(Temas 2, 3 e 4)
“Esquerda”
e “Direita” trocadas por miúdos
do
ponto de vista da democracia (6ª parte)
— O
poder numa oligocracia electiva liberal
José Catarino Soares
15. A heteronomia do poder explícito
Os atenienses dos séculos V e IV a.C., assim como
os gregos de outras cidades da Hélade na mesma época, auto-instituíram uma
forma inédita de igualdade em relação ao poder explícito a que deram o nome de democracia.
15.1. Democracia parcial versus
democracia integral
A democracia ateniense era, porém, como vimos, uma democracia parcial, por várias razões, entre as quais as principais são as seguintes: 1ª) A cidadania estava completamente vedada às mulheres; 2ª) A cidadania estava praticamente vedada aos metecos (os estrangeiros domiciliados em Atenas); 3ª) A isonomia dos cidadãos (todos os quais eram adultos do sexo masculino) estava confinada ao âmbito do poder político; 4ª) Uma parte importante da economia ateniense dependia do trabalho de escravos (quase completamente desprovidos de direitos) — um modo de produção maximamente contrário à igualdade individual em relação ao poder económico.
Por outro lado, o movimento emancipador dos
trabalhadores assalariados que surgiu no segundo quartel do século XIX
instituiu uma forma inédita de igualdade em relação ao poder explícito, a que
deram o nome de cooperativas
de trabalho associado. Estas consistem, como vimos na 5ª parte deste ensaio, em
empresas onde vigora a mutualização dos meios de produção/distribuição de bens
e serviços, o seu compartilhamento pelos produtores que com eles operam.
As cooperativas de trabalho associado, carecem,
porém, como também tivemos ocasião de assinalar, de dimensão nacional
maioritária, por várias razões, entre as quais as principais são as seguintes:
1ª) muitos dos mais importantes ramos de actividade económica estão
praticamente vedados à mutualização, ao compartilhamento, dos meios de
produção/distribuição, por indigência financeira dos trabalhadores; 2ª) as cooperativas de trabalho associado são
forçadas a desenvolver a sua actividade num entorno institucional que lhes é
hostil, visto que foi moldado de acordo com os interesses das firmas
(sociedades comerciais) transnacionais oligopolistas ou oligopsonistas que nele
operam.
Mesmo assim, a democracia ateniense e o movimento
cooperativo dos trabalhadores assalariados oferecem-nos, conjuntamente, um
germe, uma base sólida para delinearmos uma antevisão dinâmica do que poderia
ser uma democracia (uma democracia integral, liberta dos severos cerceamentos da democracia ateniense), um regime que
garantisse a igualdade efectiva dos cidadãos relativamente às duas vertentes
principais do poder explícito: o poder político e o poder económico.
Antes, porém, de examinarmos com suficiente
pormenor em que consiste a democracia
integral (ou a democracia, ponto final) como forma de auto-instituição do poder explícito,
convém que examinemos com suficiente pormenor o que se designa corrente e erroneamente
como “democracia liberal” ou “democracia
representativa”. Como veremos, esta última é de facto, mal-grado o termo
“democracia” que emprega para se autodenominar, uma forma de heteroinstituição
do poder explícito.
15.2.
O poder político numa oligocracia electiva liberal
Comecemos pelo poder político, a vertente mais
óbvia do poder explícito.
Sabemos que o poder político abrange três funções: executiva (que é, de facto, governativa e não propriamente “executiva” nas oligocracias electivas), legislativa e jurisdicional.
A cada uma dessas funções corresponde um certo número de postos
permanentes de intervenção/responsabilização política a que podemos dar o nome
de magistraturas, chamando magistrados aos cidadãos que, num determinado
momento, os preenchem.
Nas oligocracias, os magistrados são recrutados ou
designados por cooptação, nomeação, concurso público (com avaliação
curricular), curso específico e/ou estágio de ingresso, ou (nas oligarquias
electivas e nas oligarquias electivas liberais), por todos estes métodos
acrescidos da eleição.
É assim que, por exemplo, em Portugal, o
Presidente da República e os deputados da Assembleia da República (o nome do
parlamento português) são eleitos pelo conjunto dos cidadãos portugueses. Os
autarcas são eleitos pelo conjunto dos cidadãos residentes no respectivo
concelho. O 1º ministro é nomeado pelo Presidente da República, tendo em conta
os resultados das eleições para o parlamento e depois de uma consultação feita
aos partidos com assento parlamentar. O 1º ministro propõe a nomeação dos
membros do governo. O 1º ministro deve, no prazo de dez dias após a sua
nomeação, apresentar o programa do seu governo à Assembleia da República e pode
pedir a sua confiança.
Os juízes dos tribunais judiciais, os juízes dos
tribunais administrativos e fiscais e os procuradores da república são
recrutados por concurso público entre juristas e nomeados (segundo a graduação
obtida no curso de Direito e num curso de formação profissional específica)
pelos respectivos Conselhos Superiores — Conselho Superior da Magistratura, Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais,
Conselho Superior do Ministério Público [68]. Constituem excepção os
juízes do Tribunal Constitucional, o Presidente do Tribunal de Contas e o
Procurador-Geral da República, cujo modo de designação é especificamente
regulado pela própria Constituição. O Tribunal Constitucional é composto por
treze juízes, sendo dez nomeados pela Assembleia da República e três cooptados
por esses dez. O Presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da
República são nomeados pelo Presidente da República sob proposta do Governo.
O Conselho Superior da Magistratura (CSM) é
composto por dois vogais nomeados pelo Presidente da República; sete vogais
eleitos pela Assembleia da República; e sete vogais eleitos pelos magistrados
judiciais. O
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (quarta figura na hierarquia do Estado)
é eleito pelos respectivos juízes e é, por inerência, o Presidente do Conselho
Superior da Magistratura.
O Conselho Superior dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (CSTAF) é composto por dois membros designados pelo
Presidente da República, quatro membros eleitos pela Assembleia da República;
quatro membros juízes eleitos pelos seus pares. O Presidente do Supremo
Tribunal Administrativo é eleito pelos respectivos juízes e é, por inerência, o
Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O
Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) é
composto por magistrados do Ministério Público por inerência (os
procuradores-gerais regionais); magistrados do Ministério Público eleitos de
entre e por cada uma das duas categorias de magistrados (1
procurador-geral-adjunto e 6 procuradores da República), cinco membros eleitos
pela Assembleia da República e dois membros designados pelo membro do governo
responsável pela área da justiça.
O Provedor de Justiça é nomeado pela Assembleia da
República. O vice-Procurador Geral da República é nomeado pelo Conselho
Superior do Ministério Público sob proposta do Procurador Geral da República.
Os dois vice-presidentes do Supremo Tribunal
Administrativo são eleitos de entre e pelos respectivos juízes. Os
vice-presidentes dos tribunais centrais administrativos são eleitos de entre os
juízes com a categoria de conselheiro que exerçam funções no tribunal. O
presidente de um conjunto de tribunais administrativos de círculo e tribunais
tributários de uma dada zona geográfica é nomeado pelo Conselho Superior dos
Tribunais Administrativos e Fiscais. O vice-Presidente do Tribunal de Contas é
eleito de entre e pelos respectivos juízes.
Os juízes conselheiros do Supremo Tribunal de
Justiça são recrutados mediante concurso público aberto a magistrados judiciais
e do Ministério Público e outros juristas de mérito. Os juízes conselheiros do
Supremo Tribunal Administrativo são recrutados mediante concurso público aberto
a juízes dos tribunais centrais administrativos com cinco anos de serviço
nesses tribunais; procuradores-gerais-adjuntos com cinco anos de serviço nessa
categoria, desde que tenham exercido funções durante dez anos na jurisdição
administrativa e fiscal, no Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República ou como auditores jurídicos; e juristas de reconhecido mérito com
pelo menos vinte anos de comprovada experiência profissional, na área do direito
público. Os juízes conselheiros do Tribunal de Contas são recrutados mediante
por concurso público. A promoção a procurador-geral-adjunto faz-se por concurso
público, restrito a procuradores da República com classificação de mérito.
Em todos os casos de eleição directa pelos
cidadãos, os mandatos dos magistrados têm a duração de quatro anos, salvo no
caso do Presidente da República, cujo mandato é de cinco anos.
A duração dos mandatos dos magistrados que são
nomeados pelos Conselhos Superiores (CSM, CSTAF e CSMP), pelo Presidente da
República e pela Assembleia da República ou que são eleitos pelos seus pares é
muito variável. O Procurador-Geral da República é nomeado por seis anos. O
Provedor de Justiça é nomeado por quatro anos (renovável por uma vez). O
mandato do presidente do Tribunal Constitucional tem a duração de quatro anos e
meio. Os juízes do Tribunal Constitucional têm um mandato de nove anos (não
renovável). O mandato do presidente do Supremo Tribunal de Justiça tem a
duração de cinco anos (não renovável). O mandato do Presidente do Tribunal de
Contas tem a duração de quatro anos. O mandato do presidente e dos vice-presidentes do
Supremo Tribunal Administrativo tem a duração de cinco anos (não renovável). O
mandato do presidente e vice-presidentes dos tribunais centrais administrativo
tem a duração de cinco anos. O mandato do presidente de um conjunto de
tribunais administrativos de círculo e tribunais tributários de uma dada zona
geográfica tem a duração de três anos. Os juízes dos tribunais judiciais, assim
como os juízes dos tribunais administrativos e fiscais, são nomeados com
carácter vitalício e com a garantia de inamovibilidade. Os magistrados do
ministério público gozam de garantias semelhantes, embora formuladas por meio
de um fraseado diferente [69].
Em suma, em Portugal e na maioria dos países da
União Europeia, no Reino Unido, nos países da Associação Europeia de Comércio
Livre (AECL ou EFTA na sigla inglesa), nos EUA, no Canadá, na Austrália e na
Nova Zelândia, o poder político baseia-se fundamentalmente na selecção de um
pequeno grupo de magistrados de nomeação vitalícia, ou então nomeados ou
eleitos por mandatos longos (3 a 9 anos), que concentram nas suas mãos, em
regime de oligopólio partidário, todo o poder governativo, legislativo e
jurisdicional.
15.3. Impropriedade dos termos
“democracia liberal” / “democracia representativa”
A esta forma de organização do poder político, ou,
se se preferir, a este tipo de regime político, baseado na heteronomia, dá-se
habitualmente (e impropriamente) os nomes de “democracia” liberal ou “democracia” representativa.
O qualificativo liberal é adequado, se for usado para salientar que esta forma de
poder político coexiste com o reconhecimento constitucional e legal de um vasto
acervo de liberdades, direitos e garantias da pessoa humana e do cidadão que
resultaram de séculos de lutas emancipadoras das classes oprimidas da população
(cf. 4ª parte deste ensaio, secção 11.2). Na verdade, a maioria dos indivíduos
confunde este acervo de liberdades, direitos e garantias com a democracia. Mas são coisas diferentes, como já
vimos (cf. 2ª parte deste ensaio, secção 8.5, e 3ª parte deste ensaio, secção
10) e como veremos mais adiante.
O qualificativo representativa também é adequado, se for empregado para salientar (o que raramente ou nunca é feito) o princípio que serve de justificação à eleição dos magistrados neste tipo de regime político: aliquid stat pro aliquo (aquilo que está por aqueloutro [para alguém sob algum aspecto ou capacidade]). Esta é a definição clássica, escolástica, de signo, ou da relação sígnica (ou signitiva ou semiótica), com o acrescento de Charles Sanders Peirce entre parênteses rectos [70]. “Este estar [por] é muito vasto, pode significar muita coisa: representar, caracterizar, fazer as vezes de, indicar” [71].
No caso de Portugal, os autarcas, os deputados da
Assembleia da República, e o Presidente da República baseiam a sua legitimidade
nas respectivas eleições. É através delas que esses magistrados são instituídos
como representantes dos cidadãos, como cidadãos especiais (alegadamente
superdotados no que respeita aos talentos políticos), que vão fazer as vezes
dos cidadãos comuns (alegadamente subdotados no que respeita aos talentos
políticos) em tudo o que diga respeito a legislar e governar. A relação entre os
cidadãos eleitos (em funções de magistrados) e os cidadãos eleitores é, de
facto, “representativa”, mas no sentido exclusivamente semiótico do termo:
aquilo [os eleitos] que está por aqueloutro [os eleitores] sob o ponto de vista
do poder político.
O princípio semiótico é uma necessidade da
linguagem idiomática, onde os signos servem para representar e exprimir o que,
de outro modo, seria inefável (viz. o pensamento humano). Entre a
linguagem idiomática e o pensamento humano, entre representante e representado,
há uma grande diferença, uma diferença abissal. Mas o mesmo não se pode dizer
do princípio semiótico da representação eleitoral. Nada separa ontologicamente,
materialmente, representantes e representados, eleitos e eleitores. A aplicação
do princípio semiótico que legitima as eleições só se justifica como a folha de
parra que cobre a concepção aristocrática, elitista, da actividade política,
segundo a qual esta deve estar reservada só para alguns cidadãos.
Daqui se segue que os regimes políticos fundados
na relação de representatividade semiótica de um grupo restrito de
magistrados eleitos, devem ser chamados oligocracias electivas.
«Oligocracia» (Gr. oligoi, “os poucos” + kratos, “poder”) porque uma camada social privilegiada bem definida e pouco numerosa,
que se auto-intitula amiúde de elite, domina economicamente a sociedade e, em grande medida,
também a dirige politicamente; «electiva» porque uma parte dessa camada é
eleita por sufrágio universal. Nos casos em que essas oligarquias electivas
coexistem com um acervo mais ou menos sólido e mais ou menos amplo de
liberdades, direitos, garantias jurisdicionais e instituições sociais dos
cidadãos eleitores que são o resultado e o sedimento de lutas emancipadoras
travadas durante séculos e que não terminaram, podemos chamar-lhes oligocracias electivas liberais (ou oligocracias liberais para abreviar) [72].
Há, porém, uma outra acepção de representativo/representativa que não é semiótica,
mas estatística e probabilística. A representatividade
estatística é a relação que existe entre um subconjunto reduzido de elementos
(“amostra”) e o conjunto do qual os elementos desse grupo foram extraídos
(“população”). Para que a amostra seja estatisticamente representativa (ou seja,
para que reflicta fielmente as propriedades da população), os seus elementos
devem ser seleccionados de forma aleatória – ou seja, por tiragem à sorte –
para terem a mesma probabilidade de serem incluídos na amostra. As amostras
seleccionadas de forma aleatória são, por isso, probabilísticas. É essa relação
de representatividade estatística, probabilística, que preside à escolha
dos magistrados em democracia.
15.4. O nosso irmão mais velho
zela por nós — e é por isso que precisa de estar sempre de olho em ti!
Os adeptos do capitalismo globalizado
contemporâneo não se cansam de cantar hossanas às suas pretensas virtudes: o
“Estado mínimo”, o “multilateralismo”, a “solução pacífica dos conflitos”, a
“liberdade de escolha”, a “transparência”. Esses encómios não têm fundamento. A
realidade é que o capitalismo, mesmo quando se apresenta sob a forma de
oligocracias electivas liberais, é profundamente estatista, belicista,
secretista e espião.
Basta um exemplo para o mostrar. Nos EUA, o país
capitalista mais poderoso do mundo e também o mais admirado e elogiado pelos
defensores do “Estado de direito democrático”, existem oficialmente 18 agências
estatais de ECVFCSI (espionagem/ ciberespionagem/vigilância furtiva/colecta
sigilosa de informações):
Office of Naval Intelligence (ONI), Coast Guard Intelligence (CGI), Bureau of Intelligence
and Research (BIR), Central
Intelligence Agency (CIA), Sixteenth Airforce (16 AF), National
Security Agency (NSA), Central Security Service (CSS), National
Reconnaissance Office (NRO), Defense Intelligence Agency (DIA),
Military Intelligence Corps (MIC), Office of Intelligence and
Counterintelligence (OICI), Marine Corps Intelligence (MCI), National
Geospatial-Intelligence Agency (NGA), Office of Terrorism and Financial
Intelligence (TFI), Intelligence
Branch (IB) [do FBI], Office of National Security Intelligence
(ONSI), Office of Intelligence and Analysis (I&A), Space Delta 7
(DEL 7), U.S. Army Intelligence and Security Command (INSCOM). [73]
Na realidade, essas 18 agências são apenas a ponta
do iceberg. Em 18 de Junho de 2011, numa entrevista que deu ao programa Frontline
da televisão pública americana PBS, a jornalista Dana Priest do Washington
Post, que investigou a fundo o submundo da ECVFCSI [74], resumiu assim a
comunidade dos espiões americanos: «ela emprega agora quase 1 milhão de pessoas em 1.900 firmas privadas e
1.100 organizações do Estado federal. Estes são edifícios gigantescos que
vieram para ficar».
Mais exactamente:
860.000 pessoas têm estatuto de agentes maximamente secretos neste país. Esse número é cerca de 2 vezes e meia o número de pessoas do distrito de Columbia [sede territorial da presidência dos EUA, de 14 dos 15 Departamentos Executivos Federais do governo federal (o equivalente aos ministérios em Portugal) e do congresso dos EUA, N.E]. E outras 1.900 firmas privadas também trabalham no nível de máximo secretismo. E há outras 1.100 organizações estatais federais que trabalham no nível de máximo secretismo. Se as pusermos todas num mapa, ficamos com 17.000 localizações, porque uma data de firmas e uma data de agências estatais têm múltiplos edifícios. Portanto, é um mundo bem gigantesco. [N.E= nota editorial]
Entrevistadora: Isso é em cidades
espalhadas por toda a América…
Certo. Esses 17.000 pontos estão espalhados pelo país inteiro, mas
aglomeram-se em certas áreas. A capital da América do Secretismo Máximo está
situada em redor da National Security Agency [NSA], que fica a cerca de 35 milhas de Washington, D.C.
O que descobrimos [por meio da nossa
investigação jornalística] depois
dos atentados de 11 de Setembro de 2001 [contra
as torres gémeas do World Trade Center em Nova Iorque] foi que as agências existentes cresceram
enormemente. Muitas delas duplicaram o seu tamanho e foram também criadas novas
agências, das grandes. Em 2002 havia 34 novas organizações a trabalhar no nível
de máximo secretismo, criadas para cuidar do contraterrorismo. Em 2003, eram
mais 39, em 2004, mais 30, em 2005, mais 34, e assim por diante. Todos os anos,
a partir do 11 de Setembro de 2001, foram criadas mais de duas dúzias, por
vezes três dúzias de organizações federais inteiramente novas, dedicadas ao
contraterrorismo. E a razão para isso, é que havia dinheiro para o fazer. Não
havia ninguém com responsabilidades que fôsse capaz de dizer: «Bom,
já é a 5ª vez que estamos a fazer isso». E a duplicação de esforços, duplicação inútil de esforços, foi um dos
maiores problemas que descobrimos com a nossa investigação.
Foi assim que eles [o Presidente dos EUA e
os membros do governo] nomearam o
Director dos Serviços Secretos [em Inglês burocrático, Director of National Intelligence,
DNI] para dirigir tudo. Essa pessoa tem a
responsabilidade de dirigir, mas não tem a autoridade para fazer nada que lhe
permita fazer isso. Por conseguinte, ele não pode realmente dizer a essas três
agências para se irem embora [julgo que Dana West se
refere aqui ao National Security Council (NSC), à Central
Intelligence Agency (CIA) e ao Joint Special Operations Command
(JSOC), de que falaremos mais adiante, N.E.]
Todavia, como em tudo o mais, o governo forçou a barra ao autorizar que
tanta gente fizesse análise [da informação
recolhida], muita dela sem muita experiência.
Todos os anos a comunidade analítica nas 16 agências de espionagem
[hoje em dia são 18, N.E] produzem cerca de 50.000 relatórios diferentes e o DNI disse: «Isto
é uma loucura. Ninguém lê esses relatórios todos. Vamos ver quais são aqueles
que podemos descartar e vamos juntar os melhores relatórios todos os dias.»
Assim, o que eles fizeram foi criar ainda mais um relatório chamado Intelligence
Today – é uma espécie de jornal – sintetizando o que se
presume ser o melhor de todos eles. Eu conversei com algumas pessoas [da comunidade dos espiões] sobre isso, e resposta delas foi a de revirar os olhos – “é mais um
relatório” – porque o que acontece é que os decisores políticos estão submersos
com tanta informação. Abram as suas caixas de correio electrónico e vêm isso, e
não há maneira de conseguirem absorver tudo aquilo. Portanto, o que tende a
acontecer é levantarem os braços para o céu, ligarem para informador da sua
agência encarregado de fazer resumos e dizerem-lhe, “Bom,
diga-me você o que é importante”. Quem é
que que quer ficar a saber o que dizem 50.000 relatórios que são produzidos
todos os anos?
Entrevistadora: Tem havido sempre
uma sede de informação… Mas desde o 11 de Setembro de 2011, essa sede
quadruplicou até atingir um nível de quê? Insanidade? Qual é a situação actual?
Estará fora de controlo?
Está fora de controlo. O volume de informação que chega todos os dias ao
governo dos EUA em sentido amplo está fora de controlo. Eles não podem dizer
“parem” porque poderia haver alguma coisa válida no meio dessa informação toda,
mas não vão conseguir encontrá-la porque há tanta informação a vasculhar [75]
15.5. «O ouvido que tudo ouve, o
olho que tudo vê, uma memória que não dorme nem faz pausas»
É preciso acrescentar, em abono da verdade, que
este problema do excesso de informação foi parcialmente resolvido pela
prioridade que a rede de ECVFCSI dos EUA passou a dar ao que a NSA designa por metadados. O sentinela do público Edward Snowden, ex-agente
da CIA e ex-agente da NSA, explica-nos muito bem o que são metadados.
O prefixo «meta», que regra geral é usado no sentido de «acima» ou
«além», é aqui usado no sentido de «a respeito de»: metadados são dados a
respeito de dados. São, para ser mais preciso, dados gerados por dados — um
conjunto de etiquetas ou marcadores que tornam os dados úteis. A maneira mais
directa de pensar em metadados é, porém, como «dados» de actividade, todos os
registos de todas as coisas que faz com que os seus aparelhos [telemóvel, computador, tablet, televisor] e todas as coisas que os seus aparelhos fazem
sozinhos. Veja um telefonema, por exemplo: os respectivos metadados podem
incluir a data e hora da chamada, a sua duração, o número do qual foi feita, o
número que foi chamado e a localização de ambos. Os metadados de um email
podem incluir o género de computador em que foi gerado, onde e quando, a quem
pertence o computador, quem enviou o email, quem o recebeu, onde e
quando foi enviado e recebido, e quem, se alguém além do remetente e do
recipiente lhe acedeu, e onde e quando. Os metadados podem dizer a quem o vigia
onde dormiu ontem á noite e a que horas se levantou esta manhã. Revela todos os
lugares que visitou durante o dia e quanto tempo passou em cada um deles.
Mostra com quem contactou e quem contactou consigo. […]
É por esta razão que é preferível não encarar os metadados como uma
espécie de abstracção benigna e sim como a essência mesma do conteúdo; são nada
menos do que a primeira linha de informação de que precisa quem possa estar a
vigiá-lo. E há mais uma coisa: o conteúdo é regra geral definido como um
produto consciente da nossa vontade. Sabemos o que dizemos num telefonema,
sabemos o que escrevemos num email. Mas não temos qualquer controlo
sobre os metadados que produzimos, porque a sua geração é automática. Tal como
são coligidos, armazenados e analisados por uma máquina, são feitos por uma
máquina, sem a sua [leitor] participação ou consentimento. E, ao contrário dos
outros seres humanos com quem comunica de sua livre vontade, os seus aparelhos
não retêm informação privada nem usam palavra de código numa tentativa de
descrição. Limitam-se a transmitir à torre de telemóveis mais próxima sinais
que nunca mentem [76].
Como se sabe, quando era agente da CIA e da NSA,
Edward Snowden veio a descobrir quase acidentalmente a existência do programa STELLAR WIND (Vento Solar), um programa
informático supersecreto da NSA de vigilância maciça dos cidadãos americanos. O
STLW, a abreviatura do seu nome de código, estava em
funcionar desde 2001, e destinava-se a vigiar todas as comunicações privadas
(via linhas telefónicas e internet) dos cidadãos americanos entre os EUA e o
estrangeiro.
Graças à coragem de alguns sentinelas públicos da
NSA e do Departamento de Justiça, o New York Times revelou, em 2005, as escutas
sem mandado do President’s Surveillance Program (PSP) e a American Civil
Liberties Union (ACLU) questionou a constitucionalidade do PSP. O presidente
George W. Bush afirmou então ter deixado o STWL
expirar. Mas a expiração provou ser uma farsa, como Snowden veio a descobrir
depois de ter entrado para a NSA, em 2009. Depois de ter ocupado, o cargo o
presidente Barak Obama rebaptizou e confirmou os programas relacionados com o
PSP, entre os quais o STWL, que continuou
secretamente a operar, tal como no tempo de Bush [77].
Ulteriormente, Snowden viria a descobrir a existência secreta de outros programas e dispositivos de vigilância maciça. Eis uma lista de alguns deles:
#
FOXACID, nome de código dos
servidores da NSA que albergavam versões malevolentes de websites normais;
# EGOTISTICALGIRAFFE, nome de código de um programa da NSA que tinha como objectivo
explorar uma vulnerabilidade de certos motores de busca da WEB que
corriam o Tor (uma vez que não conseguiam entrar no Tor propriamente dito);
# PRISM,
nome de código de um programa que permitia à NSA recolher rotineiramente dados
da Microsoft, da Yahoo!, do Google, do Facebook, da Paltalk, do Youtube, do
Skype, do AOL e da Apple, incluindo correio electrónico, conversas vídeo e
áudio, navegação na internet, pesquisa por motores de busca e todos os outros
dados armazenados nas respectivas nuvens, transformando essas empresas em
cúmplices conscientes e voluntários;
# UPSTREAM COLLECTION, nome de código de um programa ainda mais invasivo do que o PRISM, que permitia a captura directa de dados das
firmas do sector privado da infra-estrutura da internet, com a colaboração das
próprias firmas — os interruptores e roteadores que encaminham o tráfego da
internet por todo o mundo, via satélites em órbita e dos cabos de fibra óptica
de grande capacidade que correm pelo fundo do oceano.
Juntos o PRISM
e o UPSTREAM COLLECTION garantiam que a
informação mundial, tanto em trânsito como armazenada, podia ser vigiada.
# OPTICNERVE, nome de código de um
programa do Government Communications Headquarters (GCHQ), o parceiro britânico
da NSA, que, a cada cinco minutos, guardava uma fotografia das câmaras das
pessoas que estivessem em videoconferência em plataformas como a Yahoo
Messenger.
# PHOTONTORPEDO, nome de código de um programa que apanhava os endereços IP
dos utilizadores do MSN (um portal de notícias da Microsoft);
# XKEYSCORE, nome de código de um programa que funciona com uma espécie
de motor de busca que permite a um analista-espião vasculhar todos os registos
da vida de qualquer pessoa — o seu correio electrónico, as suas contas de
banco, os seus registos de saúde, as suas conversas privadas, os seus ficheiros
privados, tudo.
Edward Snowden descobriu que o XKEYSCORE, continha as comunicações de toda a gente,
incluindo chefes de Estado e primeiros-ministros do mundo inteiro (como Ângela
Merkel, chanceler da Alemanha, por exemplo [78]).
Foi, para dizer tudo, a coisa mais parecida com ficção científica que alguma vez tinha visto na realidade científica: uma interface que permite teclar a morada, o número de telefone ou o endereço IP de quase qualquer pessoa e rever a história recente da actividade online [na internet] dessa pessoa. Em alguns casos, era até possível passar gravações das suas sessões online [na internet], de modo que o ecrã para que estávamos a olhar era o ecrã dela, fosse o que fosse que estivesse no desktop [computador de secretária]. Podíamos ler os emails [mensagens de correio electrónico], ver o histórico de navegação, o histórico de pesquisa, o que publicava das redes sociais, tudo [79].
Em suma, a rede de ECVFCSI dos EUA, e em especial
a NSA, é a encarnação perfeita do Irmão-Mais-Velho [Big Brother] do romance
Mil
Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell. É «o ouvido que tudo ouve, o olho que tudo vê, uma memória que não dorme
nem faz pausas»,
na excelente caracterização de Edward Snowden.
Sede da National Security Agency (NSA) em Fort_Meade, Maryland, EUA. A NSA é «o ouvido que tudo ouve, o olho que tudo vê, uma memória que não dorme nem faz pausas» |
15.6. Assassínios selectivos
(incluindo de cidadãos americanos) e drones
A rede de ECVFCSI dos EUA não é só um instrumento
orwelliano de vigilância opressiva; é também uma ferramenta indispensável de
uma campanha permanente de assassinatos selectivos conduzida secretamente.
Embora datado, o relato de Dana Priest e William M. Arkin, os dois melhores
estudiosos da rede ECVFCSI dos EUA, não deixa margem para dúvidas.
Os homicídios com alvos específicos – os críticos chamam-lhes
assassinatos – têm sido conduzidos pelo governo dos EUA há uma década e os
drones têm desempenhado um grande papel na continuação e intensidade de tais
ataques. Drones armados ditos predadores e ceifadores tornaram-se armas de
eleição para matar individualmente chefes terroristas em países estrangeiros. O
êxito de aeronaves armadas sem tripulação [UAVs
no acrónimo inglês] criou uma procura em todos os ramos das Forças Armadas e da CIA de
tantos UAVs quantos o seu fabricante – a firma General Atomics, sediada na
Califórnia – conseguisse produzir. Também promoveu um desenvolvimento e uma
produção frenética dentro do nicho industrial dos fabricantes que estavam a
produzir experimentalmente outros tipos
de aeronaves sem tripulação, e dentro do grupo muito maior das firmas de
material bélico contratadas pelo Estado cuja tecnologia é usada para
monitorizar as imagens de vigilância recolhidas pelos drones e para controlar a
informação sobre os seus alvos em qualquer parte do mundo – desde o campo de
batalha até ao santuário dos inimigos – em poucos segundos.
O número de drones no arsenal dos EUA aumentou de 60 para mais de 6.000
desde o 11 de Setembro de 2001 [até 2011]. O financiamento [estatal-federal] de projectos e actividades relacionadas com
drones era de 350 milhões de dólares em 2001, quando o primeiro drone predador
da CIA foi lançado de uma caravana que tinha sido usada como centro ambulatório
de saúde e fez um voo até ao quartel-general da CIA. Em dez anos, a despesa com
drones subiu em flecha para 4.100 milhões de dólares, e há mais de vinte tipos
de UAVs no arsenal do Estado. A maioria dos drones são usados para a
vigilância. Alguns drones experimentais são tão pequenos como uma libélula e
apresentam-se disfarçados como se fossem de facto libélulas.
Na guerra dos drones, as agências de segurança nacional têm mantidos
pelo menos três “listas de indivíduos a matar” separadas, explicaram-nos
diversas fontes. O National Security Council (NSC) faz uma dessas listas, que é
semanalmente revista em reuniões em que participam o presidente e o
vice-presidente [dos EUA].
Outra dessas listas é a da CIA, que não tem contributos nem do NSC, nem do
Defense Department [o equivalente a
Ministério da Defesa na gíria política europeia]. Uma terceira lista é a dos militares, mas essa é de facto
não uma, mas várias listas, visto que as tropas especiais clandestinas e o Joint
Special Operations Command (JSOC) também têm as suas próprias listas. Alguns
suspeitos terroristas estão em múltiplas listas. Mas mesmo estas listas de
matança altamente secretas não eram [pelo
menos em 2011]
coordenadas entre as três principais agências
envolvida na sua criação. Cada grupo tinha os seus próprios advogados a tratar
das questões legais. Os militares e a CIA tinham os seus próprios grupos de
especialistas na definição dos alvos a destruir que se ocupam em determinar o
momento e a localização do respectivo ataque. Cada grupo tinha os seus próprios
pilotos, centros de comando, orçamentos, logística de longo prazo e lista de
pessoas a contratar para manter a sua própria esquadrilha de UAVs [80].
Os assassinatos selectivos por meio de drones são
justificados pelos seus mandantes com o argumento da ameaça terrorista externa,
especialmente a ameaça dos movimentos da chamada “jihad global” (Daesh,
Al-Qaeda, Al-Shabab, etc.), oriunda de países com populações maioritariamente
muçulmanas. Foi também essa a razão invocada pelo Presidente Donald Trump, em
2017, para proibir a entrada nos EUA de naturais do Iémen, Iraque, Líbia,
Síria, Somália, Sudão e Irão. Mas este argumento não colhe.
Desde os atentados de 11 de Setembro de 2001 até à
ordem de Trump, 12 pessoas estiveram por trás de atentados jihadistas nos
Estados Unidos que fizeram vítimas, num total de 94 mortos. Mas nenhum dos
atacantes nasceu ou imigrou de um dos sete países incluídos na ordem de Donald
J. Trump. Os
12 terroristas dos tais ataques pós-Setembro de 2001 eram todos americanos ou
residentes legais nos EUA [81]. Logicamente, os
assassinatos selectivos por meio de drones deveriam então, para serem eficazes
como pretendem os seus mandantes, passar a ser dirigidos aos cidadãos
americanos suspeitos de terrorismo, incluindo os residentes nos EUA.
Não se trata de uma hipótese académica, mas de uma
prática já estabelecida, pelo menos em parte. Numa carta enviada ao Congresso
dos EUA em Maio de 2013, durante a presidência de Barak Obama, o
procurador-geral Eric Holder nomeou quatro cidadãos americanos deliberadamente
assassinados no
decurso de operações de contraterrorismo realizadas no Iémene e Paquistão,
países onde os EUA realizam regularmente ataques com drones. Desse grupo fazia parte o imã Anwar
al-Awlaki, assassinado em 2011. Este clérigo muçulmano tinha dupla nacionalidade,
norte-americana e iemenita, e era descrito pela televisão Al Arabiya como o Bin
Laden da Internet, meio que usaria para recrutar novos talentos terroristas. Os
outros três cidadãos mortos eram o sobrinho de Awlaki, Abdulrahman, Samir Khan,
um americano de origem paquistanesa, e Jude Kenan Mohammed, acusado da prática
de terrorismo em 2009 [82].
15.7. As bases militares dos EUA são legião
A Organização das Nações Unidas (ONU) agrega 193
Estados, a quase totalidade dos que existem sobre a Terra. Contudo, maior do
que o número de países do mundo é o número de bases militares norte-americanas
instaladas fora do seu território. Segundo o SIPER (Swiss Institute For Peace
and Energy Research), os EUA possuem 601 bases militares fora do seu
território: 587 bases em 42 outros países e 114 bases em territórios
ultramarinos dos EUA — além de 4.154 bases no seu próprio território. Mais recentemente, ficámos a saber, através do Quincy Institute for Responsible Statecraft, que os EUA têm cerca de 750 bases militares espalhadas por 80 países e outros territórios [83].
Na América Latina e nas Caraíbas, onde existem apenas 33 países, os Estados Unidos dispõem, segundo o SIPER, de 76 bases militares. Entre as mais conhecidas, 12 estão no Panamá, 12 em Porto Rico, 9 na Colômbia, 8 no Peru, e entre as maiores 1 está em Cuba, 1 nas Honduras, 1 em Porto Rico e outra em Aruba. Na América Latina, é mais fácil listar os países onde as forças armadas dos EUA não estão presentes: Belize, Nicarágua e Costa Rica na América Central; Venezuela, Guiana, Suriname, Bolívia, Paraguai e Uruguai na América do Sul; Jamaica, Haiti e República Dominicana (e a maioria das nações insulares da região) no Caribe. Os Estados Unidos têm um ramo das suas Forças Armadas sempre pronto a intervir na América Latina, considerada sua coutada exclusiva, desde a adopção da doutrina Monroe em 1823. Trata-se do United States Southern Comand ou Southcom ou Comando do Sul, com sede em Miami e com forças em território norte-americano, mas também com dezenas de pontos de apoio e bases no exterior, algumas assumidas, outras de carácter reservado e algumas mesmo secretas [84].
A azul estão representados os países onde os EUA têm bases militares. Os dados são de 2017. Fonte: Swiss Institute For Peace and Energy Research (SIPER) |
Na África, os militares americanos estão presentes
em todo o norte, de Marrocos ao Egipto (e incluindo a Líbia); em algumas nações
da África Ocidental, incluindo Burkina Faso e Níger; e na África do Sul, no
Zimbábue e no Malawi. Presença militar conspícua dos EUA: o aglomerado de
países no Corno da África, desde a Somália até o Sudão do Sul devastado pela
guerra. Ausência conspícua: África central.
Na Europa, os EUA têm bases militares na Alemanha,
Itália, Reino Unido, Espanha, Polónia e Portugal (Açores), entre outros países.
Na verdade, tal como para a América Latina, é mais fácil e instrutivo listar os
países sem presença militar americana: Irlanda, Suíça, Áustria, Suécia,
Finlândia, Sérvia – os países fora da OTAN (ou NATO no acrónimo inglês) – e o
Montenegro (um membro recente [2017] da OTAN). E, claro, a Rússia e a Bielorrússia. Há algumas décadas isso teria
parecido fantasista, mas agora há tropas americanas na Ucrânia, Geórgia,
Arménia e Albânia.
O quartel-general das Forças Armadas dos EUA na
Europa está sediado na guarnição de Wiesbaden, próximo de Frankfurt, no
centro-oeste da Alemanha. A Alemanha abriga também cinco das sete guarnições das
tropas americanas na Europa, cada uma das quais englobando várias bases em
locais diferentes, que abrangem actualmente cerca de 29 mil militares. As
outras duas guarnições estão na Bélgica e na Itália. Na Ásia as maiores bases militares estão no
Japão e na Coreia do Sul [85].
As bases militares externas e os navios de guerra e submarinos americanos que sulcam os oceanos do planeta abrigam cerca de 200.000 militares. Com este enorme poderio, os Estados Unidos são hoje a única potência militar com um alcance verdadeiramente global, capaz de travar guerras, promover mudanças de regime, invadir e ocupar países e territórios em qualquer ponto do planeta. Desde 1948 até à data os EUA já fizeram 342 intervenções militares ! [86].
15.8. O lema orwelliano da OTAN e do seu mentor e comandante em chefe
Quanto à OTAN (ou NATO no acrónimo inglês), é como se sabe, uma criatura dos EUA, dominada pelo Pentágono (alcunha doméstica do ministério da guerra dos EUA).
De 1949 (data da sua criação), a 1991 (data da
implosão da União Soviética), a OTAN foi uma aliança militar alegadamente
defensiva contra a alegada ameaça que constituiriam as tropas do Pacto de
Varsóvia, uma aliança militar entre a União Soviética e os países seus
satélites na Europa de Leste. Esta justificação não colhe, porque o Pacto de
Varsóvia foi formado em 1955, alegadamente como aliança militar defensiva
contra a alegada ameaça que constituía a OTAN (fundada 6 anos antes).
Soldado polaco das tropas da OTAN (Organização de Tratado do Atlântico Norte) |
Seja como for, a OTAN não atacou nem bombardeou
nenhum país do Pacto de Varsóvia ou outro qualquer país durante esse período,
apelidado de “guerra fria”. Nesse sentido, os seus defensores podem afirmar que
a OTAN fez jus ao qualificativo de aliança “defensiva” durantes esses anos. Mas
passou a ser uma aliança ofensiva depois do derrube do muro de Berlim (1989),
da dissolução do Pacto de Varsóvia (1991) e da implosão da União Soviética
(1991) até aos nossos dias.
Ou seja, quando o inimigo oficial da OTAN se evaporou e desapareceu com ele a alegada ameaça que lhe servia de justificação, quando a OTAN deveria, por conseguinte, ter-se dissolvido por ter perdido a sua autoproclamada razão de existência, foi precisamente quando a OTAN achou que poderia alargar-se (agrupava 11 países satélites dos EUA em 1949, entre os quais o Portugal de Salazar, hoje são 30) e passar a actuar como uma aliança ofensiva.
Começou por bombardear a Bósnia em 1995 e a Sérvia em 1999; em 2003 atacou e invadiu o Iraque; em 2011 atacou e invadiu o Afeganistão; também em 2011 bombardeou a Líbia. De 2014 a 2018, interveio continuamente na Síria, primeiro contra o Daesh e em seguida para derrubar Bashar al-Assad. Parafraseando Orwell, eu diria que a OTAN usou durante muito tempo uma máscara, à qual o seu rosto acabou por se moldar [87] — a máscara pacifista de um potentado belicista.
Em suma, o lema da OTAN e dos EUA, o seu mentor e
comandante em chefe, parece ter saído directamente das páginas do romance Mil
Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell: “A Paz é o estado de prontidão para fazer a
guerra — e é por isso que nos armamos até aos dentes e atacamos antes de sermos
atacados!”
15.9. A imprensa é honesta ou
desonesta?
Esta foi uma pergunta que George Orwell fez a si
próprio, em 1941, pensando na imprensa inglesa. E respondeu-lhe assim:
Em tempos normais é profundamente desonesta. Todos os jornais que contam
vivem da publicidade que conseguem angariar, e os anunciantes exercem uma
censura indirecta nas notícias. No entanto julgo que não existe nenhum jornal
na Inglaterra que possa ser subornado com dinheiro vivo [88].
Entretanto, a situação piorou muito neste aspecto,
porque agora há o jornalismo digital, onde a publicidade vale ouro, tal como na
televisão. A influência dos anunciantes sobre os conteúdos jornalísticos
cresceu exponencialmente com o jornalismo digital. Actualmente são os
jornalistas que se esforçam por escrever só o que agrada aos anunciantes,
sobretudo sob a modalidade do branded content — ou seja, o conteúdo
patrocinado por uma “marca” (um produto de prestígio) e produzido expressamente
para ir ao encontro dos seus desejos. A mim parece-me que o branded content
é um bom exemplo do que é «ser
subornado com dinheiro vivo».
Seja como for, o branded content é apenas uma das modalidades
através das quais os anunciantes controlam os conteúdos dos órgãos de
comunicação social, incluindo os jornais. Todas essas modalidades fazem parte,
por exemplo, do “modelo de negócio” do jornal digital Observador.
Uma vez que o acesso aos conteúdos não é pago, a publicidade é a
principal fonte de rendimento do diário. Segundo os Termos e Condições
presentes no website, são três as formas de relação com patrocinadores (Observador,
s.d.2). Para além da publicidade “tradicional”, desenvolvida externamente,
existe ainda: o “conteúdo trazido por”, que consiste em conteúdo patrocinado
produzido pelo anunciante; o “conteúdo apoiado por”, que engloba conteúdos
produzidos de forma independente pelo jornal, viabilizados por anunciantes
institucionais; e o “conteúdo patrocinado”, que é editorialmente independente,
mas cujo patrocínio vai ao encontro da abordagem prevista, ou seja, o
anunciante propõe a exploração de um determinado tema, mas a produção dos
conteúdos depende exclusivamente do Observador.
Mais recentemente, em Junho de 2016, a área de branded content
passou a funcionar sob a marca OBS Lab. Branded content pode ser
literalmente traduzido como “conteúdo de marca”, cuja definição corresponde ao
“conteúdo patrocinado” que descrevemos acima, i.e., a produção de conteúdo de
acordo com briefing [instruções orais] do anunciante. Nestes casos, o anunciante não tem intervenção no
conteúdo, mas o mesmo é-lhe apresentado previamente à sua publicação, “por
uma questão ética da nossa parte, e de conforto para o anunciante” (Directora comercial em entrevista a
04-11-2016). O branded content pode ser apresentado sob a forma de
texto, vídeo, fotogaleria, infografia, mas também pode surgir noutros formatos
como seminários online (webinars) ou conferências. Este serviço é
apresentado no website nos seguintes moldes: “Fazendo
jus ao compromisso de rigor e qualidade que tem vindo a pautar o Observador, o
OBS Lab será o palco perfeito para as marcas contarem a sua história de forma
mais completa e indelével, fazendo chegar o melhor do seu conteúdo aos leitores” (Observador, s.d.3). Noutro local lê-se:
“Damos
voz às marcas. Contamos histórias. Criamos experiências. Fazemos a diferença
através do conteúdo que produzimos nos mais diversos formatos e que fazemos
chegar ao leitor com alto impacto e envolvimento” (Observador, s.d.4). Todos os conteúdos sob a
chancela OBS Lab estão devidamente assinalados, com a referência “conteúdo
patrocinado por” e com a marca correspondente junto do(s) autor(es), na grelha
estão identificados a cinzento, e depois de estarem na homepage são incluídos
nas secções correspondentes. Até ao final de 2016, apenas uma campanha foi
incluída como “conteúdo apoiado por”. Tratou-se de uma campanha encomendada
pela seguradora Fidelidade, intitulada “Para que a vida não
pare” e desenvolvida por uma das cronistas do jornal,
Laurinda Alves. Para além de vários conteúdos apresentados no website, a
campanha contou ainda com a organização de uma conferência sobre a temática (Observador,
s.d.5).
O branded content reflecte uma das estratégias actuais dos órgãos
de comunicação em que os conteúdos pagos reflectem uma certa “hibridização”,
como refere Joaquim Fidalgo, “de modo a que mensagens tipicamente
destinadas a favorecer interesses comerciais apareçam aos olhos do público com
as marcas de credibilidade e desinteresse que caracterizam [...] as mensagens
jornalísticas” (Fidalgo, 2016, p. 45).
Apesar de colocados lado a lado com notícias comuns, não são os jornalistas da
equipa do jornal, mas sim freelancers que produzem conteúdos para o OBS Lab. [89]
A classe dos proprietários capitalistas e dos
gestores das sociedades comerciais (incluindo os bancos [90]) que domina toda a
actividade económica nos países onde vigoram regimes (republicanos ou
monárquicos) de oligocracia electiva liberal, dispõe de outros meios poderosos
para influenciar a opinião pública num sentido que seja favorável aos seus
interesses. Os mais subtis foram descritos por Edward S. Herman e Noam Chomsky
em Manufacturing
Consent: A propaganda model (Pantheon Books, 1988) e por Noam Chomsky em Necessary
Illusions: Thought Control in Democratic Societies (South End Press, Pluto
Press,1989).
Mas há outros meios de influenciar a opinião pública igualmente (se não mais) subtis, como, por exemplo, a constituição de fundações neo-filantrópicas [91] que financiam certos laboratórios de ideias (Ingl. think tanks) e não outros; que criam vastos programas de bolsas de estudo destinados a professores, doutorandos e pós-doutorados em certas áreas e não noutras; que favorecem com as suas generosas doações certas linhas de investigação e não outras; que promovem e divulgam certos estudos e não outros [92]. E há também algumas maneiras bastante óbvias de levar a água ao seu moinho, como a compra de espaço publicitário nos jornais e revistas (com e sem suborno dos jornalistas), sucintamente descrita mais acima; a criação de agências de meios publicitários; e a própria compra de jornais e revistas de grande circulação (em papel impresso ou digitais), de estações de rádio e televisão.
Por exemplo, em Portugal, o maior grupo de
imprensa é a sociedade comercial Cofina SPGS, presidida por Paulo Fernandes. A
Cofina SPGS é proprietária de diversas publicações, desde jornais diários
(Correio da Manhã, Record, Jornal de Negócios e Destak) a revistas (Sábado e TV
Guia), de uma estação de televisão (CMTV), além de projectos exclusivamente online
como Aquela Máquina e Flash.
O grupo Impresa, presidido por Francisco Pinto
Balsemão, detém oito canais de televisão (SIC, SIC Caras, SIC Internacional,
SIC K, SIC Mulher, SIC Notícias, SIC Radical e DStv – estação emitida apenas em
África), o jornal Expresso e as publicações Blitz e Volante. A Impresa é também
accionista da agência de notícias Lusa, na qual tem uma participação de 22,35%.
O Grupo Global Media, do qual se desconhecem os
accionistas (porquanto não está cotado em Bolsa) detém dois jornais regionais
(Açoriano Oriental e Diário de Notícias da Madeira) e sete jornais e publicações
nacionais (Jornal de Notícias, Diário de Notícias, O Jogo, Dinheiro Vivo,
Delas, Evasões e Volta ao Mundo). A Global Media detém ainda a Rádio Notícias
que, através de várias frequências, emite a rádio TSF Press. O grupo é ainda o
maior accionista privado da agência Lusa, em que detém uma participação de
23,36%.
O Grupo Sonaecom, que é controlado em quase 90%
por empresas do universo Sonae, da família Azevedo, é o único accionista da
Público- Comunicação Social, que detém o jornal diário Público, além de 50% da
Sociedade Independente de Radiodifusão Sonora (SIRS), a empresa que controla a
Rádio Nova (os restantes 50% são detidos, em partes iguais, pelos empresários
Álvaro Covões e Luís Montez) e 1,38% da agência Lusa.
Luís Amaral, o dono do grupo polaco Eurocash (empresa
de distribuição que actua em mercados como o de bens alimentares) é o maior
accionista da empresa Observador On Time, que controla mais de 45,6% do jornal
Observador. Uma rádio online e com frequências para emitir nas zonas urbanas de
Lisboa e do Porto é o novo projecto da Observador On Time.
A empresa espanhola Promotora de Informaciones
(Prisa), através da Vertix, detém 94,69% da Media Capital (o também espanhol
ABanca é dono de 5,05% das acções), um dos maiores grupos de comunicação social
portugueses. A Media Capital detém, a 100%, seis canais de televisão, dos quais
o destaque vai para a TVI, que emite em sinal aberto. Na televisão por cabo, o
grupo conta com a TVI 24, TVI Ficção e TVI Reality, enquanto a nível
internacional a aposta passa pela TVI África e TVI Internacional. A nível editorial, e depois da venda em 2013
dos seus últimos títulos em papel (Lux, Lux Woman e Revista de Vinhos), o
projecto editorial com mais notoriedade é a página online do Mais
Futebol. O grupo é também um dos maiores operadores de rádio em Portugal,
controlando, a 100%, cerca de 20 empresas detentoras de licenças de emissão
radiofónica. As frequências controladas por estas instituições estão ao serviço
das diversas emissoras do grupo: Rádio Comercial, M80, Cidade FM, Smooth FM e
Vodafone FM.
Com 16,6% de capital, António Mota é o maior
accionista da Swipe News, a empresa que detém o jornal online ECO. A estrutura
accionista deste projecto é constituída por várias empresas e investidores que,
em conjunto, controlam mais de 55% da Swipe News.
Segundo a ERC, Mário Arga e Lima é o accionista
dominante da Sociedade Vicra Desportiva, a proprietária do jornal desportivo A
Bola, assim como do canal com o mesmo nome detido pela Vicra Comunicações. O
grupo controla ainda a revista de automóveis Autofoco.
Joaquim Oliveira é o principal accionista da
Olivedesportos, a que pertence a Sport TV, o primeiro canal premium português.
Esta empresa de canais de desporto possui oito estações, dos quais duas em
exclusivo para África. As operadoras de telecomunicações MEO, NOS e Vodafone
detêm, cada uma, uma fatia de 25% da Sport TV. Além dos canais em sinal
fechado, o grupo lançou há dois anos a Sport TV +, a sua primeira experiência
de um canal sem custos acrescidos para o consumidor [93].
15.10. Base económica das
oligocracias electivas liberais
Já
descrevi de modo suficiente a base económica dos regimes de oligocracia electiva
e liberal na 4ª parte deste ensaio (secções 11.3 e 11.4) e na 5ª parte (secção 13), razão pela
qual não me alongarei mais sobre o assunto.
……………………………………………………………………........................
N.B. Este ensaio está dividido em 8 partes, sendo
esta a sexta:
1ª parte. Os critérios e os conceitos principais
2ª parte. Um excurso sobre o poder explícito
3ª parte. A igualdade em relação ao poder político
4ª
parte. A desigualdade em
relação ao poder explícito
5ª parte. A igualdade em relação ao poder
económico
(6ª parte. O poder explícito numa
oligocracia electiva liberal)
7ª parte. O poder explícito numa democracia
8ª parte. A esquerda acomodatícia
que podem ser encontradas, por esta ordem, no Arquivo do Blogue, 2021, Agosto,
no fim da coluna da direita do blogue.
…………………………………………………………
Notas
[68] Estes Conselhos Superiores são órgãos
colegiais de gestão e disciplina dos juízes e dos procuradores da república de
Portugal. Não são, por isso, órgão jurisdicionais (não são tribunais), mas antes
órgãos administrativos. No entanto, dadas as suas funções, tem inegavelmente um
peso político específico na actividade dos tribunais.
[69] Artigo 99º do estatuto do Ministério
Público: «Artigo 99.º Estabilidade. Os magistrados
do Ministério Público não podem ser transferidos, suspensos, promovidos,
aposentados ou reformados, demitidos ou, por qualquer forma, mudados de
situação a não ser nos casos previstos no presente Estatuto» (Lei n.º
68/2019, de 27 de Agosto; Diário da República 1ª série, nº163 de 27 de
Agosto de 2021).
[70] Charles Sanders Peirce (1897), citado
por Umberto Eco, “O Signo”, in Enciclopédia Einaudi, Vol. 31 (O Signo),
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 11-51. No Tratado do
Signo, [Tratactus de Signis] escrito pelo dominicano português
João de São Tomás em 1637, a formulação aliquid stat pro aliquo, surge
assim definida: «aquilo que representa à potência
cognitiva alguma coisa diferente de si». O signo é: “aquilo [aliquid] que
está por [stat pro] aqueloutro
[aliquo]”, ao que J. de S. Tomás acrescenta (antecipando Peirce) “à
potência cognitiva”. O conceito de potência cognitiva é aristotélico.
[71] António Fidalgo e Anabela Gradim, Manual de Semiótica
(Universidade da Beira Litoral, 2004/2005), p. 12.
[72] Estes termos foram propostos
por Cornelius Castoriadis. Ver,
por exemplo, Une société à la dérive (Paris : Éditions du
Seuil. 2005, pp.24 e 223).
[73] Nina Agrawal, “There’s
more than the CIA and FBI: The 17 agencies that make up the U.S. intelligence
community”, Los Angeles Times, January 17, 2017
[74] Dana Priest & William Arkin, Top Secret
America: The Rise of the New American Security State. New York, Boston,
London. Little,
Brown and Company, 2011.
[75] Sarah Moughty, “Dana
Priest: Top Secret America Is «Here to Stay»”, September 6, 2011 (https://www.pbs. org/wgbh/frontline/article/dana-priest-top-secret-america-is-here-to-stay/)
[76] Edward Snowden, Permanent
Record (New York: Henry Holt and Company 2019). Traduzido em Português
com o título Vigilância Massiva [ler, maciça] Registo
Permanente (Lisboa: Grupo Planeta, 2019). A citação encontra-se nas pp.
219-20 da edição portuguesa.
[77] Esta
foi uma das várias surpresas com que o camaleónico presidente Obama brindou os
seus numerosos admiradores, tanto interna como externamente, para ilustrar o
seu lema: “Yes, we can”. Outra, foi a que
reservou para o júri norueguês que o galardoou com o prémio Nobel da Paz (908
mil euros, uma medalha e um diploma), em 2009, «pelos
seus extraordinários esforços com vista a reforçar a diplomacia internacional e
a cooperação entre os povos». Para fazer jus a esse prémio, Obama mandou
bombardear a Líbia em 2011 (pressurosamente acompanhado pelos seus aliados da
NATO, especialmente a França, o Reino Unido e o Canadá) para ajudar os seus
peões no terreno a derrubar o governo de Muammar al-Kaddafi, semeando um caos
sangrento que arrasou esse país e que se prolongou até aos nossos dias. Mais
tarde, para consolidar a sua reputação de grande obreiro da paz mundial, Obama
mandou expandir o programa americano de bombardeamentos com drones no
Afeganistão e no Iraque.
[78] Ian
Trainor, Philip Oltermann & Paul Lewis, “Angela Merkel’s call to Obama: are
you bugging my mobile phone?”, Guardian, 24 October, 2013
[79] E. Snowden, op.cit., p.327.
[80] Este excerto foi extraído de Top Secret
America: The Rise of the New American Security State, de Dana Priest e
William M. Arkin. New York, Boston, London: Little, Brown and Company, 2011.
[81] Foram estas as conclusões a que
chegou um estudo de Alex Nowrasteh (Terrorismo e Imigração: Uma Análise de Risco),
do Cato Institute, um think tank americano (cf. “Afinal, de onde vêm os
terroristas que atacam nos EUA? (à atenção de Trump)”, Público, 4 de
Fevereiro de 2017).
[82] “EUA reconhecem ter morto 4 cidadãos
em ações de contra-terrorismo”, TSF, 22 de Maio de 2013 (https://www.tsf.pt/ internacional/eua/eua-reconhecem-ter-morto-4-cidadaos-em-acoes-de-contra-terrorismo-3234476.html).
[83] Alexandre de Robaulx de
Beaurieux, US Military Bases, SIPER, January 2017; “Os cinco impérios
militares do mundo” (https://gov-civ-guarda.pt/worlds-five-military-empires); D.Bandow (2021, October 4),750 Bases in 80 Countries Is Too Many for Any Nation: Time for the US to Bring Its Troops Home. Cato Institute.
[84] Vid. a página da Internet https://www.southcom.mil/. Ver também Flávio Balbino Figuera, A Presença Militar Atual dos EUA na América do Sul e no
Atlântico Sul e seus Reflexos para o Brasil. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro, 2018.
[85] Vid. “Os 7 países onde os EUA oficialmente realizam operações militares hoje” (https://www.bbc.com/portuguese/ internacional-43438581); “Saiba quais são os países com mais militares dos EUA” (https://forbes.com.br/colunas/2017/03/ saiba-quais-sao-os-paises-com-a-maior-presenca-de-militares-norte-americanos/); “Bases Planetárias dos Estados Unidos. O império do terror (https://www.olado oculto.com/noticias.php?id=250); “Militares americanos na Alemanha, um legado da Segunda Guerra” (https://www.dw.com/pt-br/).
[86] M.D. Toft (2017, December 10), Why is America Addicted to Foreign Interventions? The National Interes. As outras potências militares, são anãs ao pé dos EUA. O Reino Unido também tem tropas na Alemanha desde Segunda .Guerra Mundial. Grande parte da presença militar do Reino Unido em todo o mundo é distribuída por todo o seu antigo império colonial: Chipre na Europa; Canadá e Belize nas Américas; Serra Leoa e Quénia na África; Qatar e Emirados Árabes Unidos, no Oriente Médio; Singapura e Brunei no Sudeste Asiático. Tem também presença militar no Afeganistão e no Nepal. Tudo isso soma 12 países. A fonte que utilizo (SIPER) não conta tropas britânicas em territórios ultramarinos do Reino Unido, como as Malvinas, Gibraltar, Akrotiri (em Chipre, dentro da “área de base soberana”), Bermudas ou Ascensão.
A França tem bases
militares em 11 países. A presença militar da França está focada na África,
mais particularmente numa série de ex-colónias: do Senegal e da Mauritânia na
costa ocidental do continente, passando por Mali, Burkina Faso, Costa do
Marfim, Níger e Chade até a República Centro-Africana. Não contíguos, mas
também incluídos, estão o Gabão, perto do equador; e Djibouti, estrategicamente
localizado no extremo sul do Mar Vermelho. Esta vasta área já foi comumente
chamada de Françafrica, um termo já abandonado por causa de suas conotações imperialistas.
No entanto, o exército francês ainda intervém regularmente para apoiar governos
e suprimir rebeliões. As tropas francesas estão também presentes na Guiana
Francesa, um território dito ultramarino. Duas outras bases militares francesa
situam-se na Alemanha, desde a Segunda Guerra Mundial e nos Emirados Árabes
Unidos.
A Rússia mantém bases
militares em 9 outros países, muitos no “estrangeiro próximo”: antigos
Estados-membros da União Soviética. Isso inclui, de acordo com o SIPER, duas
bases na Arménia, quatro na Bielorrússia, quatro no Cazaquistão, uma no
Quirguistão e sete no Tajiquistão. A Rússia também mantém bases em duas outras
ex-repúblicas soviéticas, mas sem a permissão do governo local: uma na
Transnístria, uma república separatista na Moldávia; quatro na Ossétia do Sul e
cinco na Abkhazia, duas regiões separatistas na Geórgia. Mais longe, a Rússia
tem uma base militar no Vietnam e duas na Síria. A China dispõe apenas de uma
base militar no exterior – em Djibuti. (Cf. Alexandre de Robaulx de Beaurieux, US military
bases, January 2017; Military bases of Russia, November 2016; Military bases
of France, November 2016; Great Britain military bases. November 2016;
Military
bases of China, November 2016, SIPER).
[87] A frase de Orwell é: «Usa uma máscara, à qual o seu rosto acaba por se adaptar.» Refere-se ao momento epifânico em que percebeu que teria de matar um elefante de trabalho, a contragosto, para corresponder às expectativas de uma multidão de birmaneses sobre os presuntivos deveres de um oficial inglês da Polícia Imperial Indiana, na Birmânia, no tempo do Império Britânico. Cf. “Matar um elefante”, em George Orwell, Ensaios Escolhidos (Lisboa. Relógio D’Água Editores, 2016), p.15.
[88] George Orwell. The Lion and
the Unicorn: Socialism and the English Genius. Publicado originalmente
por Searchlight Books, em 19 de Fevereiro de 1941. Disponível em https://www.Orwellfoundation.com/the-orwell-foundation/ orwell/essays-and-other-works/the-lion-and-the-unicorn-socialism-and-the-english-genius/
[89] José Luís Garcia et al.,
Os media
em mudança em Portugal. Implicações da digitalização no jornalismo (ERC,
2018), pp. 43-44,
[90] «O
Direito das sociedades comerciais rege as instituições de crédito e as
sociedades financeiras… As normas comerciais, assim competentes para intervir,
sofrem diversos influxos e adaptações.» Menezes Cordeiro, Manual de
Direito Bancário (5.ª Coimbra, Ed., Almedina, 2015) p. 57).
[91] Convém saber que a neofilantropia, de
que a Fundação Ford é um perfeito exemplo, «não
pretende oferecer donativos aos pobres, mas fazer uso das ciências sociais para
reformar as sociedades. Desde a revisão de sua missão, no pós-guerra, a
Fundação [Ford] havia se fixado na meta de influenciar as políticas
públicas e promover reformas institucionais não só a partir do convencimento
dos governos, mas, especialmente, pela mobilização de base. A aventura
multiculturalista nas universidades americanas derivou da combinação dos dois
paradigmas» (Magnoli 2009, p.83). No
Brasil, passou-se algo de muito semelhante, como a analisou minuciosamente o
mesmo autor (ver também nota [92]).
[92] Um bom exemplo é o patrocínio que a
Fundação Ford (FF), a maior entidade neofilantrópica do mundo (14 mil milhões
de dólares de fundos patrimoniais; 500 milhões de dólares anuais em donativos)
deu aos “direitos das minorias” e, em particular, às políticas do
“multiculturalismo”, da “diferença” e da “diversidade” nos EUA e no estrangeiro
(especialmente no Brasil) depois do assassinato de Martin Luther King Jr. (1968),
dirigente da National Association for the Advancement of Colored People
(NAAPC). Em 1960, o item “direitos das minorias” representava 2,5% dos
financiamentos da FF; em 1970, atingia 40%. «No fim
da década de 1960, a FF estava diante de um cenário de crise política que se
agravou ao longo do primeiro mandato de Nixon, quando as coalizões sociais [em Portugal, dizemos “coligações”] articuladas no movimento pelos direitos civis voltavam-se
para a luta contra a Guerra do Vietnã. O núcleo dirigente da Fundação
interpretou a radicalização dos protestos como um sintoma de funcionamento
defeituoso do pluralismo político e formulou o conceito de multiculturalismo
como uma ferramenta para restabelecer a normalidade nas engrenagens da
democracia [entenda-se:
da oligarquia electiva e liberal, N.E.]. De acordo
com a lógica do multiculturalismo, as amplas coalizões [em Portugal dizemos “coligações”] sociais deveriam dar lugar a organizações e movimentos
específicos, delineados em função dos interesses de cada minoria. A Fundação
ajudaria a esculpir esses movimentos, oferecendo-lhes plataformas políticas e
fundos capazes de sustentar grupos de pressão. (…) Investigando as fundações
filantrópicas, o sociólogo Craig Jenkins registou que elas funcionam como
“porteiros” [Ingl.
gatekeepers], financiando os movimentos
e as iniciativas que, por essa via, conseguem converter suas bandeiras em
políticas públicas. “No processo, elas também selecionaram as novas
organizações que se tornaram traços permanentes da paisagem política”» (Demétrio
Magnoli, Uma
Gota de Sangue. História do Pensamento Racial.
São Paulo: Editora Contexto, 2009). Foi precisamente o que ocorreu nos EUA a
partir da era de Richard Nixon. Juntamente com o programa de incentivo ao
“capitalismo negro” de Nixon, a intervenção da FF ajudou a desvirtuar a NAAPC
(a organização histórica do movimento dos direitos cívicos dos anos 1954-1968)
transformando-a num veículo da política de “affirmative action” com base na
noção obscurantista da “raça” e patrocinando outros movimentos militantes, como
o movimento dos Chicanos, com base na noção pau-para-toda-a-colher de
“etnicidade”. Foi também o que aconteceu no Brasil, a partir dos anos 1990, com
o patrocínio que a FF, através da sua delegação no Brasil, deu às ONG do
chamado “movimento negro brasileiro” e aos seus porta-vozes e aliados nas
universidades, que o orientaram para reivindicar (com êxito) a obtenção de “quotas
raciais” nas universidades brasileiras (cf. Demétrio Magnoli, op.cit., e
João Bernardo, A outra face do racismo. 5) Será o racismo inerente ao capitalismo?
Passa Palavra,18-09-2020).
Em 2016, a FF anunciou
planos para financiar o Movimento Black Lives Matter durante 6 anos
(Brook Kelly-Green, Brook & Luna Yasui, Luna (July 19, 2016), “Why black
lives matter to philanthropy”.https://www.fordfoundation.org/just-matters/just-matters/posts/why-black-lives-matter-to-philanthropy).
A soma doada ao Black Lives Matter pela Fundação Ford, juntamente com
outros doadores, foi, nesse ano, de 100 milhões de dólares americanos (“Black
Lives Matter cashes in White $100 Milton forma liberal foundations.” The
Washington Times. August 16, 2016. http://www.washingtontimes. com/
news/2016/aug/16/black-lives-matter-cashes-100-million-liberal-foun/).
[93] “Saiba quem são os donos
dos grupos de Media portugueses”, Clube Português de Imprensa, (http:// clubedeimprensa.pt/Artigo/2939).