas, (…) desenvolvido em dimensões nacionais e, por conseguinte, promovido por meios nacionais » (Karl Marx, Alocução Inaugural à Associação Internacional dos Trabalhadores, 1864) de modo a instituir, em todos os países industrialmente desenvolvidos, « o  sistema republicano e beneficente da associação dos produtores livres e iguais» (Karl Marx, 1866, Instruções para os Delegados do Conselho Geral Provisório [ao 1º Congresso da Associação Internacional de Trabalhadores, em Genebra]. O realce em itálico é do original). [6]

Na sua terceira alocução à Associação Internacional dos Trabalhadores, em Maio de 1871, sobre o significado da Comuna de Paris, Karl Marx voltou ao assunto nos mesmos termos.

A Comuna, exclamam eles, tenciona abolir a propriedade, base de toda a civilização!

Sim, cavalheiros, [Marx dirige-se aqui, retoricamente, aos representantes das classes dominantes] a Comuna tencionava abolir aquela propriedade de classe que faz do trabalho de muitos a riqueza de poucos. Ela aspirava à expropriação dos expropriadores. Queria tornar a propriedade individual numa realidade, transformando os meios de produção, a terra e o capital, que são principalmente, hoje em dia, meios de escravização e exploração do trabalho, em meros instrumentos de trabalho associado e livre.

Mas isso é o comunismo, o comunismo “impossível”!

Marx imagina que seria esta a resposta escandalizada que lhe dariam os seus interlocutores. A sua réplica é, como se verá, uma reiteração das posições de 1864 e de 1866 citadas mais acima e das quais nunca se afastou até ao fim da sua vida (1883).  

Se não cabe à produção cooperativa manter-se como uma impostura e uma armadilha; se lhe cabe substituir o sistema capitalista; se cabe às sociedades cooperativas unidas regular a produção nacional segundo um plano comum, colocando-a assim sob o seu próprio controlo e pondo fim à constante anarquia e às convulsões periódicas  que são a fatalidade da produção capitalista — que seria isto, cavalheiros, senão o comunismo, o comunismo “possível” ? [7]

Porém, a partir do fim da 1ª guerra mundial (1918), as palavras “comunismo” e “socialismo” foram apropriadas para um uso espúrio. Alguns passaram a usá-las para denominar um Eldorado situado num futuro longínquo que só se alcançaria ao cabo de prolongados e porfiados esforços para domesticar o sistema capitalista através de doses cavalares de parlamentarismo e punções cirúrgicas nos lucros e nos privilégios do grande capital.

Outros passaram a usá-las para denominar duas fases distintas, uma inferior e outra superior, de uma configuração socioinstitucional muito diferente da que Marx sugeriu (e nalguns aspectos diametralmente oposta à sua) para as formações sociais concretas capazes de superar o modo capitalista de produção. Designemo-la por dirigismo tecnoburocrático de Estado, porque merece ter um nome e uma caracterização [8] : 

Dirigismo tecnoburocrático de Estado: propriedade estatal dos meios colectivos de produção [9] + planificação e regulação burocráticas da produção e apropriação de bens e serviços (incluindo os serviços colectivos e universais de saúde, segurança social, escolaridade, água canalizada, saneamento básico, electricidade doméstica, transportes públicos, telecomunicações, cultura [desporto, arte, ciência, tecnologia]) + ditadura perpétua de um partido único e omnipotente. Isto significa que o partido governante controla todas as instituições do poder político (legislativo e executivo) e do aparelho de Estado (judiciário, polícias e Forças Armadas), assim como todas as instituições da administração pública, todos ou a maioria dos organismos económicos (tais como fábricas, herdades, laboratórios de engenharia) e todas as instituições que prestam serviços colectivos, tais como infantários, escolas, hospitais, universidades, etc.

Dois dos partidos portugueses com assento parlamentar, PS e PCP, estão historicamente associados, respectivamente, às duas perspectivas supramencionadas. À primeira vista, isso poderá parecer incompatível com os nomes desses partidos, que invocam o “socialismo” e o “comunismo”. E é, de facto, incompatível. Convém lembrar, a este propósito, que “socialismo” e “comunismo” não significam duas fases distintas do desenvolvimento de uma sociedade pós-capitalista liberta da exploração e da opressão do homem pelo homem. São, isso sim, dois nomes distintos, mas intermutáveis, da configuração socioinstitucional de uma tal sociedade [10].

Feito este esclarecimento, compreender-se-á que não há, de facto, contradição no que afirmei nos parágrafos anteriores. Hoje em dia, o significado original dessas duas palavras só sobrevive, nesses partidos, à maneira dos fósseis de uma era remota num folhelho de xisto.

Na prática, todos os partidos de esquerda com assento parlamentar (PS, BE, PCP, PEV) actuam, hoje em dia, como se o modo capitalista de produção fosse um horizonte inultrapassável e como se as suas tarefas se esgotassem nas medidas para mitigar os malefícios do capitalismo. O seu programa comum poderia ser resumido num lema: «para um capitalismo de rosto humano».

Se os dirigentes desses partidos fossem convidados a descrever o tipo de sociedade que deveria suceder à sociedade capitalista, os do PCP, pelo menos, diriam, presumo, algo como isto:

um sistema semelhante, grosso modo, ao da ex-URSS, ou da China, ou da Coreia do Norte, ou de Cuba, ou do Vietnam, ou do Laos — países que foram ou são governados por partidos irmãos do PCP [11]. Grosso modo porque, para nós, há leis gerais de revolução e de construção socialista, mas não há nem pode haver “modelos” universais de revolução e de construção socialista. Os caminhos da revolução e da edificação socialista são diversificados e seguem etapas diferenciadas de país para país, pelo que a edificação em Portugal de uma sociedade socialista não será uma cópia de qualquer outra experiência alheia.

Daqui podemos deduzir que seria, apesar de todas as qualificações, um sistema como aquele que foi descrito em Dirigismo tecnoburocrático de Estado. Ora, essa descrição caracteriza, sucinta mas correctamente, os traços principais do sistema económico e político vigente na ex-URSS, traços esses que encontramos também — mais ou menos atenuados nalguns aspectos, mais ou menos acentuados noutros  aspectos — na China, na Coreia do Norte, em Cuba, no Vietnam e no Laos.

Quanto aos outros partidos de esquerda, nada saberiam dizer de concreto, porque se contentam com esta ou aquela versão ordoliberal do capitalismo, a saber:

— Estado de direito(leia-se: primado (ou império) da leis protectoras da propriedade privada dos meios colectivos de produção de bens e serviços e dos cinco mercados — o mercado dos bens de capital, o mercado de trabalho, o mercado dos bens de consumo, o mercado da terra e o mercado das matérias-primas — como princípio jurídico basilar) + regime oligárquico electivo (parlamentar, presidencial ou semi-presidencial) [12] + “economia social de mercado” [leia-se: propriedade privada dos meios colectivos de produção promovida e regulada pelo poder político (legislativo e governamental) e defendida pelo aparelho judiciário e repressivo de Estado] + um mínimo de “Estado social” [leia-se: segurança social pública, escola pública, serviço nacional público de saúde].

No caso do PS, trata-se de um facto bem conhecido. No caso do BE, é um facto menos conhecido, mas nem por isso menos real. Em 2 de Setembro de 2019, Catarina Martins, coordenadora do Bloco de Esquerda, declarou à Rádio Observador que «o BE apresenta um programa — já o disse antes e às vezes as pessoas ficam um pouco chocadas, mas acho que é importante dizê-lo — que é, na sua essência, um programa social-democrata, no sentido em que corrige os excessos [do capitalismo] com o controlo da economia, com o Estado social e com mecanismos de igualdade» (https://www.youtube. com/watch?reload=9&v=Vk7vcbGkhVI) o trecho citado começa no minuto 4.55 e termina no minuto 5.13).

Há mais de um século que este programa de “correcção dos excessos” do capitalismo tem vindo a ser praticado, em particular pela social-democracia [13], sem que o capitalismo alguma vez tenha renunciado a “exceder-se”. Na verdade, não o pode fazer sem se negar a si próprio e se autodestruir.

O objectivo de toda e qualquer firma capitalista é conseguir fazer lucros elevados para serem distribuídos ao seu ou seus proprietários privados (o[s] detentor[es] do capital) e bater a concorrência. Se o não conseguir fazer, ainda que seja à custa de baixos salários e más condições de trabalho dos seus trabalhadores, abre falência, o que acarreta o despedimento colectivo dos mesmos. Para poder pagar altos salários e propiciar boas condições de trabalho aos seus trabalhadores (como sucede, por exemplo, com a Google, a Apple, a BP, a ExxonMobil, a Bayer ou a Cargill)  — pelo menos àquela parte deles que trabalha no país onde se situa a sua sede e que ocupa os postos de trabalho que exigem qualificações mais elevadas ou que acarretam maior melindre na prestação de contas aos accionistas — garantindo ao mesmo tempo grandes lucros aos seus accionistas, terá, regra geral, de

(i) obter extensas benesses fiscais,

(ii) beneficiar de um regime de monopólio ou oligopólio (assente em patentes blindadas, ou em apoios financeiros e incentivos fiscais [14]) ou de um regime de monopsónio ou oligopsónio (assente no acesso privilegiado ou exclusivo a fontes de matérias primas),

(iii) recorrer à fabricação por contrato em países onde a força de trabalho seja muito mais barata e tenha muito menos direitos sociais,

(iv) procurar eliminar a concorrência — a mesma “livre concorrênciaque os economistas apologéticos nunca se cansam de apresentar como sendo a arma secreta da longevidade e da alegada superioridade do capitalismo.

Não há forma de escapar a estes antagonismos internos que são parte integrante do funcionamento do modo capitalista de produção e apropriação.

Por isso, as classes capitalistas e as suas potestades políticas vêem-se compelidas volta e meia, volens nolens, a tentar recuperar com a mão direita o que foram obrigadas a ceder com a  mão esquerda (direitos sociais e políticos, segurança social pública, escola pública, serviço nacional público de saúde, aumentos de salários, etc.) num momento de grande aflição (como em Portugal nos anos 1974-1976, o período revolucionário) ou num momento de grande poderio e prosperidade (como nos EUA nos anos 1948-1952, o período do plano Marshall). O que obriga, por sua vez, as classes trabalhadoras a travarem lutas prolongadas e esgotantes para defenderem ou recuperarem as suas conquistas socioeconómicas, socioculturais e sociopolíticas — uma situação reminiscente do mito de Sísifo.

É assim que as coisas se passam há mais de 100 anos e, se tudo dependesse da vontade das classes capitalistas e dos seus agentes políticos, não haveria razão nenhuma para pensar que pudessem passar-se de maneira diferente nos próximos 100 anos. Mas tudo indica que não há sociedade ecologicamente sustentável nem civilização que resistam a mais 100 anos de capitalismo.

Sem dúvida, um sistema semelhante ao da ex-URSS a partir de 1928 elimina a propriedade privada dos meios colectivos de produção (e, por conseguinte, a classe capitalista). Não o faz, porém — como a experiência desse país mostrou à saciedade durante 63 anos — com vista a colocar esses meios sob a custódia e o controlo de gestão dos produtores/trabalhadores organizados em empresas cooperativas e noutras formas igualitárias de associação laboral não lucrativa, capazes de regular a produção segundo um plano comum democraticamente elaborado, aprovado e implementado,  mas para os entregar nas mãos de um novo tipo de oligarquia dirigente toda-poderosa. Destarte, a subordinação e a opressão dos produtores/trabalhadores continua sob outras formas, frequentemente tão ou mais tirânicas e opressivas do que as que vigoravam anteriormente. Qualificar um tal sistema de “socialista” é equivalente a chamar “pousada” a uma penitenciária.

 

4.  Vislumbres do modo socialista de produção


Um sistema socialista encarado como base económica de uma sociedade do século XXI integralmente democrática, é um sistema de empresas cooperativas, fundações públicas comunitárias (e.g. no caso dos hospitais do serviço nacional de saúde e das universidades e politécnicos) ou pancomunitárias (e.g., no caso dos Correios e Telecomunicações e dos Caminhos-de-Ferro) e de outras formas associativas sem fins lucrativos de cidadãos-produtores e consumidores livres e iguais (em direitos e deveres), coordenadas umas com as outras por meio de um plano global comum de produção e provisão de bens e serviços.

4.1. Plebiscitos electrónicos

Os objectivos e prioridades desse plano global serão periodicamente (por exemplo, anualmente ou bianualmente) objecto de propostas livremente apresentadas por grupos de cidadãos tirados à sorte (e.g., 5 grupos) que trabalhem independentemente uns dos outros, numa primeira fase, e que se reúnam em conjunto para debater os pontos de convergência e de divergência, numa segunda fase. Depois de devidamente compilados e quantificados em grandes rubricas e sub-rubricas para efeitos orçamentais, os objectivos e prioridades constantes das diferentes propostas serão divulgados para efeitos de discussão pública pelo conjunto dos cidadãos.

Findo o período de discussão pública, os seus resultados serão devidamente compilados. Por exemplo,  a proposta P1 fundiu-se com a proposta P4, dando lugar à Proposta I; a proposta P2 fundiu-se parcialmente com a proposta P5, dando lugar à Proposta  II e à Proposta III, respectivamente; a proposta P3 mantém-se inalterável, agora com a designação de Proposta IV.

Depois de compiladas, as alternativas existentes serão democraticamente dirimidas por meio de plebiscito electrónico.

Por exemplo, escolher através do sufrágio universal, directo e secreto entre as alternativas a.1 [constante da Proposta I]: aumentar em 3,5% o investimento na Saúde, ou a.2 [constante da Proposta II]: aumentar em 2% o investimento na Saúde, ou a.3 [constante da Proposta III] : aumentar em 1% o investimento na Saúde; ou a.4 [constante da Proposta IV]: manter o investimento na Saúde no seu nível actual; b.1 [constante da Proposta I]:  aumentar o investimento na investigação científica em 1%, ou  b.2 [constante da  Proposta II e da Proposta III]: aumentar o investimento na investigação científica em 2%, ou  b.3 [constante da Proposta IV]: aumentar o investimento na investigação científica em 3%, etc.

Hoje em dia, uma escolha múltipla deste género por meio de um plebiscito electrónico é tecnicamente muito fácil de organizar com a ajuda de telemóveis de 4ª geração. Paul Cockshott, inventor do sistema Handivote, mostrou teórica e praticamente  como é que isso se faz [15].

Por sua vez, a implementação e a regulação do plano assim elaborado e aprovado dispõe também, hoje em dia, de recursos que deixariam maravilhados os socialistas do passado, mesmo os mais imaginativos (como, por exemplo, Edward Bellamy [16] e William Morris [17]). Refiro-me à possibilidade de poder tirar o máximo partido dos meios tecnológicos disponíveis, não apenas os telemóveis 4G (que são de facto microcomputadores portáteis) e a Internet, que viabilizam sistemas de votação electrónica como o Handivote, mas também muitos outros — cibernética, computadores, informática, códigos de barras, cartões inteligentes de débito, rede de terminais de pagamento automático (TPA), www, computação em nuvem, Internet das coisas, inteligência artificial, nanotecnologia.

O protocolo de votação do sistema Handivote. Registration = recenseamento; Voting = votação; Publication = publicação dos resultadosFonte : Paul Cockshott, Karen Renaud, Tsvetelina Valcheva, 2016

4.2. Contas à ordem e cartões de débito cronolaborais

Um exemplo concreto — o das virtualidades inexploradas que oferecem os  cartões electrónicos de pagamento ditos “inteligentes” (ou seja, com microprocessadores em circuitos integrados) — permitirá, creio, ter outro vislumbre do funcionamento do modo socialista de produção. A primeira pessoa que imaginou os cartões de débito como substitutos do dinheiro foi Edward Bellamy no seu romance de 1886, Looking Backward: 2000-1887. Mas nem mesmo Bellamy, apesar da sua imaginatividade e argúcia, poderia imaginar as possibilidades que oferecem os circuitos integrados embutidos nos cartões inteligentes de pagamento que hoje utilizamos rotineiramente [18]. Vejamos então esta questão de mais perto.


No modo capitalista de produção, a riqueza toma a forma de uma imensa  colecção de mercadorias. As mercadorias são bens ou serviços com um valor-de-uso e um valor-de-troca. Por essa razão, o dinheiro desempenha três funções: (A) de equivalente geral dos valores-de-troca das mercadorias, ou seja, de unidade de conta e estalão dos preços das mercadorias; (B) de meio geral de circulação das mercadorias, ou seja, de meio geral de pagamento e (C) de reserva de valor, ou seja, de tesouro.

No modo socialista de produção, a riqueza toma a forma de uma enorme colecção de valores-de-uso. Os valores-de-uso, no modo socialista de produção, não são valores-de-troca e, por conseguinte, não são mercadorias. Isso torna-se mais claro e fácil de compreender se dividirmos a  economia socialista em três sectores:

1. A produção dos meios colectivos de produção (e.g. maquinaria, instalações fabris, energia, matérias primas).

2. A produção de bens e serviços de consumo pessoal e familiar que são distribuídos para venda aos cidadãos e às suas famílias (e.g., comida, roupa, habitação, livros, computadores pessoais, brinquedos, meios individuais ou familiares de transporte, sessões de cinema, concertos, peças de teatro).

3. A provisão de serviços colectivos universais e gratuitos de protecção e apoio ao bem-estar e ao desenvolvimento cultural da população (serviços colectivos, para abreviar), tais como, por exemplo, segurança social, centros de saúde, hospitais, infantários, escolas, universidades, bombeiros, equipamentos desportivos.

As prioridades e os objectivos dos três sectores (O que produzir? O que produzir primeiro? Quanto produzir? Quando produzir?) serão objecto, como vimos, de discussão pública e de deliberação democrática pelo conjunto dos cidadãos através de plebiscito electrónico realizado numa base anual ou plurianual.

São essas decisões sobre as grandes rubricas da despesa pública que informam o plano de produção e provisão dos bens e serviços fornecidos pelos três sectores e que determinam também, em primeiro lugar, a distribuição intersectorial da força de trabalho e dos demais recursos necessários à sua implementação. Isso significa que o mercado, as transacções estritamente privadas de compra e venda de mercadorias (uma certa quantia de dinheiro passando da pessoa A para a pessoa B, e uma certa quantidade de mercadoria[s] passando, em sentido inverso, da pessoa B para a pessoa A) não existem nos sectores 1 e 3.

No sector 2 as coisas passam-se de um modo diferente, porque não são os meios colectivos de produção (sector 1), nem os serviços colectivos e universais (sector 3) que aí se produzem e fornecem — isto é, bens e serviços que só podem ser produzidos e prestados pela cooperação e o trabalho concertado de muitas dezenas, centenas ou milhares de pessoas actuando simultaneamente —, mas os bens de consumo pessoal e familiar. Neste sector, são as preferências individuais dos consumidores que têm a primazia. Os cidadãos, enquanto consumidores, escolhem aquilo que querem comprar sem terem necessidade de submeter as suas escolhas a plebiscito.

Um Catálogo Geral dos Bens de Consumo e Serviços Afins (permanentemente actualizado) indicará as propriedades de todos os artigos e serviços disponíveis — será um catálogo que funcionará também, por conseguinte, como um inventário geral das existências dos mesmos  que os cidadãos poderão adquirir numa rede nacional de lojas e centros de abastecimento (seja directamente, seja através da Internet) por meio de cartões de débito inteligentes vinculados a contas à ordem pessoais. Nada disto é fantasioso, muito pelo contrário; é a prática corrente de empresas como a Walmart e a Amazon

Armazéns da Amazon. Foto Gtres. 

E serão a procura e as escolhas selectivas dos consumidores, ciberneticamente monitorizadas em permanência pela rede de informação e coordenação computadorizada que ligará todas as empresas, que orientará a actividade produtiva quotidiana do sector 2 (bem como a sua relação com a actividade dos demais sectores) e o seu planeamento de curto e médio prazo. Isso é hoje uma tarefa fácil de realizar com a ajuda da Internet, das gigantescas bases de dados (Ingl. Big Data), dos supercomputadores, dos já citados cartões electrónicos de pagamento e dos métodos de optimização linear desenvolvidos há mais de 80 anos pelo matemático russo Leonid Kantorovich (1912-1986) e que foram, entretanto, aperfeiçoados por outros matemáticos russos e ocidentais.   

Departamentos

Aparelhos principais

Artes, artesanato·e marcenaria

Artigos para animais de estimação

Automóveis e motos

Bebé

Bebés Roupas e acessórios

Beleza

Brinquedos & Jogos

Calçado masculino

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Casa e cozinha

Telemóveis e acessórios

Colecionáveis

Computadores e acessórios

Costumes e acessórios

Cozinha

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Equipamento de bagagem

Desportos & Campo

Ferramentas & melhorias na casa

Ferramentas manuais e electrónicas

Filmes e TV

Fones de ouvido [= auriculares em Portugal]

Industrial e científico

Instrumentos musicais

Jóias femininas

Livros

Materiais escolares e de escritório

Moda

Moda feminina 1

Moda feminina 2

Moda masculina 1

Moda masculina 2

Moda meninas

Moda meninos

Móveis

Relógios femininos

Relógios masculinos

Programas informáticos

Televisão e Vídeo

Jogos de Vídeo

 Sapatos de senhora

Outros

                                                                         Rubricas do Catálogo da Amazon


Leonid Kantorovich (1912-1986), em 1930, o ano em que se licenciou, com 18 anos. Entrou na Universidade aos 14 anos e foi professor catedrático aos 22 anos. 

4.3. O fim do dinheiro

Como já foi dito, todos os cidadãos disporão de contas à ordem e cartões inteligentes de débito vinculados a essas contas. É necessário compreender, porém, que essas contas à ordem e os cartões de débito que as operacionalizam não representam dinheiro vivo, como aquele que depositamos quando abrimos uma conta num banco, nem crédito monetário, como sucede actualmente, nas nossas sociedades onde impera o modo capitalista de produção e apropriação.

A sua função é a de servirem simultaneamente como:

(i) comprovativo individual e instrumento de registo contabilístico da retribuição cronolaboral do seu titular — ou seja, como comprovativo do nº de horas trabalhadas por cada cidadão/cidadã durante a sua actividade económica para efeitos de contabilidade nacional e do cálculo da taxa única de imposto de rendimento destinado a financiar os sectores 1 e 3 (v. secção 4.4 mais adiante) .

(ii) meio de aquisição e de registo de aquisição dos bens de consumo (avaliados também pelo seu conteúdo cronolaboral [isto é, pelo nº de horas de trabalho socialmente necessário que foi requerido para a sua produção], acrescido de um coeficiente C de encarecimento do preço no caso de valores-de-uso fabricados com recursos naturais não-renováveis ou renováveis só muito lentamente) que cada cidadão quiser escolher do Catálogo Geral, desde que custem o equivalente a uma fracção do seu rendimento cronolaboral disponível.

O que foi dito aplica-se igualmente aos trabalhadores reformados, em cujas contas à ordem será creditado o valor cronolaboral da pensão mensal a que têm direito.

 Cartão bancário "inteligente". Infografia-Tecnomundo de  Fábio Jordão e Brina Fujie.

As contas à ordem que registam o rendimento cronolaboral disponível dos cidadãos numa economia socialista e os cartões de débito com microprocessadores que operacionalizam o seu poder de compra no sector 2 são muito diferentes do dinheiro num outro aspecto. O seu poder de compra não circula anonimamente de umas mãos para as outras, como sucede com o dinheiro. A despesa com a compra de um artigo de consumo feita com um desses cartões não corresponde a uma receita auferida por outrem, mas tão-somente à anulação da existência de uma unidade (ou X unidades) desse artigo no Catálogo Geral dos Bens de Consumo e Serviços Afins e à anulação concomitante do mesmo valor cronolaboral na conta à ordem do comprador.

Os cartões de débito numa economia socialista são cartões pessoais e intransmissíveis, no sentido de que o seu titular (i) só pode fazer compras para uso próprio, ou para uso alheio mas sem intuitos comerciais (por exemplo, comprar um computador portátil para si próprio, ou para um filho, ou para o oferecer como prenda a uma pessoa amiga, mas não para o alugar ou revender), razão pela qual o seu titular (ii) não poderá transferir nenhuma parte do seu rendimento cronolaboral para a conta à ordem de outrem, (iii) nem aceitar transferências de outrem para a sua conta pessoal. Essa cláusula de intransmissibilidade das contas à ordem cronolaborais e dos cartões de débito conexos elimina completamente a possibilidade de um mercado negro.

Por último, convém salientar que são cartões válidos apenas para a aquisição de bens de consumo (os bens que são produzidos no sector 2). Não servem para comprar meios colectivos de produção de bens de produção (sector 1) — p. exemplo, fábricas de máquinas de corte industrial (tais como, máquinas de corte de laser de chapas metálicas,  máquinas de corte de  laser de tubos, máquinas de corte de plasma de chapas metálicas) —, nem para comprar meios colectivos de produção de bens de consumo individual ou familiar (sector 2) — por exemplo, fábricas de telemóveis ou fábricas de sapatos —, nem para comprar serviços colectivos universais (sector 3) — p. exemplo, um hospital ou uma estação de tratamentos de águas residuais (vulgo, esgotos sanitários) —, nem para alugar força de trabalho humana em troca de um salário. Em suma, são cartões (rendimentos) que não podem ser utilizados como capital em nenhum sector económico.

Deste modo, duas das três funções que o dinheiro cumpre actualmente (as funções A e C) perderão a sua razão de ser nos sectores 1 e 3 de uma economia socialista e a terceira (a função B) será substituída com vantagem pelos cartões de débito e contas à ordem cronolaborais no sector 2. 

4.4. O financiamento da economia socialista

A partir do momento em que uma parte do trabalho social total (ou, o que vem  a ser o mesmo, uma parte da jornada total de trabalho [19]) tenha sido alocada ao sector 1 — isto é, à acumulação de novos meios de produção, como edifícios, infraestruturas (ferrovias, barragens, etc.) e maquinaria , incluindo um fundo de reserva como seguro para imprevistos —, e outra parte tenha sido alocada ao sector 3 — isto é, à provisão de serviços colectivos universais e gratuitos (como cuidados de saúde, infantários, escolaridade obrigatória, etc.) — através de decisão cidadã tomada em plebiscitos electrónicos periódicos, estão reunidas as condições básicas para calcular o montante e escolher os meios de financiamento da economia no seu todo. Há, em princípio, várias maneiras de se conseguir isto:

1. Através (1.a) de um imposto de rendimento de taxa única sobre os produtores, e/ou através (1.b) de um imposto de rendimento de taxa progressiva,  semelhante ao nosso actual imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), e/ou através (1.c) de um imposto sobre a renda fundiária semelhante ao actual imposto municipal sobre os imóveis (IMI), mas abrangendo todos os moradores, mesmo os que não sejam proprietários das suas habitações.

2.  Através (2.a) de um imposto sobre as vendas de bens de consumo específicos (como, por exemplo, bebidas açucaradas, bebidas alcoólicas, tabaco), e/ou através (2.b) de um imposto geral de consumo semelhante ao actual imposto de valor acrescentado (IVA).

3. Através (3) de um imposto sobre o volume de negócios das empresas dos sectores 1 e 2, o que se traduziria num coeficiente aplicado ao custo líquido de todos os bens produzidos nesses sectores para formar o seu preço de venda ideal.  (N.B. Emprego o termo volume de negócios à falta de melhor, porque não existem negócios propriamente ditos numa economia socialista. Volume de transações talvez fosse mais apropriado). 

Há fortes argumentos a favor de uma solução compósita integrando 1.a, 1.c e 2.a, por esta ordem de importância, e rejeitando 1.b, 2.b e 3 (v. Paul Cockshott & Allin Cottrell, Towards a New Socialism.Nottingham, Bertrand Russell, 1992/ Notttingham, Spokesman, 1995, pp. 94-96; Paul Cockshott, How the World Works. The story of human labor from prehistory to the modern day. New York, Monthly Review, 2019, pp.251-257). Bem entendido, numa sociedade socialista, a escolha destes impostos deve ser objecto de um plebiscito válido por «x» anos. Um vez aprovada a solução fiscal a adoptar, as alíquotas (taxas) dos impostos escolhidos para vigorarem durante «x» anos devem ser também decididas periodicamente por plebiscito electrónico.

Note-se que, através da solução aqui proposta (1.a+1.c+2.a), o rendimento cronolaboral disponível dos cidadãos-produtores (o seu poder de compra efectivo individual) é posto em correspondência exacta com o número de horas de trabalho social dispendidas a fabricar bens de consumo pessoal e familiar (sector 2). A transparência dos números relativos aos custos e benefícios sociais da economia socialista fica assim assegurada. 

 

5. As duas questões centrais da nossa época

 

Que arquitectura socioinstitucional deverá ter, então, uma sociedade integralmente democrática, tecnologicamente avançada, ecologicamente sustentável, sem classes socioeconómicas e sem Estado (entenda-se, sem forças repressivas especiais, separadas do colectivo dos cidadãos) ? Esta é uma das duas questões centrais da nossa época.

É impossível continuar a fazer de conta que é possível lutar eficaz e coerentemente por uma sociedade socialista sem enfrentar esta questão ou respondendo-lhe com sobranceira displicência: «quando expropriarmos os expropriadores, logo se verá o que faremos». Essa é, quando muito, a receita universal para conseguir construir uma qualquer versão “nacional” do dirigismo tecnoburocrático de Estado. Ora, sucede que a história do século XX não é apenas a história da decadência convulsiva e mortífera do modo capitalista de produção, com as suas constantes rivalidades e guerras intestinas. É também, em grande medida, a história do dirigismo tecnoburocrático de Estado, das aporias da sua doutrina, da grandiosa mistificação que representou como falsa alternativa ao sistema capitalista, e da sua desagregação numa área superior a 1/6 do planeta (ex-URSS e países da Europa de leste do ex-COMECON). Temos de aprender todas as lições dessa história, se quisermos encontrar uma saída viável para a humanidade. 

A outra questão central consiste em saber que medidas e acções concretas podem ser postas em prática e realizadas para que os cidadãos que  constituem a grande maioria da população adulta (os trabalhadores assalariados e os estudantes adultos) possam auto-instituir — se o quiserem fazer, pois a emancipação económica e política dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores ou nunca ocorrerá  — essa alternativa à sociedade capitalista que lhes (nos) come as papas na cabeça.

A segunda pergunta é muito mais difícil e melindrosa do que a primeira. Mas sem uma resposta cabal à primeira, não é possível dar uma resposta com pés e cabeça à segunda.

Estas são as duas questões centrais do século XXI, das quais depende o futuro da humanidade.

Não sou o único a dizê-lo, muito longe disso. E vale a pena notar que, por razões opostas às que aqui foram expostas — a saber, a defesa do modo capitalista de produção e apropriação que ele sente ameaçado de implosão — o financeiro multimilionário e filantropo George Soros afirmou recentemente (Janeiro de 2020) na reunião do Fórum Económico Mundial em Davos, na Suíça, que, «tendo em conta a emergência climática e a agitação mundial, não é um exagero dizer que 2020 e os próximos anos vão determinar não só o destino de Xi [Jinping] e [Donald] Trump, mas também o destino do mundo» (Público, 23 de Janeiro de 2020). Mais recentemente, neste mesmo mês de Agosto, acrescentou:

Estamos numa crise, a pior crise da minha vida desde a Segunda Guerra Mundial. Descrevê-la-ia como um momento revolucionário em que o leque de possibilidades é muito maior do que em tempos normais. O que é inconcebível em tempos normais torna-se não só possível, mas acontece, de facto (Público, 16 de Agosto 2020).

Os textos publicados no blogue multilingue Sítio com Vista (https: //sitewithaview.ovh/) procuram responder a ambas as questões. Para esse blogue remetemos, por isso, o leitor interessado.

Lisboa, 10-19 de Agosto de 2020 

Notas

 

[1] Estes dois processos acabariam por transformar o regime de oligarquia autoritária de cariz fascista (polícia política, tribunais políticos, censura, corporações, câmara corporativa, etc.), que vigorou em Portugal durante mais de 40 anos, num regime de oligarquia liberal, que vigora há mais de 40 anos. Sobre a distinção entre os conceitos de “oligarquia liberal” e de “oligarquia autoritária” ver José Catarino Soares, Rumo à Democracia Integral, nomeadamente a sua secção 18 [Democracia integral vs oligarquia liberal] e o seu Post-Scriptum (em https://sitewithaview.ovh/arquivo-do-blogue/page/2).Rui Costa poderia retorquir, presumo, que o conservadorismo e a subserviência a que se referia são perfeitamente ilustrados pela duração destes dois regimes em grande medida antagónicos. Se fosse esse o caso, não seria fácil refutá-lo.

[2] Muitos economistas que fazem a apologia do capitalismo consideram que existe uma taxa “natural” [!] de desemprego, a qual seria, por conseguinte, a taxa de desemprego inerente…ao “pleno emprego” [!]. As únicas coisas que podem, segundo eles,  “desnaturar” a taxa “natural” de desemprego, são as lutas sociais dos trabalhadores assalariados por melhores salários e melhores condições de trabalho, as convenções colectivas que os trabalhadores e os seus sindicatos conseguem, por vezes, negociar com o patronato, e os direitos laborais (tais como, por exemplo, a legislação sobre o salário mínimo).

A taxa “natural” de desemprego, um conceito dos economistas apologéticos  Milton Friedman e Edmund Phelps, não é, porém, apesar da sua alegada “naturalidade”, uma taxa de desemprego observada ou observável. Em vez disso, tem de ser estimada a partir de um certo número de métodos estatísticos que podem variar de autor para autor [!]. Seja como for, e contrariamente às alegações de Friedman de que a taxa “natural” de desemprego seria uma constante inter-temporal, as estimativas empíricas dessa “taxa” mostram-na como sendo altamente variável ao longo do tempo.

Por exemplo, para a economia dos E.U.A, o país natal de Friedman e Phelps, a referida “taxa” tem variado entre 4% e 8% nas últimas décadas (Thomas I. Paley, “Natural Rate of Unemployment”, Jul 23 2020, em International Encyclopedia of the Social Sciences, Encyclopedia.com). Outros autores apontam uma variação de 4,5% a 5,5% nos últimos 100 anos para o mesmo país (Roger Barnichon & Christian Matthes,“The Natural Rate of Unemployment over the Past 100 Years”, FRBSF Economic Letter, 2017-23; August 14, 2017 ; Research from the Federal Reserve Bank of San Francisco). O mais curioso é que a grande maioria dos diversos governadores que passaram pelo Federal Reserve System (o banco central dos EUA) nos últimos 50 anos, incluindo a actual governadora Janet Yelleng, se baseiam na taxa “natural” de emprego para determinarem a sua política monetária (taxas de juro, emissão de moeda, etc.). A sua grande e mais constante preocupação neste particular é não deixarem que a taxa “natural” de desemprego baixe demasiado (!!) — isto é, que se situe abaixo dos 4,5% — para…não fazer subir a inflação (!), um aforisma manhoso que lhes foi inculcado por Milton Friedman.

[3] O Produto Interno Bruto (PIB) é um indicador que mede o valor monetário da produção total de bens e serviços num determinado território (país ou região) durante um certo período, geralmente um ano. Consiste no somatório dos valores acrescentados realizados no âmbito de um território pelo conjunto dos seus ramos de actividade, aos quais se acrescenta o IVA e os direitos alfandegários.

O PIB é um indicador que padece de sérias limitações porque não tem em conta (i) o trabalho não remunerado (e.g., o trabalho doméstico e o trabalho feito em regime de voluntariado); (ii) a produção para autoconsumo (e.g., a produção de produtos hortícolas); (iii) a produção vendida, mas não declarada ao fisco (e.g., a produção de heroína); (iv) o trabalho clandestino (e.g., na construção civil e na agricultura). Por outro lado, o PIB não tem em conta os danos causados ao ambiente pelas actividades económicas (e.g., poluição dos cursos de água, o esgotamento de recursos naturais), que os economistas apologéticos apelidam de “externalidades negativas”. O PIB não pode, por definição, medir o custo social de uma economia de guerra (cujo PIB pode aumentar, apesar do número de mortos vítimas de guerra na população do território em apreço poder aumentar no mesmo período), nem medir o aumento do bem-estar dos indivíduos como resultado de medidas preventivas de saúde que se traduzam numa redução do consumo de medicamentos (e portanto numa quebra do PIB…). Por último, as limitações do PIB são especialmente evidentes no facto de contabilizar da mesma maneira o que pode ser benéfico à sociedade (e.g., a produção de medicamentos) e o que lhe é prejudicial (e.g., a produção de armas de guerra), e no facto de não ter nenhum meio de avaliar os efeitos económicos da partilha de informação através da Internet e da www (por exemplo, a partilha de conhecimento técnico via “Usenet”, os movimentos de programação informática de código aberto [Ingl. open source] e a cooperação laboral por meio de redes de pares [P2P].

Simon Kuznets (1901-1985), o criador do PIB, concluiu o seu relatório sobre a construção deste indicador com as seguintes palavras : « O bem-estar de uma nação não pode ser deduzido a partir  de uma medida do produto nacional tal como a que foi acima definida». No entanto, isso não impede os economistas apologéticos e muitos outros que se dizem heterodoxos, de chamarem crescimento económico à variação positiva do PIB entre dois períodos. Mas sobre o crescimento económico ver a nota seguinte.

[4] Baseando-se em dados oriundos de uma larga gama de fontes fidedignas e em estudos do crescimento económico dos países industrializados do hemisfério norte no período do pós-segunda guerra mundial (1947-2017), o economista Alan Freeman mostrou recentemente que esse crescimento « tem caído continuamente, só entrecortado por breves e limitadas interrupções, desde, pelo menos,  o início dos anos 1960. A tendência é extremamente forte e inclui todas as grandes economias do hemisfério Norte sem excepção. É confirmada por um largo espectro de diferentes medidas de PIB e de crescimento, incluindo paridades de poder de compra (PPC) e medidas padrão do PIB, e por uma gama de métodos para agregar os dados de diferentes países. É por isso uma tendência histórica muitíssimo bem confirmada» (Freeman. A. 2019. “The sixty-year downward trend of economic growth in the industrialised countries of the world”. GERG Data Group working paper No.1, January 2019. Manitoba: Geopolitical Economy).

[5] O Bulletin of the Atomic Scientists tem vindo todos os anos, desde 1947, a acertar o “Relógio do Apocalipse” (Doomsday Clock), em que a meia noite corresponde simbolicamente ao holocausto nuclear da humanidade. Na “Declaração de 2020 do Relógio do Apocalipse”, o Bulletin of the Atomic Scientists adverte que nunca estivemos tão perto desse evento fatídico: estamos a 100 segundos da meia-noite. Em 1947 estávamos a 7 minutos da meia-noite (https://thebulletin.org/doomsday-clock/current-time/). Isto não é de admirar se tivermos em conta os seguintes factos:

1º) Há, actualmente, nove Estados (EUA, Rússia, Reino Unido, França, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte, Israel) que possuem um total de cerca de 14.000 armas nucleares de destruição maciça, mais exactamente 13.410 — das quais 9.230 operacionais e em armazém, e as restantes à espera de serem desmontadas e servirem de combustível para centrais nucleares (fonte:  Federação dos Cientistas Americanos).  Em 1947, havia um único Estado que possui armas nucleares: os EUA.

 2º) Os EUA e a Rússia possuem actualmente 90% destas armas.

 3º) As bombas atómicas que foram lançadas em Hiroshima e Nagasaki, em 1945 foram baptizadas de “Little Man” e “Fat Man”, respectivamente. Tinham uma potência explosiva de 15 e 21 quilotoneladas de T.N.T [= trinitrotolueno], respectivamente — ou, o que vem a ser o mesmo, 15.000 e 21.000 toneladas de T.N.T, respectivamente (uma quilotonelada [kt] = 1000 toneladas).

4º) Actualmente, as bombas nucleares são cerca de 50 vezes mais potentes. Os mísseis balísticos americanos Trident, de alcance intercontinental, que podem ser lançados a partir de submarinos nucleares da classe Ohio (americanos) ou da classe Vanguard (britânicos), carregam múltiplas ogivas termonucleares (vulgo, bombas de hidrogénio) com uma potência de 455 kt de T.N.T. Os mísseis  balísticos russos Bulava e Sineva, de alcance intercontinental, que podem ser lançados a partir de submarinos nucleares da classe Project 955 Borei e da classe Delta IV carregam múltiplas ogivas termonucleares com uma potência explosiva de 100-150 kt e 500 kt de T.N.T, respectivamente. Cada submarino Ohio pode transportar até 24 mísseis Trident, o que lhe dá um poder fogo maior do que todas as bombas lançadas na 2ª Guerra Mundial. Cada submarino Borei pode transportar até 16 mísseis Bulava e cada submarino Delta IV pode transportar um igual número de mísseis Sineva. Como se vê, o poder de fogo dos submarinos nucleares americanos, britânicos e russos é muito semelhante.

Nagasaki, Agosto de 1945. Um rapazinho descalço, com o cadáver do seu irmão mais novo às costas,  espera  a sua vez de entrar num crematório, num dos dias seguintes à explosão da bomba atómica americana que arrasou a cidade em 9 de Agosto, matando instantaneamente 35.000-40.000 pessoas, quase todas civis, e feriu mais outras 60.000. Foto do fotógrafo da Marinha de Guerra dos EUA Joe O'Donnell. 


5º)
A revista Popular Mechanics relatava recentemente: 

Sabemos que há uma estonteante gama de programas americanos de desenvolvimento de armas que estão em curso simultaneamente. A Marinha de Guerra americana está a desenvolver o míssil Conventional Prompt Strike, enquanto que o Exército americano está a desenvolver a Long Range Hypersonic Weapon e o novamente anunciado Vintage Racer. A Força Aérea Americana está a desenvolver não uma, mas duas armas: a AGM-183 Air-Launched Rapid Response Weapon (ARRW) e o Hypersonic Air-Breathing Weapon Concept (HAWC).  A DARPA [Defense Advanced Research Projects Agency, uma agência do Ministério da Defesa responsável pelo desenvolvimento de tecnologias militares] tem mais dois conceitos de armas hipersónicas em desenvolvimento:  o Tactical Boost Glide e o OpFires (Kyle Mizokami, “What Is Trump’s ‘Super Duper Missile’?: An Investigation”, June 16, 2020). 

O projecto que está mais avançado neste momento parece ser o AGM-183 ARRW (“Air-Launched Rapid Response Weapon”), que o presidente americano Donald Trump não se cansa de gabar. A ARRW é uma arma hipersónica em desenvolvimento pela Lockheed Martin para a Força Aérea dos EUA. “Hipersónica” refere-se a qualquer velocidade superior a Mach 5. A ARRW é um sistema hipersónico de impulso-planagem que consiste num foguete impulsionador e numa ogiva de planagem hipersónica. Depois de ser lançado de uma aeronave, o foguete impulsionador acelera para altas velocidades antes de libertar a sua carga, uma ogiva de planagem hipersónica que plana então, sem motor, rumo ao seu alvo, a uma velocidade de 24.695 km por hora (ou seja, a um velocidade Mach 12).

Em resposta ao ARRW, a Rússia desenvolveu o Avangard, um planador hipersónico que é lançado por um míssil e que é capaz de transportar bombas convencionais ou nucleares. A potência da ogiva nuclear transportada pelo Avangard seria de mais de duas megatoneladas [= 2 milhões toneladas] de T.N.T e o Avangard seria capaz de ludibriar os escudos anti-mísseis americano graças à sua velocidade de 33.000 km por hora (ou seja, a uma velocidade Mach 17)  e à sua capacidade de mudar de rumo e de operar a muito baixas altitudes. O Avangard é apenas uma das seis novas armas estratégicas anunciadas pelo presidente russo Vladimir Poutine no dia 1 de Março  2018 , entre as quais se contam o míssil hipersónico e aerobalístico terra-ar Kinjal e o míssil balístico furtivo e intercontinental RS-28 Sarmat (ou SS-X-30, na terminologia da OTAN), capaz de destruir em poucos segundo um território do tamanho da França ou do Estado do Texas com as suas 12 ogivas termonucleares. Este último é uma resposta do Exército russo ao programa americano Prompt Global Strike.

6º) o Presidente Trump dos EUA já desvinculou os EUA de dois tratados de não-proliferação de armas nucleares, um dos quais o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF no acrónimo inglês) com a Rússia sobre as armas nucleares de alcance intermédio. Este Tratado, celebrado em 1987, proíbe os dois países signatários de fabricar, desenvolver ou testar mísseis de curto alcance (500 km a 1.000 km) e de médio alcance (1.000 km a 5.000 km). Trump prepara-se para deixar caducar um terceiro tratado, que é o mais importante. O New START (Strategic Arms Reduction Treaty), assinado em 2010 entre os EUA e a Rússia, é último tratado de armas estratégicas em vigor e vai expirar em 21 de Fevereiro de 2021.

[6] “The International Workingmen’s Association (The First International). Documents and Writings 1864–1874”. Marx-Engels Works).

[7] Karl Marx, “The Third Address” May, 1871 [The Paris Commune]”. Em The Civil War in France. Marx/Engels Internet Archive)

[8] Dirigismo tecnoburocrático de Estado não é um nome inteiramente satisfatório, mas não consegui (ainda) encontrar outro melhor. Para caracterizar mais rigorosamente a natureza da ex-URSS no período que vai, grosso modo, de 1932 (data do término do 1.º plano quinquenal) até 1985 (data da chegada ao poder supremo de Mikhail Gorbachev) é necessário introduzir dois conceitos novos: o de quimerismo sociogenético ou quimera social e o de modo pseudo-socialista de produção. Por quimerismo sociogenéticoquimera social entendo designar, respectivamente, a formação (numa perspectiva diacrónica) e a existência concreta (numa perspectiva sincrónica), no âmbito de uma mesma sociedade, de uma combinação de elementos heterogéneos pertencentes a modos de produção distintos com formas de poder de Estado compatíveis unicamente com um deles. Por modo pseudo-socialista de produção entendo designar um modo de produção com as seguintes características:

1. A ausência de uma classe de capitalistas privados na indústria, na agricultura, no comércio e nos serviços. 2. A existência de uma classe de governantes inamovíveis que monopoliza o poder de determinar a alocação dos meios de colectivos de produção e a repartição do sobreproduto social produzido pelas classes trabalhadoras governadas. 3. A alocação dos meios colectivos de produção de bens e serviços por meio de um sistema de directivas políticas emanadas da classe governante. 4. A consequente ausência de mercados de bens de capital e de matérias primas. 5. A existência de um mercado de bens de consumo sujeito a constrangimentos tais que: a) uma parte considerável dos bens de consumo seja distribuída por meios que não sejam a compra e venda; b) o mecanismo de preços do mercado de bens de consumo seja geralmente neutralizado por meio de preços de equilíbrio. 6. A ausência de mercado da terra e a ausência da categoria de renda fundiária como categoria económica. 7. A existência de dinheiro e trabalho assalariado. 8. Uma variância de rendimentos em relação à média que seja menor do que a dos países capitalistas com um nível de desenvolvimento industrial equivalente. 9. Um modo de extração do sobreproduto distinto do que é apanágio do modo capitalista de produção, a saber: a divisão politicamente determinada do produto social entre as categorias de consumo corrente, acumulação e consumo improdutivo. 10. A conversão do imposto como meio de extração de um sobreproduto num meio de assegurar a estabilidade monetária. 11. A ausência de um contingente permanente de desempregados, frequentemente associado com faltas de mão-de-obra neste ou naquele sector. 

Assim sendo, a URSS (no período que vai de 1932 a 1985) era uma quimera social que combinava um modo pseudo-socialista de produção com um dirigismo tecnoburocrático de Estado moldado e comandado por uma oligarquia totalitária — uma oligarquia (partidária e estatal) plenipotenciária, liberticida e antidemocrática, personificadora dos poderes outrora cometidos às classes possidentes, que, para legitimar o seu monopólio do poder perante a classe proletária, utilizava fraudulentamente as palavras “socialismo” e “comunismo”. É esta caracterização complexa que a expressão dirigismo tecnoburocrático de Estado capta só por metade, a metade mais evidente.

[9] Não confundir “propriedade estatal dos meios colectivos de produção” com “propriedade cooperativa, comunitária e pancomunitária dos meios colectivos de produção”. A primeira é controlada discricionariamente por uma oligarquia dirigente inamovível. A segunda é controlada democraticamente pelas várias formas de consociação dos cidadãos-produtores livres e iguais. São coisas bem diferentes!

[10] A transformação das palavras “socialismo” e “comunismo”, até então palavras sinónimas, em designações de duas fases distintas e sucessivas — a fase inferior e a fase superior, respectivamente — de uma sociedade pós-capitalista sem exploração nem opressão do homem pelo homem, foi obra de Vladimir Ilyich Ulianov, mais conhecido pelo pseudónimo Lénine, no seu livro O Estado e a Revolução (1917). Esta reconfiguração lexical não seria muito grave se ninguém lhe prestasse atenção. Mas foi propalada e incensada, durante décadas, por uma legião enorme de seguidores acríticos de Lénine e continua, ainda hoje, a ser propalada por eles, embora o seu número seja muitíssimo menor. O mais grave, porém, é o facto de Lénine ter procurado recrutar Karl Marx à revelia para justificar e legitimar esse seu uso idiossincrático, e na verdade abusivo, das duas palavras em causa. As seguintes passagens do Estado e a Revolução, sobretudo as partes realçadas a amarelo, assinalam os momentos e o modo como esse recrutamento à revelia foi feito:

Assim, na primeira fase da sociedade comunista (a que se chama usualmente socialismo), o “direito burguês” não é abolido completamente, mas somente em parte, só na medida em que a revolução económica tenha sido feita, quer dizer, só no que diz respeito aos meios de produção.

(…)

Nós abordamos aqui a questão da distinção científica entre socialismo e comunismo (…)

Mas a diferença científica entre socialismo e comunismo é clara. Ao que se chama comummente socialismo, Marx chamou a “primeira” fase ou fase inferior da sociedade comunista. Na medida em que os meios de produção se tornam propriedade comum, a palavra “comunista” pode aplicar-se igualmente aqui, com a condição de não se esquecer que não é o comunismo integral.

Lénine alude aqui à Crítica do Programa de Gotha [1875] (São Paulo. Boitempo Editorial, 2012), o texto em que Karl Marx faz a distinção entre as duas fases da sociedade comunista, uma inferior ou primeira e outra superior ou segunda. A afirmação de Lénine de que Marx chamou «fase inferior da sociedade comunista» «ao que se chama usualmente, comummente, socialismo» é duplamente falsa. Nem em 1875, quando Marx escreveu a Crítica do programa de Gotha, nem em 1917, quando Lénine escreveu O Estado e Revolução, era usual chamar socialismo ao que Marx chamou a «fase inferior do comunismo». Nem poderia ser usual, porque «a distinção científica entre socialismo e comunismo» de que fala Lénine, não é, como ele diz, “clara”; é inexistente. A distinção que Marx faz no seu texto entre duas fases da sociedade comunista é uma distinção inédita e que lhe pertence. Essa distinção, porém, nada tem a ver com uma alegada distinção entre socialismo e comunismo, porque distinguir duas fases da sociedade comunista é o mesmo que distinguir duas fases da sociedade socialista. É uma mistificação completa aquela que consiste em deturpar os argumentos de Marx para estabelecer uma pseudodistinção “científica” entre socialismo e comunismo porque socialismo e comunismo são dois termos intermutáveis, tanto na obra de Marx e Engels, pelo menos de 1864 em diante, como em toda a tradição do movimento trabalhista até à tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia, em 1918. Foram o partido bolchevique russo (sucessor da ala leninista do partido trabalhista social-democrata russo) e o partido social-democrata alemão que, a partir de 1918, mais contribuíram, cada um à sua maneira, para desfigurar o sentido e romper a sinonímia das palavras “socialismo” e “comunismo”.

No prefácio à edição alemã de 1890 do Manifesto do Partido Comunista (1848), Friedrich Engels explicou-se de modo inequívoco sobre a razão conjuntural da escolha do termo comunista (em vez de socialista) no título desse manifesto:

Presentemente, [o Manifesto do Partido Comunista] é sem dúvida o produto mais amplamente divulgado, mais internacional, de toda a literatura socialista, o programa comum de muitos milhões de operários de todos os países desde a Sibéria à Califórnia.

E, contudo, quando ele apareceu, não lhe poderíamos ter chamado um manifesto socialista. Em 1847, entendia-se por socialistas duas espécies de pessoas. De um lado, os seguidores dos diversos sistemas utopistas, em especial os owenistas em Inglaterra e os fourieristas em França, ambos os quais já então estavam reduzidos a meras seitas moribundas. Do outro lado, os mais variados charlatães sociais, que, com as suas diversas panaceias e com toda a espécie de remendos, queriam eliminar os males sociais sem magoar minimamente o capital e o lucro. Em ambos os casos eram pessoas que estavam fora do movimento trabalhista e que, ao invés, procuravam apoio junto das classes “cultas”. Em contrapartida, aquela secção da classe trabalhadora que estava convencida da insuficiência de meras revoluções políticas [entender: rearranjos dos órgãos do poder de Estado] e que exigia uma reconfiguração profunda da sociedade, essa parte autodenominava-se então comunista. Era um comunismo mal desbastado, apenas instintivo, amiúde com o seu quê de tosco. No entanto, tocava no ponto essencial e era suficientemente poderoso no seio da classe trabalhadora para engendrar dois sistemas do comunismo utópico, em França o comunismo da «Icária» de [Étienne] Cabet, na Alemanha o de [Wilhelm] Weitling. Em 1847, socialismo significava um movimento burguês, comunismo um movimento da classe trabalhadora. O socialismo, pelo menos no Continente, era aceitável pela alta-roda [“salonfähig” no original], o comunismo era precisamente o contrário. E como já nessa altura éramos muito decididamente da opinião de que «a emancipação das classes trabalhadoras tem de ser obra das próprias classes trabalhadoras» [citação dos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores], nem por um instante podíamos ter dúvidas sobre qual dos dois nomes escolher. Além do mais, desde então, nunca nos passou pela cabeça rejeitá-lo.

Quando Friedrich Engels deu à estampa, em 1880, uma obra intitulada O desenvolvimento do socialismo da utopia à ciência (no original alemão: Die Entwicklung des Sozialismus von der Utopie zur Wissenschaft), o título poderia ter sido igualmente O desenvolvimento do comunismo da utopia à ciência. No prefácio à edição inglesa desta obra, em 1892 (9 anos depois da morte do seu amigo Marx), Engels escreveu com manifesta satisfação e uma pontinha de orgulho:

A pedido do meu amigo Paul Lafargue, agora representante de Lille na câmara de deputados francesa, arranjei três capítulos desse livro [Engels refere-se ao seu livro A revolução na ciência do sr. Dühring, publicado em 1876] como uma brochura que ele traduziu e publicou em 1880 sob o título Socialisme utopique et Socialisme scientifique. A partir deste texto em Francês foram preparadas edições em Polaco e Espanhol. Em 1883, os nossos amigos alemães devolveram este texto à língua original. Desde então, com base no texto alemão, foram publicadas traduções para Italiano, Russo, Holandês e Romeno. Desta forma, contando com a presente edição em Inglês, este pequeno livro circula já em 10 línguas. Não tenho conhecimento de  qualquer outro trabalho Socialista, nem mesmo o nosso [de K. Marx e F. Engels] Manifesto [do Partido] Comunista de 1848, ou O Capital de Marx, que tenha tido tantas traduções. Em alemão, já houve quatro edições com um total de cerca de 20.000 exemplares.

A parte realçada a amarelo mostra bem, uma vez mais, a equivalência semântica das palavras socialista e comunista.

Por último, convém acrescentar que a artificiosa distinção da sua autoria entre socialismo e comunismo, permitiu a Lénine inventar uma nova distinção entre dois períodos de transição: um primeiro período de transição entre a sociedade capitalista e o socialismo e um segundo período de transição entre o socialismo e o comunismo. Tal como a primeira distinção, esta segunda distinção, alegadamente “marxista”, não se encontra em parte nenhuma nos escritos de Marx (ou de Marx e Engels, ou de Engels). Estas distinções de aparência meramente terminológica e inofensiva, tiveram enormíssimas consequências práticas que foram tudo menos inofensivas. Tornaram-se instrumentos convenientes para justificar e legitimar, de 1918 em diante, quer a ideologia do partido único omnisciente e todos os seus actos como sendo, alegadamente, a única incarnação genuína do proletariado capaz de assegurar “a transição do capitalismo para o socialismo”, quer para justificar e legitimar, de 1928 em diante, a ideologia do partido-Estado e todos os seus actos, como sendo, alegadamente, a única incarnação genuína do proletariado para assegurar a “construção do socialismo”, condição necessária para a “transição para o comunismo” num futuro mais ou menos longínquo. Em suma, estas duas distinções foram instrumentais na ex-URSS para remeter o projecto emancipatório da «República beneficente da associação dos produtores livres e iguais» (Marx) como obra dos próprios trabalhadores para as calendas gregas. Mas este é um vasto e complexo assunto histórico que não pode ser aqui cabalmente desenvolvido.

[11] No último congresso (o 20º) do PCP, realizado em 2016, estiveram presentes delegações, entre muitos outros, dos seguintes “partidos irmãos” (é assim que são apelidados pelo PCP): Partido Comunista da Federação Russa (que se quer o herdeiro e continuador do Partido Comunista da União Soviética), Partido Comunista da China, Partido do Trabalho da República Popular Democrática da Coreia (vulgo, Coreia do Norte), Partido Comunista de Cuba, Partido Comunista do Vietnam, Partido Popular Revolucionário do Laos.

[12] A combinação do princípio jurídico do primado (ou império) da lei com um regime político representativo assente em eleições livres e periódicas por sufrágio universal e secreto é usualmente denominada “democracia representativa”, “democracia liberal”, “regime demo-liberal”, “Estado de direito democrático” ou, simplesmente, “democracia”.

Mas todas essas designações são impróprias e enganadoras. A democracia é uma coisa bem diferente de um tal regime, que qualifico de oligarquia liberal. Os leitores interessados em conhecer essa diferença têm à sua disposição, no blogue Sítio com Vista (https://sitewitha view.ovh/), um conjunto de textos esclarecedores sobre esta questão: On Democracy, de William Paul Cockshott  & Allin Cottrell; Rumo à Democracia Integral (nomeadamente as secções 14-19) de José Catarino Soares; Centralité du Tirage au Sort en Démocratie de Étienne Chouard; e L’esprit antidémocratique des fondateurs de la “démocratie” moderne, de Francis Dupuis-Déri.  

[13] A palavra social-democrata tem uma história, da qual resultam as suas várias acepções.  Começou por ser o nome de um partido, o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores (Sozialdemokratische Arbeiterpartei [SDAP]), que foi fundado em 1869, na Alemanha, por Wilhelm Liebknetch, Wilhelm Bracke e August Bebel, com a preciosa ajuda dos seus compatriotas,  amigos e camaradas exilados, Karl Marx e Friedrich Engels. Em 1875, o SDAP fundiu-se com a Associação Geral dos Trabalhadores da Alemanha (Allgemeiner Deutscher Arbeiterverein [ADA]) que tinha sido fundada por Ferdinand Lassale em 1863, antes deste ter morrido em duelo em 1864, tomando o nome de Partido Socialista dos Trabalhadores da Alemanha (Sozialistische Arbeiterpartei Deutschlands [SAD]). Em 1890, o SAD mudou o nome para Partido Social-Democrata da Alemanha (Sozialdemokratische Partei Deutschlands [SPD]), que manteve até aos dias de hoje. O SPD (tal como os seus antecessores, o SDAP e o SAD) foi um partido que lutava pela emancipação económica e política dos trabalhadores assalariados através da instituição de uma sociedade socialista. Durante esse período, “social-democrata” era sinónimo de “socialista”. “Social-democrata” era o nome que adoptaram também muitos dos partidos socialistas europeus dessa época, incluindo o Partido Trabalhista Social-Democrata Russo de Georgi Plekhanov, Julius Martov, Vladimir Ilyich Ulianov (Lénine), Lev Davidovich Bronstein (Trotski), etc., fundado em 1898.

O SPD abandonou definitivamente (na prática, embora não ainda nas palavras) o programa socialista durante a 1ª guerra mundial (1914-1918), passando a pautar a sua intervenção pelos objectivos da suavização, correcção e erradicação dos traços mais repulsivos e cruéis do sistema capitalista. (É esta tradição que Catarina Martins evoca e reivindica quando afirma que o Bloco de Esquerda tem um programa social-democrata). Em 1959, esta orientação franqueou um novo limiar de acomodação ao capitalismo que ganhou uma expressão explícita no chamado programa de Godesberg. O SPD passou, desde então, a elogiar abertamente o capitalismo, argumentando, nomeadamente, que «a liberdade para os patrões exercerem a sua iniciativa, assim como a livre concorrência, são condições essenciais de uma política económica Social-Democrata» e afirmando que «a propriedade privada dos meios de produção pode reivindicar protecção pela sociedade desde que não impeça o estabelecimento da justiça social».

[14] «Até ao momento [no quadro de apoio comunitário “Portugal 2020”] foram submetidos 411 projetos de 263 empresas estrangeiras que correspondem a 4,3 % das empresas que já receberam apoio, e 13,49% do investimento feito com apoios comunitários [totalizando 841,22 milhões de euros]. As grandes multinacionais têm aproveitado os fundos do Portugal 2020 e dominam o Top10 dos maiores investimentos feitos com apoios comunitários» (Portal dos Incentivos, http://www.portaldosincentivos. pt/index.php/29-noticias/noticias-centro/627-portugal-2020-ha-263-empresas-estrangeiras-a-beneficiar-dos-apoios).

[15] Handivote é um sistema electrónico de votação que utiliza telemóveis com acesso à Internet e mensagens dactilografadas curtas (vulgo SMS). Ver, por exemplo, Paul Cockshott, Karen Renauld, Tsvetelina Valcheva, Democratising budgetary decisions with handivote (2013). Proceedings of the International CTS-UNAM-IFPO-WARP seminar, Berlin, 8th and 9th February 2013, p.36-53; Sarah Birch, Paul Cockshott, Karen Renaud, (2014), Putting Electronic Voting under the Microscope. The Political Quarterly Volume 85, Issue 2, pages 187-194, April-June 2014; Tsvetelina Valcheva, Karen Renaud, Paul Cockshott (2016), A Medium-Scale Trial of Handivote. International Journal of Electronic Governance, 2016, Vol.8 Nº2.

[16] Edward Bellamy (1850-1898) foi um socialista, jornalista e romancista americano. Ficou conhecido sobretudo pelo seu romance de ficção científica Looking Backward: 2000-1887 [Olhando para Trás: 2000-1887] que foi traduzido para 20 idiomas, incluindo o Português, e que vendeu cerca de 200 mil exemplares nos EUA, só no primeiro ano de publicação (1888). Isso fez dele um campeão de vendas (“best-seller” na gíria livreira dos países de língua oficial inglesa) nos EUA, só ficando atrás de Uncle Tom’s Cabin; or, Life Among the Lowly (traduzido para Português como A Cabana do Pai Tomás ou os Negros na América) de Harriette Beecher Stowe, e de Ben-Hur: A Tale of the Christ (traduzido para Português como Ben-Hur: uma narrativa de Cristo) de Lee Wallace, entre os romances mais vendidos nas últimas décadas do século XIX.

No romance de Bellamy — traduzido por Pinheiro Chagas em Portugal, em 1891, com o título D’aqui a cem anos, que inverte completamente o sentido temporal do título original — Julian West, um jovem com preocupações de justiça social oriundo de uma família abastada, adormece em 1887 após um transe hipnótico, para acordar 113 anos depois, no ano 2000, sem ter envelhecido mais do que alguém depois de uma noite bem dormida. O sítio onde West acorda é o mesmo onde adormeceu, mas a sociedade sofreu uma transformação profunda. É agora uma sociedade socialista tecnologicamente mais avançada do que qualquer sociedade capitalista da época de Bellamy. Porém, mais do que as diferenças tecnológicas (que não deixam de estar presentes), o romance explora sobretudo as diferenças sociais e económicas entre a sociedade capitalista de 1887 no seu país natal e a sociedade socialista imaginada por Bellamy. O próprio Bellamy assevera que o seu romance «tenciona ser, com toda a seriedade, uma previsão de acordo com os princípios de evolução, da próxima fase do desenvolvimento social e industrial da humanidade, especialmente neste país [os Estados Unidos]». E vale a pena notar que Bellamy encarava como perfeitamente plausível que a transição da sociedade capitalista para a «civilização fraternal» por ele imaginada não necessitaria de um prazo maior do que aquele que o romance Looking Backward estabelece: um século! Isto porque, argumenta ele, «o que nos ensina a história, senão que as grandes transformações nacionais, embora sejam preparadas durante anos sem que ninguém as perceba, se concretizam, uma vez iniciadas, com uma rapidez e um ímpeto irresistível, proporcionais à sua magnitude e não limitados por ela?»

Mais tarde, no seu romance Equality (Igualdade), publicado em 1898, Bellamy iria pormenorizar mais minuciosamente e de maneira bem mais democrática a arquitectura socioinstitucional e o modo de funcionamento da sociedade americana desse futuro socialista que havia imaginado para o ano 2000 na sua primeira obra ficcional, antes de morrer prematuramente vítima da tuberculose.

[17] O romance Olhando para Trás de Edward Bellamy foi publicado em  Inglaterra no jornal socialista Commonweal. O socialista inglês William Morris (1834-1896), homem de muitos talentos e ofícios (poeta, desenhador, estilista têxtil, pintor, arquitecto), que discordava de Bellamy em muitos pontos em matéria de socialismo e de estética, sente-se na obrigação de escrever uma resposta, também sob a forma romanesca. Assim nascerá o romance de ficção científica News from Nowhere, or an Epoch of Rest (Notícias de Nenhures, ou uma Época de Repouso), publicado em 1890.

William Morris em 1875

O narrador, William Guest, regressa a casa depois de uma reunião pública socialista muita agitada e adormece. Quando desperta descobre que se encontra no futuro, no ano 2012. A sociedade então vigente é uma sociedade comunista, igualitária, como a do livro Olhando para Trás, mas caracterizada, ao contrário dela, por uma organização mais artesanal do que industrial, mais rural do que urbana, mais libertária do que estatutária, mais dada à criatividade individual e ao contacto repousante com a Natureza do que à disciplina laboral e ao frenesim da vida citadina. Depois de várias deambulações e peripécias, Guest participa num jantar festivo durante o qual as outras pessoas deixam de o poder ver. Guest vê-se então a caminhar envolto num nevoeiro escuro. Quando acorda de facto, dá-se conta de que esteve a sonhar, mas declara que o que viveu durante o sonho foi mais uma visão do futuro do que uma fantasia.

[18] Um circuito integrado é uma pastilha ou microplaqueta (chip na gíria anglo-americana) muito delgada de material semicondutor (e.g. cristal de silício) em que se encontram gravados uma quantidade enorme de dispositivos microelectrónicos interligados, principalmente diodos semicondutores e transístores, além de componentes passivos como resistências ou condensadores.

Um cartão de pagamento com circuito integrado (CPCI) pode ter um ou vários circuitos integrados. Um cartão de pagamento inteligente (CPI) é semelhante a um CPCI, salvo que não tem de ter necessariamente uma banda magnética. Na verdade, dispensa completamente a banda magnética característica dos CPCI.

A arquitectura básica de um CPI tem três elementos: um sistema de entrada/saída (sistema E/S), uma unidade de processamento central (UPC) e memória. O sistema E/S é a interface necessária para interagir com os terminais de pagamento automático (TPA). Há 2 tipos de sistema E/S: por contacto directo com o TPA, ou sem contacto directo com o TPA. Neste último caso, a interacção com o TPA faz-se através de ondas de rádio. A UPC, ou microprocessador, é o componente que distingue o CPI de outros cartões que são construídos para só armazenarem dados. As memórias usadas pelos CPI são fabricadas com materiais semicondutores. Os três tipos de memória semicondutora usados pelos CPI são: a memória somente de leitura (ou ROM, acrónimo inglês de Read Only Memory), a memória de acesso aleatório (ou RAM, acrónimo inglês de Random Access Memory) e a memória somente de leitura, mas cujos conteúdos podem ser apagados e programados através de um impulso de voltagem (ou EEPROM, acrónimo inglês de Electrically Erasable Programmable Read Only Memory).

[19] A jornada total de trabalho de uma sociedade é a quantidade total de horas de trabalho que toda a população trabalhadora pode fornecer por dia. 

13 julho, 2020


Esta é 6ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto). 

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As reuniões no INFARMED acabaram, mas a pandemia de Covid-19 prossegue e prosseguirá até haver uma vacina segura e eficaz

José Catarino Soares

Por proposta do primeiro-ministro de Portugal, António Costa, teve início, em 23 de Março de 2020, uma série de reuniões, realizadas na sede do INFARMED-Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde I.P, sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal.

1. Os participantes nas reuniões realizadas no INFARMED

Nessas reuniões participaram, por um lado, o presidente da República, o presidente da Assembleia da República, o primeiro-ministro, a ministra da Saúde (e, ocasionalmente, outros membros do governo), membros do Conselho de Estado (por videoconferência), dirigentes dos partidos políticos com assento parlamentar (PS, PSD, BE, PCP, PAN, CDS, PEV, Chega, IL), dirigentes das duas centrais sindicais (CGTP, UGT), dirigentes das confederações patronais (CIP, CAP, CCP, CTP) e, por outro lado, cientistas (epidemiologistas, infecciologistas, virologistas) e médicos de Saúde Pública da DGS (Direção-Geral da Saúde), do INSA (Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge), do ISPUP (Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto), da ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública), do INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica), da FCUL (Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa), da CARNMIC (Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva) e do Gabinete Regional de Intervenção para a Supressão da Covid-19 na ARSLVT (Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo).

2. O fim das reuniões com os cientistas no INFARMED

O presidente do PSD, Rui Rio, defendeu, na semana passada, que estas reuniões, a última das quais teve lugar em 8 de Julho de 2020, tinham «perdido utilidade» e deveriam, por isso, acabar. 

Sabemos, por inferência baseada na análise retrospectiva dos acontecimentos, que Marcelo Rebelo de Sousa concordou com Rui Rio e que consultou o primeiro-ministro, António Costa, o qual concordou com ambos.

O presidente da república de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa (à esquerda), e o primeiro-ministro de Portugal, António Costa (à direita), durante uma das reuniões sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal que foram realizadas no INFARMED. Foto de Manuel de Almeida. Lusa.

Seja como for, o certo é que o presidente da República, depois de ter exercido também, durante 13 semanas, o cargo imaginário de “epidemiologista-mor das autoridades de saúde pública portuguesas” no final dessas reuniões no INFARMED, anunciou, em 8 de Julho de 2020, que a reunião realizada nesse dia tinha sido a última — até ordem em contrário, acrescentou António Costa, mais cauteloso.

3. Significado

Que significado atribuir a estes acontecimentos? O director de Informação da SIC Notícias, Ricardo Costa, que é um homem perspicaz, escreveu em síntese no Expresso Curto (8-07-2020):

Os encontros quinzenais no INFARMED, começaram como um encontro raro da política e da ciência e acabaram como normalmente acontece à política e à ciência, coisas com tempos e critérios diferentes: foi cada uma à sua vida. Os cientistas foram os últimos a saber. Também, nada de novo. A terra prometida da união e da concórdia é agora uma miragem. Resta a pandemia, o seu lento dia a dia e a sucessão de notícias, dúvidas e incertezas.

4.Realidade e Ficção

Concordo. Está muito bem visto.

Faço apenas uma ressalva que parece um pormenor, mas que é, de facto, um “pormaior”. Os encontros no INFARMED — 10 ao todo — não foram “entre a política e a ciência”, mas entre a pequena oligarquia que tem o monopólio oficial ou oficioso da decisão macropolítica e macroeconómica em Portugal e uma pequeníssima parte dos cientistas e médicos portugueses que têm competência para se pronunciarem sobre a matéria em apreço nesses encontros: a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal. Assinale-se, por outro lado, que nem sequer os órgãos da comunicação social apologista da máxima “no-meio-é-que-está-a-virtude” tiveram acesso a esses encontros.  

Apesar da sua composição estritamente oligárquica e apesar de serem à porta fechada — sem que este último facto, contrário à natureza da ciência, tivesse alguma vez suscitado crítica e protesto por parte de qualquer dos participantes — essas reuniões não deixavam de ser, mesmo assim, uma fonte de confronto entre a realidade e a ficção.

— A realidade: uma pandemia provocada por um vírus novo (o coronavírus SARS-CoV-2), de origem ainda desconhecida, que já infectou, oficialmente, pelo menos 12 milhões de pessoas em todo o mundo (mais exactamente, 12.377.546 pessoas, à data de hoje, 9 de Julho de 2020), das quais mais de 2,5 milhões na Europa e 45.277 em Portugal, provocando-lhes uma doença nova (a Covid-19), para a qual ainda não há tratamento específico nem vacina segura e eficaz, e que já fez, oficialmente, mais de meio milhão de mortes (mais exactamente, 556.559 mortes, à data de hoje), das quais 1.644 em Portugal. 

O advérbio de modo em -mente tem, aqui, a sua importância. Dada a debilidade ou inexistência de agências estatísticas confiáveis em muitos países e a deliberada política governamental de ocultação que vigora em muitos outros, os números de casos confirmados de infecção e de óbito por Covid-19 supramencionados (cuja fonte é a Worldometer) estão certamente aquém da realidade. Quão aquém não sabemos.

Acresce que sabemos hoje que o número de pessoas infectadas com o vírus, mas assintomáticas, é elevado e que, não obstante isso, as pessoas nesse estado são vectores de novas infecções na comunidade cujas cadeias de transmissão são muito difíceis de reconstituir e quebrar. Sabemos também que a política de testagem para despiste desta infecção viral é muito variável de país para país. Nuns testa-se pouco, noutros muito; nuns dá-se prioridade a certos grupos, noutros não. Por isso, muitas pessoas assintomáticas (mas infectadas), e mesmo muitas pessoas sintomáticas, podem ficar fora do radar estatístico por falta de despiste adequado. Assim sendo, estas duas fontes suplementares de enviesamento estatístico introduzem uma distância ainda maior dos números disponíveis sobre a crise pandémica em relação à realidade da mesma.

Esta imagem digitalizada de microscópio electrónico mostra o novo coronavírus SARS-CoV-2 (em amarelo), extraído de um doente nos E.U.A,  a emergir da superfície de células (em azul e cor-de-rosa) cultivadas em laboratório.  Imagem de NIAID/RMLA.

— A ficção. Por exemplo, a realização, em Lisboa, dos jogos de futebol da fase final da Liga dos Campeões da UEFA apresentada como prova máxima de que a pandemia está controlada; a reabertura, em 1 de Julho, da fronteira de Portugal com a Espanha e das fronteiras externas da União Europeia com 15 países apresentada como prova de que Portugal «foi, é e continuará a ser um país aberto ao mundo» (“Aeroportos prontos para retomar o tráfego a partir de dia 15 [de Junho], garante Costa”,  Público, 5 de Junho de 2020), que toda a União Europeia «vai fazer um esforço para que o turismo retome a sua atividade em pleno» (ibidem) e que «o que se seguirá à crise conjuntural que afecta as companhias de aviação, os aeroportos e o turismo» será «o retomar das pessoas poderem livremente circular à escala global» (ibidem). 

5. A realidade actual da crise pandémica em Portugal

Tudo isto é refutado pelos factos. A situação pandémica na área metropolitana de Lisboa (AML) piorou, e muito, desde o anúncio (em 17 de Junho) da realização da fase final da Liga dos Campeões da UEFA.

Desde 1 de Julho que Portugal continental está dividido em três níveis de alerta para fazer face à pandemia de Covid-19: alerta (o menos grave), calamidade (o mais grave) e contingência (o nível intermediário). Ora, a maior parte do país passou, em 1 de Julho, para a situação de alerta, enquanto a Área Metropolitana de Lisboa (AML) passou para a situação de contingência, e 19 freguesias de cinco municípios (incluindo Lisboa) da AML mantêm a situação de calamidade.

Já há mais de 2 meses que a região de Lisboa e Vale do Tejo e, em particular a Área Metropolitana de Lisboa, é a região do país mais afetada pela pandemia. Nas últimas cinco semanas (5 de Junho a 11 de Julho) houve uma média diária de 338 novos casos confirmados de Covid-19 em Portugal. As médias semanais de casos confirmados durante este período foram: 7-13 de Junho: 302, 14-20 Junho:340, 21-27 Junho: 335, 28 de Junho-4 de Julho:369, 5-11 de Julho: 350 (fonte: DGS). (Nestes números não estão incluídos os 200 casos que, no final na semana passada, foram reportados à Direcção Geral da Saúde por um laboratório privado que esteve três dias sem enviar dados para a plataforma de notificações). A maioria destes casos (75 a 85% dos casos) registam-se na região de Lisboa e Vale do Tejo, em especial na AML. Outro dado a ter em conta são os surtos. Portugal parece ter actualmente 65 surtos de Covid-19, 53 dos quais na AML [Corrijo e actualizo esta informação: à data de 17 de Julho de 2020 havia 206 surtos em Portugal continental, dos quais 134 se localizavam na região de Lisboa e Vale do Tejo. Fonte: DGS]

Numa entrevista ao semanário SOL, publicada este fim de semana (11 de Julho), o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, professor e investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e um dos participantes mais assíduos nos encontros no INFARMED supramencionados, explica que, tal como tem acontecido desde o início de Junho, as projeções apontam para um aumento lento mas progressivo das hospitalizações, que deverão passar ao patamar dos 600 internamentos (hoje, 11 de Julho, estão 459 pessoas internadas com Covid-19, 68 das quais em unidades de cuidados intensivos). Para este epidemiologista, o Algarve suscita neste momento a maior preocupação, dado o afluxo esperado durante as férias não só de mais ou menos turistas estrangeiros, mas também de nacionais de todo o país.

A ocorrência de surtos em estruturas residenciais para idosos (ERPI), vulgo “lares para idosos”, é outra das preocupações, assim como o risco de focos nos hospitais. Exemplos recentes destas duas situações não faltam. 

O surto de Covid-19 que surgiu há três semanas num lar para idosos de Reguengos de Monsaraz, e alastrou à comunidade, já infectou 131 habitantes e fez 16 mortos. Os alcaides de dois municípios espanhóis que fazem fronteira com Reguengos de Monsaraz (Villanueva del Fresno e Valencia del Mombuey) solicitaram aos governos espanhol e português o fecho dos postos fronteiriços para impedir que o surto alastre aos seus municípios. Não nos esqueçamos que existem 1.276 pessoas infectadas em 153 ERPI (5,5% das 2.526 ERPI existentes) e que 628 óbitos dos 1.646 óbitos por Covid-19 registados até dia 10 de Julho ocorreram em ERPI. 

Em 7 de Julho foi detectado um foco de Covid-19 no hospital de São José em Lisboa: 13 pessoas infectadas — sete doentes, quatro enfermeiros, um assistente operacional e um funcionário de limpeza.

6. A realidade da União Europeia perante a pandemia

Os países da União Europeia (UE), da qual Portugal é membro, decidiram escolher um único indicador — o número de novos casos diários de Covid-19 por 100.000 habitantes — para distinguir os países desta União para onde é seguro viajar. Um país que tenha menos de 20 novos casos confirmados por dia de Covid-19 por 100 mil habitantes é seguro. Um país que tenha mais de 20 novos casos diários confirmados por 100 mil habitantes não é seguro.

Este critério nada tem de científico. É um critério arbitrário, tão arbitrário como, por exemplo, os critérios de convergência (ou critérios de Maastricht) para aderir à União Económica e Monetária (vulgo, zona euro), tais como:  a relação entre o défice orçamental e o PIB não deve exceder 3%; a relação entre a dívida pública e o PIB não deve exceder 60%.

Seria um critério sanitário científico, ou técnico-científico, se os seus proponentes conseguissem explicar-nos que abaixo de 20 novos casos diários confirmados de Covid-19 por 100 mil habitantes o risco de transmissão do vírus é, dentro de um país, praticamente residual e, portanto, que as pessoas podem estar perfeitamente seguras porque é um país seguro. Mas essa explicação não existe. Não há quaisquer provas científicas que suportem empiricamente a afirmação que a ocorrência de menos de 20 (ou 10, ou 15, ou 50) novos casos diários por cem mil habitantes é um critério decisivo de segurança sanitária em relação à transmissão do vírus.

Em resumo, o critério dos 20 novos casos diários confirmados por 100 mil habitantes para decidir se um país da UE é seguro não faz sentido nenhum, se for considerado como um indicador de segurança sanitária, ainda por cima isoladamente, como único indicador. De que se trata então? De «uma manobra de estética para dizer que se está a fazer alguma coisa [para controlar a pandemia]», como observou Paulo Santos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigador do Cintesis [Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde] (“Devíamos partir do princípio de que todos podemos estar infectados”, Público. 11 de Julho de 2020). “Estética” é, aliás, uma palavra grande demais para qualificar esta manobra. Seria mais apropriado dizer que é uma reles manobra cosmética para disfarçar a ausência de qualquer política antipandémica coerentemente articulada a nível europeu.

Não é, porém, uma manobra inocente. À luz desse critério, Portugal faz muito má figura. Com uma média diária de 47 novos casos confirmados de Covid-19 por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias (um número que sobe para 121 por 100 mil habitantes na AML), Portugal é, actualmente, o 3º pior classificado entre os países da União Europeia, a seguir ao Luxemburgo (1º) e à Suécia (2º). Nove países da União Europeia invocaram esse facto como justificação para colocarem Portugal numa lista negra de países inseguros. Consequência: os portugueses estão proibidos de entrar na Dinamarca, Chéquia, Finlândia, Áustria, Lituânia, Eslováquia, Letónia, Chipre e Roménia. Por sua vez, a Bulgária, Eslovénia, Estónia, Malta e Holanda impõem uma quarentena obrigatória de 14 dias aos portugueses que viajem para esses países.

Os portugueses estão também excluídos dos “corredores de viagem internacionais” que a Inglaterra (uma das nações do Reino Unido) decidiu abrir. Quem for de Portugal para Inglaterra terá de cumprir 14 dias de isolamento profiláctico. Por outro lado, o governo do Reino Unido continua a desaconselhar as viagens para Portugal, embora abra excepções à Madeira e aos Açores. Ora, como é bem sabido, os Britânicos são os principais turistas estrangeiros, sobretudo no Algarve. As restrições anunciadas podem significar a perda de uma fatia importante dos 3,3 mil milhões de euros que geraram em 2019.

A Bélgica também colocou Lisboa numa “zona vermelha”. Isso significa que os viajantes que regressarem à Bélgica vindos da capital portuguesa, terão obrigatoriamente de se sujeitar a um teste de despiste da Covid-19 e de fazer quarentena. Para a Bélgica, Portugal continua na “zona amarela”, ou seja, as viagens para o país são desaconselhadas.

Os países que impõem estas proibições ou restrições aos viajantes vindos de Portugal estão longe, todos eles (uns mais, outros menos), de constituírem modelos a seguir na luta contra a pandemia de Covid-19. O quadro mais abaixo compara Portugal com alguns desses países que se arvoram em seus juízes sanitários, segundo quatro indicadores. Escolhi a Roménia, que faz parte do grupo de países que proibiu a entrada a portugueses; a Holanda, que faz do grupo de países que impõe aos portugueses uma quarentena de 14 dias; o Reino Unido e a Bélgica que desaconselham ambos as viagens para Portugal e impõem restrições aos viajantes portugueses.

Poder-se-ia pensar que estes países estão numa situação epidemiológica muito melhor do que a de Portugal, sendo essa razão que os teria levado a tomarem essas medidas de protecção contra Portugal. Mas o quadro seguinte permite refutar esse argumento.

    Países
       [a]
       [b]
     [c]
     [d]
Fonte: Worldometer
10-07-2020
Casos de Covid-19 por 1 milhão de habitantes
Mortos de Covid-19 por 1 milhão de habitantes
Casos de Covid-19 em unidades de cuidados intensivos
Testes de Covid-19 por 1 milhão de habitantes
Bélgica
     5.530
     844
       36
 116.443
Reino Unido
     4.244
     658
     185
 169.942
Holanda
     2.967
     358
       20
   39.795
Roménia
     1.632
       96
     236
   42.861
Portugal
     4.480
      161
       66
 129.116

— A Roménia está melhor do que Portugal em 2 indicadores, [a] e [b],  mas Portugal está muito melhor em 2 indicadores, [c] e [d].

— A Holanda está melhor do que Portugal em dois indicadores, [a] e [c], mas Portugal está muito melhor em dois indicadores, [b] e [d].

— O Reino Unido está melhor do que Portugal em 2 indicadores, [a] e [d], mas Portugal está muito melhor do que o Reino Unido em 2 indicadores, [b] e [c].  

— Portugal está melhor do que a Bélgica em 3 dos 4 indicadores: [a], [b], e [d]. A Bélgica está melhor do que Portugal apenas no indicador [c], visto que tem menos doentes de Covid-19 em unidades de cuidados intensivos, apesar de ter mais 1 milhão de habitantes do que Portugal. Mas esta vantagem pode ser fictícia porque se morre muito mais na Bélgica de Covid-19 do que em Portugal e muitos desses óbitos ter-se-ão registado em unidades de cuidados intensivos. Acresce que a  Bélgica faz menos testes do que Portugal. Nada nos impede de supor que teria ainda mais casos confirmados de Covid-19 por 1 milhão de habitantes (ou por cem mil habitantes) se fizesse um esforço para testar tanto como Portugal. 

Em suma, presunção e água benta não faltam a estes pretensos “parceiros” de Portugal na (des)União Europeia. Com algumas possíveis e raras excepções (como a da Chéquia, que, todavia, faz muito menos testes de despiste do vírus do que Portugal), os países da União Europeia (Portugal incluído) não têm razões para se orgulharem da sua situação sanitária no que respeita à crise pandémica da Covid-19.

Quanto à abertura das fronteiras externas da União Europeia, convém saber que essa abertura diz respeito a uma lista de apenas 15 países extra-União Europeia considerados seguros. Entre muitos outros países, essa lista exclui os EUA, o Brasil e a Rússia, dada a situação calamitosa em que se encontram do ponto de vista da crise pandémica. Mesmo assim, Itália, Hungria, Chéquia, Espanha e Suíça (que não faz parte da União Europeia) fizeram saber que não vão seguir, para já, a recomendação do Conselho Europeu, que elaborou essa lista de 15 países.

Perante estes factos, como se pode pretender que estamos (ainda que lentamente) a regressar à normalidade? Que normalidade?

7. Confinamento

O novo coronavírus é, como todos os vírus, totalmente insensível à propaganda e à agitação política, à publicidade comercial, às necessidades de desconfinamento e de crescimento da economia capitalista à escala nacional, à escala internacional e à escala mundial. As reuniões no INFARMED, apesar de todas as suas limitações científicas e do seu semi-secretismo, punham essa realidade viral a nu.

24 de Março de 2020. Sentados a dois metros uns dos outros, para respeitarem a distância  proxémica de segurança contra a disseminação do coronavírus SARS-CoV-2, trabalhadores da fábrica de montagem de automóveis de passageiros Dofeng, em Wuhan, província de Hubei, tomam uma refeição. Foto: Xinhua.

Na fase dita de confinamento, quando o temor de uma calamidade sanitária e de uma disrupção hospitalar semelhantes às de Itália se sobrepunha à rabulice e picardia habituais nos palcos e nos bastidores da luta partidária e da concorrência económica, essas reuniões foram unanimemente saudadas e elogiadas por todos os membros do pequeno e selecto círculo dos seus frequentadores. Porém, quando esse perigo foi afastado e o “business as usual” voltou a reclamar a supremacia sobre a saúde (individual e pública), brandindo a bandeira “é preciso desconfinar para a economia poder respirar”, o caso mudou diametralmente de figura.

8. Desconfinamento

Na fase dita de desconfinamento, o que os cientistas tinham a dizer à sua selecta audiência não diferia muito, afinal, daquilo que lhe tinham dito na fase de confinamento. Como quase toda gente, eu também não tive acesso, presencial ou por videoconferência, às reuniões no INFARMED.  Apesar disso, não é preciso um grande esforço para imaginar o que os cientistas presentes lá terão dito à sua ilustre audiência. Suponho que não teria andado muito longe disto:

Declarar que temos a situação pandémica criada pelo vírus SARS-CoV-2 estabilizada ou controlada é prematuro e errado. Por duas razões principais:

a. Não existem fármacos específicos e eficazes contra a Covid-19, a doença que ele provoca.

b. Enquanto não tivermos uma vacina segura e eficaz e enquanto não for feita uma campanha de vacinação em massa com essa vacina (abrangendo, pelo menos, 60% da população e começando pelos grupos de risco), não se pode alcançar a tão desejada imunidade de grupo.

Ora — acrescento eu — enquanto isso não acontecer, não há, não pode haver, regresso à normalidade da vida de todos os dias, nem ao ramerrame dos pequenos e grandes negócios (o “business as usual”, como gostam de dizer os economistas apologéticos).

Compreende-se perfeitamente que não fosse esta a mensagem que o presidente da República, o governo, o partido que formou o governo, o maior partido da oposição, os pequenos partidos à sua direita e as confederações patronais desejassem ouvir da boca dos cientistas e médicos de saúde pública, reunião após reunião, desde 4 de Maio, quando começou o desconfinamento.

Por isso, o presidente da República, por sugestão do dirigente do maior partido de oposição e com a anuência do primeiro-ministro, pôs termo aos encontros quinzenais com os epidemiologistas no INFARMED sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal.

9. Como enfrentar, então, o vírus SARS-CoV-2?

As reuniões no INFARMED sobre a situação epidemiológica da Covid-19 terminaram. A Covid-19, essa, continua, porque o indómito vírus que a provoca não quer saber de mais nada a não ser replicar-se pandemicamente, o que só consegue fazer com a nossa prestimosa ajuda. 

Coronavírus SARS-CoV-2. Visão artística.  © Shutterstockp.

Temos, pois, de procurar saber como poderemos resistir com êxito a um inimigo com estas características desconcertantes, até reunirmos as condições para o vencer. Esse será o tema da próxima ou próximas entrada(s) deste Diário Intermitente da Pandemia.

Lisboa, 9-11 de Julho de 2020

…………………………………………………….

P.S. O grupo parlamentar do PSD na Assembleia da República (A.R) enviou dia 10 de Julho — dois dias depois, portanto, do anúncio do presidente da República que pôs termo às reuniões no INFARMED — um requerimento à Comissão de Saúde da A.R para que as reuniões até então feitas no INFARMED passem a ser realizadas, a partir de Setembro, na Assembleia da República, com periodicidade quinzenal e duração indeterminada. Além disso, tais reuniões deveriam ser transmitidas publicamente através do canal Parlamento (ARTV) para pôr cobro, dizem os deputados do PSD, à «indesejável falta de transparência» que tinham as reuniões no INFARMED. Além de epidemiologistas, o PSD propõe que participem nessas reuniões um representante do ministério da Saúde, membros do Governo e “outros especialistas que a comissão de Saúde venha a deliberar ouvir” (“PSD quer transmitir reuniões com epidemiologistas na ARTV”, Jornal de Notícias, 10-07-2020).

Assim, as reuniões com cientistas sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal que deveriam morrer por alegada “falta de utilidade” (Rui Rio dixit), e que morreram de facto (com o aplauso do PSD), podem ressuscitar ao terceiro dia e ter toda a utilidade, desde que (i) não sejam realizadas no INFARMED, (ii) não sejam convocadas pelo governo, nem organizadas pelo ministério da Saúde (iii) e só tenham um representante do ministério da Saúde. Para justificar esta espectacular cambalhota, o PSD resolveu agora arvorar-se em paladino da transmissão pública futura desse tipo de reuniões.

Obviamente, as reuniões no INFARMED deveriam ter sido transmitidas pela RDP e pela RTP e é imperioso que isso aconteça no futuro, se os cientistas voltarem a ser chamados a pronunciar-se livremente (como é necessário que suceda) sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal. Todos os cidadãos têm direito de aceder à melhor informação científica disponível sobre uma pandemia que os ameaça 24 horas sobre 24, e que só pode ser vencida com a sua iniciativa esclarecida. Por isso, as reuniões desse tipo devem realizar-se só e sempre no âmbito do Ministério da Saúde e não serem convertidas num sucedâneo de audiência parlamentar ou de comissão de inquérito parlamentar. Mas seria preciso uma grande dose de ingenuidade para acreditar que um partido que nunca contestou o secretismo dessas reuniões durante três meses a fio está de boa fé quando defende agora que se faça no futuro próximo o contrário daquilo que praticou no passado recente.

 O novo coronavírus é, bem entendido, totalmente indiferente a estas irrisórias intrigas palacianas urdidas com o pretexto de o combater. Se o vírus tivesse sentimentos, intelecto e fala, tenho a certeza de que tais intrigas só lhe provocariam uma imensa gargalhada zombeteira e um comentário acintoso: «Pobres criaturas! Cresçam e apareçam se quiserem medir forças comigo…».