(Temas 2, 3 e 4)
“Esquerda” e “Direita” trocadas por miúdos
do ponto de vista da democracia (7ª parte)
— O poder explícito
numa democracia
José Catarino Soares
16. A autonomia do poder explícito
Numa democracia, os
cidadãos gozarão de todas as liberdades, direitos e garantias que existem
actualmente no âmbito das oligocracias electivas liberais, e gozarão ainda de
outros direitos, liberdades e garantias que não têm cabimento no âmbito destas e de
que falaremos mais adiante.
Como já tive ocasião de assinalar
(4ª parte, secção 11.2), as liberdades, direitos e
garantias pessoais que usufruímos actualmente subsistem de uma forma principalmente
defensiva e como sedimento de lutas emancipadoras multisseculares (i)
quer dos camponeses-caseiros (a classe servil dos campos), da arraia-miúda (a
população urbana de pé descalço, os trabalhadores braçais desprovidos de
quaisquer direitos e recursos), dos artesãos e mestres dos ofícios subalternos,
durante a longa vigência do regime senhorial de produção [94]; (ii) quer da burguesia de
negócios (ligada ao comércio de longo curso, à expansão marítima e à indústria
naval) e dos membros das protoprofissões liberais (mestres-construtores,
físicos [médicos], boticários, lentes, jurisconsultos) na época dos
Descobrimentos e do Mercantilismo (1415-1750), (iii) quer, sobretudo, das lutas dos trabalhadores assalariados
e das mulheres (incluindo mulheres das classes privilegiadas) desde que o modo
capitalista de produção se tornou dominante à escala mundial.
Os deputados constituintes de
1976 em Portugal chamaram a esse acervo de direitos, liberdades e garantias “Estado de direito democrático” (artigo 2ª da Constituição da República Portuguesa). Esta
é também uma expressão muito prezada por constitucionalistas, politólogos,
políticos profissionais e jornalistas. Mas isso não lhe retira o seu carácter
abstruso. Não se trata de “Estado” (aparelho de organização hierárquica,
burocrática e coerciva da heteronomia do poder explícito), mas, precisamente,
do seu oposto: dos direitos, liberdades e garantias necessárias à autonomia
individual e colectiva que permitem dispensar o Estado e relegá-lo para o museu
dos artefactos obsoletos.
Por isso, numa democracia tudo (incluindo a amplitude e a intensidade do uso dos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos) terá de ser diferente, muito diferente e,
em muitos casos, diametralmente oposto do que sucede nas oligocracias electivas liberais.
Por exemplo, não haverá juízes nem magistrados do ministério público vitalícios (porque a justiça será
administrada de um modo democrático, por meio de júris seleccionados por
tiragem à sorte no conjunto dos cidadãos para missões pontuais); não haverá
1º ministro (porque não haverá ministros nem secretários de Estado), não haverá
chefes de Estado (porque não haverá Estado); não haverá partidos no governo e
na oposição (porque a política deixará de ser uma disputa eleitoral e
parlamentar entre várias facções rivais de gestores e candidatos a gestores que
aspiram a controlar as magistraturas dos três ramos do poder político e os
partidos passarão a ser associações de educação, esclarecimento e debate políticos, em vez de máquinas de conquista e distribuição do poder); não
haverá Forças Armadas profissionais, exclusivamente assentes em voluntários
contratados (porque serão substituídas por uma milícia cidadã de defesa
territorial); nem polícias de Estado (porque serão substituídas por uma
polícia cidadã).
16.1. Antevisão
dinâmica do poder político numa democracia
Vejamos então, com suficiente
pormenor, o que distingue a democracia da oligocracia electiva liberal.
1º O
poder legislativo e o poder governativo são exercidos, supremamente, pela Assembleia Adsumus dos
Cidadãos, que reúne todos os cidadãos, coadjuvada por colégios e
comissões de magistrados, como os que são mencionados no ponto 3º, mais abaixo.
N.B. Adsumus é uma palavra latina que significa
“estamos presentes” ou “aqui estamos”. Uma Assembleia Adsumus dos Cidadãos
é uma assembleia em que estão presentes (ou têm o direito de estar presentes)
todos os cidadãos de um país ou de uma área territorial mais pequena (p.ex. uma
cidade), como sucedia na Ekklesia [Gr. antigo: ἐκκλησία – Assembleia] ateniense
nos séculos V e IV a.C.
2º Como é fisicamente impossível reunir a Assembleia Adsumus dos Cidadãos no mesmo sítio e à mesma hora num país com milhões de adultos, a Assembleia Adsumus dos Cidadãos tomará a forma de uma Assembleia de voto electrónico (por meio da rede de telemóveis [2G, 3G, 4G ou 5G] e da internet) que será convocada sempre que necessário.
3º Dado ser economicamente impossível, por razões óbvias, reunir diariamente a Assembleia Adsumus dos Cidadãos, será constituído um Conselho Permanente de Deliberação (com este ou outro nome) encarregado de (i) preparar a legislação a aprovar pela Assembleia Adsumus dos Cidadãos, (ii) assegurar a gestão quotidiana dos assuntos governamentais e (iii) coordenar a actividade quotidiana da administração pública. Para assegurar estas tarefas de maneira eficaz e eficiente, o Conselho Permanente de Deliberação constituirá no seu seio secções (por exemplo, legislativa [i], governativa-executiva [ii] e governativa-administrativa [iii]) e um número considerado adequado de colégios e comissões especializadas.
4º Os
membros do Conselho
Permanente de
Deliberação são escolhidos por tiragem à sorte a
partir do conjunto dos cidadãos. Os
membros dos colégios e comissões do Conselho Permanente são escolhidos por
sorteio de entre os seus membros ou por rotatividade dos mesmos.
5º Em
casos muito específicos, quando o exercício de tal ou tal magistratura requeira
ou aconselhe a posse de uma competência técnica muito específica, de um
saber-fazer pericial e/ou de uma experiência muito particular (como, por
exemplo, no caso dos comandantes das forças armadas milicianas que substituirão
as forças armadas profissionais ou dos embaixadores ou dos avaliadores do tribunal de contas), a escolha dos magistrados
poderá ser feita por eleição (sendo os eleitores os membros do Conselho Permanente de
Deliberação) ou por sorteio, a partir de uma lista
curta de candidatos previamente seleccionados por concurso público.
6º Todas as decisões estratégicas são tomadas democraticamente pela Assembleia Adsumus. Essas decisões incluem, no mínimo, a Constituição, todas as alterações constitucionais, todas as leis de bases e a aprovação do Orçamento anual — as receitas e despesas das rubricas principais do país, nomeadamente aquelas que dizem respeito aos bens públicos de que toda a população beneficiará, como, por exemplo:
que verbas do Orçamento anual
do país devem ser reservadas:
# para o Serviço Nacional de
Saúde (incluindo os cuidados continuados, os cuidados paliativos e os serviços
médicos e de enfermagem ao domicílio)
# para as pensões de reforma
# para a segurança social
(subsídios de doença, invalidez, incapacidade, etc.)
# para os infantários, as
escolas, os politécnicos e as universidades da rede pública;
# para a emergência e protecção civil
# para a investigação científica e tecnológica
# para as artes e desportos
#para a defesa territorial
# para novos investimentos, em especial os relativos às condições gerais de produção.
O mesmo vale dizer para o
número, o montante global e as taxas (os escalões) do(s) imposto(s)
destinado(s) a financiar as despesas com os bens públicos. Tudo isso pode ser aprovado por sufrágio directo e universal usando, como foi dito no 2º ponto,
telemóveis (2G, 3G, 4G ou 5G) ou computadores ligados à Internet [95].
7º O
poder jurisdicional é exercido por tribunais constituídos por júris
seleccionados por tiragem à sorte, a partir do colectivo dos cidadãos, para um
processo judicial único e específico, coadjuvados por jurisconsultos (juristas
profissionais) que lhes prestam assistência técnica, mas sem direito de voto, e
que são também seleccionados por sorteio a partir de uma lista de candidatos
habilitados. Outros juristas intervêm como advogados de defesa. Os processos
judiciais em que uns (jurados) e outros (jurisconsultos) serão chamados a
intervir e colaborar ser-lhes-ão distribuídos por sorteio.
8º Qualquer
que seja a magistratura em causa, os cidadãos escolhidos para a exercer cumprem
sempre mandatos de curta duração (uma semana, duas semanas, três semanas, 1 mês, 3 meses, 6 meses,
1 ano, conforme os casos) não renováveis consecutivamente, salvo na
milícia de defesa territorial e no corpo diplomático e só durante a vigência de
um estado de guerra.
9º Todas as magistraturas têm igual dignidade, pelo que todos os magistrados serão remunerados, durante os seus mandatos, com honorários condignos cujo montante de base será o mesmo para todos.
Fica claro pelo que já foi
dito acima, e ficará ainda mais claro depois do que se dirá imediatamente a
seguir, que numa democracia não existe Estado, nem, por conseguinte,
aparelho de Estado (cf. 2ª parte deste ensaio, secção 8.2).
Os serviços de polícia necessários à prevenção do crime, à protecção da integridade corporal e tranquilidade das pessoas e à manutenção da segurança pública são prestados rotativamente por todos os cidadãos saudáveis de ambos os sexos (excepto os mais idosos [p.ex. os maiores de 50 anos], as mulheres grávidas, os que tenham as suas capacidades diminuídas, etc.) na sua área de residência e por um tempo de serviço curto (por exemplo, 2 ou 3 semanas por ano). As tarefas da polícia cidadã – incluindo as que, esporadicamente, aconselhem ou exijam o porte e o uso de armas como medida de autoprotecção ou para impedir um crime – são exercidas com base no respeito pelos direitos, liberdades e garantias pessoais constitucionalmente reconhecidas e das leis democraticamente aprovadas; um respeito reforçado pela circunstância eminentemente favorável de os polícias serem cidadãos a cumprir temporariamente um dever cívico que incumbe a todos no interesse do bem-estar da comunidade e da sua existência, em vez de serem profissionais que são pagos para cumprir deveres que incumbem aos cidadãos, mas dos quais uma longa tradição antidemocrática procurou eximi-los.
Os únicos membros permanentes
da polícia cidadã serão os que forem admitidos por concurso público num corpo restrito de detectives e técnicos de áreas pertinentes (tecnologias forenses e criminalística, clínica e patologia forense, química e
toxicologia forense, genética e biologia forense) especializados na
investigação de crimes mais matreiros (em particular crimes de sangue), mas aos quais será interdito o porte e o uso de
armas, salvo em missões específicas de alto risco (como, por exemplo a detenção
de criminosos armados), e sempre com o apoio e sob a supervisão da polícia
cidadã.
Por último, e pelas mesmas
razões, todos os cidadãos de boa saúde, de ambos os sexos, cumprem, em regime
de conscrição, a partir dos 18 anos, um serviço militar obrigatório na milícia
de defesa territorial, durante um curto período. Findo esse período, e já na
situação de reservistas (digamos, até aos 34 anos), todos os cidadãos têm a responsabilidade de guardar em
suas casas o seu equipamento de milicianos, incluindo a sua arma e as
respectivas munições, mantendo-as em bom estado e em lugar seguro, como
acontece na Suíça. Os militares profissionais reduzir-se-ão a um corpo restrito
de instrutores, conselheiros militares, pessoal de manutenção de equipamentos e
técnicos.
A necessidade de conscrição e
de cumprimento da tarefa cidadã de miliciano vigorará enquanto houver ataques
ou ameaças de ataques de Estados hostis ou de organizações armadas privadas
empenhadas em derrubar a democracia pela força das armas. Quando esses ataques
e essas ameaças cessarem, a conscrição e o serviço miliciano obrigatório
deixarão também de ser necessários, as milícias de defesa territorial serão dissolvidas, as armas de
guerra serão destruídas e os seus protótipos relegados para o museu da guerra
para educação das novas gerações.
16.2. O poder
económico numa democracia
O poder económico é o poder
de decidir o que produzir, quem vai produzir, como, quando e onde produzir; o
que distribuir, como, quando e onde distribuir. Esse poder só pode ser exercido
por quem tenha a propriedade e a posse (i.e., o controlo efectivo) dos meios
sociais de produção e distribuição dos bens (incluindo os bens públicos, os
bens de consumo e os bens de produção) e serviços.
Por conseguinte, a condição
básica da igualdade dos cidadãos em relação ao poder económico é o
compartilhamento, a mutualização dos meios sociais de produção e distribuição
dos bens e serviços e o fim concomitante do trabalho assalariado.
Em termos práticos, isso
significa que
A) as
sociedades comerciais do actual sistema capitalista são substituídas por
empresas cooperativas formadas pela associação de indivíduos livres e iguais em
direitos e deveres e por fundações multiface de utilidade pública
administrativa (cf. 5ª parte deste ensaio, secção 14.3). Tanto as cooperativas
de trabalho associado como as fundações multiface trabalham tendo como
referência o ponto de equilíbrio contábil, não o lucro [96].
B) O cálculo económico é baseado numa aplicação deliberada, cuidadosa e modulada de uma versão aperfeiçoada da teoria do valor desenvolvida, sucessivamente, por Adam Smith, David Ricardo e Karl Marx. É um modelo no qual (i) o valor de um produto reproduzível (em particular, os bens de consumo [individual e colectivo] que não sejam bens públicos e cuja aquisição, por conseguinte, esteja exclusivamente dependente de escolhas individuais de cada cidadão) corresponde ao número de horas e minutos de trabalho socialmente estabelecido como mínimo necessário – num dado estádio de desenvolvimento tecnológico das forças produtivas (maquinaria, processos de produção, qualificação dos trabalhadores, etc.) – para o (re)produzir e no qual (ii) cada trabalhador é pago em créditos cronolaborais por cada hora trabalhada (consignados em cartões pessoais de crédito electrónicos, semelhantes aos que já existem), sem prejuízo da atribuição de créditos cronolaborais suplementares para trabalhos invulgarmente penosos e perigosos — como, por exemplo, mineiro ou bombeiro.
C) A
concorrência implacável entre as sociedades comerciais que procuram
assenhorar-se de uma fatia sempre maior do mercado nem que seja à custa da
insolvência das suas rivais, é substituída pela coordenação cibernética das
cooperativas (e das fundações multiface) umas com as outras, mediante um plano informatizado e global de produção de bens e prestação de serviços cujas metas e objectivos principais
sejam discutidos pelo colectivo dos cidadãos e aprovados por sufrágio
universal na Assembleia Adsumus dos Cidadãos. Isto aplica-se em particular, como vimos (secção 16.1, ponto 6.º) às
decisões sobre as taxas e os montantes dos impostos e sobre as percentagens e
montantes das diversas rubricas do Orçamento anual do país (e da União de
países democráticos de que faça parte) relativas aos serviços e bens públicos e aos investimentos nas condições gerais de produção. Esse processo democrático de decisão é
fundamental para prevenir e evitar a substituição da exploração privada pela
exploração estatal (como na ex-União Soviética ou na República Popular da
China).
D) As
oscilações e a turbulência do ciclo económico capitalista, com as suas
proverbiais fases de expansão e contracção, de aumento e diminuição do
desemprego, desaparecem para dar lugar ao planeamento e à regulação cibernética
da produção em todas as escalas territoriais e
mediante a retroacção entre as vendas dos bens de consumo e o plano, de forma a
ajustar constantemente os níveis de produção às necessidades e preferências dos produtores-consumidores. Isto significa que as decisões económicas são tomadas
democraticamente ao nível empresarial, municipal, regional, nacional e
internacional.
Bem entendido, para que isso
aconteça é necessário que as cooperativas de trabalho associado (e as fundações
multiface) se tornem o modo maioritário de
produção à escala nacional e, por conseguinte, à escala internacional. O
que exige, por sua vez, como Marx advertiu (cf. 5ª parte deste ensaio, secção 14.2), que as cooperativas
de trabalho associado (a que podemos e devemos acrescentar as suas congéneres,
as fundações multiface) sejam promovidas por meios
nacionais (e internacionais) — ou seja, por intermédio
de medidas políticas de carácter especial.
Ora, só um poder político democraticamente instituído teria a capacidade e a legitimidade para tomar as medidas de carácter especial necessárias a alcançar esse desiderato. A conquista da democracia no âmbito político é, portanto, uma alavanca poderosa para a conquista da democracia no âmbito económico. O que não admira, visto que (não nos esqueçamos nunca) o poder político e o poder económico são duas faces da mesma moeda: o poder explícito.
16.3. Dar
força de lei aos direitos do trabalho
Que medidas preliminares
teriam então de ser tomadas para se alcançar esse desiderato?
Em vez da ênfase comum (i) à velha social-democracia (incluindo a sua versão bolchevique, quer na era da NEP leninista [1921-1924], quer na era da NEP pós-leninista [1924-1928]), (ii) à estalinocracia (quer com Estaline [1928-1953], quer sem Estaline [1953-1985]), e (iii) à NEP à chinesa (de Deng XiaoPing a Xi Jinping) na acção directa do Estado [97] através do condicionamento industrial, da nacionalização e da estatização das firmas privadas (as chamadas “sociedades comerciais” na terminologia jurídica portuguesa), o movimento de auto-emancipação dos trabalhadores assalariados tem todo o interesse em advogar e instituir o estabelecimento legal de direitos positivos do trabalho. Esses direitos – que nunca existiram até à data, mas que são uma consequência lógica da função económica que o trabalho desempenha – porão termo à exploração do trabalho pelo capital, se forem colectivamente exercidos pelos trabalhadores.
# O direito ao valor pleno do trabalho
A análise científica mostra
que, no mundo capitalista, o preço das mercadorias reproduzíveis é
avassaladoramente determinado pelo trabalho mínimo socialmente necessário requerido pela sua (re)produção. Os estudos
disponíveis mostram que a correlação entre os valores do trabalho e os preços de mercado dos bens reproduzíveis é de 95% ou mais. Por conseguinte, a hipótese científica de Adam Smith
(1723-1790), adoptada e desenvolvida por David Ricardo (1772-1823) e Karl Marx (1818-1883), segundo a qual
o trabalho era a fonte do valor, foi, no fim do século XX e no século XXI,
estatisticamente corroborada [98].
Este facto científico deve ser incorporado na lei e na Constituição.
A lei portuguesa (e a lei europeia) deve reconhecer que o trabalho é a única fonte de valor e que, por conseguinte, os trabalhadores assalariados terão direito a remunerações correspondentes ao valor pleno do seu trabalho (depois de deduzidos os recursos necessários para (i) a substituição dos meios de produção consumidos, (ii) a expansão da produção; (iii) um fundo de reserva para acidentes e prejuízos imprevistos, (iv) a segurança social dos trabalhadores) e a processar judicialmente os seus empregadores caso isso não aconteça. Para promover esta lei, os trabalhadores e as suas organizações de classe têm todo o interesse, entre outros modos de luta, em organizar um RIC – referendo de iniciativa cidadã – sobre o conteúdo essencial da lei: “direito dos trabalhadores ao valor pleno do seu trabalho: SIM ou NÃO?”.
No decurso da luta pela aprovação de uma tal lei e no seguimento da sua aprovação, é expectável que se registe um aumento muito grande da
actividade política dos trabalhadores assalariados com vista a assegurarem o
fim da exploração e do dolo de que os seus antepassados e eles próprios têm
sido alvo. As relações de trabalho, a disciplina, os processos de produção, os níveis e os modos de remuneração, tudo os trabalhadores tenderão a questionar e tudo tenderá a ser remodelado em novas bases para se alcançar esse desiderato. É também expectável, pelas mesmas razões, um aumento substancial dos
salários.
Pela razões opostas, é
expectável que a classe patronal (capitalistas-rentistas, capitalistas-gestores
e gestores de topo das sociedades comerciais) conheça uma queda acentuada
dos seus rendimentos. Bem entendido, os capitalistas-gestores e os gestores de
topo das sociedades comerciais continuarão a ter legalmente o direito de serem
pagos pelas horas que dispendem na gestão das firmas, tal como qualquer
trabalhador, mas deixarão de embolsar lucros (sob a forma de dividendos ou
outra qualquer).
Convém notar que, nesta fase (pré-socialista) o estabelecimento do direito ao pleno valor do trabalho não implica necessariamente a eliminação imediata das diferenças de salários que existem actualmente entre trabalhadores, por um lado, e entre trabalhadores e gestores de topo, por outro, e que não têm como origem diferenças na duração e penosidade do trabalho. Essas outras diferenças têm várias causas, das quais a principal, no caso dos trabalhadores, é a sua diferente qualificação — a qual pode ser medida, grosseiramente, pelo número de horas e anos de formação escolar e periescolar de uns e de outros, ponderado com o valor dos equipamentos, dos edifícios e das remunerações do corpo docente que são necessários para assegurar os diferentes tipos de formação dos trabalhadores. Essa fonte de diferenciação das remunerações não pode ser abolida por decreto ou lei. Só se poderá extinguir mediante um longo e profundo processo de reformas escolares, educativas e industriais. A ideia é caminhar para uma situação em que as diferenças de remuneração individual tenham por única justificação válida as diferenças na duração e na penosidade do trabalho socialmente necessário requerido pela (re)produção dos bens e serviços.
Acresce que os trabalhadores não produzem valor para empresas (/sociedades comerciais) particulares ou para capitalistas particulares, mas para a classe capitalista no seu conjunto. A apropriação por uma dada empresa, ou por um dado grupo de capitalistas, da mais-valia (do valor do trabalho não-pago) presente no preço de mercado de uma mercadoria (de um produto vendível) reproduzível tem como base a circulação comercial das mercadorias e como condição as relações de forças concorrenciais entre diferentes empresas de diversos sectores. Daqui resulta que o direito legal ao pleno valor do trabalho (e por conseguinte à mais-valia produzida) é um direito colectivo do conjunto dos trabalhadores; não pode ser exercido individualmente. Mas pode esperar-se que o exercício desse direito colectivo crie fortes incentivos no sentido de uma redução substancial do leque salarial entre os trabalhadores mais bem remunerados e os trabalhadores mais mal remunerados e, sobretudo, entre os trabalhadores e os gestores de topo. .
# O direito à democracia industrial/laboral
Os tribunais de trabalho
serão chamados a dirimir disputas relacionadas com a aplicação da lei que
garanta aos trabalhadores o direito ao valor pleno do seu trabalho. Este é,
aliás, um exemplo de quão importante é os tribunais serem formados por júris constituídos
por tiragem à sorte de elementos da população adulta. Tribunais com uma tal
composição terão certamente mais empatia com os direitos dos trabalhadores do
que tribunais constituídos por juízes profissionais e inamovíveis (e
procuradores da república profissionais e vitalícios), como sucede actualmente,
pela boa e simples razão que estes magistrados não eleitos são, regra geral –
por modo de recrutamento, por formação, estatuto e função – defensores da ordem
jurídica vigente, construída para proteger e legitimar a subordinação do
trabalho ao capital.
Todavia, se as comissões de trabalhadores e os sindicatos (que só terão razão de existir se deixarem de ser as estruturas burocráticas que quase sempre foram, ou em que quase sempre se transformaram) ganharem pleitos judiciais dando-lhes razão na questão do direito ao valor pleno do trabalho, é expectável que haja firmas que prefiram encerrar portas e despedir os trabalhadores do que continuarem a funcionar. Por conseguinte, a legislação protectora dos direitos dos trabalhadores das empresas possuídas por sociedade comerciais deve incluir o direito dos trabalhadores escolherem – por meio de sorteio interno, ou, para certas funções técnicas (como, p.ex., contabilista certificado, engenheiro de produção) por meio de concurso público seguido de eleição por voto secreto dos candidatos mais bem classificados, ou por meio de uma combinação de ambos os modos – os órgãos de gestão da empresa: conselho de administração, conselho fiscal, mesa da assembleia geral. Dessa forma, a gestão das empresas passa para as mãos dos trabalhadores.
16.4. Outras
medidas preliminares
Há muitas outras medidas políticas preliminares que terão de ser tomadas para instituir a democracia no plano económico, como componente necessária da democracia integral — i.e., política e económica. A sua exposição e explicação exigiria, no entanto, uma longa digressão, pelo que terão de ficar para uma melhor oportunidade [99].
Mas as duas medidas supramencionadas
são, estou em crer, suficientes para se entender concretamente o significado da
injunção marxiana: «Para salvar as massas laboriosas, o sistema cooperativo deve ser
desenvolvido em dimensões nacionais e deve, por conseguinte, ser promovido por
meios nacionais [e transnacionais] » (cf. 5ª parte deste ensaio, secção 14.2.).
…………………………………………………………
N.B. Este ensaio está dividido em 8 partes, sendo esta a sétima:
1ª parte. Os critérios e os
conceitos principais
2ª parte. Um excurso sobre o
poder explícito
3ª parte. A igualdade em
relação ao poder político
4ª parte. A desigualdade
em relação ao poder explícito
5ª parte. A igualdade em
relação ao poder económico
6ª parte. O poder explícito
numa oligocracia electiva liberal
(7ª parte. O
poder explícito numa democracia)
8ª parte. A esquerda acomodatícia
que podem ser encontradas, por esta ordem, no Arquivo do Blogue, 2021, Agosto,
no fim da coluna da direita do blogue.
…………………………………………………..
Notas
[94] Regime senhorial é
a expressão que João Bernardo emprega no seu monumental estudo, em três
volumes, Poder e Dinheiro,
na Europa dos séculos V a XV (Porto: Edições Afrontamento. 1995-1997-2002), em
vez de “feudalismo”, por razões que explica no volume III (p.223 e seguintes).
Trata-se fundamentalmente de reconhecer que a forma dita clássica de feudalismo
e os elos de vassalagem que a caracterizavam constituíam uma modalidade
peculiar de certas regiões do norte de França e que, mesmo aí, tinha excepções.J.Bernardo prefere também falar de “regime”, em vez da expressão marxiana “modo
de produção” — neste caso, modo senhorial de produção. Justifica essa sua
preferência terminológica e conceptual com o argumento de que o actual estado
de investigação histórica faz com que o uso de tal termo (“modo de produção”)
para outros modos que não o capitalismo, seja, em sua opinião, “prematuro” (cf.
volume I, p. 237). Assim sendo, J. Bernardo limitou-se, na obra supracitada «à análise de um regime, conceito a que eu atribuo um
grau de generalidade menos amplo do que cabe a um modo de produção» (ibidem). Sendo ele um profundo conhecedor
deste assunto (coisa que eu não sou), adopto, com a devida vénia, a sua posição
neste particular.
[95] William Paul Cockshott e Karen Renauld desenvolveram
um sistema fiável, seguro, eficaz e versátil de voto electrónico que se adequa
perfeitamente ao funcionamento de uma Assembleia Adsumus dos Cidadãos.
Deram-lhe o nome de Handivote. Cf. K. Renaud, K. & W.P. Cockshott, (2007) “Electrónic plebiscites”. In: MeTTeG07,
27-28 September 2007, Camerino; W.P. Cockshott &
K. Renauld, “Extending Handivote to Handle Digital Economic Decisions”, Proceedings
of ACM-BCS Visions of Computer Science 2010.
[96] Ponto (ou nível) de equilíbrio [Ingl. break-even point] pode ser contábil, financeiro ou económico. O ponto (ou nível) de equilíbrio contábil é o número de
unidades de um bem ou serviço que devem ser vendidas para produzir um lucro de
zero (mas que recuperará todos os custos [fixos e variáveis] associados). «Por outras palavras, o ponto/nível de equilíbrio é o ponto/nível no qual
o seu produto deixa de custar dinheiro para o produzir e vender e começa a
gerar dinheiro para a sua empresa» (v. Hossein
Arsham, Break-Even Analysis and Forecasting, http://home.ubalt.edu/ntsbarsh/Business-stat/ otherapplets/Break
Even.htm).
[97] NEP é o acrónimo, no alfabeto latino, de Novaya Ekonomiceskaya Politika (em português: Nova Política Económica). Denomina o
que foi a política económica seguida na União Soviética no período que medeia
entre o abandono, em 1921, do impropriamente chamado “comunismo de guerra”
(praticado durante a guerra civil) e a colectivização forçada das explorações
agrícolas, a renacionalização das empresas industriais privadas e a
entronização no poder de Estaline e da sua oligocracia de novos e velhos
gestores prebendários, em 1928. Com
a NEP, o país passou a ter uma constituição produtiva
híbrida: medidas económicas próprias do capitalismo monopolista de Estado
(nacionalização e estatização das grandes empresas, minas, transportes e
bancos) conviviam com medidas próprias do capitalismo monopolista privado
(incentivos ao médio produtor rural, autorização de empresas privadas e
incentivos para o seu funcionamento, permissão e incentivos de entrada de
capitais estrangeiros, liberdade de comércio interno e externo) e com a
economia tradicional (economia de subsistência sustentada pelos camponeses
pobres). A NEP permitiu, no entanto, a sobrevivência do regime, dando-lhe a
folga necessária para a recuperação e reordenação de forças. O próprio Lenine,
já cada vez mais afastado do poder em virtude da sua doença cardíaca, teve
dificuldade em definir a NEP, da qual foi, no entanto, o arquitecto principal.
Ironicamente, caracterizou-a como «uma mistura de
czarismo com práticas capitalistas besuntadas por um verniz soviético». Não consegui encontrar a fonte desta citação que
encontrei no artigo “Nova Política Económica”, da Wikipédia em
Português. Mas, como diriam os italianos, se non è vero, è ben
trovato [se não é verdadeiro, é bem pensado].
[98] v. A. Shaikh, “The
transformation from Marx to Sraffa”, in E. Mandel and A.Freeman (eds.), Ricardo,
Marx, Sraffa, London, Verso Books, 1984, pp. 43-84; E. Ochoa, Labour
Values and Prices of Production: an Interindustry Study of the U.S. Economy,
1947–1972, New York, New School for Social Research, Ph.D. Thesis,
1984; P. Petrovic, “The deviation of production prices from labour values: some
methodology and empirical evidence”, Cambridge Journal of Economics,
vol. 11, nº 3 (1987), pp. 197–210; E. M. Ochoa, “Values, prices, and
wage–profit curves in the US economy“, Cambridge Journal of Economics,
vol. 13 (1989), pp. 413–29; Valle Alejandro
Valle Baeza,1994. Correspondence between labor values and prices: A new
approach. Review of Radical Political Economics 26 (1994), pp. 57-66; G. Michaelson, W. P. Cockshott, & A. F.
Cottrell, “Testing Marx: some new results from UK data”, Capital and Class
(1995), pp. 103–129; A. M. Shaikh, “The empirical strength of the labour theory
of value“, in Marxian Economics: A
Reappraisal vol. 2, (Macmillan, 1998), pp. 225–251; L. Tsoulfidis & T.
Maniatis, “Values, prices of production and market prices: some more evidence
from the Greek economy”, Cambridge Journal of Economics, vol. 26, nº. 3,
2002, pp. 359-369; David Zachariah, “Testing the labour theory of value in
Sweden” (2004). http://reality.gn.apc.org/econ/DZ_article1.pdf.; W.P. Cockshott & A. Cottrell, “Robust
correlations between prices and labour values: a comment”, Cambridge Journal
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Expressions of Labor Time and Market Prices: Theory and Evidence from China,
Japan and Korea.” Review of Political Economy (2016) vol.29 (1): 111–132.
[99] Para um desenvolvimento
sobre este assunto, ver P. Cockshott, A. Cottrell & H. Dieterich (2010) “Transition
to 21st century socialism in the European Union”. In: Transition to 21st
Century Socialism in the European Union.
CenturyXXI/Lulu.com, pp. 1-20.
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