Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

07 agosto, 2021

 (Temas 2, 3 e 4)


“Esquerda” e “Direita” trocadas por miúdos

do ponto de vista da democracia (6ª parte)

— O poder numa oligocracia electiva liberal  

José Catarino Soares

 

15. A heteronomia do poder explícito

Os atenienses dos séculos V e IV a.C., assim como os gregos de outras cidades da Hélade na mesma época, auto-instituíram uma forma inédita de igualdade em relação ao poder explícito a que deram o nome de democracia.

15.1. Democracia parcial versus democracia integral

A democracia ateniense era, porém, como vimos, uma democracia parcial, por várias razões, entre as quais as principais são as seguintes: 1ª) A cidadania estava completamente vedada às mulheres; 2ª) A cidadania estava praticamente vedada aos metecos (os estrangeiros domiciliados em Atenas); 3ª) A isonomia dos cidadãos (todos os quais eram adultos do sexo masculino) estava confinada ao âmbito do poder político; 4ª) Uma parte importante da economia ateniense dependia do trabalho de escravos (quase completamente desprovidos de direitos) — um modo de produção maximamente contrário à igualdade individual em relação ao poder económico.

Por outro lado, o movimento emancipador dos trabalhadores assalariados que surgiu no segundo quartel do século XIX instituiu uma forma inédita de igualdade em relação ao poder explícito, a que deram o nome de cooperativas de trabalho associado. Estas consistem, como vimos na 5ª parte deste ensaio, em empresas onde vigora a mutualização dos meios de produção/distribuição de bens e serviços, o seu compartilhamento pelos produtores que com eles operam.

As cooperativas de trabalho associado, carecem, porém, como também tivemos ocasião de assinalar, de dimensão nacional maioritária, por várias razões, entre as quais as principais são as seguintes: 1ª) muitos dos mais importantes ramos de actividade económica estão praticamente vedados à mutualização, ao compartilhamento, dos meios de produção/distribuição, por indigência financeira dos trabalhadores; 2ª)  as cooperativas de trabalho associado são forçadas a desenvolver a sua actividade num entorno institucional que lhes é hostil, visto que foi moldado de acordo com os interesses das firmas (sociedades comerciais) transnacionais oligopolistas ou oligopsonistas que nele operam.

Mesmo assim, a democracia ateniense e o movimento cooperativo dos trabalhadores assalariados oferecem-nos, conjuntamente, um germe, uma base sólida para delinearmos uma antevisão dinâmica do que poderia ser uma democracia (uma democracia integral, liberta dos severos cerceamentos da democracia ateniense), um regime que garantisse a igualdade efectiva dos cidadãos relativamente às duas vertentes principais do poder explícito: o poder político e o poder económico.

Antes, porém, de examinarmos com suficiente pormenor em que consiste a democracia integral (ou a democracia, ponto final) como forma de auto-instituição do poder explícito, convém que examinemos com suficiente pormenor o que se designa corrente e erroneamente como “democracia liberal ou “democracia representativa”. Como veremos, esta última é de facto, mal-grado o termo “democracia” que emprega para se autodenominar, uma forma de heteroinstituição do poder explícito. 

 15.2. O poder político numa oligocracia electiva liberal

Comecemos pelo poder político, a vertente mais óbvia do poder explícito.

Sabemos que o poder político abrange três funções: executiva (que é, de facto, governativa  e não propriamente “executiva” nas oligocracias electivas), legislativa e jurisdicional.  A cada uma dessas funções corresponde um certo número de postos permanentes de intervenção/responsabilização política a que podemos dar o nome de magistraturas, chamando magistrados aos cidadãos que, num determinado momento, os preenchem.

Nas oligocracias, os magistrados são recrutados ou designados por cooptação, nomeação, concurso público (com avaliação curricular), curso específico e/ou estágio de ingresso, ou (nas oligarquias electivas e nas oligarquias electivas liberais), por todos estes métodos acrescidos da eleição.

É assim que, por exemplo, em Portugal, o Presidente da República e os deputados da Assembleia da República (o nome do parlamento português) são eleitos pelo conjunto dos cidadãos portugueses. Os autarcas são eleitos pelo conjunto dos cidadãos residentes no respectivo concelho. O 1º ministro é nomeado pelo Presidente da República, tendo em conta os resultados das eleições para o parlamento e depois de uma consultação feita aos partidos com assento parlamentar. O 1º ministro propõe a nomeação dos membros do governo. O 1º ministro deve, no prazo de dez dias após a sua nomeação, apresentar o programa do seu governo à Assembleia da República e pode pedir a sua confiança.

Os juízes dos tribunais judiciais, os juízes dos tribunais administrativos e fiscais e os procuradores da república são recrutados por concurso público entre juristas e nomeados (segundo a graduação obtida no curso de Direito e num curso de formação profissional específica) pelos respectivos Conselhos Superiores — Conselho Superior da Magistratura, Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Conselho Superior do Ministério Público [68]. Constituem excepção os juízes do Tribunal Constitucional, o Presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República, cujo modo de designação é especificamente regulado pela própria Constituição. O Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, sendo dez nomeados pela Assembleia da República e três cooptados por esses dez. O Presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República são nomeados pelo Presidente da República sob proposta do Governo.

O Conselho Superior da Magistratura (CSM) é composto por dois vogais nomeados pelo Presidente da República; sete vogais eleitos pela Assembleia da República; e sete vogais eleitos pelos magistrados judiciais. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (quarta figura na hierarquia do Estado) é eleito pelos respectivos juízes e é, por inerência, o Presidente do Conselho Superior da Magistratura.

O Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) é composto por dois membros designados pelo Presidente da República, quatro membros eleitos pela Assembleia da República; quatro membros juízes eleitos pelos seus pares. O Presidente do Supremo Tribunal Administrativo é eleito pelos respectivos juízes e é, por inerência, o Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) é composto por magistrados do Ministério Público por inerência (os procuradores-gerais regionais); magistrados do Ministério Público eleitos de entre e por cada uma das duas categorias de magistrados (1 procurador-geral-adjunto e 6 procuradores da República), cinco membros eleitos pela Assembleia da República e dois membros designados pelo membro do governo responsável pela área da justiça.

O Provedor de Justiça é nomeado pela Assembleia da República. O vice-Procurador Geral da República é nomeado pelo Conselho Superior do Ministério Público sob proposta do Procurador Geral da República.

Os dois vice-presidentes do Supremo Tribunal Administrativo são eleitos de entre e pelos respectivos juízes. Os vice-presidentes dos tribunais centrais administrativos são eleitos de entre os juízes com a categoria de conselheiro que exerçam funções no tribunal. O presidente de um conjunto de tribunais administrativos de círculo e tribunais tributários de uma dada zona geográfica é nomeado pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O vice-Presidente do Tribunal de Contas é eleito de entre e pelos respectivos juízes.

Os juízes conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça são recrutados mediante concurso público aberto a magistrados judiciais e do Ministério Público e outros juristas de mérito. Os juízes conselheiros do Supremo Tribunal Administrativo são recrutados mediante concurso público aberto a juízes dos tribunais centrais administrativos com cinco anos de serviço nesses tribunais; procuradores-gerais-adjuntos com cinco anos de serviço nessa categoria, desde que tenham exercido funções durante dez anos na jurisdição administrativa e fiscal, no Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República ou como auditores jurídicos; e juristas de reconhecido mérito com pelo menos vinte anos de comprovada experiência profissional, na área do direito público. Os juízes conselheiros do Tribunal de Contas são recrutados mediante por concurso público. A promoção a procurador-geral-adjunto faz-se por concurso público, restrito a procuradores da República com classificação de mérito.

Em todos os casos de eleição directa pelos cidadãos, os mandatos dos magistrados têm a duração de quatro anos, salvo no caso do Presidente da República, cujo mandato é de cinco anos.

A duração dos mandatos dos magistrados que são nomeados pelos Conselhos Superiores (CSM, CSTAF e CSMP), pelo Presidente da República e pela Assembleia da República ou que são eleitos pelos seus pares é muito variável. O Procurador-Geral da República é nomeado por seis anos. O Provedor de Justiça é nomeado por quatro anos (renovável por uma vez). O mandato do presidente do Tribunal Constitucional tem a duração de quatro anos e meio. Os juízes do Tribunal Constitucional têm um mandato de nove anos (não renovável). O mandato do presidente do Supremo Tribunal de Justiça tem a duração de cinco anos (não renovável). O mandato do Presidente do Tribunal de Contas tem a duração de quatro anos. O mandato do presidente e dos vice-presidentes do Supremo Tribunal Administrativo tem a duração de cinco anos (não renovável). O mandato do presidente e vice-presidentes dos tribunais centrais administrativo tem a duração de cinco anos. O mandato do presidente de um conjunto de tribunais administrativos de círculo e tribunais tributários de uma dada zona geográfica tem a duração de três anos. Os juízes dos tribunais judiciais, assim como os juízes dos tribunais administrativos e fiscais, são nomeados com carácter vitalício e com a garantia de inamovibilidade. Os magistrados do ministério público gozam de garantias semelhantes, embora formuladas por meio de um fraseado diferente [69].

Em suma, em Portugal e na maioria dos países da União Europeia, no Reino Unido, nos países da Associação Europeia de Comércio Livre (AECL ou EFTA na sigla inglesa), nos EUA, no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia, o poder político baseia-se fundamentalmente na selecção de um pequeno grupo de magistrados de nomeação vitalícia, ou então nomeados ou eleitos por mandatos longos (3 a 9 anos), que concentram nas suas mãos, em regime de oligopólio partidário, todo o poder governativo, legislativo e jurisdicional.

15.3. Impropriedade dos termos “democracia liberal” / “democracia representativa”

A esta forma de organização do poder político, ou, se se preferir, a este tipo de regime político, baseado na heteronomia, dá-se habitualmente (e impropriamente) os nomes de “democracia liberal ou “democraciarepresentativa.

O qualificativo liberal é adequado, se for usado para salientar que esta forma de poder político coexiste com o reconhecimento constitucional e legal de um vasto acervo de liberdades, direitos e garantias da pessoa humana e do cidadão que resultaram de séculos de lutas emancipadoras das classes oprimidas da população (cf. 4ª parte deste ensaio, secção 11.2). Na verdade, a maioria dos indivíduos confunde este acervo de liberdades, direitos e garantias com a democracia. Mas são coisas diferentes, como já vimos (cf. 2ª parte deste ensaio, secção 8.5, e 3ª parte deste ensaio, secção 10) e como veremos mais adiante.

O qualificativo representativa também é adequado, se for empregado para salientar (o que raramente ou nunca é feito) o princípio que serve de justificação à eleição dos magistrados neste tipo de regime político: aliquid stat pro aliquo (aquilo que está por aqueloutro [para alguém sob algum aspecto ou capacidade]). Esta é a definição clássica, escolástica, de signo, ou da relação sígnica (ou signitiva ou semiótica), com o acrescento de Charles Sanders Peirce entre parênteses rectos [70]. Este estar [por] é muito vasto, pode significar muita coisa: representar, caracterizar, fazer as vezes de, indicar[71].

No caso de Portugal, os autarcas, os deputados da Assembleia da República, e o Presidente da República baseiam a sua legitimidade nas respectivas eleições. É através delas que esses magistrados são instituídos como representantes dos cidadãos, como cidadãos especiais (alegadamente superdotados no que respeita aos talentos políticos), que vão fazer as vezes dos cidadãos comuns (alegadamente subdotados no que respeita aos talentos políticos) em tudo o que diga respeito a legislar e governar. A relação entre os cidadãos eleitos (em funções de magistrados) e os cidadãos eleitores é, de facto, “representativa”, mas no sentido exclusivamente semiótico do termo: aquilo [os eleitos] que está por aqueloutro [os eleitores] sob o ponto de vista do poder político.

O princípio semiótico é uma necessidade da linguagem idiomática, onde os signos servem para representar e exprimir o que, de outro modo, seria inefável (viz. o pensamento humano). Entre a linguagem idiomática e o pensamento humano, entre representante e representado, há uma grande diferença, uma diferença abissal. Mas o mesmo não se pode dizer do princípio semiótico da representação eleitoral. Nada separa ontologicamente, materialmente, representantes e representados, eleitos e eleitores. A aplicação do princípio semiótico que legitima as eleições só se justifica como a folha de parra que cobre a concepção aristocrática, elitista, da actividade política, segundo a qual esta deve estar reservada só para alguns cidadãos.

Daqui se segue que os regimes políticos fundados na relação de representatividade semiótica de um grupo restrito de magistrados eleitos, devem ser chamados oligocracias electivas.  «Oligocracia» (Gr. oligoi, “os poucos” + kratos, “poder”) porque uma camada social privilegiada bem definida e pouco numerosa, que se auto-intitula amiúde de elite, domina economicamente a sociedade e, em grande medida, também a dirige politicamente; «electiva» porque uma parte dessa camada é eleita por sufrágio universal. Nos casos em que essas oligarquias electivas coexistem com um acervo mais ou menos sólido e mais ou menos amplo de liberdades, direitos, garantias jurisdicionais e instituições sociais dos cidadãos eleitores que são o resultado e o sedimento de lutas emancipadoras travadas durante séculos e que não terminaram, podemos chamar-lhes oligocracias electivas liberais (ou oligocracias liberais para abreviar) [72].

Há, porém, uma outra acepção de representativo/representativa que não é semiótica, mas estatística e probabilística. A representatividade estatística é a relação que existe entre um subconjunto reduzido de elementos (“amostra”) e o conjunto do qual os elementos desse grupo foram extraídos (“população”). Para que a amostra seja estatisticamente representativa (ou seja, para que reflicta fielmente as propriedades da população), os seus elementos devem ser seleccionados de forma aleatória – ou seja, por tiragem à sorte – para terem a mesma probabilidade de serem incluídos na amostra. As amostras seleccionadas de forma aleatória são, por isso, probabilísticas. É essa relação de representatividade estatística, probabilística, que preside à escolha dos magistrados em democracia. 

15.4. O nosso irmão mais velho zela por nós — e é por isso que precisa de estar sempre de olho em ti!

Os adeptos do capitalismo globalizado contemporâneo não se cansam de cantar hossanas às suas pretensas virtudes: o “Estado mínimo”, o “multilateralismo”, a “solução pacífica dos conflitos”, a “liberdade de escolha”, a “transparência”. Esses encómios não têm fundamento. A realidade é que o capitalismo, mesmo quando se apresenta sob a forma de oligocracias electivas liberais, é profundamente estatista, belicista, secretista e espião.

Basta um exemplo para o mostrar. Nos EUA, o país capitalista mais poderoso do mundo e também o mais admirado e elogiado pelos defensores do “Estado de direito democrático”, existem oficialmente 18 agências estatais de ECVFCSI (espionagem/ ciberespionagem/vigilância furtiva/colecta sigilosa de informações):

Office of Naval Intelligence (ONI), Coast Guard Intelligence (CGI), Bureau of Intelligence and Research (BIR),  Central Intelligence Agency (CIA), Sixteenth Airforce (16 AF), National Security Agency (NSA), Central Security Service (CSS), National Reconnaissance Office (NRO), Defense Intelligence Agency (DIA), Military Intelligence Corps (MIC), Office of Intelligence and Counterintelligence (OICI), Marine Corps Intelligence (MCI), National Geospatial-Intelligence Agency (NGA), Office of Terrorism and Financial Intelligence (TFI),  Intelligence Branch (IB) [do FBI], Office of National Security Intelligence (ONSI), Office of Intelligence and Analysis (I&A), Space Delta 7 (DEL 7), U.S. Army Intelligence and Security Command (INSCOM). [73]

Na realidade, essas 18 agências são apenas a ponta do iceberg. Em 18 de Junho de 2011, numa entrevista que deu ao programa Frontline da televisão pública americana PBS, a jornalista Dana Priest do Washington Post, que investigou a fundo o submundo da ECVFCSI [74], resumiu assim a comunidade dos espiões americanos: «ela emprega agora quase 1 milhão de pessoas em 1.900 firmas privadas e 1.100 organizações do Estado federal. Estes são edifícios gigantescos que vieram para ficar».

Mais exactamente:

860.000 pessoas têm estatuto de agentes maximamente secretos neste país. Esse número é cerca de 2 vezes e meia o número de pessoas do distrito de Columbia [sede territorial da presidência dos EUA, de 14 dos 15 Departamentos Executivos Federais do governo federal (o equivalente aos ministérios em Portugal) e do congresso dos EUA, N.E]. E outras 1.900 firmas privadas também trabalham no nível de máximo secretismo. E há outras 1.100 organizações estatais federais que trabalham no nível de máximo secretismo. Se as pusermos todas num mapa, ficamos com 17.000 localizações, porque uma data de firmas e uma data de agências estatais têm múltiplos edifícios. Portanto, é um mundo bem gigantesco. [N.E= nota editorial]

Entrevistadora: Isso é em cidades espalhadas por toda a América…

Certo. Esses 17.000 pontos estão espalhados pelo país inteiro, mas aglomeram-se em certas áreas. A capital da América do Secretismo Máximo está situada em redor da National Security Agency [NSA], que fica a cerca de 35 milhas de Washington, D.C.

O que descobrimos [por meio da nossa investigação jornalística] depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001 [contra as torres gémeas do World Trade Center em Nova Iorque] foi que as agências existentes cresceram enormemente. Muitas delas duplicaram o seu tamanho e foram também criadas novas agências, das grandes. Em 2002 havia 34 novas organizações a trabalhar no nível de máximo secretismo, criadas para cuidar do contraterrorismo. Em 2003, eram mais 39, em 2004, mais 30, em 2005, mais 34, e assim por diante. Todos os anos, a partir do 11 de Setembro de 2001, foram criadas mais de duas dúzias, por vezes três dúzias de organizações federais inteiramente novas, dedicadas ao contraterrorismo. E a razão para isso, é que havia dinheiro para o fazer. Não havia ninguém com responsabilidades que fôsse capaz de dizer: «Bom, já é a 5ª vez que estamos a fazer isso». E a duplicação de esforços, duplicação inútil de esforços, foi um dos maiores problemas que descobrimos com a nossa investigação. 

Foi assim que eles [o Presidente dos EUA e os membros do governo] nomearam o Director dos Serviços Secretos [em Inglês burocrático, Director of National Intelligence, DNI] para dirigir tudo. Essa pessoa tem a responsabilidade de dirigir, mas não tem a autoridade para fazer nada que lhe permita fazer isso. Por conseguinte, ele não pode realmente dizer a essas três agências para se irem embora [julgo que Dana West se refere aqui ao National Security Council (NSC), à Central Intelligence Agency (CIA) e ao Joint Special Operations Command (JSOC), de que falaremos mais adiante, N.E.]

Todavia, como em tudo o mais, o governo forçou a barra ao autorizar que tanta gente fizesse análise [da informação recolhida], muita dela sem muita experiência. Todos os anos a comunidade analítica nas 16 agências de espionagem [hoje em dia são 18, N.E] produzem cerca de 50.000 relatórios diferentes e o DNI disse: «Isto é uma loucura. Ninguém lê esses relatórios todos. Vamos ver quais são aqueles que podemos descartar e vamos juntar os melhores relatórios todos os dias.»

Assim, o que eles fizeram foi criar ainda mais um relatório chamado Intelligence Today é uma espécie de jornal – sintetizando o que se presume ser o melhor de todos eles. Eu conversei com algumas pessoas [da comunidade dos espiões] sobre isso, e resposta delas foi a de revirar os olhos – “é mais um relatório” – porque o que acontece é que os decisores políticos estão submersos com tanta informação. Abram as suas caixas de correio electrónico e vêm isso, e não há maneira de conseguirem absorver tudo aquilo. Portanto, o que tende a acontecer é levantarem os braços para o céu, ligarem para informador da sua agência encarregado de fazer resumos e dizerem-lhe, “Bom, diga-me você o que é importante”. Quem é que que quer ficar a saber o que dizem 50.000 relatórios que são produzidos todos os anos?   

Entrevistadora: Tem havido sempre uma sede de informação… Mas desde o 11 de Setembro de 2011, essa sede quadruplicou até atingir um nível de quê? Insanidade? Qual é a situação actual? Estará fora de controlo?

Está fora de controlo. O volume de informação que chega todos os dias ao governo dos EUA em sentido amplo está fora de controlo. Eles não podem dizer “parem” porque poderia haver alguma coisa válida no meio dessa informação toda, mas não vão conseguir encontrá-la porque há tanta informação a vasculhar [75]

15.5. «O ouvido que tudo ouve, o olho que tudo vê, uma memória que não dorme nem faz pausas»

É preciso acrescentar, em abono da verdade, que este problema do excesso de informação foi parcialmente resolvido pela prioridade que a rede de ECVFCSI dos EUA passou a dar ao que a NSA designa por metadados. O sentinela do público Edward Snowden, ex-agente da CIA e ex-agente da NSA, explica-nos muito bem o que são metadados.

O prefixo «meta», que regra geral é usado no sentido de «acima» ou «além», é aqui usado no sentido de «a respeito de»: metadados são dados a respeito de dados. São, para ser mais preciso, dados gerados por dados — um conjunto de etiquetas ou marcadores que tornam os dados úteis. A maneira mais directa de pensar em metadados é, porém, como «dados» de actividade, todos os registos de todas as coisas que faz com que os seus aparelhos [telemóvel, computador, tablet, televisor] e todas as coisas que os seus aparelhos fazem sozinhos. Veja um telefonema, por exemplo: os respectivos metadados podem incluir a data e hora da chamada, a sua duração, o número do qual foi feita, o número que foi chamado e a localização de ambos. Os metadados de um email podem incluir o género de computador em que foi gerado, onde e quando, a quem pertence o computador, quem enviou o email, quem o recebeu, onde e quando foi enviado e recebido, e quem, se alguém além do remetente e do recipiente lhe acedeu, e onde e quando. Os metadados podem dizer a quem o vigia onde dormiu ontem á noite e a que horas se levantou esta manhã. Revela todos os lugares que visitou durante o dia e quanto tempo passou em cada um deles. Mostra com quem contactou e quem contactou consigo. […]

É por esta razão que é preferível não encarar os metadados como uma espécie de abstracção benigna e sim como a essência mesma do conteúdo; são nada menos do que a primeira linha de informação de que precisa quem possa estar a vigiá-lo. E há mais uma coisa: o conteúdo é regra geral definido como um produto consciente da nossa vontade. Sabemos o que dizemos num telefonema, sabemos o que escrevemos num email. Mas não temos qualquer controlo sobre os metadados que produzimos, porque a sua geração é automática. Tal como são coligidos, armazenados e analisados por uma máquina, são feitos por uma máquina, sem a sua [leitor] participação ou consentimento. E, ao contrário dos outros seres humanos com quem comunica de sua livre vontade, os seus aparelhos não retêm informação privada nem usam palavra de código numa tentativa de descrição. Limitam-se a transmitir à torre de telemóveis mais próxima sinais que nunca mentem [76].

Como se sabe, quando era agente da CIA e da NSA, Edward Snowden veio a descobrir quase acidentalmente a existência do programa STELLAR WIND (Vento Solar), um programa informático supersecreto da NSA de vigilância maciça dos cidadãos americanos. O STLW, a abreviatura do seu nome de código, estava em funcionar desde 2001, e destinava-se a vigiar todas as comunicações privadas (via linhas telefónicas e internet) dos cidadãos americanos entre os EUA e o estrangeiro.

Graças à coragem de alguns sentinelas públicos da NSA e do Departamento de Justiça, o New York Times revelou, em 2005, as escutas sem mandado do President’s Surveillance Program (PSP) e a American Civil Liberties Union (ACLU) questionou a constitucionalidade do PSP. O presidente George W. Bush afirmou então ter deixado o STWL expirar. Mas a expiração provou ser uma farsa, como Snowden veio a descobrir depois de ter entrado para a NSA, em 2009. Depois de ter ocupado, o cargo o presidente Barak Obama rebaptizou e confirmou os programas relacionados com o PSP, entre os quais o STWL, que continuou secretamente a operar, tal como no tempo de Bush [77]. 

Ulteriormente, Snowden viria a descobrir a existência secreta de outros programas e dispositivos de vigilância maciça. Eis uma lista de alguns deles: 

# FOXACID, nome de código dos servidores da NSA que albergavam versões malevolentes de websites normais;

# EGOTISTICALGIRAFFE, nome de código de um programa da NSA que tinha como objectivo explorar uma vulnerabilidade de certos motores de busca da WEB que corriam o Tor (uma vez que não conseguiam entrar no Tor propriamente dito);

# PRISM, nome de código de um programa que permitia à NSA recolher rotineiramente dados da Microsoft, da Yahoo!, do Google, do Facebook, da Paltalk, do Youtube, do Skype, do AOL e da Apple, incluindo correio electrónico, conversas vídeo e áudio, navegação na internet, pesquisa por motores de busca e todos os outros dados armazenados nas respectivas nuvens, transformando essas empresas em cúmplices conscientes e voluntários;

# UPSTREAM COLLECTION, nome de código de um programa ainda mais invasivo do que o PRISM, que permitia a captura directa de dados das firmas do sector privado da infra-estrutura da internet, com a colaboração das próprias firmas — os interruptores e roteadores que encaminham o tráfego da internet por todo o mundo, via satélites em órbita e dos cabos de fibra óptica de grande capacidade que correm pelo fundo do oceano.

Juntos o PRISM e o UPSTREAM COLLECTION garantiam que a informação mundial, tanto em trânsito como armazenada, podia ser vigiada.

# OPTICNERVE, nome de código de um programa do Government Communications Headquarters (GCHQ), o parceiro britânico da NSA, que, a cada cinco minutos, guardava uma fotografia das câmaras das pessoas que estivessem em videoconferência em plataformas como a Yahoo Messenger.

# PHOTONTORPEDO, nome de código de um programa que apanhava os endereços IP dos utilizadores do MSN (um portal de notícias da Microsoft);

# XKEYSCORE, nome de código de um programa que funciona com uma espécie de motor de busca que permite a um analista-espião vasculhar todos os registos da vida de qualquer pessoa — o seu correio electrónico, as suas contas de banco, os seus registos de saúde, as suas conversas privadas, os seus ficheiros privados, tudo.

Edward Snowden descobriu que o XKEYSCORE, continha as comunicações de toda a gente, incluindo chefes de Estado e primeiros-ministros do mundo inteiro (como Ângela Merkel, chanceler da Alemanha, por exemplo [78]).

Foi, para dizer tudo, a coisa mais parecida com ficção científica que alguma vez tinha visto na realidade científica: uma interface que permite teclar a morada, o número de telefone ou o endereço IP de quase qualquer pessoa e rever a história recente da actividade online [na internet] dessa pessoa. Em alguns casos, era até possível passar gravações das suas sessões online [na internet], de modo que o ecrã para que estávamos a olhar era o ecrã dela, fosse o que fosse que estivesse no desktop [computador de secretária]. Podíamos ler os emails [mensagens de correio electrónico], ver o histórico de navegação, o histórico de pesquisa, o que publicava das redes sociais, tudo [79].

Em suma, a rede de ECVFCSI dos EUA, e em especial a NSA, é a encarnação perfeita do Irmão-Mais-Velho [Big Brother] do romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell. É «o ouvido que tudo ouve, o olho que tudo vê, uma memória que não dorme nem faz pausas», na excelente caracterização de Edward Snowden.

Sede da National Security Agency (NSA) em Fort_Meade, Maryland, EUAA NSA é «o ouvido que tudo ouve, o olho que tudo vê, uma memória que não dorme nem faz pausas»

15.6. Assassínios selectivos (incluindo de cidadãos americanos) e drones

A rede de ECVFCSI dos EUA não é só um instrumento orwelliano de vigilância opressiva; é também uma ferramenta indispensável de uma campanha permanente de assassinatos selectivos conduzida secretamente. Embora datado, o relato de Dana Priest e William M. Arkin, os dois melhores estudiosos da rede ECVFCSI dos EUA, não deixa margem para dúvidas.

Os homicídios com alvos específicos – os críticos chamam-lhes assassinatos – têm sido conduzidos pelo governo dos EUA há uma década e os drones têm desempenhado um grande papel na continuação e intensidade de tais ataques. Drones armados ditos predadores e ceifadores tornaram-se armas de eleição para matar individualmente chefes terroristas em países estrangeiros. O êxito de aeronaves armadas sem tripulação [UAVs no acrónimo inglês] criou uma procura em todos os ramos das Forças Armadas e da CIA de tantos UAVs quantos o seu fabricante – a firma General Atomics, sediada na Califórnia – conseguisse produzir. Também promoveu um desenvolvimento e uma produção frenética dentro do nicho industrial dos fabricantes que estavam a produzir experimentalmente  outros tipos de aeronaves sem tripulação, e dentro do grupo muito maior das firmas de material bélico contratadas pelo Estado cuja tecnologia é usada para monitorizar as imagens de vigilância recolhidas pelos drones e para controlar a informação sobre os seus alvos em qualquer parte do mundo – desde o campo de batalha até ao santuário dos inimigos – em poucos segundos.

O número de drones no arsenal dos EUA aumentou de 60 para mais de 6.000 desde o 11 de Setembro de 2001 [até 2011]. O financiamento [estatal-federal] de projectos e actividades relacionadas com drones era de 350 milhões de dólares em 2001, quando o primeiro drone predador da CIA foi lançado de uma caravana que tinha sido usada como centro ambulatório de saúde e fez um voo até ao quartel-general da CIA. Em dez anos, a despesa com drones subiu em flecha para 4.100 milhões de dólares, e há mais de vinte tipos de UAVs no arsenal do Estado. A maioria dos drones são usados para a vigilância. Alguns drones experimentais são tão pequenos como uma libélula e apresentam-se disfarçados como se fossem de facto libélulas.

Na guerra dos drones, as agências de segurança nacional têm mantidos pelo menos três “listas de indivíduos a matar” separadas, explicaram-nos diversas fontes. O National Security Council (NSC) faz uma dessas listas, que é semanalmente revista em reuniões em que participam o presidente e o vice-presidente [dos EUA]. Outra dessas listas é a da CIA, que não tem contributos nem do NSC, nem do Defense Department [o equivalente a Ministério da Defesa na gíria política europeia]. Uma terceira lista é a dos militares, mas essa é de facto não uma, mas várias listas, visto que as tropas especiais clandestinas e o Joint Special Operations Command (JSOC) também têm as suas próprias listas. Alguns suspeitos terroristas estão em múltiplas listas. Mas mesmo estas listas de matança altamente secretas não eram [pelo menos em 2011] coordenadas entre as três principais agências envolvida na sua criação. Cada grupo tinha os seus próprios advogados a tratar das questões legais. Os militares e a CIA tinham os seus próprios grupos de especialistas na definição dos alvos a destruir que se ocupam em determinar o momento e a localização do respectivo ataque. Cada grupo tinha os seus próprios pilotos, centros de comando, orçamentos, logística de longo prazo e lista de pessoas a contratar para manter a sua própria esquadrilha de UAVs [80].

Os assassinatos selectivos por meio de drones são justificados pelos seus mandantes com o argumento da ameaça terrorista externa, especialmente a ameaça dos movimentos da chamada “jihad global” (Daesh, Al-Qaeda, Al-Shabab, etc.), oriunda de países com populações maioritariamente muçulmanas. Foi também essa a razão invocada pelo Presidente Donald Trump, em 2017, para proibir a entrada nos EUA de naturais do Iémen, Iraque, Líbia, Síria, Somália, Sudão e Irão. Mas este argumento não colhe.

Desde os atentados de 11 de Setembro de 2001 até à ordem de Trump, 12 pessoas estiveram por trás de atentados jihadistas nos Estados Unidos que fizeram vítimas, num total de 94 mortos. Mas nenhum dos atacantes nasceu ou imigrou de um dos sete países incluídos na ordem de Donald J. Trump. Os 12 terroristas dos tais ataques pós-Setembro de 2001 eram todos americanos ou residentes legais nos EUA [81]. Logicamente, os assassinatos selectivos por meio de drones deveriam então, para serem eficazes como pretendem os seus mandantes, passar a ser dirigidos aos cidadãos americanos suspeitos de terrorismo, incluindo os residentes nos EUA.

Não se trata de uma hipótese académica, mas de uma prática já estabelecida, pelo menos em parte. Numa carta enviada ao Congresso dos EUA em Maio de 2013, durante a presidência de Barak Obama, o procurador-geral Eric Holder nomeou quatro cidadãos americanos deliberadamente assassinados no decurso de operações de contraterrorismo realizadas no Iémene e Paquistão, países onde os EUA realizam regularmente ataques com drones.  Desse grupo fazia parte o imã Anwar al-Awlaki, assassinado em 2011. Este clérigo muçulmano tinha dupla nacionalidade, norte-americana e iemenita, e era descrito pela televisão Al Arabiya como o Bin Laden da Internet, meio que usaria para recrutar novos talentos terroristas. Os outros três cidadãos mortos eram o sobrinho de Awlaki, Abdulrahman, Samir Khan, um americano de origem paquistanesa, e Jude Kenan Mohammed, acusado da prática de terrorismo em 2009 [82].

15.7. As bases militares dos EUA são legião 

A Organização das Nações Unidas (ONU) agrega 193 Estados, a quase totalidade dos que existem sobre a Terra. Contudo, maior do que o número de países do mundo é o número de bases militares norte-americanas instaladas fora do seu território. Segundo o SIPER (Swiss Institute For Peace and Energy Research), os EUA possuem 601 bases militares fora do seu território: 587 bases em 42 outros países e 114 bases em territórios ultramarinos dos EUA — além de 4.154 bases no seu próprio território. Mais recentemente, ficámos a saber, através do Quincy Institute for Responsible Statecraft, que os EUA têm cerca de 750 bases militares espalhadas por 80 países e outros territórios [83].

Na América Latina e nas Caraíbas, onde existem apenas 33 países, os Estados Unidos dispõem, segundo o SIPER,  de 76 bases militares. Entre as mais conhecidas, 12 estão no Panamá, 12 em Porto Rico, 9 na Colômbia, 8 no Peru, e entre as maiores 1 está em Cuba, 1 nas Honduras, 1 em Porto Rico e outra em Aruba. Na América Latina, é mais fácil listar os países onde as forças armadas dos EUA não estão presentes: Belize, Nicarágua e Costa Rica na América Central; Venezuela, Guiana, Suriname, Bolívia, Paraguai e Uruguai na América do Sul; Jamaica, Haiti e República Dominicana (e a maioria das nações insulares da região) no Caribe. Os Estados Unidos têm um ramo das suas Forças Armadas sempre pronto a intervir na América Latina, considerada sua coutada exclusiva, desde a adopção da doutrina Monroe em 1823. Trata-se do United States Southern Comand ou Southcom ou Comando do Sul, com sede em Miami e com forças em território norte-americano, mas também com dezenas de pontos de apoio e bases no exterior, algumas assumidas, outras de carácter reservado e algumas mesmo secretas [84].  

azul estão representados os países onde os EUA têm bases militares. Os dados são de 2017. Fonte: Swiss Institute For Peace and Energy Research (SIPER)

Na África, os militares americanos estão presentes em todo o norte, de Marrocos ao Egipto (e incluindo a Líbia); em algumas nações da África Ocidental, incluindo Burkina Faso e Níger; e na África do Sul, no Zimbábue e no Malawi. Presença militar conspícua dos EUA: o aglomerado de países no Corno da África, desde a Somália até o Sudão do Sul devastado pela guerra. Ausência conspícua: África central.

Na Europa, os EUA têm bases militares na Alemanha, Itália, Reino Unido, Espanha, Polónia e Portugal (Açores), entre outros países. Na verdade, tal como para a América Latina, é mais fácil e instrutivo listar os países sem presença militar americana: Irlanda, Suíça, Áustria, Suécia, Finlândia, Sérvia – os países fora da OTAN (ou NATO no acrónimo inglês) – e o Montenegro (um membro recente [2017] da OTAN). E, claro, a Rússia e a Bielorrússia. Há algumas décadas isso teria parecido fantasista, mas agora há tropas americanas na Ucrânia, Geórgia, Arménia e Albânia.

O quartel-general das Forças Armadas dos EUA na Europa está sediado na guarnição de Wiesbaden, próximo de Frankfurt, no centro-oeste da Alemanha. A Alemanha abriga também cinco das sete guarnições das tropas americanas na Europa, cada uma das quais englobando várias bases em locais diferentes, que abrangem actualmente cerca de 29 mil militares. As outras duas guarnições estão na Bélgica e na Itália.  Na Ásia as maiores bases militares estão no Japão e na Coreia do Sul [85].

As bases militares externas e os navios de guerra e submarinos americanos que sulcam os oceanos do planeta abrigam cerca de 200.000 militares. Com este enorme poderio, os Estados Unidos são hoje a única potência militar com um alcance verdadeiramente global, capaz de travar guerras, promover mudanças de regime, invadir e ocupar países e territórios em qualquer ponto do planeta. Desde 1948 até à data os EUA já fizeram 342 intervenções militares ! [86].

15.8. O lema orwelliano da OTAN e do seu mentor e comandante em chefe

Quanto à OTAN (ou NATO no acrónimo inglês), é como se sabe, uma criatura dos EUA, dominada pelo Pentágono (alcunha doméstica do ministério da guerra dos EUA).

De 1949 (data da sua criação), a 1991 (data da implosão da União Soviética), a OTAN foi uma aliança militar alegadamente defensiva contra a alegada ameaça que constituiriam as tropas do Pacto de Varsóvia, uma aliança militar entre a União Soviética e os países seus satélites na Europa de Leste. Esta justificação não colhe, porque o Pacto de Varsóvia foi formado em 1955, alegadamente como aliança militar defensiva contra a alegada ameaça que constituía a OTAN (fundada 6 anos antes).

Soldado polaco das tropas da OTAN (Organização de Tratado do Atlântico Norte)

Seja como for, a OTAN não atacou nem bombardeou nenhum país do Pacto de Varsóvia ou outro qualquer país durante esse período, apelidado de “guerra fria”. Nesse sentido, os seus defensores podem afirmar que a OTAN fez jus ao qualificativo de aliança “defensiva” durantes esses anos. Mas passou a ser uma aliança ofensiva depois do derrube do muro de Berlim (1989), da dissolução do Pacto de Varsóvia (1991) e da implosão da União Soviética (1991) até aos nossos dias.

Ou seja, quando o inimigo oficial da OTAN se evaporou e desapareceu com ele a alegada ameaça que lhe servia de justificação, quando a OTAN deveria, por conseguinte, ter-se dissolvido por ter perdido a sua autoproclamada razão de existência, foi precisamente quando a OTAN achou que poderia alargar-se (agrupava 11 países satélites dos EUA em 1949, entre os quais o Portugal de Salazar, hoje são 30) e passar a actuar como uma aliança ofensiva.

preto os países que faziam parte da OTAN até 1989. A vermelho, expansão da OTAN para o leste da Europa a partir de 1989, englobando muitos dos países outrora membros do Pacto de Varsóvia. O mapa já está desactualizado, porque a República da Macedónia do Norte juntou-se também à OTAN em 2020. Fonte: SIPER, 2017

Começou por bombardear a Bósnia em 1995 e a Sérvia em 1999; em 2003 atacou e invadiu o Iraque; em 2011 atacou e invadiu o Afeganistão; também em 2011 bombardeou a Líbia. De 2014 a 2018, interveio continuamente na Síria, primeiro contra o Daesh e em seguida para derrubar Bashar al-Assad. Parafraseando Orwell, eu diria que a OTAN usou durante muito tempo uma máscara, à qual o seu rosto acabou por se moldar [87]  — a máscara pacifista de um potentado belicista. 

Em suma, o lema da OTAN e dos EUA, o seu mentor e comandante em chefe, parece ter saído directamente das páginas do romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell: “A Paz é o estado de prontidão para fazer a guerra — e é por isso que nos armamos até aos dentes e atacamos antes de sermos atacados!”

15.9. A imprensa é honesta ou desonesta?

Esta foi uma pergunta que George Orwell fez a si próprio, em 1941, pensando na imprensa inglesa. E respondeu-lhe assim:

Em tempos normais é profundamente desonesta. Todos os jornais que contam vivem da publicidade que conseguem angariar, e os anunciantes exercem uma censura indirecta nas notícias. No entanto julgo que não existe nenhum jornal na Inglaterra que possa ser subornado com dinheiro vivo [88]. 

Entretanto, a situação piorou muito neste aspecto, porque agora há o jornalismo digital, onde a publicidade vale ouro, tal como na televisão. A influência dos anunciantes sobre os conteúdos jornalísticos cresceu exponencialmente com o jornalismo digital. Actualmente são os jornalistas que se esforçam por escrever só o que agrada aos anunciantes, sobretudo sob a modalidade do branded content — ou seja, o conteúdo patrocinado por uma “marca” (um produto de prestígio) e produzido expressamente para ir ao encontro dos seus desejos. A mim parece-me que o branded content é um bom exemplo do que é «ser subornado com dinheiro vivo».

Seja como for, o branded content é apenas uma das modalidades através das quais os anunciantes controlam os conteúdos dos órgãos de comunicação social, incluindo os jornais. Todas essas modalidades fazem parte, por exemplo, do “modelo de negócio” do jornal digital Observador.

Uma vez que o acesso aos conteúdos não é pago, a publicidade é a principal fonte de rendimento do diário. Segundo os Termos e Condições presentes no website, são três as formas de relação com patrocinadores (Observador, s.d.2). Para além da publicidade “tradicional”, desenvolvida externamente, existe ainda: o “conteúdo trazido por”, que consiste em conteúdo patrocinado produzido pelo anunciante; o “conteúdo apoiado por”, que engloba conteúdos produzidos de forma independente pelo jornal, viabilizados por anunciantes institucionais; e o “conteúdo patrocinado”, que é editorialmente independente, mas cujo patrocínio vai ao encontro da abordagem prevista, ou seja, o anunciante propõe a exploração de um determinado tema, mas a produção dos conteúdos depende exclusivamente do Observador.

Mais recentemente, em Junho de 2016, a área de branded content passou a funcionar sob a marca OBS Lab. Branded content pode ser literalmente traduzido como “conteúdo de marca”, cuja definição corresponde ao “conteúdo patrocinado” que descrevemos acima, i.e., a produção de conteúdo de acordo com briefing [instruções orais] do anunciante. Nestes casos, o anunciante não tem intervenção no conteúdo, mas o mesmo é-lhe apresentado previamente à sua publicação, “por uma questão ética da nossa parte, e de conforto para o anunciante” (Directora comercial em entrevista a 04-11-2016). O branded content pode ser apresentado sob a forma de texto, vídeo, fotogaleria, infografia, mas também pode surgir noutros formatos como seminários online (webinars) ou conferências. Este serviço é apresentado no website nos seguintes moldes: “Fazendo jus ao compromisso de rigor e qualidade que tem vindo a pautar o Observador, o OBS Lab será o palco perfeito para as marcas contarem a sua história de forma mais completa e indelével, fazendo chegar o melhor do seu conteúdo aos leitores” (Observador, s.d.3). Noutro local lê-se: “Damos voz às marcas. Contamos histórias. Criamos experiências. Fazemos a diferença através do conteúdo que produzimos nos mais diversos formatos e que fazemos chegar ao leitor com alto impacto e envolvimento” (Observador, s.d.4). Todos os conteúdos sob a chancela OBS Lab estão devidamente assinalados, com a referência “conteúdo patrocinado por” e com a marca correspondente junto do(s) autor(es), na grelha estão identificados a cinzento, e depois de estarem na homepage são incluídos nas secções correspondentes. Até ao final de 2016, apenas uma campanha foi incluída como “conteúdo apoiado por”. Tratou-se de uma campanha encomendada pela seguradora Fidelidade, intitulada Para que a vida não pare” e desenvolvida por uma das cronistas do jornal, Laurinda Alves. Para além de vários conteúdos apresentados no website, a campanha contou ainda com a organização de uma conferência sobre a temática (Observador, s.d.5).

O branded content reflecte uma das estratégias actuais dos órgãos de comunicação em que os conteúdos pagos reflectem uma certa “hibridização”, como refere Joaquim Fidalgo, “de modo a que mensagens tipicamente destinadas a favorecer interesses comerciais apareçam aos olhos do público com as marcas de credibilidade e desinteresse que caracterizam [...] as mensagens jornalísticas” (Fidalgo, 2016, p. 45). Apesar de colocados lado a lado com notícias comuns, não são os jornalistas da equipa do jornal, mas sim freelancers que produzem conteúdos para o OBS Lab. [89]

A classe dos proprietários capitalistas e dos gestores das sociedades comerciais (incluindo os bancos [90]) que domina toda a actividade económica nos países onde vigoram regimes (republicanos ou monárquicos) de oligocracia electiva liberal, dispõe de outros meios poderosos para influenciar a opinião pública num sentido que seja favorável aos seus interesses. Os mais subtis foram descritos por Edward S. Herman e Noam Chomsky em Manufacturing Consent: A propaganda model (Pantheon Books, 1988) e por Noam Chomsky em Necessary Illusions: Thought Control in Democratic Societies (South End Press, Pluto Press,1989).

Mas há outros meios de influenciar a opinião pública igualmente (se não mais) subtis, como, por exemplo, a constituição de fundações neo-filantrópicas [91] que financiam certos laboratórios de ideias (Ingl. think tanks) e não outros; que criam vastos programas de bolsas de estudo destinados a professores, doutorandos e pós-doutorados em certas áreas e não noutras; que favorecem com as suas generosas doações certas linhas de investigação e não outras; que promovem e divulgam certos estudos e não outros [92]. E há também algumas maneiras bastante óbvias de levar a água ao seu moinho, como a compra de espaço publicitário nos jornais e revistas (com e sem suborno dos jornalistas), sucintamente descrita mais acima; a criação de agências de meios publicitários; e a própria compra de jornais e revistas de grande circulação (em papel impresso ou digitais), de estações de rádio e televisão.

Por exemplo, em Portugal, o maior grupo de imprensa é a sociedade comercial Cofina SPGS, presidida por Paulo Fernandes. A Cofina SPGS é proprietária de diversas publicações, desde jornais diários (Correio da Manhã, Record, Jornal de Negócios e Destak) a revistas (Sábado e TV Guia), de uma estação de televisão (CMTV), além de projectos exclusivamente online como Aquela Máquina e Flash.

O grupo Impresa, presidido por Francisco Pinto Balsemão, detém oito canais de televisão (SIC, SIC Caras, SIC Internacional, SIC K, SIC Mulher, SIC Notícias, SIC Radical e DStv – estação emitida apenas em África), o jornal Expresso e as publicações Blitz e Volante. A Impresa é também accionista da agência de notícias Lusa, na qual tem uma participação de 22,35%.

O Grupo Global Media, do qual se desconhecem os accionistas (porquanto não está cotado em Bolsa) detém dois jornais regionais (Açoriano Oriental e Diário de Notícias da Madeira) e sete jornais e publicações nacionais (Jornal de Notícias, Diário de Notícias, O Jogo, Dinheiro Vivo, Delas, Evasões e Volta ao Mundo). A Global Media detém ainda a Rádio Notícias que, através de várias frequências, emite a rádio TSF Press. O grupo é ainda o maior accionista privado da agência Lusa, em que detém uma participação de 23,36%.

O Grupo Sonaecom, que é controlado em quase 90% por empresas do universo Sonae, da família Azevedo, é o único accionista da Público- Comunicação Social, que detém o jornal diário Público, além de 50% da Sociedade Independente de Radiodifusão Sonora (SIRS), a empresa que controla a Rádio Nova (os restantes 50% são detidos, em partes iguais, pelos empresários Álvaro Covões e Luís Montez) e 1,38% da agência Lusa.

Luís Amaral, o dono do grupo polaco Eurocash (empresa de distribuição que actua em mercados como o de bens alimentares) é o maior accionista da empresa Observador On Time, que controla mais de 45,6% do jornal Observador. Uma rádio online e com frequências para emitir nas zonas urbanas de Lisboa e do Porto é o novo projecto da Observador On Time.

A empresa espanhola Promotora de Informaciones (Prisa), através da Vertix, detém 94,69% da Media Capital (o também espanhol ABanca é dono de 5,05% das acções), um dos maiores grupos de comunicação social portugueses. A Media Capital detém, a 100%, seis canais de televisão, dos quais o destaque vai para a TVI, que emite em sinal aberto. Na televisão por cabo, o grupo conta com a TVI 24, TVI Ficção e TVI Reality, enquanto a nível internacional a aposta passa pela TVI África e TVI Internacional.  A nível editorial, e depois da venda em 2013 dos seus últimos títulos em papel (Lux, Lux Woman e Revista de Vinhos), o projecto editorial com mais notoriedade é a página online do Mais Futebol. O grupo é também um dos maiores operadores de rádio em Portugal, controlando, a 100%, cerca de 20 empresas detentoras de licenças de emissão radiofónica. As frequências controladas por estas instituições estão ao serviço das diversas emissoras do grupo: Rádio Comercial, M80, Cidade FM, Smooth FM e Vodafone FM.

Com 16,6% de capital, António Mota é o maior accionista da Swipe News, a empresa que detém o jornal online ECO. A estrutura accionista deste projecto é constituída por várias empresas e investidores que, em conjunto, controlam mais de 55% da Swipe News.

Segundo a ERC, Mário Arga e Lima é o accionista dominante da Sociedade Vicra Desportiva, a proprietária do jornal desportivo A Bola, assim como do canal com o mesmo nome detido pela Vicra Comunicações. O grupo controla ainda a revista de automóveis Autofoco.

Joaquim Oliveira é o principal accionista da Olivedesportos, a que pertence a Sport TV, o primeiro canal premium português. Esta empresa de canais de desporto possui oito estações, dos quais duas em exclusivo para África. As operadoras de telecomunicações MEO, NOS e Vodafone detêm, cada uma, uma fatia de 25% da Sport TV. Além dos canais em sinal fechado, o grupo lançou há dois anos a Sport TV +, a sua primeira experiência de um canal sem custos acrescidos para o consumidor [93].

15.10. Base económica das oligocracias electivas liberais

Já descrevi de modo suficiente a base económica dos regimes de oligocracia electiva e liberal na 4ª parte deste ensaio (secções 11.3 e 11.4) e na 5ª parte (secção 13), razão pela qual não me alongarei mais sobre o assunto. Acrescento apenas que é fácil perder de vista para quem vive na Europa ocidental que a norma da qualidade de vida para a economia capitalista mundial é a Cidade do México (não Berlim), Lagos (não Estocolmo), Rio de Janeiro (não Lisboa), Bombaim (não Londres), Luanda (não Paris), Caracas (não Barcelona), Joanesburgo (não Milão), Dakha (não Copenhaga), etc., onde a mais desbragada opulência convive paredes-meias com a miséria mais abjecta.

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N.B. Este ensaio está dividido em 8 partes, sendo esta a sexta:

1ª parte. Os critérios e os conceitos principais

2ª parte. Um excurso sobre o poder explícito

3ª parte. A igualdade em relação ao poder político

4ª parte. A desigualdade em relação ao poder explícito

5ª parte. A igualdade em relação ao poder económico

(6ª parte. O poder explícito numa oligocracia electiva liberal)

7ª parte. O poder explícito numa democracia

8ª parte. A esquerda acomodatícia

que podem ser encontradas, por esta ordem, no Arquivo do Blogue, 2021, Agosto,

no fim da coluna da direita do blogue.

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Notas 

[68] Estes Conselhos Superiores são órgãos colegiais de gestão e disciplina dos juízes e dos procuradores da república de Portugal. Não são, por isso, órgão jurisdicionais (não são tribunais), mas antes órgãos administrativos. No entanto, dadas as suas funções, tem inegavelmente um peso político específico na actividade dos tribunais.

[69] Artigo 99º do estatuto do Ministério Público: «Artigo 99.º Estabilidade. Os magistrados do Ministério Público não podem ser transferidos, suspensos, promovidos, aposentados ou reformados, demitidos ou, por qualquer forma, mudados de situação a não ser nos casos previstos no presente Estatuto» (Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto; Diário da República 1ª série, nº163 de 27 de Agosto de 2021).

[70] Charles Sanders Peirce (1897), citado por Umberto Eco, “O Signo”, in Enciclopédia Einaudi, Vol. 31 (O Signo), Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, p. 11-51. No Tratado do Signo, [Tratactus de Signis] escrito pelo dominicano português João de São Tomás em 1637, a formulação aliquid stat pro aliquo, surge assim definida: «aquilo que representa à potência cognitiva alguma coisa diferente de si». O signo é: “aquilo [aliquid] que está por [stat pro] aqueloutro [aliquo]”, ao que J. de S. Tomás acrescenta (antecipando Peirce) “à potência cognitiva”. O conceito de potência cognitiva é aristotélico.

[71] António Fidalgo e Anabela Gradim, Manual de Semiótica (Universidade da Beira Litoral, 2004/2005), p. 12.

[72] Estes termos foram propostos por Cornelius Castoriadis. Ver, por exemplo, Une société à la dérive (Paris : Éditions du Seuil. 2005, pp.24 e 223).

[73] Nina Agrawal, “There’s more than the CIA and FBI: The 17 agencies that make up the U.S. intelligence community”, Los Angeles Times, January 17, 2017

[74] Dana Priest & William Arkin, Top Secret America: The Rise of the New American Security State. New York, Boston, London. Little, Brown and Company, 2011.

[75] Sarah Moughty, “Dana Priest: Top Secret America Is «Here to Stay»”, September 6, 2011 (https://www.pbs. org/wgbh/frontline/article/dana-priest-top-secret-america-is-here-to-stay/)

[76] Edward Snowden, Permanent Record (New York: Henry Holt and Company 2019). Traduzido em Português com o título Vigilância Massiva [ler, maciça] Registo Permanente (Lisboa: Grupo Planeta, 2019). A citação encontra-se nas pp. 219-20 da edição portuguesa.  

[77] Esta foi uma das várias surpresas com que o camaleónico presidente Obama brindou os seus numerosos admiradores, tanto interna como externamente, para ilustrar o seu lema: “Yes, we can”. Outra, foi a que reservou para o júri norueguês que o galardoou com o prémio Nobel da Paz (908 mil euros, uma medalha e um diploma), em 2009, «pelos seus extraordinários esforços com vista a reforçar a diplomacia internacional e a cooperação entre os povos». Para fazer jus a esse prémio, Obama mandou bombardear a Líbia em 2011 (pressurosamente acompanhado pelos seus aliados da NATO, especialmente a França, o Reino Unido e o Canadá) para ajudar os seus peões no terreno a derrubar o governo de Muammar al-Kaddafi, semeando um caos sangrento que arrasou esse país e que se prolongou até aos nossos dias. Mais tarde, para consolidar a sua reputação de grande obreiro da paz mundial, Obama mandou expandir o programa americano de bombardeamentos com drones no Afeganistão e no Iraque.

[78] Ian Trainor, Philip Oltermann & Paul Lewis, “Angela Merkel’s call to Obama: are you bugging my mobile phone?”, Guardian, 24 October, 2013

[79] E. Snowden, op.cit., p.327.

[80] Este excerto foi extraído de Top Secret America: The Rise of the New American Security State, de Dana Priest e William M. Arkin. New York, Boston, London: Little, Brown and Company, 2011.

[81] Foram estas as conclusões a que chegou um estudo de Alex Nowrasteh (Terrorismo e Imigração: Uma Análise de Risco), do Cato Institute, um think tank americano (cf. “Afinal, de onde vêm os terroristas que atacam nos EUA? (à atenção de Trump)”, Público, 4 de Fevereiro de 2017).

[82] “EUA reconhecem ter morto 4 cidadãos em ações de contra-terrorismo”, TSF, 22 de Maio de 2013 (https://www.tsf.pt/ internacional/eua/eua-reconhecem-ter-morto-4-cidadaos-em-acoes-de-contra-terrorismo-3234476.html).

[83] Alexandre de Robaulx de Beaurieux, US Military Bases, SIPER, January 2017; Os cinco impérios militares do mundo” (https://gov-civ-guarda.pt/worlds-five-military-empires); D.Bandow (2021, October 4),750 Bases in 80 Countries Is Too Many for Any Nation: Time for the US to Bring Its Troops Home. Cato Institute.

[84] Vid. a página da Internet https://www.southcom.mil/. Ver também Flávio Balbino Figuera, A Presença Militar Atual dos EUA na América do Sul e no Atlântico Sul e seus Reflexos para o Brasil. Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro, 2018. 

[85] Vid. “Os 7 países onde os EUA oficialmente realizam operações militares hoje” (https://www.bbc.com/portuguese/ internacional-43438581); “Saiba quais são os países com mais militares dos EUA” (https://forbes.com.br/colunas/2017/03/ saiba-quais-sao-os-paises-com-a-maior-presenca-de-militares-norte-americanos/); “Bases Planetárias dos Estados Unidos. O império do terror (https://www.olado oculto.com/noticias.php?id=250); “Militares americanos na Alemanha, um legado da Segunda Guerra” (https://www.dw.com/pt-br/).

[86] M.D. Toft (2017, December 10),  Why is America Addicted to Foreign Interventions? The National Interes.  As outras potências militares, são anãs ao pé dos EUA. O Reino Unido também tem tropas na Alemanha desde Segunda .Guerra Mundial. Grande parte da presença militar do Reino Unido em todo o mundo é distribuída por todo o seu antigo império colonial: Chipre na Europa; Canadá e Belize nas Américas; Serra Leoa e Quénia na África; Qatar e Emirados Árabes Unidos, no Oriente Médio; Singapura e Brunei no Sudeste Asiático. Tem também presença militar no Afeganistão e no Nepal. Tudo isso soma 12 países. A fonte que utilizo (SIPER) não conta tropas britânicas em territórios ultramarinos do Reino Unido, como as Malvinas, Gibraltar, Akrotiri (em Chipre, dentro da “área de base soberana”), Bermudas ou Ascensão.

A França tem bases militares em 11 países. A presença militar da França está focada na África, mais particularmente numa série de ex-colónias: do Senegal e da Mauritânia na costa ocidental do continente, passando por Mali, Burkina Faso, Costa do Marfim, Níger e Chade até a República Centro-Africana. Não contíguos, mas também incluídos, estão o Gabão, perto do equador; e Djibouti, estrategicamente localizado no extremo sul do Mar Vermelho. Esta vasta área já foi comumente chamada de Françafrica, um termo já abandonado por causa de suas conotações imperialistas. No entanto, o exército francês ainda intervém regularmente para apoiar governos e suprimir rebeliões. As tropas francesas estão também presentes na Guiana Francesa, um território dito ultramarino. Duas outras bases militares francesa situam-se na Alemanha, desde a Segunda Guerra Mundial e nos Emirados Árabes Unidos.

A Rússia mantém bases militares em 9 outros países, muitos no “estrangeiro próximo”: antigos Estados-membros da União Soviética. Isso inclui, de acordo com o SIPER, duas bases na Arménia, quatro na Bielorrússia, quatro no Cazaquistão, uma no Quirguistão e sete no Tajiquistão. A Rússia também mantém bases em duas outras ex-repúblicas soviéticas, mas sem a permissão do governo local: uma na Transnístria, uma república separatista na Moldávia; quatro na Ossétia do Sul e cinco na Abkhazia, duas regiões separatistas na Geórgia. Mais longe, a Rússia tem uma base militar no Vietnam e duas na Síria. A China dispõe apenas de uma base militar no exterior – em Djibuti. (Cf. Alexandre de Robaulx de Beaurieux, US military bases, January 2017; Military bases of Russia, November 2016; Military bases of France, November 2016; Great Britain military bases. November 2016; Military bases of China, November 2016, SIPER).

[87] A frase de Orwell é: «Usa uma máscara, à qual o seu rosto acaba por se adaptar.» Refere-se ao momento epifânico em que percebeu que teria de matar um elefante de trabalho, a contragosto, para corresponder às expectativas de uma multidão de birmaneses sobre os presuntivos deveres de um oficial inglês da Polícia Imperial Indiana, na Birmânia, no tempo do Império Britânico. Cf. “Matar um elefante”, em George OrwellEnsaios Escolhidos (Lisboa. Relógio D’Água Editores, 2016), p.15.

[88] George Orwell. The Lion and the Unicorn: Socialism and the English Genius. Publicado originalmente por Searchlight Books, em 19 de Fevereiro de 1941. Disponível em https://www.Orwellfoundation.com/the-orwell-foundation/ orwell/essays-and-other-works/the-lion-and-the-unicorn-socialism-and-the-english-genius/

[89] José Luís Garcia et al., Os media em mudança em Portugal. Implicações da digitalização no jornalismo (ERC, 2018), pp. 43-44,

[90] «O Direito das sociedades comerciais rege as instituições de crédito e as sociedades financeiras… As normas comerciais, assim competentes para intervir, sofrem diversos influxos e adaptações.» Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário (5.ª Coimbra, Ed., Almedina, 2015) p. 57).

[91] Convém saber que a neofilantropia, de que a Fundação Ford é um perfeito exemplo, «não pretende oferecer donativos aos pobres, mas fazer uso das ciências sociais para reformar as sociedades. Desde a revisão de sua missão, no pós-guerra, a Fundação [Ford] havia se fixado na meta de influenciar as políticas públicas e promover reformas institucionais não só a partir do convencimento dos governos, mas, especialmente, pela mobilização de base. A aventura multiculturalista nas universidades americanas derivou da combinação dos dois paradigmas» (Magnoli 2009, p.83). No Brasil, passou-se algo de muito semelhante, como a analisou minuciosamente o mesmo autor (ver também nota [92]).

[92] Um bom exemplo é o patrocínio que a Fundação Ford (FF), a maior entidade neofilantrópica do mundo (14 mil milhões de dólares de fundos patrimoniais; 500 milhões de dólares anuais em donativos) deu aos “direitos das minorias” e, em particular, às políticas do “multiculturalismo”, da “diferença” e da “diversidade” nos EUA e no estrangeiro (especialmente no Brasil) depois do assassinato de Martin Luther King Jr. (1968), dirigente da National Association for the Advancement of Colored People (NAAPC). Em 1960, o item “direitos das minorias” representava 2,5% dos financiamentos da FF; em 1970, atingia 40%. «No fim da década de 1960, a FF estava diante de um cenário de crise política que se agravou ao longo do primeiro mandato de Nixon, quando as coalizões sociais [em Portugal, dizemos “coligações”] articuladas no movimento pelos direitos civis voltavam-se para a luta contra a Guerra do Vietnã. O núcleo dirigente da Fundação interpretou a radicalização dos protestos como um sintoma de funcionamento defeituoso do pluralismo político e formulou o conceito de multiculturalismo como uma ferramenta para restabelecer a normalidade nas engrenagens da democracia [entenda-se: da oligarquia electiva e liberal, N.E.]. De acordo com a lógica do multiculturalismo, as amplas coalizões [em Portugal dizemos “coligações”] sociais deveriam dar lugar a organizações e movimentos específicos, delineados em função dos interesses de cada minoria. A Fundação ajudaria a esculpir esses movimentos, oferecendo-lhes plataformas políticas e fundos capazes de sustentar grupos de pressão. (…) Investigando as fundações filantrópicas, o sociólogo Craig Jenkins registou que elas funcionam como “porteiros” [Ingl. gatekeepers], financiando os movimentos e as iniciativas que, por essa via, conseguem converter suas bandeiras em políticas públicas. “No processo, elas também selecionaram as novas organizações que se tornaram traços permanentes da paisagem política”» (Demétrio Magnoli, Uma Gota de Sangue. História do Pensamento Racial. São Paulo: Editora Contexto, 2009). Foi precisamente o que ocorreu nos EUA a partir da era de Richard Nixon. Juntamente com o programa de incentivo ao “capitalismo negro” de Nixon, a intervenção da FF ajudou a desvirtuar a NAAPC (a organização histórica do movimento dos direitos cívicos dos anos 1954-1968) transformando-a num veículo da política de “affirmative action” com base na noção obscurantista da “raça” e patrocinando outros movimentos militantes, como o movimento dos Chicanos, com base na noção pau-para-toda-a-colher de “etnicidade”. Foi também o que aconteceu no Brasil, a partir dos anos 1990, com o patrocínio que a FF, através da sua delegação no Brasil, deu às ONG do chamado “movimento negro brasileiro” e aos seus porta-vozes e aliados nas universidades, que o orientaram para reivindicar (com êxito) a obtenção de “quotas raciais” nas universidades brasileiras (cf. Demétrio Magnoli, op.cit., e João Bernardo, A outra face do racismo. 5) Será o racismo inerente ao capitalismo? Passa Palavra,18-09-2020).

Em 2016, a FF anunciou planos para financiar o Movimento Black Lives Matter durante 6 anos (Brook Kelly-Green, Brook & Luna Yasui, Luna (July 19, 2016), “Why black lives matter to philanthropy”.https://www.fordfoundation.org/just-matters/just-matters/posts/why-black-lives-matter-to-philanthropy). A soma doada ao Black Lives Matter pela Fundação Ford, juntamente com outros doadores, foi, nesse ano, de 100 milhões de dólares americanos (“Black Lives Matter cashes in White $100 Milton forma liberal foundations.” The Washington Times. August 16, 2016. http://www.washingtontimes. com/ news/2016/aug/16/black-lives-matter-cashes-100-million-liberal-foun/).

[93] “Saiba quem são os donos dos grupos de Media portugueses”, Clube Português de Imprensa, (http:// clubedeimprensa.pt/Artigo/2939).

 

(Temas 2, 3 e 4)

 

“Esquerda” e “Direita” trocadas por miúdos

do ponto de vista da democracia (7ª parte)

— O poder explícito numa democracia 

José Catarino Soares

 

16. A autonomia do poder explícito

Numa democracia, os cidadãos gozarão de todas as liberdades, direitos e garantias que existem actualmente no âmbito das oligocracias electivas liberais, e gozarão ainda de outros direitos, liberdades e garantias que não têm cabimento no âmbito destas e de que falaremos mais adiante.

Como já tive ocasião de assinalar (4ª parte, secção 11.2), as liberdades, direitos e garantias pessoais que usufruímos actualmente subsistem de uma forma principalmente defensiva e como sedimento de lutas emancipadoras multisseculares (i) quer dos camponeses-caseiros (a classe servil dos campos), da arraia-miúda (a população urbana de pé descalço, os trabalhadores braçais desprovidos de quaisquer direitos e recursos), dos artesãos e mestres dos ofícios subalternos, durante a longa vigência do regime senhorial de produção [94]; (ii) quer da burguesia de negócios (ligada ao comércio de longo curso, à expansão marítima e à indústria naval) e dos membros das protoprofissões liberais (mestres-construtores, físicos [médicos], boticários, lentes, jurisconsultos) na época dos Descobrimentos e do Mercantilismo (1415-1750), (iii) quer, sobretudo, das lutas dos trabalhadores assalariados e das mulheres (incluindo mulheres das classes privilegiadas) desde que o modo capitalista de produção se tornou dominante à escala mundial.

Os deputados constituintes de 1976 em Portugal chamaram a esse acervo de direitos, liberdades e garantias “Estado de direito democrático” (artigo 2ª da Constituição da República Portuguesa). Esta é também uma expressão muito prezada por constitucionalistas, politólogos, políticos profissionais e jornalistas. Mas isso não lhe retira o seu carácter abstruso. Não se trata de “Estado” (aparelho de organização hierárquica, burocrática e coerciva da heteronomia do poder explícito), mas, precisamente, do seu oposto: dos direitos, liberdades e garantias necessárias à autonomia individual e colectiva que permitem dispensar o Estado e relegá-lo para o museu dos artefactos obsoletos.

Por isso, numa democracia tudo (incluindo a amplitude e a intensidade do uso dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos) terá de ser diferente, muito diferente e, em muitos casos, diametralmente oposto do que sucede nas oligocracias electivas liberais.

Por exemplo, não haverá juízes nem magistrados do ministério público vitalícios (porque a justiça será administrada de um modo democrático, por meio de júris seleccionados por tiragem à sorte no conjunto dos cidadãos para missões pontuais); não haverá 1º ministro (porque não haverá ministros nem secretários de Estado), não haverá chefes de Estado (porque não haverá Estado); não haverá partidos no governo e na oposição (porque a política deixará de ser uma disputa eleitoral e parlamentar entre várias facções rivais de gestores e candidatos a gestores que aspiram a controlar as magistraturas dos três ramos do poder político e os partidos passarão a ser associações de educação, esclarecimento e debate políticos, em vez de máquinas de conquista e distribuição do poder); não haverá Forças Armadas profissionais, exclusivamente assentes em voluntários contratados (porque serão substituídas por uma milícia cidadã de defesa territorial); nem polícias de Estado (porque serão substituídas por uma polícia cidadã).

16.1. Antevisão dinâmica do poder político numa democracia 

Vejamos então, com suficiente pormenor, o que distingue a democracia da oligocracia electiva liberal.

O poder legislativo e o poder governativo são exercidos, supremamente, pela Assembleia Adsumus dos Cidadãos, que reúne todos os cidadãos, coadjuvada por colégios e comissões de magistrados, como os que são mencionados no ponto 3º, mais abaixo.

N.B. Adsumus é uma palavra latina que significa “estamos presentes” ou “aqui estamos”. Uma Assembleia Adsumus dos Cidadãos é uma assembleia em que estão presentes (ou têm o direito de estar presentes) todos os cidadãos de um país ou de uma área territorial mais pequena (p.ex. uma cidade), como sucedia na Ekklesia [Gr. antigo: ἐκκλησία – Assembleia] ateniense nos séculos V e IV a.C.

Como é fisicamente impossível reunir a Assembleia Adsumus dos Cidadãos no mesmo sítio e à mesma hora num país com milhões de adultos, a Assembleia Adsumus dos Cidadãos tomará a forma de uma Assembleia de voto electrónico (por meio da rede de telemóveis [2G, 3G, 4G ou 5G] e da internet) que será convocada sempre que necessário.

Dado ser economicamente impossível, por razões óbvias, reunir diariamente a Assembleia Adsumus dos Cidadãos, será constituído um Conselho Permanente de Deliberação (com este ou outro nome) encarregado de (i) preparar a legislação a aprovar pela Assembleia Adsumus dos Cidadãos, (ii) assegurar a gestão quotidiana dos assuntos governamentais e (iii) coordenar a actividade quotidiana da administração pública. Para assegurar estas tarefas de maneira eficaz e eficiente, o Conselho Permanente de Deliberação constituirá no seu seio secções (por exemplo, legislativa [i], governativa-executiva [ii] e governativa-administrativa [iii]) e um número considerado adequado de colégios e comissões especializadas.

Os membros do Conselho Permanente de Deliberação são escolhidos por tiragem à sorte a partir do conjunto dos cidadãos.  Os membros dos colégios e comissões do Conselho Permanente são escolhidos por sorteio de entre os seus membros ou por rotatividade dos mesmos.

Em casos muito específicos, quando o exercício de tal ou tal magistratura requeira ou aconselhe a posse de uma competência técnica muito específica, de um saber-fazer pericial e/ou de uma experiência muito particular (como, por exemplo, no caso dos comandantes das forças armadas milicianas que substituirão as forças armadas profissionais ou dos embaixadores ou dos avaliadores do tribunal de contas), a escolha dos magistrados poderá ser feita por eleição (sendo os eleitores os membros do Conselho Permanente de Deliberação) ou por sorteio, a partir de uma lista curta de candidatos previamente seleccionados por concurso público.

Todas as decisões estratégicas são tomadas democraticamente pela Assembleia Adsumus. Essas decisões incluem, no mínimo, a Constituição, todas as alterações constitucionais, todas as leis de bases e a aprovação do Orçamento anual  as receitas e despesas das rubricas principais do país, nomeadamente aquelas que dizem respeito aos bens públicos de que toda a população beneficiará, como, por exemplo:

que verbas do Orçamento anual do país devem ser reservadas:

# para o Serviço Nacional de Saúde (incluindo os cuidados continuados, os cuidados paliativos e os serviços médicos e de enfermagem ao domicílio)

# para as pensões de reforma

# para a segurança social (subsídios de doença, invalidez, incapacidade, etc.)

# para os infantários, as escolas, os politécnicos e as universidades da rede pública;

# para a emergência e protecção civil

# para a investigação científica e tecnológica

# para as artes e desportos 

#para a defesa territorial

# para novos investimentos, em especial os relativos às condições gerais de produção.

O mesmo vale dizer para o número, o montante global e as taxas (os escalões) do(s) imposto(s) destinado(s) a financiar as despesas com os bens públicos. Tudo isso pode ser aprovado por sufrágio directo e universal usando, como foi dito no 2º ponto, telemóveis (2G, 3G, 4G ou 5G) ou computadores ligados à Internet [95].

As três fases operacionais (recenseamento eleitoral, votação, publicação dos resultados) do sistema Handivote de voto electrónico, concebido e desenvolvido por William Paul Cockshott e Karen Renauld. Este sistema é muito simples de manusear, completamente seguro, rapidíssimo e fiável. Ainda por cima, só necessita da Internet e de telemóveis individuais com ligação à Internet para funcionar.

O poder jurisdicional é exercido por tribunais constituídos por júris seleccionados por tiragem à sorte, a partir do colectivo dos cidadãos, para um processo judicial único e específico, coadjuvados por jurisconsultos (juristas profissionais) que lhes prestam assistência técnica, mas sem direito de voto, e que são também seleccionados por sorteio a partir de uma lista de candidatos habilitados. Outros juristas intervêm como advogados de defesa. Os processos judiciais em que uns (jurados) e outros (jurisconsultos) serão chamados a intervir e colaborar ser-lhes-ão distribuídos por sorteio.

Qualquer que seja a magistratura em causa, os cidadãos escolhidos para a exercer cumprem sempre mandatos de curta duração (uma semana, duas semanas, três semanas, 1 mês, 3 meses, 6 meses, 1 ano, conforme os casos) não renováveis consecutivamente, salvo na milícia de defesa territorial e no corpo diplomático e só durante a vigência de um estado de guerra.

Todas as magistraturas têm igual dignidade, pelo que todos os magistrados serão remunerados, durante os seus mandatos, com honorários condignos cujo montante de base será o mesmo para todos.

Fica claro pelo que já foi dito acima, e ficará ainda mais claro depois do que se dirá imediatamente a seguir, que numa democracia não existe Estado, nem, por conseguinte, aparelho de Estado (cf. 2ª parte deste ensaio, secção 8.2).

Os serviços de polícia necessários à prevenção do crime, à protecção da integridade corporal e tranquilidade das pessoas e à manutenção da segurança pública são prestados rotativamente por todos os cidadãos saudáveis de ambos os sexos (excepto os mais idosos [p.ex. os maiores de 50 anos], as mulheres grávidas, os que tenham as suas capacidades diminuídas, etc.) na sua área de residência e por um tempo de serviço curto (por exemplo, 2 ou 3 semanas por ano). As tarefas da polícia cidadã – incluindo as que, esporadicamente, aconselhem ou exijam o porte e o uso de armas como medida de autoprotecção ou para impedir um crime  são exercidas com base no respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais constitucionalmente reconhecidas e das leis democraticamente aprovadas; um respeito reforçado pela circunstância eminentemente favorável de os polícias serem cidadãos a cumprir temporariamente um dever cívico que incumbe a todos no interesse do bem-estar da comunidade e da sua existência, em vez de serem profissionais que são pagos para cumprir deveres que incumbem aos cidadãos, mas dos quais uma longa tradição antidemocrática procurou eximi-los.

Os únicos membros permanentes da polícia cidadã serão os que forem admitidos por concurso público num corpo restrito de detectives e técnicos de áreas pertinentes (tecnologias forenses e criminalística,  clínica e patologia forense, química e toxicologia forense, genética e biologia forense) especializados na investigação de crimes mais matreiros (em particular crimes de sangue), mas aos quais será interdito o porte e o uso de armas, salvo em missões específicas de alto risco (como, por exemplo a detenção de criminosos armados), e sempre com o apoio e sob a supervisão da polícia cidadã.

Por último, e pelas mesmas razões, todos os cidadãos de boa saúde, de ambos os sexos, cumprem, em regime de conscrição, a partir dos 18 anos, um serviço militar obrigatório na milícia de defesa territorial, durante um curto período. Findo esse período, e já na situação de reservistas (digamos, até aos 34 anos), todos os cidadãos têm a responsabilidade de guardar em suas casas o seu equipamento de milicianos, incluindo a sua arma e as respectivas munições, mantendo-as em bom estado e em lugar seguro, como acontece na Suíça. Os militares profissionais reduzir-se-ão a um corpo restrito de instrutores, conselheiros militares, pessoal de manutenção de equipamentos e técnicos.

A necessidade de conscrição e de cumprimento da tarefa cidadã de miliciano vigorará enquanto houver ataques ou ameaças de ataques de Estados hostis ou de organizações armadas privadas empenhadas em derrubar a democracia pela força das armas. Quando esses ataques e essas ameaças cessarem, a conscrição e o serviço miliciano obrigatório deixarão também de ser necessários, as milícias de defesa territorial serão dissolvidas, as armas de guerra serão destruídas e os seus protótipos relegados para o museu da guerra para educação das novas gerações.

16.2. O poder económico numa democracia 

O poder económico é o poder de decidir o que produzir, quem vai produzir, como, quando e onde produzir; o que distribuir, como, quando e onde distribuir. Esse poder só pode ser exercido por quem tenha a propriedade e a posse (i.e., o controlo efectivo) dos meios sociais de produção e distribuição dos bens (incluindo os bens públicos, os bens de consumo e os bens de produção) e serviços.

Por conseguinte, a condição básica da igualdade dos cidadãos em relação ao poder económico é o compartilhamento, a mutualização dos meios sociais de produção e distribuição dos bens e serviços e o fim concomitante do trabalho assalariado.

Em termos práticos, isso significa que

A) as sociedades comerciais do actual sistema capitalista são substituídas por empresas cooperativas formadas pela associação de indivíduos livres e iguais em direitos e deveres e por fundações multiface de utilidade pública administrativa (cf. 5ª parte deste ensaio, secção 14.3). Tanto as cooperativas de trabalho associado como as fundações multiface trabalham tendo como referência o ponto de equilíbrio contábil, não o lucro [96].   

B) O cálculo económico é baseado numa aplicação deliberada, cuidadosa e modulada de uma versão aperfeiçoada da teoria do valor desenvolvida, sucessivamente, por Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx. É um modelo no qual (i) o valor de um produto reproduzível (em particular, os bens de consumo [individual e colectivo] que não sejam bens públicos e cuja aquisição, por conseguinte, esteja exclusivamente dependente de escolhas individuais de cada cidadão) corresponde ao número de horas e minutos de trabalho socialmente estabelecido como mínimo necessário – num dado estádio de desenvolvimento tecnológico das forças produtivas (maquinaria, processos de produção, qualificação dos trabalhadores, etc.) – para o (re)produzir e no qual (ii) cada trabalhador é pago em créditos cronolaborais por cada hora trabalhada (consignados em cartões pessoais de crédito electrónicos, semelhantes aos que já existem), sem prejuízo da atribuição de créditos cronolaborais suplementares para trabalhos invulgarmente penosos e perigosos  como, por exemplo, mineiro ou bombeiro. 

Esta é a estação de caminho-de-ferro de Maghul North (Liverpool) no Reino Unido, um bem de consumo colectivo. Foi inaugurada em Junho de 2018, apenas 9 meses depois de começar a ser construída, um tempo considerado mínimo nesta indústria. Admitindo jornadas de trabalho de 8 horas e trabalhando também aos fins de semana (como foi o caso), o seu valor económico [não confundir com “preço de mercado” e “preço natural”] é equivalente ao número de horas de trabalho dispendido pelo número total de trabalhadores diariamente envolvidos na obra ao longo dos 9 meses. Fonte de informação e foto: NetworkRail.co.UK 

A aplicação consistente deste princípio de equivalência elimina a exploração económica. Além disso, a sua aplicação não contraria, antes reforça, a necessidade de distribuição equitativa dos bens públicos a que todos os cidadãos têm direito (cuidados de saúde, escolaridade, etc.), incluindo os serviços e bens públicos específicos que são devidos a pessoas com incapacidades permanentes, famílias numerosas, etc, mediante critérios objectivos de avaliação das suas necessidades.

C) A concorrência implacável entre as sociedades comerciais que procuram assenhorar-se de uma fatia sempre maior do mercado nem que seja à custa da insolvência das suas rivais, é substituída pela coordenação cibernética das cooperativas (e das fundações multiface) umas com as outras, mediante um plano informatizado e global de produção de bens e prestação de serviços cujas metas e objectivos principais sejam discutidos pelo colectivo dos cidadãos e aprovados por sufrágio universal na Assembleia Adsumus dos Cidadãos. Isto aplica-se em particular, como vimos (secção 16.1, ponto 6.º) às decisões sobre as taxas e os montantes dos impostos e sobre as percentagens e montantes das diversas rubricas do Orçamento anual do país (e da União de países democráticos de que faça parte) relativas aos serviços e bens públicos e aos investimentos nas condições gerais de produção. Esse processo democrático de decisão é fundamental para prevenir e evitar a substituição da exploração privada pela exploração estatal (como na ex-União Soviética ou na República Popular da China).

D) As oscilações e a turbulência do ciclo económico capitalista, com as suas proverbiais fases de expansão e contracção, de aumento e diminuição do desemprego, desaparecem para dar lugar ao planeamento e à regulação cibernética da produção em todas as escalas territoriais e mediante a retroacção entre as vendas dos bens de consumo e o plano, de forma a ajustar constantemente os níveis de produção às necessidades e preferências dos produtores-consumidores. Isto significa que as decisões económicas são tomadas democraticamente ao nível empresarial, municipal, regional, nacional e internacional.

Bem entendido, para que isso aconteça é necessário que as cooperativas de trabalho associado (e as fundações multiface) se tornem o modo maioritário de produção à escala nacional e, por conseguinte, à escala internacional. O que exige, por sua vez, como Marx advertiu (cf. 5ª parte deste ensaio, secção 14.2), que as cooperativas de trabalho associado (a que podemos e devemos acrescentar as suas congéneres, as fundações multiface) sejam promovidas por meios nacionais (e internacionais)ou seja, por intermédio de medidas políticas de carácter especial.

Ora, só um poder político democraticamente instituído teria a capacidade e a legitimidade para tomar as medidas de carácter especial necessárias a alcançar esse desiderato. A conquista da democracia no âmbito político é, portanto, uma alavanca poderosa para a conquista da democracia no âmbito económico. O que não admira, visto que (não nos esqueçamos nunca) o poder político e o poder económico são duas faces da mesma moeda: o poder explícito.

16.3. Dar força de lei aos direitos do trabalho

Que medidas preliminares teriam então de ser tomadas para se alcançar esse desiderato?

Em vez da ênfase comum (i) à velha social-democracia (incluindo a sua versão bolchevique, quer na era da NEP leninista [1921-1924], quer na era da NEP pós-leninista [1924-1928]), (ii) à estalinocracia (quer com Estaline [1928-1953], quer sem Estaline [1953-1985]), e (iii) à NEP à chinesa (de Deng XiaoPing a Xi Jinping) na acção directa do Estado [97] através do condicionamento industrial, da nacionalização e da estatização das firmas privadas (as chamadas “sociedades comerciais” na terminologia jurídica portuguesa), o movimento de auto-emancipação dos trabalhadores assalariados tem todo o interesse em advogar e instituir o estabelecimento legal de direitos positivos do trabalho. Esses direitos – que nunca existiram até à data, mas que são uma consequência lógica da função económica que o trabalho desempenha – porão termo à exploração do trabalho pelo capital, se forem colectivamente exercidos pelos trabalhadores.

# O direito ao valor pleno do trabalho

A análise científica mostra que, no mundo capitalista, o preço das mercadorias reproduzíveis é avassaladoramente determinado pelo trabalho mínimo socialmente necessário requerido pela sua (re)produção. Os estudos disponíveis mostram que a correlação entre os valores do trabalho e os preços de mercado dos bens reproduzíveis é de 95% ou mais. Por conseguinte, a hipótese científica de Adam Smith (1723-1790), adoptada e desenvolvida por David Ricardo (1772-1823) e Karl Marx (1818-1883), segundo a qual o trabalho era a fonte do valor, foi, no fim do século XX e no século XXI, estatisticamente corroborada [98]. Este facto científico deve ser incorporado na lei e na Constituição.

A lei portuguesa (e a lei europeia) deve reconhecer que o trabalho é a única fonte de valor e que, por conseguinte, os trabalhadores assalariados terão direito a remunerações correspondentes ao valor pleno do seu trabalho (depois de deduzidos os recursos necessários para (i) a substituição dos meios de produção consumidos, (ii) a expansão da produção; (iii) um fundo de reserva para acidentes e prejuízos imprevistos, (iv) a segurança social dos trabalhadores) e a processar judicialmente os seus empregadores caso isso não aconteça. Para promover esta lei, os trabalhadores e as suas organizações de classe têm todo o interesse, entre outros modos de luta, em organizar um RIC – referendo de iniciativa cidadã – sobre o conteúdo essencial da lei: “direito dos trabalhadores ao valor pleno do seu trabalho: SIM ou NÃO?”. 

No decurso da luta pela aprovação de uma tal lei e no seguimento da sua aprovação, é expectável que se registe um aumento muito grande da actividade política dos trabalhadores assalariados com vista a assegurarem o fim da exploração e do dolo de que os seus antepassados e eles próprios têm sido alvo. As relações de trabalho, a disciplina, os processos de produção, os níveis e os modos de remuneração, tudo os trabalhadores tenderão a questionar e tudo tenderá a ser remodelado em novas bases para se alcançar esse desiderato. É também expectável, pelas mesmas razões, um aumento substancial dos salários.

Pela razões opostas, é expectável que a classe patronal (capitalistas-rentistas, capitalistas-gestores e gestores de topo das sociedades comerciais) conheça uma queda acentuada dos seus rendimentos. Bem entendido, os capitalistas-gestores e os gestores de topo das sociedades comerciais continuarão a ter legalmente o direito de serem pagos pelas horas que dispendem na gestão das firmas, tal como qualquer trabalhador, mas deixarão de embolsar lucros (sob a forma de dividendos ou outra qualquer). 

Convém notar que, nesta fase (pré-socialista) o estabelecimento do direito ao pleno valor do trabalho não implica necessariamente a eliminação imediata das diferenças de salários que existem actualmente entre trabalhadores, por um lado, e entre trabalhadores e gestores de topo, por outro, e que não têm como origem diferenças na duração e penosidade do trabalho. Essas outras diferenças têm várias causas, das quais a principal, no caso dos trabalhadores, é a sua diferente qualificação — a qual pode ser medida, grosseiramente, pelo número de horas e anos de formação escolar e periescolar de uns e de outros, ponderado com o valor dos equipamentos, dos edifícios e das remunerações do corpo docente que são necessários para assegurar os diferentes tipos de formação dos trabalhadores. Essa fonte de diferenciação das remunerações não pode ser abolida por decreto ou lei. Só se poderá extinguir mediante um longo e profundo processo de reformas escolares, educativas e industriais. A ideia é caminhar para uma situação em que as diferenças de remuneração individual tenham por única justificação válida as diferenças na duração e na penosidade do trabalho socialmente necessário requerido pela (re)produção dos bens e serviços.

Acresce que os trabalhadores não produzem valor para empresas (/sociedades comerciais) particulares ou para capitalistas particulares, mas para a classe capitalista no seu conjunto. A apropriação por uma dada empresa, ou por um dado grupo de capitalistas, da mais-valia (do valor do trabalho não-pago) presente no preço de mercado de uma mercadoria (de um produto vendível) reproduzível tem como base a circulação comercial das mercadorias e como condição as relações de forças concorrenciais entre diferentes empresas de diversos sectores. Daqui resulta que o direito legal ao pleno valor do trabalho (e por conseguinte à mais-valia produzida) é um direito colectivo do conjunto dos trabalhadores; não pode ser exercido individualmente. Mas pode esperar-se que o exercício desse direito colectivo crie fortes incentivos no sentido de uma redução substancial do leque salarial entre os trabalhadores mais bem remunerados e os trabalhadores mais mal remunerados e, sobretudo, entre os trabalhadores e os gestores de topo.

# O direito à democracia industrial/laboral

Os tribunais de trabalho serão chamados a dirimir disputas relacionadas com a aplicação da lei que garanta aos trabalhadores o direito ao valor pleno do seu trabalho. Este é, aliás, um exemplo de quão importante é os tribunais serem formados por júris constituídos por tiragem à sorte de elementos da população adulta. Tribunais com uma tal composição terão certamente mais empatia com os direitos dos trabalhadores do que tribunais constituídos por juízes profissionais e inamovíveis (e procuradores da república profissionais e vitalícios), como sucede actualmente, pela boa e simples razão que estes magistrados não eleitos são, regra geral – por modo de recrutamento, por formação, estatuto e função – defensores da ordem jurídica vigente, construída para proteger e legitimar a subordinação do trabalho ao capital.

Todavia, se as comissões de trabalhadores e os sindicatos (que só terão razão de existir se deixarem de ser as estruturas burocráticas que quase sempre foram, ou em que quase sempre se transformaram) ganharem pleitos judiciais dando-lhes razão na questão do direito ao valor pleno do trabalho, é expectável que haja firmas que prefiram encerrar portas e despedir os trabalhadores do que continuarem a funcionar. Por conseguinte, a legislação protectora dos direitos dos trabalhadores das empresas possuídas por sociedade comerciais deve incluir o direito dos trabalhadores escolherem – por meio de sorteio interno, ou, para certas funções técnicas (como, p.ex., contabilista certificado, engenheiro de produção) por meio de concurso público seguido de eleição por voto secreto dos candidatos mais bem classificados, ou por meio de uma combinação de ambos os modos – os órgãos de gestão da empresa: conselho de administração, conselho fiscal, mesa da assembleia geral. Dessa forma, a gestão das empresas passa para as mãos dos trabalhadores. 

16.4. Outras medidas preliminares

Há muitas outras medidas políticas preliminares que terão de ser tomadas para instituir a democracia no plano económico, como componente necessária da democracia integral  i.e., política e económica. A sua exposição e explicação exigiria, no entanto, uma longa digressão, pelo que terão de ficar para uma melhor oportunidade [99].

Mas as duas medidas supramencionadas são, estou em crer, suficientes para se entender concretamente o significado da injunção marxiana: «Para salvar as massas laboriosas, o sistema cooperativo deve ser desenvolvido em dimensões nacionais e deve, por conseguinte, ser promovido por meios nacionais [e transnacionais] » (cf. 5ª parte deste ensaio, secção 14.2.).

…………………………………………………………

N.B. Este ensaio está dividido em 8 partes, sendo esta a sétima:

1ª parte. Os critérios e os conceitos principais

2ª parte. Um excurso sobre o poder explícito

3ª parte. A igualdade em relação ao poder político

4ª parte. A desigualdade em relação ao poder explícito

5ª parte. A igualdade em relação ao poder económico

6ª parte. O poder explícito numa oligocracia electiva liberal

(7ª parte. O poder explícito numa democracia)

8ª parte. A esquerda acomodatícia

que podem ser encontradas, por esta ordem, no Arquivo do Blogue, 2021, Agosto,

no fim da coluna da direita do blogue.

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Notas

[94] Regime senhorial é a expressão que João Bernardo emprega no seu monumental estudo, em três volumes, Poder e Dinheiro, na Europa dos séculos V a XV (Porto: Edições Afrontamento. 1995-1997-2002), em vez de “feudalismo”, por razões que explica no volume III (p.223 e seguintes). Trata-se fundamentalmente de reconhecer que a forma dita clássica de feudalismo e os elos de vassalagem que a caracterizavam constituíam uma modalidade peculiar de certas regiões do norte de França e que, mesmo aí, tinha excepções.J.Bernardo prefere também falar de “regime”, em vez da expressão marxiana “modo de produção” — neste caso, modo senhorial de produção. Justifica essa sua preferência terminológica e conceptual com o argumento de que o actual estado de investigação histórica faz com que o uso de tal termo (“modo de produção”) para outros modos que não o capitalismo, seja, em sua opinião, “prematuro” (cf. volume I, p. 237). Assim sendo, J. Bernardo limitou-se, na obra supracitada «à análise de um regime, conceito a que eu atribuo um grau de generalidade menos amplo do que cabe a um modo de produção» (ibidem). Sendo ele um profundo conhecedor deste assunto (coisa que eu não sou), adopto, com a devida vénia, a sua posição neste particular. 

[95] William Paul Cockshott e Karen Renauld desenvolveram um sistema fiável, seguro, eficaz e versátil de voto electrónico que se adequa perfeitamente ao funcionamento de uma Assembleia Adsumus dos Cidadãos. Deram-lhe o nome de Handivote.  Cf. K. Renaud, K. & W.P. Cockshott, (2007) “Electrónic plebiscites”. In: MeTTeG07, 27-28 September 2007, Camerino; W.P. Cockshott & K. Renauld, “Extending Handivote to Handle Digital Economic Decisions”, Proceedings of ACM-BCS Visions of Computer Science 2010.

[96] Ponto (ou nível) de equilíbrio [Ingl. break-even point] pode ser contábil, financeiro ou económico. O ponto (ou nível) de equilíbrio contábil é o número de unidades de um bem ou serviço que devem ser vendidas para produzir um lucro de zero (mas que recuperará todos os custos [fixos e variáveis] associados). «Por outras palavras, o ponto/nível de equilíbrio é o ponto/nível no qual o seu produto deixa de custar dinheiro para o produzir e vender e começa a gerar dinheiro para a sua empresa» (v. Hossein Arsham, Break-Even Analysis and Forecasting, http://home.ubalt.edu/ntsbarsh/Business-stat/ otherapplets/Break Even.htm).

[97] NEP é o acrónimo, no alfabeto latino, de Novaya Ekonomiceskaya Politika (em português: Nova Política Económica). Denomina o que foi a política económica seguida na União Soviética no período que medeia entre o abandono, em 1921, do impropriamente chamado “comunismo de guerra” (praticado durante a guerra civil) e a colectivização forçada das explorações agrícolas, a renacionalização das empresas industriais privadas e a entronização no poder de Estaline e da sua oligocracia de novos e velhos gestores prebendários, em 1928. Com a NEP, o país passou a ter uma constituição produtiva híbrida: medidas económicas próprias do capitalismo monopolista de Estado (nacionalização e estatização das grandes empresas, minas, transportes e bancos) conviviam com medidas próprias do capitalismo monopolista privado (incentivos ao médio produtor rural, autorização de empresas privadas e incentivos para o seu funcionamento, permissão e incentivos de entrada de capitais estrangeiros, liberdade de comércio interno e externo) e com a economia tradicional (economia de subsistência sustentada pelos camponeses pobres). A NEP permitiu, no entanto, a sobrevivência do regime, dando-lhe a folga necessária para a recuperação e reordenação de forças. O próprio Lenine, já cada vez mais afastado do poder em virtude da sua doença cardíaca, teve dificuldade em definir a NEP, da qual foi, no entanto, o arquitecto principal. Ironicamente, caracterizou-a como «uma mistura de czarismo com práticas capitalistas besuntadas por um verniz soviético». Não consegui encontrar a fonte desta citação que encontrei no artigo “Nova Política Económica”, da Wikipédia em Português. Mas, como diriam os italianos, se non è vero, è ben trovato [se não é verdadeiro, é bem pensado].

[98] v. A. Shaikh, “The transformation from Marx to Sraffa”, in E. Mandel and A.Freeman (eds.), Ricardo, Marx, Sraffa, London, Verso Books, 1984, pp. 43-84; E. Ochoa, Labour Values and Prices of Production: an Interindustry Study of the U.S. Economy, 1947–1972, New York, New School for Social Research, Ph.D. Thesis, 1984; P. Petrovic, “The deviation of production prices from labour values: some methodology and empirical evidence”, Cambridge Journal of Economics, vol. 11, nº 3 (1987), pp. 197–210; E. M. Ochoa, “Values, prices, and wage–profit curves in the US economy“, Cambridge Journal of Economics, vol. 13 (1989), pp. 413–29; Valle Alejandro Valle Baeza,1994. Correspondence between labor values and prices: A new approach. Review of Radical Political Economics 26 (1994), pp. 57-66;  G. Michaelson, W. P. Cockshott, & A. F. Cottrell, “Testing Marx: some new results from UK data”, Capital and Class (1995), pp. 103–129; A. M. Shaikh, “The empirical strength of the labour theory of value“, in  Marxian Economics: A Reappraisal vol. 2, (Macmillan, 1998), pp. 225–251; L. Tsoulfidis & T. Maniatis, “Values, prices of production and market prices: some more evidence from the Greek economy”, Cambridge Journal of Economics, vol. 26, nº. 3, 2002, pp. 359-369; David Zachariah, “Testing the labour theory of value in Sweden” (2004). http://reality.gn.apc.org/econ/DZ_article1.pdf.; W.P. Cockshott & A. Cottrell, “Robust correlations between prices and labour values: a comment”, Cambridge Journal of Economics vol.29, nº 2 (2005): 309–316; David Zachariah, “Labour Value and Equalisation of Profit Rates”, Indian Development Review 4, 1 (2006), pp. 1–21; L. Tsoulfidis & T. Mariolis, “Labour Values, Prices of Production and the Effects of Income Distribution. Evidence from the Greek economy”, Economic Systems Research, 19(4) (2007), pp. 425-37; Paul Cockshott, Allin Cottrell, & Alejandro Valle Baeza, “Defence of empirical evidence, reply to Shimshon Bichler and Jonathan Nitzan”, 2010; Alejandro Valle Baeza, “Dimensional analysis of price-value correspondence: a spurious case of spurious correlation”,  Investigación Económica, Vol 69, Nº 274 (2010); Nils Fröhlich, “Dimensional Analysis of price-value deviations” [online] Department of Economics, Chemnitz University of Technology, Germany. Available at: http://www.tu-chemnitz.de/wirtschaft/vwl2/ downloads/paper/ froehlich/davalue. pdf; Nils Fröhlich, “Labour values, prices of production and the missing equalisation tendency of profit rates German economy”, Cambridge Journal of Economics, 37, 5 (2013), pp. 1107–1126; Paul Cockshott, Allin Cottrell & Alejandro Valle Baeza, “The Empirics of the Labour Theory of Value: Reply to Nitzan and Bichler”, Investigación Económica (2014), the Bichler and Nitzan Archives, Toronto, Vol. LXXIII, Iss. 287, pp. 115-134, http://bnarchives. yorku.ca/496/; L.Tsoulfidis, & D. Paitaridis, “Monetary Expressions of Labor Time and Market Prices: Theory and Evidence from China, Japan and Korea.” Review of Political Economy (2016) vol.29 (1): 111–132.

[99] Para um desenvolvimento sobre este assunto, ver P. Cockshott, A. Cottrell & H. Dieterich (2010) “Transition to 21st century socialism in the European Union”. In: Transition to 21st Century Socialism in the European Union. CenturyXXI/Lulu.com, pp. 1-20.