Temas 2, 3 e 4
A Guerra na Ucrânia
(1.ª parte)
Crónica de uma guerra pré-anunciada
José Catarino Soares
1. Introdução
Toda a gente sabe que as
Forças Armadas da Rússia, às ordens de Vladimir Putin, invadiram a Ucrânia em
24 de Fevereiro de 2022 e desencadearam uma guerra nesse país que já vai, no
momento em que escrevo (18 de Março de 2022), no 23.º dia.
Julgo não ser necessário
demonstrar que se trata de (i) uma guerra internacional onde há um
invasor/agressor e um invadido/agredido; (ii) uma guerra de invasão mortífera
e devastadora para a população e a vida social do país invadido; (iii)
uma guerra que já fez, pelo menos, 726 mortes entre os civis ucranianos,
incluindo 52 crianças, e 1.174 pessoas feridas, sendo 63 delas crianças, [1];
que provocou um incessante fluxo de fugitivos que se refugiaram
noutros países (mais de 3 milhões de pessoas, dos quais 1,4 milhões são
crianças e 157 mil são cidadãos de outros países que residiam ou se encontravam
na Ucrânia) e de deslocados dentro da Ucrânia (2 milhões) [2],
sobretudo mulheres, crianças e seniores; além de grandes destruições materiais
— habitações, serviços públicos (incluindo escolas e hospitais [3]), património
edificado, infra-estruturas, unidades de produção.
Trata-se também, como demonstrarei
(na 3.ª parte deste ensaio), de (iv) uma guerra em que o
invasor/agressor carece de qualquer justificação aceitável, quer do ponto de
vista do direito internacional público, quer do ponto de vista de uma ética agatonista; (v) uma guerra que é, por isso,
duplamente hedionda [4]. É uma guerra que merece a reprovação e o
repúdio de todos os que prezam um princípio básico que presumo que seja
compartilhado pela maioria da humanidade, ainda que muitos não estejam cientes
disso: «Desfrute a vida, sem explorar nem oprimir
ninguém, e ajude a viver uma vida desfrutável, sem exploração nem opressão do
homem pelo homem» [5].
Mas não basta a
reprovação e o repúdio. Precisamos também de pôr termo a esta guerra quanto
antes, sabendo que a guerra não é um processo independente, mas a continuação
da política (da política de uma sociedade dividida em classes antagónicas) por
outros meios — os meios da violência das
armas [6]. Isso
levanta várias questões que não são triviais:
— Que significam a
invasão da Ucrânia e a guerra em curso na Ucrânia do ponto de vista estratégico
e no âmbito da doutrina do seu mentor e mandante, Putin ? (Dito de outro modo:
qual é o objectivo político de Putin?). Quais são as causas contribuintes e motivações desta
invasão e desta guerra? Por que razão a invasão da Ucrânia ocorreu agora, em
Fevereiro de 2022 (e não muito mais cedo ou muito mais tarde)? Como pode a classe
trabalhadora assalariada da Europa e dos outros continentes (especialmente a do
subcontinente América do Norte) agir de modo a pôr fim a esta guerra, derrotar
os seus fautores e estabelecer uma paz duradoura na Ucrânia, na Rússia e em
toda a Europa?
Refugiados ucranianos em Przemys, cidade polaca. Foto de Louisa Gouliamaki. AFP via Getty Images. |
São estas quatro questões
que este ensaio visa responder. As três primeiras são relativamente simples, a
quarta muito difícil. O leitor deve, pois, esperar uma assimetria semelhante na
satisfação que lhe derem as respostas: muito satisfatória no primeiro caso,
pouco satisfatória no segundo caso. Se assim for, fica desde já convidado a
contribuir para que a quarta e última questão ‒que é a mais importante ‒ tenha
a resposta que merece.
2. Método de investigação e plano da exposição
Para responder a estas questões, em particular às três primeiras, temos de examinar meticulosamente as ideias (incluindo intenções, objectivos, crenças, planos, etc.) e os comportamentos pertinentes (incluindo declarações, ordens, leis, alianças, medidas, políticas públicas, etc.) dos indivíduos e grupos que constituem a elite dirigente (governantes, gestores, diplomatas, chefes militares, chefes policiais, doutrinadores ideológicos e propagandistas) dos diversos países envolvidos nesta guerra, a começar pela elite que dirige os países directamente em guerra ‒ neste caso, a Rússia e a Ucrânia ‒ continuando até à elite que dirige os países que participam indirectamente nesta guerra ‒ os Estados Unidos da América (EUA), os demais países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e os países da União Europeia (UE) ‒ através do fornecimento de armas à Ucrânia e à Rússia [7] e de represálias económicas contra a Rússia.
Não há outra maneira de
proceder, porque os fautores da guerra de invasão em curso na Ucrânia (e das
guerras de devastação em geral) são esse tipo de indivíduos e grupos, assim
como as organizações que dirigem. É impossível não ter em conta o que fazem e o
que dizem, se se quiser delinear e ajustar, continuadamente, as acções que a
classe trabalhadora assalariada poderá desenvolver para lutar com eficácia
contra a guerra.
Isso é importante, por
exemplo, para poder explorar da maneira mais vantajosa as eventuais tensões,
conflitos e divisões que ocorram no seio da classe dominante, em particular no
seio da sua elite dirigente. Numa guerra, elas podem escalar de um momento para
o outro,
Digo isto porque sei que há leitores que, sendo contra as guerras de
invasão ou de devastação ‒ e, por conseguinte, contra a guerra na Ucrânia ‒
consideram, no entanto, que a análise das motivações e causas contribuintes que
levam, em cada caso, à sua eclosão é uma pura perda de tempo, um ocioso e
inconsequente exercício de geopolítica [8]. A única coisa que
interessaria discutir seriam as acções de luta da classe trabalhadora contra a
guerra. É uma posição que reputo errada, pelas razões que indiquei, e que
espero que este ensaio ajude a refutar.
Para maior comodidade de publicação e facilidade
de leitura dividi o ensaio em 4 partes. Nas primeira e segunda partes,
abordarei a segunda questão (quais são as causas contribuintes e
motivações da invasão e guerra em curso na Ucrânia?). Na terceira parte,
abordarei a primeira questão (Que significam a invasão da Ucrânia e a guerra em curso na
Ucrânia do ponto de vista estratégico e no âmbito da doutrina do seu mentor e
mandante, Putin ? [Dito de outro modo: qual é o objectivo político de Putin?])
e a terceira questão (Por que razão ocorreu agora, em Fevereiro
de 2022 [e não muito mais cedo ou muito mais tarde]?).
Na quarta parte, abordarei a quarta questão (Como pode a classe
trabalhadora da Europa e dos outros continentes [especialmente a do
subcontinente América do Norte] agir de modo a parar esta guerra, derrotar os
seus fautores e estabelecer uma paz duradoura na Ucrânia, na Rússia e em toda a
Europa?).
Penso que esta ordem de exposição é a mais adequada para se entender a interligação das quatro questões.
3. Como a garantia de que a OTAN não avançaria nem um centímetro para o Leste da Europa foi convenientemente esquecida
Para compreendermos as
causas contribuintes e motivações da guerra na Ucrânia temos de nos situar nos
Estados Unidos da América (doravante EUA) e recuar 32 anos, até 1990.
Depois de Gorbachev ter
concordado com a reunificação da Alemanha e com a pertença da Alemanha
reunificada à OTAN, os EUA, sob a presidência de George Bush (pai), conheceram
o que o conservador Charles Krauthammer descreveu, em Junho de 1990, como o “Momento Unipolar”.
O mundo
bipolar em que o verdadeiro poder emanou apenas de Moscovo e Washington está
morto. O mundo multipolar para onde nos dirigimos, no qual o poder emanará de
Berlim e Tóquio, Pequim e Bruxelas, assim como de Washington e Moscovo, está a
lutar para nascer. A transição entre estes dois mundos é agora, e não vai durar
muito. Mas o momento em que estamos a viver é um momento de unipolaridade, onde
o poder mundial reside numa entidade razoavelmente coerente, serenamente
dominante: a aliança ocidental [entender: os EUA e os seus aliados
da OTAN, N.E.], sem contestação e ainda não
(embora em breve) fracturada pela vitória [9].
Uma parte da elite
dirigente americana viu no momento unipolar uma oportunidade única para os EUA
se alcandorarem à posição de única potência global, reconstruindo as relações
internacionais à sua maneira e mantendo-as desse modo num “mundo unipolar”. Consoante a sua origem política
(conservadores, liberais, neoconservadores, neoliberais) os seus próceres vão
qualificar diversamente esse desígnio de “domínio global”, “chefia (Ingl. “leadership”) mundial”, “hegemonia”, “preeminência”,
“predominância” ou mesmo “Espectro de Domínio Total”. Foi o sonho de um império
mundial americano em que os EUA se encarregariam de manter a paz, proteger as rotas
marítimas e fazer cumprir a ordem internacional americanófila baseada em regras
globais.
O primeiro
documento onde esta orientação foi enunciada preto no branco tinha por título Defense Planning
Orientation [Orientação do Planeamento da Defesa] e surgiu em 1992, a
seguir à primeira guerra do Iraque (1991), pela mão de Dick Cheney, o ministro
da guerra de George Bush (pai) [10]. Nele se definia a
doutrina global dos EUA para a nova década e para o novo milénio. Segundo esse
documento, os EUA deveriam continuar a ser a única potência dominante no planeta,
e deveriam manter poder militar suficiente para impedir quaisquer possíveis rivais
estratégicos ‒ tais como a Alemanha, o Japão, a Rússia ou a China ‒ de terem a
veleidade sequer de tentarem desafiar o poder global dos EUA.
Como os
neoconservadores do “think tank” Project
for the New American Century (PNAC) [“Projecto para o Novo Século Americano”]
(incluindo Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz, futuros membros do
governo de George Bush-filho) viriam a consignar no estudo intitulado Rebuilding
America’s Defenses (1998) [“Reconstruindo as Defesas Americanas]”, a
expansão da presença dos EUA no Médio Oriente e da aliança da OTAN na Europa
eram os dois eixos que estavam no cerne dessa doutrina.
O chanceler Helmut
Kohl e o ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha Ocidental, Hans-Dietrich
Genscher; o presidente François Mitterrand e o ministro dos Negócios
Estrangeiros da França, Roland Dumas; a primeira-ministra Margaret Thatcher (e,
mais tarde, o seu sucessor John Major) e o ministro dos Negócios Estrangeiros
do Reino Unido, Douglas Hurd, fizeram todos a mesma solene promessa a
Gorbachev, tida como chave do êxito do Tratado Dois-Mais-Quatro que definiu a
reunificação da Alemanha [11] e que teria, alegadamente, garantido a sua plena
soberania [12].Mas havia um pequeno/grande
problema. Em 9 de Fevereiro de 1990 e em todos os encontros nos meses seguintes,
o Presidente George Bush (pai) e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, James
Baker III, tinham garantido ao presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev,
que se a União Soviética retirasse as suas tropas da Alemanha de leste e
permitisse a reunificação alemã, continuando a Alemanha a estar inserida na aliança
militar da OTAN, os EUA não expandiriam a OTAN, como disse Baker, “nem um centímetro para Leste” [“not one inch eastward”] da Europa.
No entanto, de
1992 em diante tornou-se corriqueiro os governantes americanos, incluindo o
próprio James Baker III, mentirem descaradamente afirmando que essas garantias
nunca existiram, ou então (versão hipócrita) que nunca foram dadas por escrito
e que, por conseguinte, não têm qualquer valor [13]. Estes dois
argumentos são repetidos à exaustão pelos comentadores do sistema mediático dominante
de comunicação social (estações privadas e públicas de televisão e de rádio de
grande audiência, jornais e revistas comerciais de grande circulação, redes
virtuais mundiais de mensagens instantâneas). Alguns vão mesmo ao ponto de
afirmar que são uma invenção dos russos, em particular de Putin!
Mas os factos são
teimosos. Hoje em dia, qualquer pessoa que tenha acesso à Internet e saiba
Inglês pode ler essas garantias tal como foram registadas por escrito
nos documentos oficiais da época (actas, relatórios e memorandos) que foram,
entretanto, desclassificados [14].
A chegada à presidência dos EUA de Bill Clinton (1993) e
a sua permanência nessa posição durante 8 anos (2001) não alterará em nada o
desígnio formulado por Dick Cheney e os neoconservadores, bem pelo contrário.
Desde 1994 que Clinton está
firmemente decidido a “esquecer-se” das garantias dadas a Gorbachev pelo seu
antecessor, George Bush (pai). Os seus planos são os de alargar a OTAN para Leste
da Alemanha, começando por três países da Europa de leste que tinham sido
membros do Pacto de Varsóvia (entretanto dissolvido): Polónia, República Checa
e Hungria.
Mas estes planos
vão fazer soar as sirenes de alarme não só na elite dirigente russa, agora
chefiada por Boris Ieltsin (um ex-membro da Nomenklatura da União
Soviética que bem depressa construirá uma sólida e merecida reputação de
alcoólatra e protector-mor dos cleptocratas que se apoderarão dos despojos [as
riquezas naturais e o aparelho de produção] da ex-União Soviética na Rússia),
mas também numa parte da própria elite dirigente americana.
4. O grande cisma estratégico na elite dirigente
americana
De facto, é nesta
altura que começa a formar-se nos EUA uma coligação hostil ao alargamento da
OTAN aos países que foram membros do ex-Pacto de Varsóvia.
As primeiras
manifestações públicas dessa coligação foram a carta endereçada por 18
ex-embaixadores e altos funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros e
do Ministério da Defesa a Strobbe Talbot, secretário de Estado da Defesa, em 3
de Maio de 1995; o testemunho de Jack F. Matlock (ex-embaixador dos EUA na
União Soviética) perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado, também em
3 de Maio de 1995; um artigo do professor Michael Mandelbaum publicado na
edição de Maio/Junho de 1995 da revista Foreign Affairs; um artigo do embaixador
Jonathan Dean, publicado na edição de Junho de 1995 da Arms Control Today,
a revista mensal da Arms Control Association, e o discurso do Senador Sam Nunn de 22 de Junho
de 1995 perante o Senado.
A coligação contra
o alargamento da OTAN ao leste da Europa foi-se avolumando e em 1997 incluía
homens como George Kennan (o mentor da política de “contenção” da União
Soviética, ex-embaixador dos EUA na União Soviética, ex-director
do Planeamento de Política Pública do Ministério dos Negócios Estrangeiros),
Paul Nitze (ex-vice-ministro da Defesa, ex-secretário de Estado da Marinha,
ex-director do Planeamento de Política Pública do Ministério dos Negócios
Estrangeiros), Robert McNamara (ex-Presidente do Banco Mundial, ex-ministro da
Defesa durante a guerra do Vietnam), Fred Iklé (ex-vice-ministro da Defesa,
ex-director da Agência para o Desarmamento e Controlo de Armas), o general
Brent Scowcroft (ex-membro do Conselho Nacional de Segurança e amigo íntimo do
presidente Bush [pai]), o almirante Stansfield Turner e Robert Gates
(ex-directores da CIA), Stanley Resor (presidente do Conselho Directivo da
Associação para Controlo de Armas), Jack Matlock, Jr.
(ex-embaixador dos EUA na Checoslováquia e na União Soviética), Daniel Patrick
Moyniham (ex-embaixador dos EUA na Índia e na ONU, senador de Nova Iorque),
John Warner (ex-secretário de Estado da Marinha, senador da Virgínia), Sam Nunn
(senador da Geórgia), Bill Bradley (senador da Nova Jersey), Richard Pipes
(historiador especializado em história da Rússia, professor universitário, coordenador
do “Team B” de analistas da CIA), David Calleo (politólogo, professor
universitário, especialista em política europeia), Fareed Zakaria (politólogo,
sucessivamente editor das revistas Foreign Affairs, Newsweek
International e Time, actualmente editor e apresentador do programa Fareed
Zakaria GPS da CNN), Owen Harries (politólogo, professor universitário,
co-fundador e co-editor da revista The National Interest), Raymond
Garthoff (politólogo, ex-embaixador dos EUA na Bulgária, membro permanente da
Brookings Institution, um instituto de investigação governamental), Edward
Luttwak (politólogo, professor universitário, historiador, membro do Center For
Strategic & International Studies [CSIS]), Jim Hoagland (jornalista,
vencedor duas vezes do Prémio Pulitzer de jornalismo, editorialista do jornal The
Washington Post), Thomas Friedman (jornalista, vencedor duas vezes do
prémio Pulitzer de jornalismo, editorialista do jornal The New York Times),
e até o próprio William Perry (ministro da defesa de Bill Clinton) e o próprio Michael
Mandelbaum (que já
referi, mas que cumpre agora relevar como conselheiro da campanha presidencial
de Clinton em 1992). Todos eles, além de dezenas de outros diplomatas, altos
responsáveis civis do aparelho de Estado americano, generais e almirantes na
reserva ou reformados, advertiram Clinton para não levar por diante o seu plano
de alargamento da OTAN aos países do leste da Europa.
Estas breves
indicações biográficas, embora fastidiosas, serão suficientes, espero, para
mostrar que este grupo nada tem que ver com uma qualquer corrente
isolacionista, anticosmopolita ou, muito menos, anti-imperialista.
Bem pelo
contrário, estes homens eram, à data (alguns ainda estão vivos e activos),
figuras proeminentes da elite dirigente americana, cosmopolitas, com uma
extensa folha de serviços em prol do Estado e do poderio americano, muitos
deles imbuídos até ao tutano da crença imperialista na “chefia americana do mundo” [“American
leadership in the world”], o chavão favorito do futuro presidente Barak
Obama.
No entanto,
opuseram-se vigorosamente aos planos de Clinton para estender a OTAN aos países
do Leste da Europa, em direcção à Rússia. O seu denominador comum era a tese de
que a expansão da OTAN para o Leste da Europa era possível, mas não desejável à
luz do “realismo político” [15]
que deveria imperar sempre na defesa dos interesses americanos sobre as
veleidades do “idealismo wilsoniano” [16].
Numa carta aberta
datada de 26 de Junho de 1997, subscrita por 50 destas personalidades e
dirigida ao presidente Bill Clinton pode ler-se:
O
esforço actual dirigido pelos EUA para expandir a OTAN /.../ é um erro político de proporções históricas. Acreditamos que a expansão
da OTAN irá diminuir a segurança dos aliados
e perturbar a estabilidade europeia pelas seguintes razões:
— Na
Rússia, a expansão da OTAN, que continua a ter a oposição de todo o espectro
político, reforçará a oposição não-democrática, prejudicará aqueles que
favorecem a reforma e a cooperação com o Ocidente, levará os russos a
questionarem todo o acordo global do pós-Guerra Fria, e galvanizará a
resistência na Duma aos Tratados START II e III;
— Na
Europa, a expansão da OTAN traçará uma nova linha de divisão entre os “que
ficam dentro” e os “que ficam de fora”, fomentará a instabilidade e, por fim
diminuirá a sentimento de segurança dos países que não estão incluídos;
— Na
OTAN, a expansão, que esta Aliança indicou ter um limite extensível, degradará
inevitavelmente a capacidade da OTAN para levar a cabo a sua missão principal e
implicará que os EUA dêem garantias de segurança a países com graves problemas
de fronteiras, a minorias nacionais e a sistemas de governo democrático
desenvolvidos de forma desigual;
—
Nos EUA, a expansão da OTAN desencadeará um debate alargado sobre a sua
indeterminação, mas que terá certamente um custo elevado, e que porá em causa o
compromisso dos EUA com essa Aliança, considerada, tradicional e correctamente,
como uma peça central da política externa dos EUA. /…/
A Rússia não representa agora uma ameaça para os seus vizinhos ocidentais e as nações do Centro e Leste da Europa não estão em perigo. Por esta razão, e pelas outras supramencionadas, acreditamos que a expansão da OTAN não é necessária nem desejável e que esta política mal concebida pode e deve ser suspensa. [destaques a traço grosso acrescentados ao original]
O presidente Clinton
tinha dito que os EUA iriam «construir e assegurar
uma Nova Europa, pacífica, democrática e finalmente indivisível». Mas,
segundo estes seus compatriotas ‒ membros proeminentes, como ele, da elite
dirigente americana ‒ Clinton não estava a unir a Europa. Bem pelo contrário,
estava a redividi-la. O embaixador Jack Matlock Jr. advertiu inclusivamente que
se a Rússia fosse excluída da OTAN alargada, isso seria necessariamente visto por
ela como sendo uma medida contra a Rússia.
Em suma, os
autores da carta aberta a Clinton constatavam com profundo desapontamento e
inquietação que, apesar da “Guerra Fria” ter terminado dois anos antes da
dissolução da União Soviética, apenas dois anos volvidos sobre essa data, já os
EUA estavam a caminho de a recomeçar…
Convém não esquecer
que o documento mais expressivo desta espécie de fronda tinha sido publicado
quatro meses antes por George Kennan, o principal mentor da política americana
durante a “Guerra Fria” (a que chamou “política de
contenção da União Soviética”) e reputado historiador da Rússia e da
União Soviética.
Num artigo intitulado Um Erro Fatídico, publicado no New York Times em 5 de Fevereiro de 1997 e no Herald International Tribune no dia seguinte, Kennan enunciou da maneira mais clara, concisa e acutilante a acusação de insensatez ignorante e perigosa que uma parte da elite dirigente dos EUA (de que ele era parte integrante) lançou contra a outra parte (encabeçada à época pelo presidente Bill Clinton e pela sua ministra dos Negócios Estrangeiros, Madeleine Albright) por motivo desta última querer alargar a OTAN para o Leste da Europa.
Mas
está aqui em jogo algo da máxima importância. E talvez não seja demasiado tarde
para formular uma opinião que não é só minha, mas que é compartilhada por
muitos outros com uma vasta experiência dos assuntos russos, mais recente do
que a minha na maioria dos casos. Essa opinião, enunciada sem rodeios, é que a
expansão da OTAN seria o erro mais fatídico da política americana de toda a era
pós-Guerra Fria. É de esperar que essa decisão inflame as tendências
nacionalistas antiocidentais e militaristas da opinião russa; que tenha um
efeito adverso no desenvolvimento da democracia na Rússia; que restaure a
atmosfera de Guerra Fria nas relações Leste-Oeste, e que impila a política
externa Russa em direcções que não sejam decididamente do nosso agrado. [destaques a
traço grosso acrescentados ao original, N.E]Nos
finais de 1996, deixou-se que se tornasse prevalente ‒
ou fez-se com que assim se tornasse ‒ a impressão de que, algures e seja lá
como for, alguém tinha decidido expandir a OTAN até às fronteiras da Rússia.
Isto, apesar do facto de que nenhuma decisão formal pode ser tomada antes da
próxima cimeira dessa aliança, que ocorrerá em Junho.
Um ano depois, em 1998, Kennan voltaria à carga numa
entrevista concedida à CNN.
Penso que [o alargamento da OTAN à Polónia,
Hungria e República Checa, N.E.] é o início
de uma nova Guerra Fria. Penso que os russos irão reagir gradualmente de forma
adversa, e isso terá um efeito nas suas políticas. Penso que é um erro
trágico. Não há absolutamente nenhuma razão para fazer isto. Ninguém foi
ameaçado. Esta extensão faria com que os pais fundadores deste país se
voltassem nas suas sepulturas. Comprometemo-nos a proteger um grande número de
países, apesar de não termos nem os recursos nem a intenção de o fazer de forma
séria.
Claro que isto levará a uma reacção negativa da Rússia, e então eles [aqueles que optaram por expandir a OTAN, N.E.] dirão que nos disseram que os russos eram assim. Mas isso é simplesmente desonesto [destaques a traço grosso acrescentados ao original] [N.E.= nota editorial]
5. Uma síntese parcial com o benefício da retrospectiva
Este é um bom momento para fazermos uma síntese parcial (com o benefício da
retrospectiva) dos acontecimentos que evocámos e dos que se lhes seguiram até aos
nossos dias, antes de entrarmos na 2.ª parte deste ensaio.
A advertências de Kennan e dos demais opositores americanos à expansão da
OTAN até às fronteiras da Rússia não tiveram êxito. A facção da elite dirigente
americana que eles representavam foi derrotada. A política de alargamento da
OTAN até às fronteiras da Rússia foi prosseguida ou mantida por todos os
presidentes americanos (tanto republicanos como democratas) que sucederam a
George Bush (pai) ⎼ Bill Clinton, George Bush
(filho), Barak Obama, Donald Trump, Joe Biden ⎼ como veremos na segunda parte deste ensaio.
Mas os vaticínios de Kennan e dos demais opositores à expansão da OTAN para
o Leste europeu também se cumpriram. Eis alguns exemplos.
Tal como Gorbachev, Boris Ieltsin acreditou piamente [17] num arranjo com os EUA que levasse à dissolução da OTAN e ao estabelecimento de um acordo global de segurança militar (que Gorbachev baptizara de “Casa Comum Europeia”) ou, em alternativa, a uma reconfiguração completa da OTAN que permitisse à Rússia passar a ser um dos seus membros sem temer pela sua autonomia. Mas em 1994 essa crença já estava muito abalada. Ieltsin expressou sem rodeios a sua frustação e ira em 5 de Dezembro de 1994, em Budapeste, durante a cimeira da CSCE [= Conference on Security and Cooperation in Europe, hoje Organization for Security and Co-operation in Europe (OSCE) = Organização para a Segurança e Cooperação na Europa].
Eis alguns trechos desse discurso que fez manchete no dia seguinte na
primeira página do New York Times, mas que, infelizmente, poucos
conhecem, porque só existe na íntegra em versão áudio e em russo [18].
A nossa atitude em relação aos planos de alargamento
da OTAN, e especialmente à possibilidade das suas infra-estruturas progredirem
para Leste, é e continuará a ser negativa. Argumentos como: “o alargamento não é dirigido
contra nenhum Estado e constitui um passo para a criação de uma Europa
unificada” não resistem à crítica. Esta é uma decisão cujas
consequências determinarão a configuração europeia nos próximos anos. Pode
levar a uma quebra no sentido da deterioração da confiança entre a Rússia e os
países ocidentais. /…/
A Rússia também espera que a sua segurança seja
considerada. /…/
Pela primeira vez, estamos a lançar as bases para uma
área comum de confiança no campo militar, abrangendo grande parte de três
continentes e oceanos do mundo /…/ Estamos preocupados com as mudanças que estão a ocorrer na
OTAN.
O que significará isso para a Rússia? A OTAN foi criada durante a Guerra Fria. Hoje, não sem dificuldade, procura o seu lugar na nova Europa. É importante que esta abordagem não crie duas zonas de demarcação, mas que, pelo contrário, consolide a unidade europeia. Esse objectivo, para nós, é contraditório com os planos de expansão da OTAN. Qual é a razão para plantar as sementes da desconfiança? Afinal, já não somos inimigos; somos todos parceiros agora. /…/
Manchete da 1.ª página do New York Times de 6 de Dezembro de 1994. “Ieltsin diz que a OTAN está a tentar dividir o continente [europeu] outra vez. Apelida os EUA de dominadores.” |
A Europa, que ainda não se livrou do legado da Guerra
Fria, corre o risco de mergulhar numa paz fria. Como evitar que isso aconteça é
a pergunta que devemos fazer a nós próprios /…/ A história demonstra que é uma perigosa ilusão supor que os
destinos dos continentes e da comunidade global em geral possam
ser administrados de alguma forma a partir de uma única capital. Nem os blocos
de coligação militar fornecerão garantias reais de segurança. A criação de
uma organização pan-europeia de pleno direito com uma base jurídica fiável
tornou-se uma necessidade vital na Europa. /…/ [destaques a
traço grosso acrescentados ao original, N.E.]
Em 10 de Maio de 1995, durante as comemorações do 50.º aniversário da vitória sobre a Alemanha nazi, Ieltsin resumiu perfeitamente o seu problema:
Não vejo nada mais além de uma humilhação para a
Rússia se vocês [EUA] continuarem nessa senda /.../ Porque
é que querem fazer isso? Precisamos de uma nova estrutura
de segurança pan-europeia, não das velhas estruturas! /…/ Mas se eu aceitasse
que as fronteiras da OTAN se estendessem até às da Rússia, seria uma traição da
minha parte ao povo russo. [destaque a
traço grosso acrescentado ao original, N.E.]
Em 9 de Setembro de 1995, o tom muda. Ieltsin (entenda-se: a elite dirigente
da Rússia de que ele era na altura o rosto mais conhecido) convenceu-se que nada
demoveria os EUA de estenderem as fronteiras da OTAN até as fronteiras da
Rússia, a não ser a ameaça da força das armas. Por isso, declara:
A expansão da OTAN significará uma conflagração de
guerra em toda a Europa, de certeza. /…/ Porque
é que os Europeus consentem ser dirigidos a partir de um lugar do outro lado do
oceano? É por isso que sou contra o alargamento da OTAN. Quando a OTAN se
aproxima das fronteiras da Federação da Rússia, pode dizer-se que haverá dois
blocos militares e isso será a restauração do que já tínhamos antes, em
detrimento da segurança europeia [destaque
a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]
Em 9 de Abril de 1999, Ieltsin advertiu a OTAN para não prosseguir a sua
intervenção no Kosovo (Sérvia), porque isso poderia desencadear a 3.ª guerra
mundial.
Eu disse à OTAN, aos Americanos e aos Alemães: não
nos empurrem para uma intervenção militar.
Caso contrário, haverá uma guerra europeia e possivelmente uma guerra
mundial [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]
Ieltsin
renunciou ao poder em 31 de Dezembro de 1999, tendo sido substituído interinamente
por Vladimir Putin, 1.º ministro e seu sucessor designado. Putin acabaria por ser
eleito presidente da Rússia três meses depois.
Nos primeiros cinco anos do consulado de Putin, este alimentará a
expectativa de conseguir chegar a uma solução de compromisso com George Bush (filho)
sobre a entrada da Rússia para a OTAN, tal como o seu antecessor Ieltsin tinha
alimentado uma expectativa semelhante relativamente ao seu (ex-) “amigo Bill Clinton” [19]. Eram os
tempos que se seguiram aos atentados contra as torres gémeas de Nova Iorque; os
tempos da cruzada dos EUA contra o terrorismo islâmico de Bin Laden e da Al-Qaeda
e contra os talibãs do Afeganistão acusados de os albergar. A conjuntura
parecia propícia a uma aliança EUA-Rússia contra o “terrorismo
global”. Estas expectativas de Putin acabaram por se gorar.
Em 2007, Putin já não tinha grandes ilusões a respeito da adesão da Rússia
à OTAN , como ficou patente no seu discurso de 10 de Março de 2007, na
conferência anual de segurança de Munique. Embora tivesse deixado uma porta
entreaberta para um possível compromisso como os EUA e a OTAN, as suas
objecções e advertências ao alargamento da OTAN em direcção às fronteiras
russas tornaram-se categóricas. Começou por se referir à noção de “mundo unipolar” com que sonhavam os seus
interlocutores dos EUA,
Seja qual for a maneira de embelezar este termo, ele
refere-se, em última análise, a um tipo de situação, nomeadamente a um centro
de autoridade, um centro de força, um centro de tomada de decisões. É um mundo
em que há um único senhor, um único soberano.
Assistimos hoje a um uso quase incontido da força ‒
força militar ‒ nas relações internacionais, força que está a
mergulhar o mundo num abismo de conflitos permanentes. E claro, isto é
extremamente perigoso. Resulta no facto de que ninguém se sente seguro.
Quero enfatizar isto — ninguém se sente seguro!
Vemos o aparecimento, na Bulgária e na Roménia, de
“bases americanas ligeiras avançadas”, cada uma com 5.000 soldados. Acontece
que a OTAN aproxima as suas forças avançadas das nossas fronteiras, enquanto
nós – que respeitamos estritamente o Tratado – não reagimos a
estes movimentos.
É óbvio, penso eu, que o alargamento da OTAN não tem
nada que ver com a modernização dessa aliança, nem com a segurança na Europa.
Pelo contrário, é um factor que representa uma séria provocação e rebaixa o
nível de confiança mútua. Temos o direito legítimo de perguntar abertamente
contra quem está a ser realizado este alargamento. O que aconteceu às
garantias dadas pelos nossos parceiros ocidentais após a dissolução do Pacto de
Varsóvia? Onde estão essas garantias? Já foram esquecidas. No entanto,
tomarei a liberdade de lembrar aos presentes nesta sala o que foi dito.
Gostaria de citar palavras retiradas do discurso do Sr. Werner, então
Secretário-Geral da OTAN, proferido em Bruxelas em 17 de maio de 1990: «O facto de estarmos preparados
para não enviar tropas da OTAN para fora do território da RFA dá à União
Soviética certas garantias de segurança». Onde estão essas
garantias hoje?
Os blocos de cimento e as pedras do Muro de Berlim são
já recordações antigas. Mas não podemos esquecer que a sua queda se tornou
possível graças, em particular, à escolha histórica do nosso povo – o povo da
Rússia – a favor da democracia e da liberdade, da abertura e da parceria
sincera com todos os membros da grande família europeia.
No entanto, agora, está a tentar impor-se novas linhas
de demarcação e novos muros. Mesmo que sejam virtuais, não deixam de dividir,
de compartimentar o nosso continente. Serão precisos novamente anos e décadas,
uma sucessão de várias gerações de dirigentes políticos para desmantelar esses
muros? /…/
Estou certo de que neste momento crucial devemos
repensar seriamente a arquitetura global de segurança.[destaques a
traço grosso acrescentados ao original, N.E.]
Como o historiador Ted Galen Charpentier observou, em 24 de Janeiro de 2022:
O discurso na Conferência de Segurança de Munique de
2007 deveria ter dissipado quaisquer dúvidas sobre se a Rússia via a política
da OTAN em geral e a inexorável marcha da aliança para o leste em particular
como provocatória e ameaçadora. Putin estava a alertar os seus colegas
ocidentais para mudarem de rumo. /…/
E acrescentou premonitoriamente:
O discurso de Putin em Munique foi o primeiro aviso
explícito de sérios problemas em perspectiva se o Ocidente não abandonar a sua
postura cada vez mais agressiva em relação à Rússia. As últimas exigências
do Kremlin de garantias de segurança e de uma retirada militar da OTAN das
fronteiras da Rússia podem ser o último aviso. Os Estados Unidos e os seus
aliados estão a encurralar a Rússia num canto, o que é profundamente insensato
se o objectivo for evitar a guerra com uma grande potência fortemente armada [20] [destaque a
traço grosso acrescentado ao original, N.E.]
Com efeito, com o benefício da retrospectiva,
verifica-se que o discurso de Putin de 2007 foi talvez a última oportunidade para
evitar uma nova “Guerra Fria”
entre os EUA/OTAN e a Rússia, susceptível de escalar repentinamente para uma “guerra
quente”, uma guerra propriamente dita, como viria de facto a acontecer em 24 de
Fevereiro de 2022 na Ucrânia. Isto, se olharmos para os figurões principais
destes acontecimentos como se eles tivessem mais apreço pela lógica ou pelo
simples bom-senso do que pelos interesses económicos que defendem e pelas
doutrinas políticas que perfilham.
Mas não é esse o caso,
manifestamente. Se nos ativermos aos factos e empregarmos as categorias de
análise adequadas, o conflito entre a Rússia e os EUA deixa-se descrever em
poucas palavras.
Uma potência capitalista de
primeira grandeza (os EUA) ‒ que é também a primeira potência militar e nuclear
do planeta ⎼ fez tudo, durante os últimos 30 anos, através da OTAN
(como veremos, com mais pormenor, na segunda parte deste ensaio), para entronizar
como seu inimigo oficial na Europa uma potência capitalista de segunda ou
terceira grandeza (a Rússia) ‒ mas que é a segunda potência militar e nuclear
do planeta. Essa entronização da Rússia como inimigo oficial da OTAN na Europa
tomou duas formas mais visíveis: (i) o repúdio continuado da Rússia como
potencial Estado-membro da OTAN, (ii) acompanhado pela expansão
continuada da OTAN no Leste da Europa, em direcção às fronteiras europeias da
Rússia. Os próceres dessa política temerária de repúdio e confinamento da
Rússia relativamente à OTAN (que será examinada em pormenor na segunda parte
deste ensaio) parecem ter contado com a esmagadora superioridade económica e
militar dos países da OTAN como dissuasor de qualquer reacção violenta por
parte da elite dirigente da Rússia. Esse cálculo saiu furado, como todos
podemos constatar.
Poder-se-ia esperar outra coisa?
Não, dada a natureza dos antagonistas em presença e das circunstâncias.
As elites dirigentes da Rússia e
dos países da OTAN (com particular destaque para os EUA) agem exclusivamente em
função de critérios e objectivos geopolíticos. Isto significa que só conhecem
uma linguagem: a do poder explícito das respectivas classes dominantes, das
quais as elites dirigentes são uma emanação. Um dos seus lemas tácitos é: “Se
for necessário fazer uma guerra para manter ou ampliar o nosso poder, pois façamo-la” (Veremos numerosos exemplos desse lema na segunda
parte deste ensaio). Isto, quanto à natureza dos antagonistas em presença.
Quanto às circunstâncias, a
situação é ainda mais clara. Como vimos, os alertas não faltaram, vindos de
dentro da própria elite dirigente dos EUA, sobre o que de muito mau poderia
acontecer se a OTAN recusasse a adesão da Rússia às suas fileiras e as fosse
engrossando com um número crescente de países que estiveram outrora associados à
Rússia no ex-Pacto de Varsóvia, ou que eram até, como a própria Rússia, parte
integrante da ex-União Soviética. E o próprio Putin (e antes dele Ieltsin, como
vimos) foi emitindo ao longo do tempo muitos sinais no mesmo sentido, como
veremos também, com mais pormenor, na terceira parte deste ensaio.
Em suma, a guerra na Ucrânia é uma
guerra que foi anunciada com grande antecedência. A surpresa que tantos
manifestaram perante a sua eclosão não tem fundamento objectivo e é, em muito
casos, fingida.
………………………………………………………………………………
N.B. Este artigo é a primeira parte de um ensaio intitulado A Guerra na Ucrânia, com quatro partes. Esta primeira parte foi publicada originalmente na revista/magazine Passa Palavra [https://passapalavra.info/2022/04/143558/] em 30-04-2022.
………………………………………………………………………………
Notas e Referências
[1] Estes números foram
fornecidos por Rosemary DiCarlo, subsecretária-geral da
ONU para os Assuntos Políticos, em 18 de Março de 2022, e reportam-se a
informações relativas ao período que vai de 24 de Fevereiro a 15 Março de 2022.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) contabilizou 43 ataques ao sistema de
saúde na Ucrânia, que mataram 12 pessoas e feriram algumas dezenas, incluindo
profissionais de saúde, disse o director-geral da OMS, Tedros Adhanom
Ghebreyesus, ao Conselho de Segurança da ONU, também em18 de Março.
[2] O número de refugiados
da Ucrânia noutros países no 23.º dia de guerra, foi fornecido por Paul Dillon,
porta-voz da Organização Internacional para as Migrações (OIM), uma agência da
ONU, no dia 15 de Março de 2022. O
número de deslocados internos foi fornecido pelo Alto Comissariado da ONU para
os Refugiados (ACNUR) no dia 15 de Março de 2022.
[3] Como as crianças em idade escolar e
os doentes não constituem (nem sequer potencialmente) tropas de combate, vou considerar
como hipótese de trabalho que a destruição de escolas e hospitais ucranianos
por granadas de artilharia pesada e superpesada, foguetões, mísseis, e bombas
aerotransportadas não é intencional, mas antes o que na gíria militar se
apelida de “danos colaterais” — os efeitos
destrutivos não deliberados (e porventura indesejados) de acções guerreiras
deliberadas. As declarações de Rosemary
DiCarlo, subsecretária-geral da ONU para os Assuntos Políticos, vão nesse
sentido. «A maioria dessas vítimas deveu-se ao uso
em áreas povoadas de armas explosivas com ampla área de impacto. Centenas de
prédios residenciais foram danificados ou destruídos, assim como hospitais e
escolas», afirmou DiCarlo ao Conselho de Segurança da ONU (Agência
Brasil, 17-03-2022). Aliás, a existência ineliminável de danos colaterais
em todas as guerras é uma das razões da afirmação de que todas as guerras são
hediondas de um ponto de vista agatonista (cf. Nota [4], infra).
[P.S. à nota 3]. O gabinete de Michelle
Bachelet, Alta-Comissária para os Direitos Humanos da ONU, divulgou hoje, 22
de Abril, um comunicado onde se pode ler o seguinte: «As forças armadas russas têm bombardeado indiscriminadamente
áreas povoadas, matando civis e destruindo hospitais, escolas e outras
infra-estruturas civis — acções que podem equivaler a crimes de guerra.»
«O que vimos em Kramatorsk, região controlada pelo
Governo, em 8 de Abril, quando bombas de fragmentação atingiram a estação
ferroviária, matando 60 civis e ferindo 111 outros, é emblemático da não adesão
ao princípio de distinção, a proibição de ataques indiscriminados e o princípio
de precaução consagrada no direito humanitário internacional», disse
Bachelet. Bachelet disse também que «a dimensão das
execuções sumárias de civis em áreas anteriormente ocupada pelas forças russas
está a emergir». (“Bachelet urges respect
for international humanitarian law amid growing evidence of war crimes in
Ukraine”. Office of the High Comissioner for Human Rights, 22 April 2022)
Estas declarações parecem indicar que a destruição de escolas, hospitais e
zonas residenciais é (pelo menos muitas vezes) o resultado de bombardeamentos indiscriminados
e que a morte de civis é (pelo menos muitas vezes) deliberada, ao contrário do
que supus em 18 de Março de 2022 quando escrevi a nota 3. Teremos que
aguardar pelos resultados dos inquéritos em curso por esta agência
especializada da ONU e pelo Tribunal Internacional de Justiça para conhecermos melhor os factos em causa.
[4] Todas as guerras são
hediondas do ponto de vista agatonista, porque
violam o seu princípio básico. Isso vale mesmo para as guerras que se travam em
legítima defesa e que têm, por isso, uma justificação ética: preservar a vida
de quem quer viver segundo esse princípio. Sobre o agatonismo
e o seu princípio básico ver nota [5], infra.
[5] «Desfrute a vida, sem explorar nem oprimir ninguém, e ajude a viver uma
vida desfrutável, sem exploração nem opressão do homem pelo homem». Este
princípio é uma expansão de um apotegma da autoria do filósofo e físico Mario
Bunge (1919-2020): «Desfrute a vida e ajude a viver
uma vida desfrutável». A sua expansão da maneira indicada constitui,
creio, um melhor resumo, e quase tão conciso como o original, do agatonismo — um neologismo cunhado por Bunge a
partir do Grego antigo αγαθος: [agathós] “de boa constituição”, “de boa
natureza”, “bom”, “honesto,” “virtuoso” “meritório”, “nobre”. Agatonismo é o nome de uma ética humanista,
realista e materialista que postula que os direitos e os deveres andam
emparelhados, que as acções devem justificar-se moralmente e que os princípios
morais devem avaliar-se pelas suas consequências. O apotegma de Bunge não
exclui alguém como, por exemplo, Bill Gates, que poderia mesmo gabar-se, à sua
luz, de ser um exemplo canónico de conduta agatonista. A expansão que proponho
exclui liminarmente essa possibilidade.
[6] Esta é uma síntese abreviada das
definições de guerra de Clausewitz: (a) «A guerra é
/…/ um acto de violência [violência armada e, por conseguinte, violência
física no seu mais alto grau, N.E] destinado
a compelir o nosso inimigo a fazer a nossa vontade» (p.75); (b) «A guerra não é um mero acto de política, mas um
verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas por
outros meios» (p.87) (Carl von Clausewitz [1833], On War, tradução de
Michael Howard e Peter Paret, Princeton: Princeton University Press, 1984).
Minha tradução.
[7] Desde Julho de 2014, um embargo da
União Europeia (UE) proíbe estritamente a venda de armas à Rússia: «É proibida a venda, fornecimento, transferência ou
exportação directa ou indirecta de armas e material conexo de todos os tipos,
incluindo armas e munições, veículos e equipamento militar, equipamento
paramilitar e respectivas peças sobresselentes, para a Rússia por nacionais dos
Estados-membros ou a partir dos territórios dos Estados-membros ou utilizando
navios ou aviões que usem a sua bandeira, quer sejam ou não originários dos
seus territórios». Esta decisão seguiu-se à anexação da Crimeia pela
Rússia e à proclamação das repúblicas separatistas do Donbass, seis meses
antes. No entanto, entre 2015 e 2021, pelo menos dez Estados-membros da
UE exportaram armas para a Rússia de Putin no valor total de 346 milhões de
euros. França, Alemanha, Itália, Áustria, Bulgária, República Checa, Croácia,
Finlândia, Eslováquia e Espanha venderam, em quantidades muito diferentes, “equipamento
militar” à Federação Russa. (Portugal não faz parte deste grupo de países). A
investigação do Investigate Europe mostra que “equipamento militar” é um
rótulo onde cabem mísseis, bombas, torpedos, navios e carros de assalto. (“Dez
países da UE exportaram armas para a Rússia depois do embargo de 2014”. Público,
17-03-2022).
[8] Esse juízo é amiúde reforçado pela
convicção de que «a natureza pragmática, utilitarista
(e para o Estado, único agente visto como legítimo) ou de “saber
aplicável” sempre foi uma tônica marcante na geopolítica. Ela nunca se
preocupou em firmar-se como um (mero?) “conhecimento” da realidade e sim como
um “instrumento de ação”, um guia para a atuação de tal ou qual Estado»
(José William Vesentini [2009], “O que é geopolítica? E geografia política?”,
2009, artigo disponível em: https://goo.gl/C3g8nj).
A figura mais conhecida desta visão é a do geógrafo francês Pierre George
(1909-2006), autor de um livro intitulado A Geografia serve, em primeiro
lugar, para fazer a guerra (1976), que serviu de ideário para a revista Hérodote ―
revue de géographie et de géopolitique [Heródoto — revista de geografia
e geografia política]. A geopolítica mudou muito a partir dessa data. É
hoje um campo de estudos muito heterogéneo, uma área interdisciplinar que se
ocupa do estudo das disputas pelo poder explícito (tanto na sua vertente
económica como na sua vertente política) entre Estados no espaço geográfico
mundial. O seu traço distintivo é o de substituir, como primeiro princípio
heurístico na análise dos conflitos sociais (conflitos políticos e económicos
inclusos em “sociais”), a luta de classes sociais antagónicas em torno da
apropriação e repartição do sobreproduto pela luta de Estados e nações. Como tal, a
geopolítica exerce um forte apelo junto da elite dirigente que, em todos os
países onde predomina o modo capitalista de produção, zela pelos interesses da
classe dominante; a classe dos detentores dos meios industriais de produção. Porém,
mesmo no seu melhor, a geopolítica não é mais do que um sucedâneo fruste da
politologia.
[9] Charles Krauthammer, “The Unipolar
Moment”, The Washington Post, July 20, 1990; Foreign Affairs Vol.
70, No. 1, 1990/1991.
[10] O nome oficial do
ministério chefiado, à época, por Dick Cheney e hoje por Lloyd James Austin
III, é Department of Defense (DoD)
[Departamento de Defesa], embora o único nome que lhe assenta bem seja o de
Departamento (ou Ministério) da Guerra. Isto porque os EUA adoptaram há muito
como premissas da sua política externa as máximas “Guerra
é Paz”, “Ataque é Defesa”, “Invadir é Libertar”, três exemplos de Duplipensar (“Doublethink”, no original) e de Novilíngua (“Newspeak”) as formas como o Estado de Oceânia
tolda o discernimento e destrói a capacidade referencial da linguagem dos seus
habitantes no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell.
Não faltam exemplos do duplipensamento e da novilíngua que caracterizam a
política externa do Estado americano. Eis dois recentes. O ultradestrutivo
míssil MX com as suas dez ogivas de 300 quilotoneladas independentemente
programáveis para atingirem alvos distintos chama-se Peacekeeper [“Guardião da Paz”]. A base militar ucraniana/americana,
situada no sudoeste da Ucrânia, perto da fronteira com a Polónia, onde
especialistas militares e tropas da OTAN e dos EUA ministram instrução no
manejo do material de guerra ultramoderno que os EUA e outros países da OTAN
(França, Bélgica, Turquia) têm fornecido continuadamente à Ucrânia, chama-se International Peacekeeping and Security Center [“Centro
Internacional de Segurança e de Manutenção da Paz”]. Porém, ao ler os relatos
publicados na imprensa americana sobre o mortífero ataque de mísseis que as
Força Armadas russas desferiram recentemente contra esta base militar, muitos
leitores que desconhecem a natureza militar dessas instalações terão,
porventura, ficado com a impressão de que terá sido atacado um centro de
estudos da ONU ou algo de semelhante.
[11] As negociações
Dois-Mais-Quatro e o Tratado com o mesmo nome foram a fórmula encontrada pelas
quatro potências ocupantes da Alemanha desde o fim da 2.ª guerra mundial (EUA,
União Soviética, Reino Unido e França) de controlarem e supervisionarem o
processo de reunificação das duas Alemanhas: a ocidental (membro da OTAN) e a
oriental (membro do Pacto de Varsóvia). A Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental
foram representadas na reunião final para assinatura do Tratado ‒ que aconteceu
em Moscovo, em 12 de Setembro de 1990 ‒ pelos seus então ministros dos Negócios
Estrangeiros, Hans-Dietrich Genscher e Markus Meckel, respectivamente. Em
quatro rondas de negociações, eles conseguiram harmonizar os interesses alemães
das duas partes com os interesses dos Aliados, vencedores da Segunda Guerra
Mundial. Nos termos do Tratado, a Alemanha renunciou a todas as reivindicações
referentes a territórios a Leste da linha Oder-Neisse, o que implicou a
aceitação, pelo país, das perdas territoriais sofridas no fim da Segunda Guerra.
A Alemanha concordou, ainda, em celebrar um tratado separado com a Polónia para
confirmar a fronteira comum, o que ocorreu no ano seguinte. Embora o tratado
Dois-Mais-Quatro tenha sido assinado pelas duas Alemanhas independentemente,
foi mais tarde ratificado pela Alemanha reunificada. Nos termos do Tratado, as
Quatro Potências Ocupantes renunciaram a todos os direitos que detinham na
Alemanha, inclusive a Berlim. A Alemanha concordou em limitar as suas forças
armadas a 370 mil homens, no máximo. A Alemanha também confirmou a sua
renúncia ao fabrico e à posse de armas nucleares, biológicas e químicas,
reiterando que o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares continuaria a
vincular a Alemanha reunificada. Determinou-se, também, a proibição da presença
de forças armadas estrangeiras e armas nucleares no território da antiga
Alemanha Oriental. Nessas condições, as tropas da União Soviética abandonaram a
Alemanha até ao final de 1994.
[12] As disposições do
Tratado Dois-Mais-Quatro constituem motivo suficiente para a grande maioria dos
comentadores afirmarem que a Alemanha reunificada se tornou “plenamente soberana” em 15 de Março de 1991. Mas
essa afirmação não corresponde inteiramente aos factos. Os soldados da União
Soviética abandonaram definitivamente a Alemanha antes de 1994, mas
permaneceram na Alemanha cerca de 200.000 militares americanos, a outra grande
potência ocupante. É verdade que esta força se tem vindo a reduzir ao longo das
três décadas que, entretanto, decorreram. Mas o contingente americano em solo
alemão é, ainda hoje, constituído por 34 mil-35 mil soldados. Esse número
inclui as Forças de Fuzileiros Navais da Europa e da África, com sede em
Böblingen, no sudoeste da Alemanha, como parte da Guarnição do Exército dos EUA
em Stuttgart. Além disso, há cerca de 9.600 funcionários da Força Aérea dos EUA
espalhados por vários locais na Alemanha, incluindo as duas bases aéreas
americanas em Ramstein e Spangdahlem. Se forem incluídas as unidades militares
em rotação, o número pode chegar, temporariamente, a 50 mil. Além do
contingente militar, cerca de 17.500 civis americanos trabalham para o
Departamento de Defesa dos EUA na Alemanha. Como as instalações militares dos
EUA também empregam civis e militares que, por vezes, podem levar as suas
famílias para o estrangeiro, formam-se consideráveis comunidades de civis em
torno dessas instalações. Na verdade, algumas bases americanas na Alemanha,
como a de Ramstein, são pequenas cidades autónomas, englobando não só quartéis,
aeroportos, áreas para exercícios militares e depósitos de materiais, mas
também os seus próprios centros comerciais, escolas, serviços postais e forças
policiais americanas. Em certos casos, a única moeda corrente é o dólar
americano. As bases militares americanas também costumam empregar um número
significativo de residentes locais e fornecem um incentivo económico às
comunidades alemãs adjacentes, cujas empresas lhes fornecem bens e serviços.
Actualmente, a guarnição do Exército dos EUA na Baviera, que tem o seu quartel-general
em Grafenwöhr, perto da fronteira com a República Checa, é a maior base do
Exército americano no exterior dos EUA, tanto em número de militares quanto em
superfície, espalhando-se por mais de 390 quilómetros quadrados. A importância
estratégica da Alemanha para os EUA reflecte-se na localização do
quartel-general do Comando Europeu dos EUA (EUCOM) na cidade de Stuttgart, no
sudoeste do país, que serve como estrutura de coordenação de todas as forças
militares americanas em 51 países, principalmente europeus. A missão oficial do
EUCOM é «proteger e defender os EUA»,
impedindo conflitos, apoiando a OTAN e combatendo ameaças transnacionais. Sob
seu comando estão o Exército, a Força Aérea e o Corpo de Fuzileiros Navais
(“marines”) dos EUA na Europa, todos com unidades na Alemanha. Porém, a extensão da
presença militar dos EUA na Alemanha não se limita ao pessoal e às bases
militares. Os EUA também mantêm aviões noutras bases aéreas não americanas em
solo alemão. Além disso, calcula-se que 20 ogivas nucleares sejam mantidas
na Base Aérea de Büchel, no âmbito do Acordo de Compartilhamento Nuclear da
OTAN — um facto que viola o Tratado Dois-Mais-Quatro e que tem suscitado
muitas críticas por parte de alguns alemães. Outra circunstância controversa é
o uso da Base Aérea americana de Ramstein como central de controlo de ataques
com drones no Iémen e noutros lugares (cf. Ben Knight, “Militares americanos na
Alemanha, um legado da 2.ª Guerra, Deutsche Welle, 16-06-2020).
[13] Por essa ordem de
ideias, o acordo efectivo que Kennedy (EUA) e Khruschev (União Soviética)
fizeram, em 1962, durante a chamada “crise dos
mísseis de Cuba”, em que o segundo se comprometeu a retirar os seus
mísseis nucleares de Cuba e o primeiro a retirar os seus mísseis nucleares da
Turquia, nunca existiu… porque nunca tomou forma escrita! No entanto, o acordo
foi cumprido à risca por ambas as partes. Acresce que se tratou de um acordo
secreto, que Kennedy manteve secreto enquanto viveu no que respeita aos mísseis
que os EUA retiraram da Turquia, em conformidade com o que ele se tinha
comprometido fazer, como seu presidente. Mas a verdade é que esse acordo
secreto e puramente verbal salvou a humanidade de uma terceira guerra mundial
desencadeada pelas duas maiores potências nucleares.
[14] O National
Security Archive da Universidade de Washington (Washington D.C.)
compilou e publicou documentos desclassificados (ou seja, que eram outrora
ultrassecretos, secretos ou confidenciais) dos EUA, ex-União Soviética, Reino
Unido, Alemanha e França que comprovam a realidade dessas garantias dadas a
Gorbachev, entre outros, por James Baker, Georges Bush (pai), Hans-Dietrich
Genscher, Helmut Kohl, Margaret Tatcher, John Major e François Miterrand. (Cf.
“NATO Expansion: What Gorbachev Heard” (https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early).
Muito recentemente foi publicado mais um documento desclassificado inédito que
comprova essas garantias. Foi descoberto nos British National Archives [Arquivos
Nacionais Britânicos] por Joshua Shifrinson, professor da Universidade de
Boston (EUA), que publicou algumas das suas passagens no Twitter, dia 10
de Fevereiro de 2022 (https://twitter.com/shifrinson/status/1491853598090801156?s=20&t=tNzVJ9eZF149 eLvFD-z7tg). São actas de uma reunião
com os directores políticos dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros dos EUA,
Reino Unido, França e Alemanha, em 6 de Março de 1991, na qual o representante
alemão Jürgen Chrobog, diz: «Deixámos claro nas
negociações Dois-Mais-Quatro que não iríamos expandir a OTAN para além do Elba.
Não podemos, portanto, oferecer a adesão à OTAN à Polónia e aos outros países». Este documento foi publicado pela revista
alemã Der Spiegel, em 18 de Fevereiro de 2022 (cf. Klaus Wiegrefe, «“Wir
können Polen und den anderen keine Nato-Mitgliedschaft anbieten”. Neuer
Aktenfund von 1991 stützt russischen Vorwurf, Der Spiegel, issue
8/2022). Nele
se pode ler também o que disse o representante dos Estados Unidos Raymond
Seitz: «Deixámos claro à União Soviética ‒ nas
conversações Dois-Mais-Quatro e noutros locais ‒ que não iremos tirar partido
da retirada das tropas soviéticas do Leste Europa». E temos também os
testemunhos de (i) Roland Dumas, ministro dos Negócios Estrangeiros da França
em 1990 (entrevista de Roland Dumas a Olivier Berruyer, “Comment l’Occident a
promis à l’URSS que l’OTAN ne s’étendrait pas à l’Est, par Roland Dumas,
ex-ministre des affaires étrangères”, Les Crises.fr.,13 Février 2022);
(ii) Robert Gates, “Deputy National Security Advisor” à época (https://millercenter.org/the-presidency/presidential-oral-histories/robert-m-gates-deputy-director-cen
tral#download-popup) e (iii) Jack Matlock Jr. embaixador dos
EUA em Moscovo entre 1987 e 1991 (Jack Mattlock Jr., “ I was there: NATO and
the origins of the Ukraine crisis”.Responsible StateCraft, February 15,
2022 (https://responsiblestatecraft.org/2022/ 02/15/the-origins-of-the-ukraine-crisis-and-how-conflict-can-be-avoided/).
[15] O “realismo político” é a doutrina geopolítica que caracteriza todos
quantos «tomam como ponto de partida [da sua
análise das relações políticas, em particular no plano mundial, N.E.] a busca do poder dos Estados, a centralidade da força
militar dentro deste poder e a inevitabilidade duradoura do conflito em um
mundo de múltipla soberania» (Fred Halliday, Repensando as relações
internacionais. Porto Alegre: Editora UFGRS, 1999, p.24). É uma doutrina
com uma longa história que remonta à História da Guerra do Peloponeso de
Tucídides e à Arte da Guerra de Sun Tzu, ambas do século IV a.C. No Renascimento
foi desenvolvida por Nicolau Maquiavel em O Príncipe (1513/1532). No
século XVII foi objecto de dois desenvolvimentos em direções opostas: um por
Thomas Hobbes, especialmente no seu livro Leviatã (1651), e o outro por
Bento Espinosa, especialmente no seu Tratado Político (1670). No século XVIII
temos a crítica feita a Hobbes por Jean-Jacques Rousseau em O estado de
guerra nascido do estado social (1755-1756). No século XIX a doutrina do
realismo político conheceu várias modificações e ramificações demasiado vastas
para poderem sequer ser aqui enumeradas. Na segunda metade do século XX,
conheceu um novo e importante desenvolvimento no âmbito das relações
internacionais entre os Estados pela mão de Hans J. Morgenthau e Kenneth N.
Waltz, autores de Politics among Nations: the struggle for power and peace (1947) e Man, the State,
and War: a theoretical analysis, (1954), respectivamente. O realismo
político e a Realpolitik (em Alemão,
“política realística”) são conceitos afins. A Realpolitik
pode ser descrita como o exercício de políticas (em particular, da política
externa) que estão alinhadas com as teorias aceites do realismo político. Henry
Kissinger (ministro dos Negócios Estrangeiros dos presidentes Richard Nixon e
Gerald Ford dos EUA) formulou uma definição sucinta e precisa de Realpolitik como sendo uma «política externa baseada em avaliações de poder e
interesse nacional» (H. Kissinger, Diplomacy. New York: Simon
& Schuster, 1994), p.137.
[16] A doutrina geopolítica rival
do realismo político é conhecida por “wilsonianismo”
ou “idealismo wilsoniano” por referência a
Woodrow Wilson, presidente dos EUA (1913-1921), considerado o seu cultor mais
proeminente na era moderna. O
“idealismo” que consta da expressão “idealismo wilsoniano” nada tem que ver com o idealismo enquanto posição ontológica que se opõe ao materialismo. Tem antes que ver com os alegados
“ideais” que guiariam os seus adeptos. Na verdade, os idealistas wilsonianos
compartilham, no essencial, a mesma mundivisão de Realpolitik
dos realistas políticos, mas camuflam-na com grandes tiradas retóricas
sobre a “liberdade”, a “democracia”, o “mundo livre”, os “direitos humanos”, a
“soberania”, a “autodeterminação”, a “liberdade de comércio”, a “livre
iniciativa” (Ingl. “free entreprise”), os “valores do Ocidente” — conceitos
sobre os quais desenvolveram um entendimento muito peculiar, razão pela qual os
escrevi entre aspas. Por outras palavras, os idealistas wilsonianos são
realistas políticos que elevaram a hipocrisia e a perfídia ao estatuto de armas
de eleição, tão importantes como as armas propriamente ditas. Alguns exemplos
concretos ‒ uns do século passado, outros do século presente ‒ ajudarão a fixar
as ideias sobre estas caracterizações abstractas de “realismo político” e “idealismo
wilsoniano”. Limitemos os exemplos do século passado às três potências
vencedoras da 2.ª guerra mundial: Reino Unido, União Soviética e EUA. Estaline,
Churchill e Roosevelt reuniram-se na conferência de Yalta (4-11 de Fevereiro de
1945), e Estaline, Attlee e Truman na conferência de Potsdam (17 de Julho-2 de
Agosto de 1945), e aí dividiram o mundo em esferas e zonas de influência e
acção das potências que representavam. Fizeram-no sem fingir que eram outra
coisa senão diferentes corporizações do Leviatã
de Hobbes e fizeram-no apesar de representarem potências rivais, porque eram
“realistas políticos”. Limitemos os exemplos do século presente aos governantes
que chefiaram a OTAN e a Rússia nos últimos 21 anos. Bill Clinton, Barak Obama
e Joe Biden, são típicos exemplos de idealistas wilsonianos, sempre prontos a
espetar uma faca nas costas dos seus inimigos e a trapacear os seus aliados,
enquanto lhes recitam os Dez Mandamentos de Deus ou a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. George Bush (filho), Donald Trump e Vladimir Putin são
realistas políticos, da espécie mais banal. A hipocrisia e perfídia dos
idealistas wilsonianos não tem limites e só são comparáveis (em dimensão) com a
desfaçatez e rudez dos realistas políticos. Estão bem uns para os outros.
[17] Olivier Berruyer compilou as provas
documentais dessa crença nos seus ensaios. Ver, por exemplo, “Expansion de l’OTAN:
ce que Eltsine a entendu” 14 Février 2022. Les-Crises.fr.
[18] A tradução para o Francês
de largos excertos deste discurso de Ieltsin foi feita por Olivier Berruyer no artigo “Expansion de l’OTAN: les
origines de la grave crise actuelle” (1/3). 15 Février 2022. Les-Crises.fr. A
tradução portuguesa dos trechos citados é minha.
[19] Ao ocorrer num momento da
ampliação da OTAN, a guerra do Kosovo (na ex-Jugoslávia) acabou com a amizade
entre Clinton e Ieltsin, e com as boas relações entre os Estados Unidos e a
Rússia. Os termos dessa ruptura aparecem claramente no registo da conversa
telefónica de 24 de Março de 1999, entre os dois presidentes, especialmente no
seu final. «Clinton: Bem, deixe-me só dizer isto: creio que não
deveríamos desistir da diplomacia. Depois do que… [Ieltsin interrompe Clinton
neste ponto para dizer] Ieltsin: Bem entendido,
vamos conversar um com o outro, tu e eu. Mas já não haverá aquela grande garra e
aquela grande amizade que tínhamos antes. Essas já não tornarão a existir».
Cf. Olivier Berruyer, “Expansion de l’OTAN: les origines de la grave crise
actuelle” (1/3). 15 Février 2022. Les-Crises.fr. A tradução portuguesa
do trecho citado é minha.
[20] Ted Galen Charpentier, “Did Putin’s 2007 Munich Speech Predict the Ukraine Crisis?”. Cato Institute, January 24, 2022.