(Temas 2, 3 e 4)
“Esquerda” e “Direita” trocadas por miúdos
do ponto de vista da democracia (8ª parte)
— A esquerda acomodatícia
José Catarino Soares
17. Do que falamos quando falamos de direita e esquerda
Estamos agora em condições de
responder à pergunta: do que falamos quando falamos de direita e esquerda em
termos políticos? E estamos também em condições, pelas mesmas razões, de
responder às perguntas conexas: de que falamos quando falamos de centro-direita e centro-esquerda, extrema-direita e extrema-esquerda, esquerda moderada e esquerda radical, direita moderada e direita radical?
Basta-nos, para tanto,
aplicar os critérios enunciados, explicados e ilustrados nas sete partes
anteriores deste ensaio.
17.1.
Lembrete
Recordo os principais conceitos que foram introduzidos nas sete partes anteriores deste ensaio.
Por “poder” deve
entender-se a capacidade, de uma instância qualquer (pessoal ou impessoal), de
levar uma ou mais pessoas a fazer (ou a não fazer) o que, entregue a si mesma,
essa pessoa (ou essas pessoas) não faria necessariamente (ou talvez tivesse
feito). Por “poder explícito” deve entender-se uma forma
de poder dotada de instâncias capazes de emitir explicitamente injunções
ratificáveis. Por “injunção ratificável” deve
entender-se uma imposição susceptível de ser aprovada/consentida ou reprovada/ repudiada
mediante exame e debate a priori ou a posteriori. O poder político (legislativo,
jurisdicional e executivo) e o poder económico (a capacidade de organizar e controlar
as relações sociais de trabalho) são as duas vertentes principais do poder
explícito.
Por “isonomia” deve entender-se o igual direito de todos os cidadãos de participarem e a igual probabilidade de serem chamados a participar nas instituições do poder político (legislativo, jurisdicional e executivo) como magistrados; o igual direito de decidirem e a igual probabilidade de serem chamados a decidir soberanamente o teor das leis pelas quais queriam reger-se colectivamente em conformidade com o princípio da “eunomia” [o primado da lei sobre os caprichos individuais]; o igual direito de decidirem e a igual probabilidade de serem chamados a decidir soberanamente as alterações às leis e às instituições anteriormente estabelecidas; o igual direito de se ocuparem e a igual probabilidade de serem chamados a ocupar-se efectivamente, no dia-a-dia, de todos os assuntos da esfera pública da comunidade nacional. A “anisonomia” é o desigual direito e a desigual probabilidade impostos aos cidadãos em todos este domínios.
Autonomia é sinónimo de capacidade de auto-instituição autorregulação, autogoverno. Inclui, por conseguinte, a liberdade para agir e o discernimento necessário para autolimitar essa liberdade em benefício da cooperação e convivência com os outros membros da sociedade. Heteronomia é o dual de autonomia.
Por mutualização dos meios industriais e sociais de produção e distribuição de bens e serviços (incluindo os que se aplicam ao solo arável, ao solo florestável e aos recursos minerais) deve entender-se a sua transformação em cooperativas de trabalho associado (por exemplo, no caso de uma fábrica ou de um hipermercado) ou em formas afins de trabalho associado (a que chamei, à falta de melhor termo, fundações multiface de utilidade pública administrativa) — por exemplo, no caso de um hospital ou de uma universidade. Por privatização dos meios industriais e sociais de produção e distribuição de bens e serviços deve entender-se a sua transformação ou manutenção sob a forma de sociedades comerciais (vulgo, empresas).
Recordo também o que afirmei na 1.ª
parte deste ensaio: há dois critérios principais para distinguir politicamente esquerda
e direita.
O primeiro critério é o diferente juízo – positivo ou negativo – que cada um delas faz sobre as ideias complementares de igualdade e desigualdade relativamente ao poder explícito, quer (i) na sua vertente política (poder político) – ou seja, relativamente à isonomia versus anisonomia dos cidadãos –, quer (ii) na sua vertente económica (poder económico) — ou seja, relativamente à mutualização versus privatização (dos meios industriais de produção e distribuição de bens e serviços, incluindo os que se aplicam ao solo arável e florestável e aos recursos minerais).
O segundo critério é o
diferente juízo – positivo ou negativo – que cada uma delas faz sobre as ideias
complementares de autonomia e heteronomia relativamente ao poder
explícito, quer (i) na sua vertente individual – ou seja, autonomia individual versus
heteronomia individual – quer
(ii) na sua vertente colectiva — autonomia colectiva versus
heteronomia colectiva.
Assim sendo, e combinando os
dois critérios e os seus desdobramentos, podemos construir um quadro com 12 células.
Poder Político |
Poder Económico |
||||||
isonomia |
anisonomia |
mutualização |
privatização |
||||
|
|
|
|
||||
autonomia |
heteronomia |
autonomia |
heteronomia |
||||
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
|
|
|
|
|
|
|
|
17.2.
Definições
São de esquerda as
pessoas, grupos, movimentos e partidos que lutam pela defesa e/ou pela promoção
da isonomia, da mutualização (= compartilhamento dos meios industriais e sociais de produção/distribuição de bens e serviços, etc.), da autonomia individual e da autonomia colectiva.
ESQUERDA
Poder Político |
Poder Económico |
||||||
isonomia |
anisonomia |
mutualização |
privatização |
||||
+ |
– |
+ |
– |
||||
autonomia |
heteronomia |
autonomia |
heteronomia |
||||
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
+ |
+ |
|
|
+ |
+ |
– |
– |
São de direita as pessoas, grupos, movimentos e partidos que lutam pela defesa e/ou pela promoção da anisonomia, da privatização (= apropriação privada dos meios industriais e sociais de produção/distribuição de bens e serviços, etc.), da heteronomia individual e da heteronomia colectiva.
DIREITA
Poder Político |
Poder Económico |
||||||
isonomia |
anisonomia |
mutualização |
privatização |
||||
– |
+ |
– / ? |
+ |
||||
autonomia |
heteronomia |
autonomia |
heteronomia |
||||
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
– / ≈ |
– / ≈ |
+ / ? |
+ / ? |
– / ≈ |
– / ≈ |
+ / ? |
+ / ? |
Neste contexto, o símbolo [+] significa “apoia, defende”; o símbolo [–] significa “repudia, combate”. Podemos, se quisermos, acrescentar o símbolo [?] para significar “tem uma posição ambígua, contraditória, incoerente” e o símbolo [≈] para significar “apoia/defende um módico de...” para substituirem, quando for caso disso, os símbolos [+] e [–] nesta ou naquela casa. Os partidos políticos são amiúde incoerentes, contraditórios ou ambíguos em relação a questões centrais, pelo que pode ser útil usar os símbolos [?] e [≈] para os situar no quadro I, das 12 células. A barra oblíqua [/] significa “ou”.
Cabe
ao leitor ensaiar, se o desejar fazer, a classificação da sua própria posição
política e da posição política dos partidos portugueses ou estrangeiros
utilizando o quadro I e as definições do parágrafo anterior.
O que se segue é o meu ensaio de classificação dos partidos políticos portugueses com assento parlamentar utilizando esse quadro e essas definições.
17.3. Ensaio de classificação
Nenhum partido político português com assento parlamentar defende a isonomia (a igualdade real) dos cidadãos em relação ao poder político. Para isso, teriam, no mínimo, de lutar pela tiragem à sorte a partir do conjunto dos cidadãos como único método democrático de selecção dos magistrados do poder legislativo, jurisdicional e governativo. Teriam, por conseguinte, de defender o sorteio como método a aplicar, sem excepções, na selecção de todos os magistrados do poder legislativo e do poder jurisdicional e como método principal (embora não único) na selecção dos magistrados do poder governativo. As únicas derrogações aceitáveis a este princípio metodológico são o uso dos métodos aristocráticos (ou, o que vem a ser o mesmo, meritocráticos) do concurso público e da eleição na selecção de certos magistrados do poder governativo — como, por exemplo, comandantes militares e embaixadores.
(As razões para reter este princípio metodológico na escolha dos magistrados e para as suas poucas derrogações aceitáveis foram aduzidas na 3ª Parte deste ensaio, secção 10.1).
Nenhum
partido político português com assento parlamentar defende estas posições [100].
Também não há nenhum partido político português com assento parlamentar que defenda a igualdade dos cidadãos em relação ao poder económico [101]. Para isso, teriam de defender a mutualização (o compartilhamento pelos trabalhadores) dos meios industriais ou sociais de produção/distribuição de bens e serviços, incluindo os recursos agro-industriais e minero-industriais, único método de o conseguir. A mutualização é incompatível com a privatização (a apropriação privada pelos não trabalhadores) desses meios industriais ou sociais, mas todos os partidos políticos com assento parlamentar fazem vista grossa sobre essa incompatibilidade inscrita no artigo 61.º da Constituição da República Portuguesa, onde o ponto 1 colide com o ponto 2 [102].
Há partidos com assento parlamentar (PCP, Bloco de Esquerda) que defendem a nacionalização e estatização (a que chamam “controlo público”) de alguns sectores privados e de algumas firmas privadas — ou seja, a sua integração no sector empresarial do Estado. Mas isso não é, de modo nenhum, a mesma coisa do que mutualização. A nacionalização e a estatização não eliminam a exploração económica dos trabalhadores. Limitam-se a modificar a titularidade (a propriedade) e a gestão (o controlo) das empresas que passam das mãos de capitalistas individuais e dos gestores privados por eles cooptados para as mãos do Estado e dos gestores públicos nomeados pelo governo (enquanto “órgão executivo” do Estado). O sector empresarial do Estado é uma instituição intrinsecamente oligárquica, tal como o sector empresarial privado. As oligarquias em causa (gestores empresariais privados e gestores empresariais públicos) são algo diferentes, mas são-no à maneira de espécies de um mesmo género, como sucede, por exemplo, com os onagros asiáticos e os asnos africanos (o antepassado do nosso burro doméstico). A prova disso é a proverbial transumância dos gestores entre os dois sectores em todos os países capitalistas mais desenvolvidos, incluindo os EUA.
A
mutualização das empresas industriais privadas faz duas coisas em simultâneo: elimina a
exploração económica dos trabalhadores assalariados das respectivas empresas e
passa a gestão das mesmas para as suas mãos. É uma instituição intrinsecamente
democrática.
Todos
os partidos com assento parlamentar (incluindo o Chega) afirmam defender os
direitos, as liberdades e as garantias pessoais que estão inscritos no Título
II da Constituição da República Portuguesa. Temos, naturalmente, de considerar
se as suas propostas e acções políticas entram ou não em conflito reiterado com
essa afirmação. Se, regra geral, tal não acontecer, isso qualifica-os –
dir-se-á – como defensores, pelo menos, de um módico de autonomia individual. É
verdade. Creio ser esse o caso de todos os partidos portugueses com assento
parlamentar [103],
excepto o Chega [104]. Mas
precisamos de ir mais fundo nesta questão.
A isonomia e a mutualização são ambas condições necessárias da autonomia colectiva. Sucede, porém, que a isonomia não faz parte do conjunto de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos em Portugal e que a mutualização só é reconhecida desde que fique confinada a um pequeno nicho da actividade económica (o chamado “sector cooperativo”) e aos serviços públicos universais: Serviço Nacional de de Saúde (SNS), escola pública básica e secundária, Segurança Social, e alguns nós da rede de emergência e protecção civil. Esse conjunto de direitos, liberdades e garantias, o sector cooperativo e os serviços públicos universais são insuficientes para garantir a isonomia e a mutualização. Constituem, porém, uma parcela indispensável da sua existência, e são, por conseguinte, um elemento não despiciendo da divisão entre “esquerda” e “direita”.
Seja como for, do que foi dito nos parágrafos anteriores resulta que nenhum partido com assento parlamentar apoia a autonomia colectiva dos cidadãos. Ora, a autonomia individual fica seriamente coarctada sem a existência da autonomia colectiva.
A conclusão impõe-se: com base nos três critérios propostos – isonomia vs anisonomia; mutualização vs privatização; autonomia (individual e colectiva) vs heteronomia (individual e colectiva) – não existem em Portugal, entre os partidos com assento parlamentar, partidos de esquerda dignos desse nome. Salvo melhor informação, creio que a asserção vale também para os partidos sem assento parlamentar que estão legalmente constituídos junto do Tribunal Constitucional.
À luz dos três critérios propostos, o PCP, BE, PS, Livre e PEV situam-se no quadro intitulado Esquerda do modo descrito no quadro seguinte. Diferem dos partidos PSD, CDS, IL e Chega (cf. o quadro intitulado Direita) por defenderem um módico de mutualização e de autonomia individual e colectiva, indicado no quadro seguinte pelo símbolo [≈]. A sua classificação seria, portanto, a seguinte:
Esquerda Acomodatícia
Poder Político |
Poder Económico |
||||||
isonomia |
anisonomia |
mutualização |
privatização |
||||
– |
+ |
≈ |
– |
||||
autonomia |
heteronomia |
autonomia |
heteronomia |
||||
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
individual |
colectiva |
≈ |
≈ |
+ / ? |
+ / ? |
≈ |
≈ |
? |
? |
Presumo que esta conclusão seja chocante e difícil de engolir para muitos ou para a grande maioria dos leitores, sobretudo para aqueles que votam ou militam em partidos que se autodefinem como sendo de “esquerda”. Mas não há volta a dar-lhe: com base nos três critérios propostos, não existem partidos com assento parlamentar que sejam genuinamente de esquerda em Portugal. Como, porém, existem partidos que se dizem de esquerda e que diferem dos partidos de direita por defenderem um módico de mutualização e de autonomia individual e colectiva, precisamos de uma expressão para os designar. Proponho apelidá-los de esquerda acomodatícia ou esquerda putativa.
Claro, há, teoricamente, uma escapatória à conclusão de que os partidos portugueses são todos ou partidos de direita ou partidos de esquerda putativa: mudar os critérios. Mudando os critérios, arranjar-se-á seguramente uma maneira de conseguir povoar a cena política portuguesa com um ou mais partidos de esquerda. Mas que critérios seriam esses? (Não se qualificam como tais as crenças auto-ilusórias que examinarei na próxima secção). Até que alguém apareça a propô-los [ver nota **], a conclusão é inescapável: há pessoas de esquerda em Portugal. Não serão muitas, presumo, mas existem. Mas não há partidos de esquerda em Portugal, nem dentro do parlamento, nem (salvo melhor informação) fora do parlamento.
Isto suscita uma pergunta, que não é nova, pois foi feita há sete anos pelo historiador João Bernardo, a saber: «Por que motivo, aliás, continua a chamar-se esquerda àquela que hoje existe com esse nome?» [105]
18. Por que motivo continua a chamar-se esquerda àquela que hoje existe com esse nome?
Há, em minha opinião, três razões de carácter ideacional para que isso aconteça (ponho aqui de parte razões de caracter prático, pragmático, sobre as quais não pretendo pronunciar-me neste momento). Todas elas assentam em equívocos com um longo historial no seio do movimento político dos trabalhadores assalariados. Funcionam como crenças auto-ilusórias que permitem aos militantes, simpatizantes e votantes dos partidos que as nutrem – os partidos de esquerda putativa – e que delas se nutrem olharem-se e serem olhados pelos seus adversários (a direita propriamente dita) como sendo de “esquerda”.
18.1. Crenças básicas da esquerda acomodatícia
A primeira razão são as
crenças básicas que esses os partidos têm sobre a natureza da democracia. A
segunda razão são as crenças básicas que esses partidos têm sobre a natureza da
emancipação da classe trabalhadora assalariada. A terceira razão são as crenças básicas que
esses partidos têm sobre a natureza da economia pós-capitalista.
Para abordar a genealogia
estes três grupos de crenças básicas com a profundidade necessária seria
necessário escrever um ensaio pelo menos tão longo como este (que já vai em 118 páginas, somando todas as suas partes). Limitar-me-ei, por isso, a enunciar essas crenças básicas, que perduraram
até aos nossos dias nos partidos que continuam a chamar-se de esquerda sem
motivo bastante.
1ª crença: a
democracia é (i) a eleição de magistrados por sufrágio universal para um parlamento
e/ou para qualquer outra instituição electiva que disponha de um orçamento
próprio e de algum poder político explícito — parla presidência da república, senado, câmaras e assembleias municipais, juntas de freguesia, sovietes, etc., (ii) no respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais inscritas no título II da Constituição da República portuguesa (É a confusão entre democracia
e oligocracia electiva liberal).
2ª crença: a melhoria das condições de vida dos trabalhadores assalariados será obra dos seus “dirigentes” mais capazes e esclarecidos, que governarão em nome dos trabalhadores de modo a satisfazer eficientemente os seus interesses e as suas aspirações. (É a confusão entre a auto-emancipação dos trabalhadores assalariados mediante a abolição simultânea do salariado e do capital como relações sociais de produção matriciais do modo capitalista de produção, e a autopromoção social dos putativos “representantes” dos trabalhadores, que aspiram a ser gestores vitalícios da vida social e política dos membros da classe que dizem representar).
3ª crença: o
socialismo é a ampliação do poder de decisão e gestão económica do Estado a todos os sectores da economia considerados estratégicos. (É a confusão
entre um comensalismo oligárquico de gestores empresariais, a que podemos chamar colectivismo oligárquico [o termo é de George Orwell], e o cooperativismo democrático dos trabalhadores
associados).
18.2.
Extrema-esquerda/esquerda radical versus centro-esquerda/ esquerda moderada
A 1.ª crença é compartilhada
por todos os partidos com assento parlamentar.
A 2.ª crença é compartilhada por todos os partidos da esquerda putativa ou esquerda acomodatícia com assento parlamentar e serve-lhes de linha divisória para se demarcarem dos partidos de direita.
A 3.ª crença serve de ténue
linha de demarcação entre aquela parte da esquerda putativa que costuma ser
apelidada de “extrema-esquerda”
ou “esquerda radical” e
aquela outra parte da esquerda putativa que costuma ser apelidada de “centro-esquerda”
ou “esquerda moderada”.
Estes apelidos, que justapõem conceitos metafóricos e díspares (extremidade,
radicalidade, moderação), são, no entanto, comummente empregados pelos
jornalistas mais ou menos especializados no comentário político nos meios de
comunicação social (jornais, rádio, televisão, redes sociais) e pelos
politólogos das universidades e “think tanks” (centros de estudos), lugares onde esses apelidos
receberam a sua chancela.
A “extrema-esquerda”
ou “esquerda radical”
seria aquela parte da esquerda putativa que tem uma convicção inabalável no
enunciado da 3.ª crença. O “centro-esquerda” ou “esquerda moderada”
seria aquela parte da esquerda putativa que tem reservas acerca da validade
universal desse enunciado, que deixou de acreditar nesse enunciado ou que nunca
chegou a acreditar nele. No contexto português essa seria a linha de demarcação
principal entre o Partido Comunista Português (PCP) e o Bloco de Esquerda (BE),
de um lado, e o Partido Livre (PL) [106], o Partido Socialista (PS) e o Partido
Ecologista-Os Verdes (PEV) [107],
do outro lado.
18.3. O PAN, partido
sincrético
O partido Pessoas, Animais e Natureza
(PAN) não compartilha a segunda e a terceira crenças supramencionadas, razão
pela qual afirma não se rever na putativa distinção entre “direita” e
“esquerda” que elas procuram estabelecer.
Quando a direita diz que o PAN é um partido de
esquerda e quando a esquerda refere que o PAN é um partido de direita alguma
coisa estamos a fazer bem. Estamos no caminho certo e essas críticas significam
a valorização do trabalho que temos feito (Diário de Notícias,
25 de Setembro de 2019)
— disse André Silva, deputado
do PAN, no arranque da campanha eleitoral para a legislativas de 2019 do
partido, no porto de Sines. E afirmou, na mesma ocasião, que o combate às
alterações climáticas e as questões associadas à protecção dos animais «não são causas nem de
esquerda nem de direita», pelo que o PAN quer «estabelecer pontes» dos
dois lados «para
fazer avançar algumas causas e medidas» (ibid.). Já em 2015
tinha afirmado:
O PAN não se revê na política de Esquerda nem de
Direita e pretende aprovar medidas que são transversais a toda a sociedade (Notícias
ao Minuto, 20 de Novembro de 2015).
Estas posições são coerentes
com toda a história do PAN, que já tem 12 anos. O PAN nem sempre foi PAN.
Quando nasceu, em 2009, a sua sigla era PPA, que correspondia a “Partido Pelos Animais”. Não
é estranhíssimo criar um partido exclusivamente focado na defesa dos animais?
Para um budista – como era o caso do seu fundador e primeiro presidente: Paulo
Borges – não é. Aquando da fundação do PAN, quando o PAN ainda era PPA, Paulo
Borges acumulava também a presidência da União Budista Portuguesa — cargo que
ocupou praticamente durante uma década. Só um ano depois, em 2010, é que o PPA
se transformou em PAN (1.ª versão), um acrónimo que correspondia a “Partido pelos Animais e pela
Natureza”,
acrescentando assim a causa ecologista à original que apontava para um partido
de nicho apenas focado nos direitos dos animais. Foi com esse nome que foi
registado no Tribunal Constitucional em 2011.
No seu III Congresso,
realizado a 12 e 13 de Abril de 2014, em Lisboa, o PAN decidiu manter o seu
acrónimo, mas alterar o nome para Pessoas-Animais-Natureza, alteração
que o Tribunal Constitucional aceitou em 18 de Setembro de 2014. Nascia o PAN
(2.ª versão), com André Silva como seu principal dirigente, em substituição de
Paulo Borges, que abandonou recentemente o partido que fundou.
É interessante conhecer o
modo como um jornalista do Observador descreveu o êxito eleitoral do PAN
de André Silva (a selecção dos excertos é minha e a sua ordem e ortografia nem
sempre correspondem à do artigo original).
# O ambiente estava por
explorar politicamente em Portugal e o “clima” internacional ajudou. Lá de fora
chegavam-nos ecos da “greve global climática”, da “emergência climática” e das
inúmeras cimeiras que a ONU e outros organismos internacionais têm dedicado ao
tema. O PAN soube com mestria colocar a sua bandeira em cima deste território
político, que depois de ocupado dificilmente fugirá para outro lado — mesmo
perante as inúmeras tentativas (muitas vezes notoriamente forçadas) dos outros
partidos quer de esquerda quer de direita.
# O PAN foi inteligente ao
transformar a sua maior fraqueza (falta de consistência ideológica) numa
vantagem: comunicar apenas aquilo que sabiam que os seus eleitores queriam
ouvir. Para quê perder tempo a explicar cenários macroeconómicos, quando
podemos prometer salvar todos os gatinhos e cãezinhos abandonados?
# Paralelamente, o eleitorado original do partido é constituído por jovens millennials [milénicos, também denominados geração Y: as pessoas nascidas entre 1981 e 1995] e da geração Z [as pessoas nascidas entre a segunda metade dos anos 1990 e o início do ano 2010]. Eleitores que consomem informação em posts [bilhetes públicos] de redes sociais curtos e em notificações push [mensagens de alerta que surgem no ecrã dos telemóveis e computadores] das apps [aplicativos] que trazem consigo nos smartphones [telemóveis ≥ 2G]. Esta malta quer soundbites [frases que fiquem no ouvido] e ideias simples, não quer profundidade ideológica e palavras caras. O PAN sabe disso.
# Os jovens votam pouco,
crescem e só votam quando lhes apetece. Foi preciso saber chegar aos velhotes.
Não é impossível, mas é lento e arriscado pensar que se pode crescer
eleitoralmente só com o voto jovem. É uma verdade óbvia, é certo. Como fazer do
ideário animalista algo sexy [atraente] para o eleitorado mais velho?
Através de um soundbite [frase
que fica no ouvido] genial: um Serviço Nacional de Saúde para animais de companhia. Pensemos
na velhinha com três gatos, que já tem que pagar os seus medicamentos e
cuidados de saúde, que ama os seus animais mais que tudo na vida e que faz
sacrifícios enormes sempre que tem que os levar ao veterinário. Simples, não é?
# André Silva é gozado por quase todos os comentadores, mas é provavelmente o mais inteligente líder partidário em Portugal. Durante muito tempo, até ao aparecimento desta personagem, o partido era visto como um aglomerado de radicais com teorias exóticas. André Silva soube polir muito bem o seu discurso público e moderar a mensagem. O tom mudou e a maneira de fazer política também: às vezes o que importa não é o que dizemos, mas a forma como o dizemos. O PAN já não é mais contra as touradas, é antes contra a utilização de animais em touradas (que é o mesmo). O PAN já não quer mais obrigar as pessoas a terem uma dieta vegetariana, quer antes limitar o consumo de carne e peixe até sermos todos vegetarianos (que é o mesmo também). O PAN já não quer que os animais tenham tantos direitos como as pessoas, quer antes que as pessoas que tratam bem os animais tenham mais direitos e que as que tratem mal os animais sejam mais punidas (que, convenhamos, é também o mesmo).
# Façam um exercício simples:
vão ao Facebook e vejam os seguidores de cada um dos partidos nas redes
sociais. O PS tem 84 mil seguidores, o PSD tem 149 mil, o CDS 34 mil, o Bloco
de Esquerda 97 mil, o PCP apenas 16 mil, a novíssima Aliança 17 mil, o Chega 22
mil e a surpreendente Iniciativa Liberal 62 mil. Então e o PAN? Recoste-se na
cadeira: nada mais nada menos do que: 160 000 seguidores. Ou seja, é o partido
com mais seguidores nesta rede social e tem quase o dobro dos seguidores do
partido que está no governo. No Instagram são mais de 23 mil (o PSD só tem 13
mil e poucos e o PS não chega aos 10 mil). Só no Twitter é que o PAN
desilude, tendo pouco mais de 4500 “followers” [seguidores] mas como sabemos não é nesse
campeonato que ganham votos.
# Surpreendidos? É simples: enquanto os outros partidos ainda viviam na era dos blogues, já o PAN focava a sua acção no campo de batalha que se veio a verificar preponderante: as redes sociais (João Gomes de Almeida, Observador, 4 de Outubro de 2019).
Cartaz eleitoral do PAN em Lisboa, na Praça Marquês de Pombal, em 2019, com o enunciado de algumas das suas conquistas anteriores. O PAN viria a eleger 4 deputados. |
Em suma, o PAN é um partido sincrético, que mistura bandeiras e amalgama temas formatados pela matriz do “politicamente correcto”. Inês Sousa Real, a nova dirigente e porta-voz do PAN, em substituição de André Silva (que desistiu, entretanto, de ser deputado), explicou muito bem o sincretismo que caracteriza o seu partido:
Inês Sousa Real disse haver quem se “inquiete” por o PAN não ser “nem de Esquerda nem de Direita”. Para a dirigente, o segredo do partido tem sido não compactuar com essa “ultrapassada e redutora dicotomia”. E explicou: apesar de “apregoar” preocupações ambientais, a Esquerda viabiliza projectos como o aeroporto do Montijo e “diaboliza a propriedade privada”; já a Direita defende uma “economia voraz” que destrói o mundo rural e natural: “A tradicional dança entre a Esquerda e a Direita não serve” para o futuro, reafirmou.
Logo depois, especificou: o objectivo do partido é ganhar força até às legislativas de 2023, “às quais nos apresentamos, evidentemente, para ser Governo”. Os cerca de 150 militantes que enchiam a sala – e que empunhavam bandeiras de várias cores, incluindo algumas da causa LGBT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero] –, irromperam em aplausos (Jornal de Notícias, 6 de Junho de 2021).
19. Partir
quase do zero, mas sem estar a zero (bem pelo contrário)
Esta senhora e o seu antecessor têm toda a razão num ponto essencial. Nem o ecologismo, nem o vegetarianismo, nem o animalismo, nem o identitarismo se pretendem de esquerda. É antes uma parte da esquerda putativa quem hoje (enfim, um “hoje” com mais de 20 e por vezes mais de 40 anos) se pretende ecologista, vegetarianista, animalista e identitarista. «Julga que mascarando-se de outra coisa consegue ser alguma coisa», disse lapidarmente João Bernardo.
Por todo o mundo, a esquerda com assento parlamentar, a esquerda acomodatícia, perdeu as características distintivas da esquerda. O ponto coum mais importante que a diferencia da direita é a defesa que faz dos serviços públicos universais (rede pública de cuidados de saúde [em Portugal: Serviço Nacional de Saúde, Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, Instituto Nacional de Emergência Médica, Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, Instituto Português do Sangue e da Transplantação], rede pública de escolas de ensino básico e secundário, Segurança Social pública, e alguns nós da rede pública de Emergência e Protecção Civil), que apelida erradamente de “Estado Social” mas que nada tem a ver com o Estado, como vimos (cf. 2.ª parte deste ensaio, secção 8.2, e 3.ª parte, nota 26), e que a direita abomina com razão, por ser, nos países onde existe, um enclave de mutualização em sociedades onde a privatização reina suprema. Convenhamos que é pouco para merecer o nome de esquerda.
Estou bem ciente que este ensaio é insuficiente para distinguir as componentes da esquerda acomodatícia umas das outras. Para isso, teria (terá) de ser complementado por ensaios dedicados a clarificar o que distingue a “esquerda” da “direita” relativamente a temas tão candentes como “a(s) guerra(s)”, “a nação”, as “instituições supranacionais”, as “migrações internacionais” e os “narcisismos identitários” (racialismo, feminismo misândrico, fantasmagorização dos dois sexos). Os resultados a alcançar permitiriam aprimorar o nosso conhecimento deste assunto fazendo, por exemplo, a destrinça entre o PCP, por um lado, e o PS, Bloco de Esquerda e Livre, por outro. Não podem ser metidos todos no mesmo saco à luz da posição que têm sobre este temas. Mas essa é uma tarefa que ainda está por realizar.
Feito este parênteses, regressemos aos temas abordados neste ensaio. O apreço que uma parte da esquerda acomodatícia tem pelas nacionalizações e pelo sector empresarial do Estado é, presumivelmente, o seu traço distintivo mais arcaico e mais genuíno, mas não constitui mais do que um irritante para a direita [108]. O modo capitalista de produção convive razoavelmente bem com um sector empresarial do Estado que, em certas conjunturas, pode até constituir o seu melhor seguro de vida. A descrição e a conclusão de João Bernardo continuam actuais, sete anos depois de terem sido publicadas.
#1 Abandonando quaisquer
transformações económicas substanciais e restringindo-se nesse campo aos
paliativos, a esquerda governamental concentrou-se nas questões de costumes,
mas mesmo aí deixa a desejar. Numa época recente ela ainda se singularizava por
adoptar uma certa latitude moral, enquanto a direita era moralmente restritiva.
Agora já nem isto sucede. Até a defesa do direito
ao aborto esqueceu a sua justificação originária, decorrente da má situação
económica das mães que pretendiam recorrer a essa prática, e, pior ainda, em
vez de assinalar uma progressão das fronteiras da imoralidade, invoca os
argumentos da nova moral do exclusivismo feminino. Especialmente perversa,
tanto nos pressupostos como nos resultados, é a institucionalização do
casamento entre homossexuais, já que aplica o padrão tradicional dos casais
heterossexuais e reprodutores àqueles de quem se poderia esperar que rompessem
com esse formato moral.
A mesma perda de identidade atingiu a esquerda
exterior às instituições estatais, que passou a repetir e desenvolver temas
gerados na transição do século XVIII para o século XIX pela extrema-direita,
anticapitalista, conservadora ou radical.
Isto tem sido muito notório na pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2, durante a qual temos visto uma convergência inédita entre movimentos antiglobalistas de “extrema-direita” e de “extrema-esquerda”, unidos num mesmo fervor contra as máscaras de protecção respiratória, contra o distanciamento físico de segurança, contra as medidas sanitárias de confinamento (isolamento profiláctico [= quarentena], isolamento, etc.), cantonamento (restrições territoriais de trânsito), condicionamento da lotação e ocupação de espaços públicos confinados e encerramento temporários de certos tipos de estabelecimentos públicos, contra os Testes Moleculares de Amplificação de Ácidos Nucleicos (TAAN), contra as vacinas (sejam elas quais forem), contra os certificados de vacinação, contra a ciência.
Mas há mais e ainda mais extraordinário; vimo-los também nutrirem-se de um mesmo fluxo ininterrupto de falsas notícias e fabulações conspirativas feitas para agradar a todo o tipo de crentes na magia negra, sobre os alegados planos malignos arquitectados secretamente pelo Fórum Mundial de Davos, a “Big Pharma”, a Organização Mundial de Saúde (OMS), a China, Bill Gates, George Soros, Justin Trudeau, o Papa Francisco, o Dalai Lama, etc. Segundo eles, esses planos foram feitos para, com o pretexto e a justificação de combaterem um alegado novo coronavírus denominado SARS-CoV-2:
(i) fazerem de nós, seres humanos, cobaias de uma misteriosa experiência laboratorial conduzida à escala planetária; (ii) mudarem o nosso ADN; (iii) implantarem-nos micro-sílico-dispositivos de controlo remoto; (iv) deitarem abaixo a economia dos EUA para favorecer a ascensão da China ao pódio de primeira potência mundial; (v) permitir ao grande capital financeiro transnacional tomar o controlo da economia global; (vi) reduzir a população mundial matando os velhinhos; (vii) ajudar a vender vacinas, enriquecendo ainda mais as grandes firmas farmacêuticas que as produzem; (viii) precipitarem o mundo inteiro numa espiral de desemprego maciço, falências, pobreza extrema e desespero; (ix) estabelecer barreiras contra a emigração para a Europa e impor um sistema de vigilância em massa; (x) levarem as micro, pequenas e médias empresas da restauração e os negócios da noite (discotecas, clubes de striptease, casinos, bars, pubs, clubes de jazz, prostíbulos de luxo, etc.) à insolvência; xi), roubarem-nos a liberdade de circular e viajar, e assim por diante, num carrossel vertiginoso de fantasias abracadabrantes mutuamente contraditórias.
Obviamente, algumas destas asserções (por exemplo, vi, vii, viii, ix, x, xi) são factualmente verdadeiras. Todavia, os factos em causa não resultaram de qualquer plano previamente acordado entre as eminências pardas deste planeta, mas das consequências (umas desejadas, outras não desejadas por tais entidades) e dos efeitos colaterais, muitas vezes caóticos, das medidas de saúde pública (muitas das quais terão sido inoportunas, incompetentes ou erradas) ou da sua ausência, assim como de medidas políticas liberticidas, tais como a suspensão ou a restrição de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos.
#2 Nesta deslocação de
sentidos e de referências, a esquerda exterior às instituições estatais, que em
várias épocas constituiu uma efectiva ameaça [às oligocracias políticas e oligarquias económicas que prevalecem por esse mundo fora], não passa agora de uma
irrelevância. Exceptuando em alguns – poucos – países da Europa ocidental e da
América Latina, esta esquerda tem sido ignorada nas principais lutas sociais
dos últimos anos.
Isso verificou-se também
durante a pandemia do SARS-CoV-2, onde essa esquerda –
aquela que não se juntou ao coro da extrema-direita para vilipendiar e atacar
as medidas individuais e colectivas de protecção da saúde pública, as vacinas [110] e
a ciência – tem brilhado pela ausência (voltarei a este assunto num texto que
referi na 1.ª parte deste ensaio e que ainda não terminei).
#3 A maior parte do que agora se denomina esquerda alheou-se do combate ao capitalismo como modo de produção, ou seja, como sistema de relações sociais de trabalho. No entanto, seria este o único sentido do anticapitalismo. A esquerda que não pretenda transformar radicalmente as relações sociais de trabalho limita-se a ser uma das correntes políticas do capitalismo.
A maioria da esquerda actual só se preocupa com o
trabalho quando ele não existe. Quero dizer que essa esquerda se inquieta
justificadamente com o desemprego e o part-time; mas,
injustificadamente, parece esquecer que o assalariamento é o motor da acumulação
de capital. É a esquerda do conformismo e não da ruptura. O emprego não é a
solução para o desemprego. Só a liquidação do capitalismo poderá solucionar
tanto o desemprego como este emprego.
Para a maior parte do que agora se denomina esquerda
o combate ao capitalismo foi substituído por uma crítica parcial, que põe
apenas em causa o sistema financeiro, considerado improdutivo, no sentido de
economicamente inútil e, portanto, gerador de lucros injustificados e
necessariamente especulativos. Aliás, a noção de que haveria um «capital
produtivo», com raízes nacionais, oposto a um «capital especulativo»,
de carácter internacional, surgiu originariamente nos meios da extrema-direita
europeia nos primeiros anos do século XX e tornou-se um dos elementos
constitutivos da ideologia fascista precisamente em virtude do carácter
nacionalista que lhe está subjacente. A redução do anticapitalismo ao ataque ao
sistema financeiro situa perigosamente a maioria da esquerda actual numa
linhagem que atravessa o fascismo.
#4 Para reconstruir uma
esquerda anticapitalista ou, mais exactamente, para reconstruir o anticapitalismo
no espaço que hoje se denomina esquerda, temos de partir quase do zero. [111]
É possível que esta conclusão seja encarada como uma manifestação de desespero. Não a entendo assim. Temos de partir quase do zero neste particular, é verdade. Mas não estamos a zero, muito longe disso. Aprendemos muito com mais de dois séculos de história do modo capitalista de produção, carregados de lutas, acções, obras, teorias e propostas, emancipadoras umas e apresadoras outras, e podemos aprender ainda mais. Não temos de reinventar tudo, longe disso. Há muitos ensinamentos válidos na enorme experiência acumulada de que podemos e devemos reapropriar-nos. E há muita coisa fajuta de que temos de nos desembaraçar. Não estamos condenados a repetir os erros e a alimentar as ilusões que tantas vezes fizeram da briosa divisa da Associação Internacional dos Trabalhadores – A emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores – um descabido motivo de lástima, escárnio e rancor.
Vale a pena lembrar a este
propósito que o romancista Albert Camus explorou todos os meandros do
pessimismo (em A Queda) e
da absurdidade (em O Mito de Sísifo),
porventura as duas fontes principais do desespero. No entanto, foi ele quem
disse:
O verdadeiro desespero não nasce perante uma
adversidade persistente, nem no esgotamento de uma luta desigual. Nasce quando
deixamos de perceber as razões pelas quais lutamos, e se precisamos mesmo de lutar.
[112]
O meu intuito é apresentar factos e argumentos para distinguir económica e politicamente entre a “direita” e a “esquerda”; para dissipar a confusão entre oligocracia electiva liberal, por um lado, e democracia, por outro – uma confusão cultivada com esmero tanto pela direita como pela esquerda putativa – ; para sacudir o conformismo que leva a aceitar o sistema vigente de relações sociais de trabalho como o menor dos males; para ficarmos a saber as razões pelas quais lutamos quando lutamos pela democracia; para lutar lucidamente por ela, se concluirmos que precisamos mesmo de lutar, como julgo que realmente precisamos. Daí ter escrito este ensaio.
******
P.S. Recebi hoje, dia 28 de Janeiro de 2022, uma mensagem de um amigo assinalando-me um artigo intitulado O Que Dizem os Deputados?, publicado na revista electrónica Interruptor. Os autores (anónimos) analisaram seis anos de debates na Assembleia da República, mais precisamente os 619 debates parlamentares das XIII e XIV legislaturas (2015-2021).
Já li o artigo cujos gráficos e conclusões são bem interessantes. Respiguei um desses gráficos, que reproduzo abaixo, que corrobora a tese que desenvolvi ao longo deste ensaio, em particular a caracterização que fiz dos partidos portugueses com assento parlamentar e que se dizem de esquerda (PCP, PS, PEV, BE, Livre) nas secções 17.3, 18.1 e 18.2 desta sua oitava e última parte.
Afirmei aí que «não existem em Portugal, entre os partidos com assento parlamentar, partidos de esquerda dignos desse nome. Salvo melhor informação, creio que a asserção vale também para os partidos sem assento parlamentar». O que implica afirmar, nomeadamente, que os partidos que se autodenominam “socialistas” e “comunistas” não têm posições programáticas consentâneas com a instituição do socialismo ou comunismo como sinónimos da auto-emancipação económica e política da classe produtora mais numerosa das sociedades capitalistas industrialmente mais desenvolvidas: a classe dos trabalhadores assalariados. Identifiquei essas posições como sendo a defesa da isonomia, da autonomia (individual e colectiva) e da mutualização, tal como estes conceitos foram definidos no ensaio. Afirmei também a este propósito: «Como, porém, existem partidos que se dizem de esquerda e que diferem dos partidos de direita por defenderem um módico de mutualização e de autonomia individual, precisamos de uma expressão para os designar. Proponho chamá-los esquerda putativa».
Ora, o que eu não sabia na altura e que fiquei a saber agora pelo artigo supramencionado, é que os deputados dos partidos da esquerda putativa deixaram inclusivamente de falar em socialismo e comunismo. Presumo que, para um observador desprevenido, o resultado mais espantoso do gráfico da Interruptor reproduzido acima, seja o facto dos deputados do Partido Comunista Português (PCP) nunca terem pronunciado a palavra comunismo, nem a palavra socialismo, em 6 anos ! Conduta idêntica foi a do seu satélite, o Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV). O Bloco de Esquerda (BE) também nunca empregou a palavra comunismo e empregou a palavra socialismo apenas 3 vezes.
Como mostra o gráfico (cuja iteratividade não consegui, lamentavelmente, reproduzir aqui), as palavras socialismo e comunismo são ainda usadas no Parlamento português. Mas com esta ressalva muito importante: durante os últimos seis anos (durante os quais prevaleceu uma aliança entre PS, BE, PCP e PEV – que se estendeu tacitamente também ao PAN – que ficou conhecida como “a geringonça”) essas duas palavras foram quase sempre usadas não pelos partidos da esquerda putativa como bandeiras de combate político, mas pelos partidos parlamentares da direita política como vitupérios e espantalhos assustadores [113].
Espantalho feito para assustar pássaros, crianças atrevidas e nómadas. |
…………………………………………………………………
N.B.
Este ensaio está dividido em 8 partes, sendo esta a última:
1ª parte. Os critérios e os
conceitos principais
2ª parte. Um excurso sobre o
poder explícito
3ª parte. A igualdade em
relação ao poder político
4ª parte. A
desigualdade em relação ao poder explícito
5ª parte. A igualdade em
relação ao poder económico
6ª parte. O poder explícito
numa oligocracia electiva liberal
7ª parte. O poder explícito
numa democracia
(8ª parte. A esquerda inexistente)
que podem ser encontradas, por esta ordem, no Arquivo do Blogue, 2021, Agosto,
no fim da coluna da direita do blogue.
……………………………………………………………………..
Notas
[100] Salvo melhor informação, não há
também, em Portugal, nenhum partido sem assento parlamentar que defenda esta
posição.
[101] Salvo melhor informação, não há também, em Portugal,
nenhum partido sem assento parlamentar que defenda esta posição.
[102] O artigo 61.º (Iniciativa privada, cooperativa e
autogestionária) da Constituição da República Portuguesa diz o seguinte:
1. A iniciativa
económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição
e pela lei e tendo em conta o interesse geral.
2. A
todos é reconhecido o direito à livre constituição de cooperativas, desde que
observados os princípios cooperativos.
3. As
cooperativas desenvolvem livremente as suas actividades no quadro da lei e
podem agrupar-se em uniões, federações e confederações e em outras formas de
organização legalmente previstas.
4. A lei
estabelece as especificidades organizativas das cooperativas com participação
pública.
5. É
reconhecido o direito de autogestão, nos termos da lei.
A “iniciativa económica
privada” mencionada no ponto 1 é um eufemismo para apropriação
privada dos meios sociais de produção/distribuição, a qual, para abreviar,
foi sempre designada como “privatização” ao
longo deste ensaio.
[103] Recentemente (Maio, Junho e Julho de 2021) os partidos portugueses com assento parlamentar votaram favoravelmente (ou deixaram passar, abstendo-se) disposições legais que atentam contra direitos, liberdades e garantias pessoais inscritos na Constituição da República Portuguesa (CRP) — designadamente a liberdade de expressão e de imprensa (artigos 37.º e 38.º da CRP) e a inviolabilidade do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada (artigo 34.º da CRP). É o caso do artigo 6º. da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (lei nº 27/21) que confere à ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) o poder de definir o que é verdade e o que é mentira, o que é informação e o que é desinformação. Esta Carta foi aprovada com os votos a favor do PS, PSD, BE, CDS-PP, PAN e das deputadas não inscritas Cristina Rodrigues (ex-PAN) e Joacine Katar Moreira (ex-Livre) e com as abstenções do PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal, sem votos contra. É também o caso da recente alteração ao artigo 17.º da Lei do Cibercrime (decreto n.º 167/XIV da Assembleia da República) aprovada pelo PS, PSD, BE e PAN, e a abstenção dos restantes partidos. Esta alteração visa facilitar o acesso do Ministério Público a mensagens de correio electrónico e a sua apreensão sem a autorização de um juiz de instrução, ao contrário do que acontece com a correspondência em papel. A mudança introduz, «restrições adicionais e não fundamentadas aos direitos, liberdades e garantias à inviolabilidade das comunicações e, reflexamente, à protecção de dados pessoais», viola «o artigo 179º do Código do Processo Penal», e representa «uma manifesta degradação do nível de protecção dos cidadão num domínio crítico da sua esfera privada como é o das comunicações», no entender da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), que deu parecer negativo (Parecer 2021/74). A Comissão de Protecção de Dados refere ainda na sua argumentação que as alterações contrariam «quer a Constituição, quer os compromissos internacionais do Estado português, sendo insondável a razão da sua inclusão na Lei do Cibercrime». Em particular, «a “indistinção” entre dados pessoais e dados não pessoais viola a Constituição, na medida em que esta contempla “não só uma esfera de protecção para a reserva da intimidade da vida privada, como melhor a concretiza no direito à inviolabilidade da correspondência», acrescenta a CNPD. Estes dois exemplos recentes mostram bem que não se pode atribuir aos partidos portugueses com assento parlamentar a qualidade de intransigentes defensores dos direitos, liberdades e garantias pessoais. Isso justifica a afirmação que fiz no corpo do artigo, a saber: nenhum destes partidos apoia a autonomia individual dos cidadãos na sua plenitude, mas apenas um módico, cujos limites, como se constata, estão sujeitos a grandes variações ao longo do tempo.
[104]
Em 18 de Setembro de
2020, o Chega apresentou um projecto de revisão da Constituição da República
Portuguesa (CRP), que propõe «a pena acessória de castração química ou, nalguns casos,
de castração físico-cirúrgica, para as condutas que configurem os crimes de
violação ou abuso sexual de crianças, abuso sexual de menores dependentes e
actos sexuais com adolescentes». Em 3 de Julho
de 2021, o Conselho Nacional do Chega aprovou a proposta de um «cadastro étnico-racial» — uma expressão usada
pelo próprio dirigente e deputado do Chega no primeiro dia de Conselho
Nacional. «O objectivo é que seja criado
um registo do Estado para a identificação das comunidades subsídio-dependentes,
onde estão localizadas, qual é a prevalência da subsidiodependência, qual é o
nível de subsidiodependência», em que se procure
compreender os «problemas de subsidiodependência», com informações de «natureza criminal ou comportamental» (Observador, 3 de Julho de
2021).
A primeira proposta do
Chega viola o Artigo 25.º da CRP (Direito à integridade pessoal) que diz
o seguinte:
1. A integridade moral e física das pessoas
é inviolável.
2. Ninguém pode ser submetido a tortura,
nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos.
e viola também o artigo
144.º do Código Penal (Ofensa à integridade física grave) que diz o
seguinte:
Quem ofender o corpo ou a saúde de outra
pessoa de forma a:
a) Privá-lo de importante órgão ou membro,
ou a desfigurá-lo grave e permanentemente;
b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira
grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou
de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a
linguagem;
c) Provocar-lhe doença particularmente
dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou
d) Provocar-lhe perigo para a vida;
é punido com pena de prisão de dois a dez
anos.
A segunda proposta do
Chega viola o Artigo 13.º (Princípio da igualdade) da CRP que diz o
seguinte:
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade
social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado,
beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer
dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem,
religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica,
condição social ou orientação sexual.
Estas propostas mostram que o Chega é inimigo de direitos, liberdades e garantias pessoais que estão inscritos na CRP, apesar das ocasionais declarações em contrário do seu deputado e dirigente máximo. Isso qualifica-o como um partido de direita liberticida.
[**] Em Maio de 2024, comprei e li um livrinho de Rui Tavares (fundador e deputado do partido Livre) cuja existência desconhecia até então, intitulado Esquerda e Direita: guia histórico para o século XXI (Edições Tinta da China, 1.ª edição 2015, reimpresso várias vezes). Este autor socorre-se do conceito de “ar de família” (de Wittgenstein) para caracterizar a esquerda e a direita. Como é um conceito elástico, Rui Tavares não tem dificuldade em propor uma teorização que não colide com a ideia que os partidos portugueses dão e projectam de si próprios.
[105] João Bernardo, “Sobre a esquerda e as esquerdas (1ª
parte)”. Passa Palavra, 27 de Abril de 2014, https://passa palavra.info/2014/04/93811/
[106] Incluo o Partido Livre (PL) nos partidos com assento
parlamentar porque elegeu uma deputada nas últimas eleições legislativas. O que
aconteceu foi que essa deputada rompeu com o partido depois de ter sido eleita.
A atitude ambivalente do PL em relação ao enunciado da 3ª crença está bem
patente nesta passagem do seu programa eleitoral para as últimas eleições
legislativas (2019): «Embora a acção governativa ou
estatal seja crucial na criação de uma economia mista, com três sectores
(privado, público e associativo/cooperativo), o nosso socialismo não é um
estatismo. No entanto, há sectores que devem ser públicos e geridos pelo Estado».
[107] A acreditar no testemunho de Zita Seabra, ex-dirigente do
PCP, no seu livro de memórias Foi Assim (Aletheia, 2007), o PEV foi uma criação do
PCP sugerida por Álvaro Cunhal, secretário-geral do PCP durante 31 anos. Convém
lembrar que o PEV sempre concorreu às eleições coligado com o PCP, na chamada
CDU, pelo que não se conhece o tamanho e a composição da sua base eleitoral de
apoio. Por isso, é interessante notar que o programa eleitoral do PEV para as
eleições legislativas de 2019 é completamente omisso sobre qualquer referência à 3ª crença que mencionei no corpo principal deste texto,
apesar de ela ser o traço distintivo mais forte do PCP, o seu parceiro de
coligação eleitoral. Eu, pelo menos, não encontrei nada nesse sentido. Isso
parece provar que o PEV foi construído para atrair um eleitorado bem distinto
do PCP. Nesse sentido, a tese de Paulo Portas, «o
PEV é um
bocadinho como a melancia: verde por fora e encarnado por dentro», não tem pernas para andar e subestima grandemente a
astúcia de Álvaro Cunhal.
[108] Esse “irritante” da direita – que é permanente e que se pode transformar em rancor em certas conjunturas – é fácil de explicar, sociologicamente. Desde o advento das sociedades anónimas (S.A.) no século XIX, especialmente sob a forma de sociedades por acções cotadas em Bolsa (mercado accionista), que a titularidade da propriedade privada e da gestão quotidiana dos meios sociais de produção-transporte-distribuição de bens e serviços (fábricas, estaleiros, minas, portos e aeroportos, caminhos-de-ferro, companhias de navegação marítima, companhias de transporte aéreo, hipermercados, etc.) se cindiram nitidamente. Essa cisão tomou a forma de uma diferenciação, cada vez mais marcada à medida que o tempo foi passando, de dois grupos distintos no seio da classe economicamente dominante: os investidores-capitalistas (detentores nominais do capital) das S.A, por um lado, e os gestores de topo das empresas propriedade dessas mesmas S.A, por outro. Com esta agravante: enquanto o grupo dos investidores-capitalistas propendeu a fragmentar-se e a polarizar-se numa miríade de pequenos accionistas, de um lado, e de grandes accionistas do outro (como resultado dos movimentos complementares de dispersão por muitas mãos e da centralização em poucas mãos das acções cotadas em Bolsa, incluindo aqui entidades suprapessoais como os chamados investidores institucionais [fundos de pensões, bancos, companhias de seguros, etc.]), o grupo dos gestores empresariais de topo foi-se concentrando, especializando e homogeneizando cada vez mais. Por conseguinte, a classe capitalista (à qual Karl Marx deu, um tanto anacronicamente, o nome de “burguesia” em homenagem aos seus antepassados da era do mercantilismo) compõe-se, de facto, de dois grupos de indivíduos (ou duas camadas ou duas fracções ou duas secções, ou duas classes, como se preferir) bem distintos: os proprietários do capital (que colectam os rendimentos [dividendos, lucros, juros, rendas] “gerados” pelos seus investimentos sem terem de se maçar com o modo de os fazerem frutificar e que, portanto, se convertem em capitalistas-rentistas) e os gestores de topo das empresas S.A. (incluindo bancos, fundos de pensões, etc.) onde está investido esse capital e que trabalham efectivamente para o fazerem frutificar. Isso não exclui, evidentemente, a sobreposição dos dois estatutos (investidor capitalista e gestor empresarial de topo) num certo número de indivíduos — como, por exemplo, nos casos de Jeff Bezos, na firma Amazon, e de Ellon Musk, nas firmas SpaceX e Tesla Inc, nos EUA. Mas o ponto principal a reter neste particular é a dissociação entre investidor-capitalista e gestor empresarial de topo como sendo a situação mais frequente das empresas S.A., sobretudo as mais poderosas. Mesmo Bezos e Musk, por exemplo, são apenas capitalistas (fundadores, mas não gestores empresariais de topo) de firmas como a Blue Origin LLC (no caso de Bezos) e a The Boring Company (no caso de Musk). Existe, por isso, uma tensão permanente entre estes dois grupos da classe capitalista, que têm mundivivências algo diferentes e cujos interesses materiais e morais nem sempre coincidem, sobretudo no curto prazo. Essa tensão atinge o auge no caso do sector empresarial do Estado, que descarta totalmente um dos grupos (o dos capitalistas-investidores), substituído pelo erário público, e entroniza como indispensável o segundo grupo (o dos gestores empresariais de topo). O carácter supérfluo dos investidores-capitalistas para o funcionamento das empresas torna-se, nesse caso, ainda mais evidente aos olhos do grande público. É, portanto, perfeitamente natural que os partidos de direita – que representam politicamente os interesses da classe economicamente dominante, e, em particular, a fracção dos detentores privados do capital – vejam com desconfiança e irritação qualquer medida tendente a proteger ou (pior ainda, a seus olhos) a aumentar o peso do sector empresarial do Estado. Pense-se, por exemplo, a este propósito, na hostilidade que todos eles manifestaram relativamente à recente renacionalização da companhia aérea TAP (Transportes Aéreos Portugueses). Os partidos de direita encaram a multiplicação de medidas desse tipo como um dobre a finados da classe que representam, como uma espécie de eutanásia involuntária da sua camada mais antiga (a dos investidores-capitalistas), em favor da sua camada mais moderna (a dos gestores empresariais de topo) — “os capitalistas do saber”, como lhes chamava Jan Waclaw Makhaïski. Há factos históricos que alimentam essa ideia, porque foi isso precisamente o que sucedeu na ex-União Soviética a partir do consulado estalinista (1928-1952) até à sua dissolução em 1991. Como o regime económico sui generis da ex-União Soviética foi fraudulentamente baptizado de “socialismo” pelos seus próceres a fim de se legitimarem aos olhos das classes trabalhadoras, tornou-se proverbial que a direita política ataque o enlevo que uma parte da esquerda governamental tem pelo sector empresarial do Estado e pelas “nacionalizações” que permitem constituí-lo ou aumentá-lo, acusando-a de querer instaurar o “socialismo”. Espero ter dito o suficiente para se compreender que o rótulo “socialismo” só seria aceitável, neste caso, se se acrescentasse: “socialismo dos gestores empresariais de topo”. Há, porém, uma “ética da terminologia” como nos ensinou Charles Sanders Peirce (1902). E é essa ética que nos compele a não misturar alhos (socialismo) com bugalhos (“comensalismo de gestores”). Pela minha parte, sugiro, como propôs George Orwell, “colectivismo oligárquico” como uma expressão adequada para denominar o regime económico da ex-União Soviética.
[109] João Batista Jr., “Sem clientes e boates vazias: o
coronavírus abala a prostituição de luxo. Endereços famosos em São Paulo sofrem
com movimento quase nulo diante da ameaça da nova doença”. Veja.
Publicado em 19 de Março de 2020. Actualizado em 10 de Dezembro de 2020. https://veja.abril.com.br/blog/veja-gente/sem-clientes-e-boates-vazias-o-coronavirus-abala-a-prostituicao-de-luxo/
[110] [nota acrescentada em 18.06.2024]. Não há vacinas 100% eficazes. Todas têm efeitos secundários indesejáveis, alguns dos quais podem ser muito gravosos ou letais. Estatisticamente falando, porém, o número de pacientes que reagiram mal às vacinas contra o coronavírus SARS-CoV-2 foi muito reduzido para todas as vacinas, incluindo a AstraZeneca, a que parece ter-se portado pior. Isto, apesar do curtíssimo tempo que foi empregue no desenvolvimento e teste destas vacinas. Um grande estudo mundial, que incluiu mais de 99 milhões de pessoas de vários países do mundo e que foi publicado na revista internacional Vaccine, identificou dois novos efeitos secundários, embora muito raros, de uma das vacinas (a AstraZeneca) contra a Covid-19: uma perturbação neurológica e uma inflamação da medula espinal.
«Os
investigadores identificaram um novo efeito secundário da vacina da
AstraZeneca, que utiliza um adenovírus (um tipo de vírus) modificado, que não
se replica no corpo humano, para transportar material genético que codifica a
proteína spike [espícula]d o coronavírus SARS-CoV-2: a encefalomielite
disseminada aguda (ADEM, na sigla inglesa). Esta é uma doença inflamatória do
sistema nervoso central que afeta principalmente o cérebro e a medula espinal.
Geralmente, é desencadeada por uma resposta imunológica anormal após infeções
virais ou vacinação, levando a sintomas como febre, dor de cabeça, confusão
mental e disfunção neurológica, e foi relacionada com a toma desta vacina pelos
investigadores.
Além deste
efeito secundário raro, que foi confirmado pela equipa – 0,78 casos por cada
milhão de doses – também foi identificado um novo efeito secundário raro,
conhecido como mielite transversa (1,82 casos por milhão de doses para esta
condição), uma condição médica em que ocorre inflamação na medula espinal,
afetando as fibras nervosas e interrompendo as comunicações entre a medula
espinhal e o resto do corpo.
Os
investigadores utilizaram dados anónimos da Global Vaccine Data Network, uma
rede internacional de investigação que testa a eficácia e segurança das
vacinas, para compararem a prevalência de 13 condições relativas ao cérebro, ao
sangue e também cardíacas em pessoas que tinham recebido as vacinas contra a
Covid-19 da Pfizer, Moderna ou AstraZeneca com a taxa que seria de esperar
dessas doenças na população antes da pandemia.
A partir desta
análise, os cientistas tiraram com grande exatidão algumas conclusões: além de
terem confirmado as ligações já conhecidas entre as vacinas de RNA mensageiro
(mRNA), da Pfizer e Moderna, e os efeitos secundários raros de miocardite,
inflamação do músculo cardíaco, frequentemente causada por infeções virais, e
pericardite, inflamação da membrana que envolve o coração, o pericárdio, também
confirmaram que a síndrome de Guillain-Barré, uma condição rara em que o
sistema imunológico ataca os nervos periféricos, causando fraqueza muscular,
por exemplo, é um efeito secundário raro associado à vacina da AstraZeneca.
Apesar disso,
Jim Buttery, um dos diretores da Global Vaccine Data Network, afirma que o
risco de miocardite é ainda maior com a infeção natural por Covid-19 do que
após a vacinação contra o vírus. Outra ligação desta vacina confirmada pelos
autores do estudo, ainda que rara, foi a existência de casos de trombose do
seio venoso cerebral (um tipo de coágulo sanguíneo no cérebro). Buttery explica
ainda que “no caso dos efeitos secundários raros”, só é possível ter
conhecimento deles “depois de a vacina ter sido utilizada em milhões de
pessoas”, o que explica que estes efeitos da vacina contra a Covid-19 só
estejam a ser identificados agora.
Apesar destes resultados, os cientistas ressalvam, mais uma vez, que os benefícios das vacinas contra a Covid-19 superam em larga escala os riscos dos efeitos secundários» (“Dois novos efeitos secundários muito raros ligados a vacina contra a Covid-19 identificados em grande estudo mundial”, Visão, 26.02.2024). Claro está, nada disto serve de consolação a quem teve o infortúnio de sofrer na carne os efeitos secundários mais gravosos dessas vacinas.
[110] Os excertos #1 e #2 foram extraídos da 1ª parte do artigo
de João Bernardo, “Sobre a esquerda e as esquerdas” e os excertos #3 e #4 da 4ª
parte do mesmo artigo, publicadas, respectivamente, em 27/04/2014 e 18/05/2014,
na revista electrónica Passa Palavra.
[111] Minha tradução de : «Le vrai désespoir ne naît pas devant une adversité obstinée, ni dans l’épuisement d’une lutte inégale. Il vient de ce qu’on ne connaît plus ses raisons de lutter et si, justement, il faut lutter. (Albert Camus. Actuelles : écrits politiques. Paris : Gallimard, 1997, p.14).
[112] Como salienta o artigo O que dizem os deputados ? «Os partidos são mais propícios a nomear ideologias opostas. Usam-nas como insultos, acusando os adversários de assumirem essa posição». A direita sabe perfeitamente que só há uma maneira de usar as palavras socialismo e comunismo como vitupérios e espantalhos assustadores e conseguir, mesmo assim, ser levada a sério por muita gente intelectualmente honesta, mas politica e historicamente muito ignorante. Consiste em identificá-las com o colectivismo oligárquico dos regimes de oligocracia despótica que vigoraram no século XX na ex-União Soviética e nos países europeus membros do ex-Pacto de Varsóvia. Julgo que essa identificação é errada e abusiva, pelas razões aduzidas na nota [108].