A Guerra na Ucrânia
(3.ª parte)
Putin
José
Catarino Soares
1.Introdução
John Mearsheimer, um dos autores mais argutos e reputados da geopolítica, na sua versão dita “realística” (uma das estrelas polares da chamada Realpolitik, “política realística”), explicou muito claramente no seu livro, The Tragedy of Great Power Politics (2001), como pensam e agem os membros da elite dirigente dos Estados mais poderosos, dos Estados que são grandes potências mundiais [1].
Segundo Mearsheimer, o poder (entenda-se, o poder explícito, especialmente na sua vertente política [2]) assenta sempre, directa ou indiretamente, nos recursos militares dos Estados. Estes, por sua vez, buscam sempre que possível maximizar a sua fatia de poder na distribuição global de poder à custa dos seus rivais, pois essa é a melhor estratégia de sobrevivência. Desse comportamento resulta a competição por segurança militar, o que leva as grandes potências a serem sensíveis ao ganho de poder relativo das suas rivais.
Destarte, ao analisar o comportamento de um Estado (entenda-se: da sua elite dirigente, em particular daqueles, entre os seus membros, que se auto- denominam “estadistas”) em relação aos outros Estados tem de se considerar a seguinte eventualidade muito frequente: (i) se os outros Estados detêm poder militar, mas não se pode saber ao certo como o utilizarão, e (ii) se não houver uma instância à qual se possa recorrer em caso de agressão (uma situação apelidada de “anarquia” por Mearsheimer), o resultado é (iii) o medo e a desconfiança mútua, pois qualquer um deles pode tomar a ofensiva em seu próprio benefício à custa dos outros.
Por conseguinte, as grandes potências vivem sob um medo constante de serem atacadas pelas suas rivais e as pequenas potências vivem sob o medo constante de serem anexadas pelas maiores. Para mitigar ou neutralizar esse medo, os Estados têm de garantir a sua segurança militar com meios próprios. Na terminologia de Mearsheimer essa iniciativa recebe o nome de “auto-ajuda”. A conclusão a que Mearsheimer chega é a seguinte: devido ao medo e à auto-ajuda, agir ofensivamente em relação aos demais Estados e maximizar o poder relativo é a melhor forma de garantir a própria sobrevivência na “anarquia” que rege as relações de poder entre os Estados no espaço mundial. Eis a máxima geopolítica de Mearsheimer:
O melhor caminho para um Estado sobreviver na anarquia é ganhando vantagem sobre outros Estados e ganhando poder à sua custa. A melhor defesa é um bom ataque .
ou, de uma maneira um pouco mais desenvolvida:
Os Estados operam num mundo de auto-ajuda em que a melhor maneira de sobreviver é ser o mais poderoso possível, mesmo que isso exija a prossecução de políticas impiedosas. Não é uma história bonita, mas não há melhor alternativa, se a sobrevivência for o objectivo primordial de um país [3].
Julgo
que este é um excelente resumo do princípio director subjacente à política
externa da elite dirigente dos EUA e da Rússia, as duas maiores potências
nucleares do mundo.
Em particular, ele fornece-nos uma chave interpretativa sobre a política de expansão continuada da OTAN no Leste da Europa que todos os presidentes americanos (Bill Clinton, George Bush [filho], Barak Obama, Donald Trump, Joe Biden) praticaram no período subsequente à reunificação da Alemanha (Agosto de 1990), à dissolução do Pacto de Varsóvia (Março de 1991) e à dissolução da União Soviética (Dezembro de 1991) até aos nossos dias.
Abril de 2018. Fuzileiros navais dos Reino Unido (Royal Marines) participam no exercício Joint Warrior (Guerreiro Conjunto) da OTAN, na Escócia. Foto de Jeff J. Mitchell. Getty Images. |
Zbigniew
Brzezinski, antigo conselheiro de segurança
nacional do Presidente Carter e considerado pelos seus pares geopolitólogos
um dos grandes estrategos da supremacia do imperialismo estado-unidense, argumentou
que a OTAN «consolida a influência política
americana e o poder militar no continente eurasiático» e que «qualquer expansão do âmbito político da Europa [entenda-se,
União Europeia, N.E.] é automaticamente uma
expansão da influência dos EUA» [4].
Nas
primeira e segunda partes deste ensaio tivemos ocasião de observar pormenorizadamente o significado desta
afirmação de Brzezinsky. Julgo não ser necessário voltar ao assunto, salvo num
ou noutro pormenor pertinente que seja útil acrescentar ou relembrar.
Mas
a máxima de Mearsheimer fornece-nos também, como vimos na primeira parte deste
ensaio, uma chave interpretativa para a actuação de Ieltsin e Putin em resposta
à expansão continuada da OTAN. Mais ainda, fornece-nos, como veremos neste
artigo, uma chave interpretativa para a decisão tomada por Putin de mandar as
suas tropas invadirem a Ucrânia em 24 de Fevereiro de 2022. Ela ajuda-nos a
responder, concretamente, às seguintes perguntas:
― Que significam a
invasão da Ucrânia e a guerra em curso na Ucrânia do ponto de vista estratégico
e no âmbito da doutrina do seu mentor e mandante,
Putin ? (Dito de outro modo: qual é o objectivo político de Putin?) Por que
razão a invasão da Ucrânia ocorreu agora, em Fevereiro de 2022 (e não muito
mais cedo ou muito mais tarde)?
Este artigo visa responder a estas perguntas.
2. Putin
Os
factos descritos na primeira parte deste ensaio (cf. A Guerra na Ucrânia. Crónica de uma
guerra pré-anunciada) e na sua segunda parte (cf. A Guerra na
Ucrânia. OTAN: natureza e historial, antes e depois de 1991) constituem elementos de análise da invasão da Ucrânia que
os EUA, a OTAN, a União Europeia, os governos dos países-membros dessas duas
organizações internacionais e o sistema mediático dominante de comunicação
social (jornais e revistas comerciais de grande circulação, estações privadas e
públicas de rádio e de televisão de grande audiência, redes virtuais mundiais de mensagens instantâneas) se
esforçam, agora, por fazer desaparecer [5] num buraco da memória orwelliano [6].
Para
quê? Para fazerem crer à opinião pública
e aos povos dos seus países que Putin é um psicopata irresponsável e
imprevisível, que actua impulsivamente e de modo errático, por motivos
irracionais e incompreensíveis.
Mas
Putin não é louco nem paranóico. Essas caracterizações psiquiátricas só servem para nos distrair e iludir. Do que
precisamos é de uma caracterização política.
Vladimir Putin, presidente da Rússia, no poder desde 1999, ora como primeiro-ministro, ora como presidente. |
Putin
é um ex-agente do KGB e um ex-director do Serviço Federal de Segurança (um dos serviços
secretos da Rússia que sucederam ao KGB da ex-União Soviética); um nacionalista
grã-russo; um político conservador, um estadista. É o chefe incontestado da
elite dirigente russa que governa o maior país do mundo e a segunda potência
nuclear. Doutrinariamente, Putin pertence claramente à corrente geopolítica do
“realismo político” [7], condimentado
(enfraquecido), no seu caso, por algumas fantasias panrussificadoras. O
regime existente na Rússia é uma oligarquia electiva iliberal. Putin é o
expoente máximo desse regime e goza, como tal, de prerrogativas semelhantes, em
vários aspectos, às de um autocrata. Tendo em conta esse facto, por lado, e
dando como ponto assente que não há autocratas eleitos por sufrágio universal,
directo e secreto, por outro, qualificá-lo-ei de “autocrata
putativo”.
É
a partir deste complexo de características políticas que podemos tentar
interpretar e entender a sua conduta política, especialmente no plano
internacional.
Confinemos a nossa atenção à política externa da Rússia, de que a invasão da Ucrânia e a guerra em curso nesse país é uma continuação por outros meios, por meios da violência armada.
Durante
15 anos Putin expôs muitas vezes o seu pensamento sobre a natureza e o
comportamento da OTAN, advertindo repetidamente os EUA e os seus aliados na
OTAN (especialmente o Reino Unido, a França e a Alemanha) de que a Rússia tinha
“linhas vermelhas” em matéria de segurança
militar que não deixaria que fossem ultrapassadas, porque a sua ultrapassagem significaria uma
“ameaça existencial” para a Rússia.
As advertências de Putin patenteiam uma assinalável unidade de propósitos estratégicos e coerência de argumentos ao longo dos tempos, como demonstram os exemplos seguintes.
2.1. O contencioso de Putin em relação à OTAN
Como
vimos na primeira parte deste ensaio, em 10 de Fevereiro de 2007, na 43.ª
Conferência de Política de Segurança realizada em Munique, Putin fez um
discurso em que, pela primeira vez, criticou acerbamente o modo como a expansão
continuada da OTAN para o Leste da Europa, acompanhada da sua oposição reiterada
à adesão da Rússia a essa aliança militar, equivalia a espezinhar as garantias
que os países principais da OTAN (com os EUA à cabeça) tinham dado à Rússia
aquando da reunificação da Alemanha.
Particularmente
visadas pelas críticas de Putin foram medidas como o abandono pelos EUA, em
2002, do Tratado sobre Mísseis Antibalísticos e a implantação de instalações de
defesa antimísseis na Bulgária e na Roménia. Recordemo-las:
Vemos o aparecimento na Bulgária e na Roménia de “bases americanas
ligeiras avançadas”, cada uma com 5.000 soldados. Acontece que a OTAN aproxima
as suas forças avançadas das nossas fronteiras, enquanto nós – que respeitamos
estritamente o Tratado – não reagimos a estes movimentos.
É óbvio, penso eu, que o alargamento da OTAN não tem nada a ver com
a modernização dessa aliança, nem com a segurança na Europa. Pelo contrário, é
um factor que representa uma séria provocação e rebaixa o nível de confiança
mútua. Temos o direito legítimo de perguntar abertamente contra quem está a ser
realizado este alargamento. O que aconteceu às garantias dadas pelos nossos
parceiros ocidentais após a dissolução do Pacto de Varsóvia? Onde estão essas
garantias? Já foram esquecidas. No entanto, tomarei a liberdade de lembrar aos
presentes nesta sala o que foi dito. Gostaria de citar palavras retiradas do
discurso do Sr. Werner, então Secretário-Geral da OTAN, proferido em Bruxelas
em 17 de Maio de 1990: “O facto de estarmos
preparados para não enviar tropas da OTAN para fora do território da RFA dá à
União Soviética certas garantias de segurança ”. Onde estão essas
garantias hoje? [8]
No
discurso de Munique (e como que ecoando a máxima de Mearsheimer) Putin declarou
também, como vimos na primeira parte deste ensaio, que o resultado da dominação
americana num mundo unipolar criado para servir os seus interesses era «ninguém se sentir seguro, porque ninguém pode sentir que
a lei internacional é como uma parede sólida que nos protege. E claro que tal
política estimula uma corrida aos armamentos».
Um
ano mais tarde, em 2008, num discurso no qual delineou a sua visão
para a Rússia até 2020, Putin acusou os EUA e a OTAN de ignorarem as
preocupações do governo russo em matéria de segurança militar, ao alargarem a
aliança militar da OTAN em direcção às suas fronteiras e ao promoverem a
instalação de um sistema de defesa antimíssil na Europa Central. Perante uma assembleia de
governantes, gestores empresariais e altas patentes militares reunidos no
Kremlin, três meses antes do termo do seu primeiro mandato presidencial, Putin
afirmou:
Já é evidente que uma nova corrida aos armamentos se está a
desenrolar no mundo. A culpa não é nossa, nós não a iniciámos.
Referindo-se
aparentemente a planos de fabrico de novos mísseis com capacidade nuclear,
Putin disse que «nos próximos anos a Rússia
começará a produzir novos tipos de armas que...não são de forma alguma
inferiores às que outros Estados têm e que, nalguns casos, lhes são superiores».
E
acrescentou:
Com efeito, somos obrigados a retaliar...a Rússia tem e sempre
terá uma resposta a estes novos desafios.
Putin
disse também que havia uma «luta feroz»
pelos recursos naturais em todo o mundo e um forte «cheiro
a petróleo e a gás» em muitos conflitos e acções de política externa. A
Rússia precisava de estar atenta às tentativas de acesso aos seus recursos
naturais, acrescentou ele. Numa aparente referência à política dos EUA no Médio
Oriente ⎼
e, em particular, à invasão do Iraque por uma vasta coligação de 43 Estados (5
dos quais, incluindo Portugal, eram e são Estados-membros da OTAN), e à guerra travada
no Iraque por essas forças invasoras encabeçadas pelas duas maiores potências
militares da OTAN (EUA e Reino Unido) ⎼,
afirmou:
Por vezes, sob o disfarce de declarações túrgidas sobre a
liberdade e a sociedade aberta, a soberania de certos Estados e regiões
inteiras está a ser destruída [9].
Dez
anos depois, num discurso proferido em 1 Março de 2018, perante deputados da Duma, governadores regionais e outros
governantes, Putin afirmou:
Quero dizer o seguinte a todos aqueles que alimentaram a corrida
aos armamentos nos últimos 15 anos, que procuraram obter vantagens unilaterais
sobre a Rússia, que introduziram sanções ilegais destinadas a tolher o
desenvolvimento do nosso país: tudo o que queriam impedir com as vossas
políticas já aconteceu. Vocês fracassaram em tolher a Rússia [10].
1 de Março de 2018. Putin discursa perante uma assembleia de deputados, governadores regionais e outros governantes russos sobre a corrida aos armamentos nucleares. |
Numa
conferência de imprensa que deu, em 24 de Setembro de 2018, ao lado do
primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte, Putin foi mais longe ao afirmar:
Se os Estados Unidos se retirarem do tratado INF, a
questão principal é o que farão com os mísseis [de alcance intermédio] que recentemente disponibilizaram.
Se os EUA os entregarem à Europa, a nossa resposta terá naturalmente de
espelhar isso.
Os
países europeus que concordassem em estacionar mísseis estado-unidenses,
acrescentou Putin, «exporiam o seu território à
ameaça de um possível ataque de retaliação» [11].
Em
20 de Dezembro de 2018, numa conferência de imprensa de mais 3 horas, as críticas de Putin subiram de tom. Dessa vez
o motivo imediato foi o facto de outro tratado EUA-Rússia ⎼ o novo tratado START, que limitava o
número de ogivas nucleares estratégicas que cada lado pode ter ⎼ expirar em 2021. Putin disse estar
preocupado com o facto de Washington não parecer estar interessado em discutir
o seu prolongamento.
Ainda não foram realizadas conversações sobre o prolongamento
deste tratado. Será que os americanos não estão interessados, não precisam
dele? OK, vamos sobreviver e assegurar a nossa própria segurança, o que sabemos
fazer. Mas, em geral, isto é muito mau para a humanidade, porque nos
aproxima de um limiar perigoso. /…/
É muito difícil imaginar como é que a situação se irá
desenvolver [se
os EUA abandonarem o Tratado INF]. Se esses mísseis
[de alcance intermédio] aparecerem na Europa, o que
é que nós deveremos fazer? Evidentemente, teremos de assegurar a nossa própria
segurança [12]. [destaque a traço grosso acrescentado ao
original, N.E.]
Na
mesma ocasião, diante de mais de 1000 jornalistas reunidos no World Trade Centre
de Moscovo, Putin também citou a perigosa tendência para baixar o limiar de
utilização de armas nucleares e a ideia de utilizar mísseis balísticos com
ogivas convencionais.
Se algo desse género acontecesse ⎼ que Deus nos livre! ⎼ levaria ao fim de toda
a civilização e talvez também ao fim do planeta.
No
seu discurso sobre o estado-da-nação de 19 de Janeiro de 2019, Putin
disse que os EUA tencionavam abandonar o Tratado das Forças Nucleares de
Alcance Intermédio (Intermediate-Range Nuclear Forces Treaty
[INF, no acrónimo inglês]) de 1987 [13]
para poderem construir novos mísseis e tentarem transferir as culpas para a
Rússia.
Os nossos parceiros americanos deveriam tê-lo dito honestamente
em vez de fazerem acusações infundadas contra a Rússia para justificar o seu
abandono do tratado.
E
na verdade, em Outubro de 2020, o Presidente dos EUA, Donald Trump anunciou,
tal como Putin tinha previsto, que os EUA iriam abandonar o Tratado INF, com base na seguinte alegação:
A Rússia violou o acordo [INF]. Têm-no violado durante
muitos anos.
As
armas nucleares de alcance intermédio foram vistas pela Rússia como sendo particularmente
desestabilizadoras, uma vez que demoram menos tempo a atingir os seus alvos em
comparação com os mísseis balísticos intercontinentais. Isso não deixaria
praticamente tempo para os decisores, aumentando a probabilidade de um conflito
nuclear global por causa de um falso aviso de alerta de lançamento,
imediatamente seguido de contra-resposta.
No
seu discurso de 19 de Janeiro de 2019, Putin afirmou que os novos
mísseis estado-unidenses de alcance intermédio implantados na Europa oriental levariam
apenas 10-12 minutos a chegar a Moscovo.
É uma ameaça muito séria para nós, e teremos de responder-lhe.
Afirmou
também, na mesma ocasião, que a Rússia iria desenvolver armas capazes de
atingir alvos inimigos dentro de um intervalo de tempo semelhante:
A Rússia será forçada a criar e utilizar novos tipos de armas que poderão ser utilizadas não só contra os territórios de onde provém uma ameaça directa para nós, mas também contra os territórios onde ocorre a tomada de decisões, onde estão localizados os centros que dirigem o uso de sistemas de mísseis que nos ameaçam. A capacidade de tais armas, incluindo o tempo para chegar a esses centros, será equivalente às ameaças contra a Rússia [14].
No
encontro anual do conselho do Ministério da Defesa russo, realizado em 21 de
Dezembro de 2021, Putin desenvolveu em pormenor o tema das novas armas
nucleares da Rússia. Com este discurso ficámos a saber que o desenvolvimento de
novas armas nucleares, por parte da Rússia, não era um projecto para o futuro
próximo ou sequer um projecto em curso, mas um projecto praticamente já
completado. Putin começou por afirmar:
Os principais exércitos mundiais estão a gastar enormes recursos
que não se comparam aos nossos para garantir a sua supremacia.
Em
seguida, afirmou que a Rússia não podia abrandar o passo nesta peculiar corrida
aos armamentos, já que qualquer atraso equivalia a uma maior vantagem dos seus
rivais. Putin acrescentou que a Rússia não poderia conceder vantagens a nenhum
país neste particular, argumentando que, pelo contrário, a Rússia estava a ganhar
vantagem sobre os outros países.
Abordando
o tema das armas nucleares que a propaganda russa denominou “Wunderwaffe
[= arma milagrosa, em Alemão] russa”, Putin
acrescentou:
Repito com orgulho: desenvolvemos armas que o mundo não possui,
principalmente, é claro, armas hipersónicas [15].
Putin salientou também que a tríade nuclear [16] tinha atingido o nível que permitia garantir a segurança da Rússia. Mencionou o sistema de mísseis estratégicos Avangard equipados com ogivas de cruzeiro hipersónicas, entre outros sistemas de armas que a Rússia tinha à sua disposição. Estes seriam transportados pelos mísseis balísticos intercontinentais (MBIC) Sarmat que substituiriam os MBIC Voyevoda então em uso (conhecidos, na terminologia da OTAN, como SS-18 Satan).
2.2. Putin e a perspectiva de uma Ucrânia nuclear
O
tema da ameaça nuclear que constituiria para a Rússia uma Ucrânia
integrada na OTAN, aparece pela primeira vez (salvo erro) e em força numa resposta que Putin deu, em 30 de
Novembro de 2021, numa videoconferência com empresários e gestores
estrangeiros. Nessa ocasião, Putin afirmou que a OTAN deveria ficar ciente de
que a Rússia não permitiria que a Ucrânia desenvolvesse capacidades militares
que pusessem a Rússia em perigo:
Vladimir Putin: O senhor perguntou-me quais
eram as linhas vermelhas na Ucrânia. Elas são, acima de tudo, as ameaças que
nos podem vir desse território. Se o alargamento, a infra-estrutura [da OTAN] continuar
a ser alargada ⎼ eu já disse isto publicamente,
mas os senhores são empresários e podem não ter tempo para acompanhar o que vou
dizendo ⎼ vou repetir mais uma
vez que a questão diz respeito à possível implantação no território da Ucrânia
de sistemas de mísseis de ataque com um tempo de voo de 7-10 minutos até
Moscovo, ou de 5 minutos no caso de sistemas hipersónicos. Imaginem o que
isso pode representar. Aliás, tanto
quanto sei, o senhor vive em Moscovo. A capital oriental [da Rússia]
está em Moscovo, não é verdade? O tempo de voo de um míssil até Moscovo é de 5
minutos [para estes sistemas de mísseis hipersónicos].
Jacob Grapengiesser: Sim, tenho vivido em
Moscovo nos últimos 15 anos.
Vladimir Putin: Então, o que devemos
fazer? Precisaríamos de criar sistemas semelhantes para serem utilizados contra
aqueles que nos ameaçam. Conseguem imaginar isso? Mas já o podemos fazer agora,
porque realizámos testes bem sucedidos, e no início do próximo ano iremos
colocar em prontidão de combate um novo míssil hipersónico lançado a partir do
mar com uma velocidade máxima de Mach 9. O tempo de voo será também de 5
minutos a partir da ordem de lançamento que lhes for dada.
Para onde vamos? Porque é que estamos a fazer isto? A criação de
tais ameaças para nós é a linha vermelha. Espero que não se chegue a esse ponto.
Espero que o bom senso e a responsabilidade pelo próprio país e pela comunidade
internacional prevaleçam, no fim de tudo
[17]. [destaques a traço grosso acrescentados
ao original, N.E.]
Numa
reunião alargada do Conselho do Ministério da Defesa da Rússia realizada em 21
de Dezembro de 2021 e já referida, Putin desenvolveu a sua visão sobre as
ameaças militares que impendiam sobre a Rússia, em particular as que tinham por
origem a Ucrânia.
É extremamente alarmante que elementos do sistema de defesa global
dos EUA estejam a ser destacados para perto da Rússia. Os lançadores Mk 41, que estão localizados na Roménia e que vão ser implantados na
Polónia, estão adaptados para o lançamento dos mísseis de ataque Tomahawk. Se esta infra-estrutura continuar a avançar, e se os sistemas de
mísseis dos EUA e da OTAN forem implantados na Ucrânia, o seu tempo de voo até
Moscovo será de apenas 7-10 minutos, ou mesmo de cinco minutos para sistemas
hipersónicos. Este é um enorme desafio para nós, para a nossa segurança. /…/[destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]
Há especialistas [de armamento] sentados aqui connosco, eu estou em contacto constante com eles [e foram eles que me disseram o que eu vos vou agora dizer, N.E.]. Os Estados Unidos ainda não possuem armas hipersónicas [Putin estava mal informado, como sabemos hoje. Isso já tinha acontecido no momento em que Putin discursava: ver imagem e legenda abaixo, N.E.], mas ficaremos a saber quando as vierem a ter. É uma coisa que não pode ser escondida. Tudo fica registado, tenha ou não tenha êxito. Temos uma noção de quando isso poderá acontecer. Irão fornecer armas hipersónicas à Ucrânia e depois usá-las como cobertura ⎼ o que não significa que começarão a usá-las amanhã, porque já temos o [sistema de mísseis hipersónicos 3M22] Tsircon e eles não ⎼ para armar extremistas de um Estado vizinho e incitá-los contra certas regiões da Federação Russa, como a Crimeia, quando acharem que as circunstâncias são favoráveis.
Será que eles pensam realmente que não vemos estas ameaças? Ou será que pensam que ficaremos apenas de braços cruzados a ver emergir ameaças à Rússia? O problema é este: não temos simplesmente espaço para recuar. Esta é a questão [18].
Em
23 de Dezembro de 2021, Putin voltou à carga, agora de uma maneira ainda
mais explícita:
A este respeito, deixámos claro que qualquer outro avanço da OTAN
para o Leste é inaceitável. Haverá algo que não seja claro a este respeito? Estamos a projectar mísseis
perto da fronteira dos EUA? Não, não estamos. Foram os Estados Unidos que
chegaram à nossa casa com os seus mísseis e já se encontram à nossa porta. Será
ir demasiado longe exigir que não sejam colocados sistemas de ataque perto da
nossa casa ? O que é que há de tão invulgar nisto? /…/ Não estamos a ameaçar ninguém. Já nos aproximámos das fronteiras
dos EUA? Ou das fronteiras da Grã-Bretanha ou de qualquer outro país? Foram
vocês que chegaram à nossa fronteira, e agora dizem que a Ucrânia também se
tornará membro da OTAN. Ou, mesmo que não adira à OTAN, que as bases
militares e os sistemas de ataque serão colocados no seu território ao abrigo
de acordos bilaterais. Esta é a questão.
Fizemos saber muito claramente à OTAN que a sua expansão para Leste
é inaceitável. Os Estados Unidos da América [EUA] estão
a instalar mísseis na soleira da nossa casa. Será pedir muito que não instalem
sistemas ofensivos junto da nossa casa? Como é que os EUA reagiriam se fossem
instalados mísseis na sua fronteira com o Canadá ou com o México? Por vezes,
parece que vivemos em mundos diferentes. Eles
[os EUA e a OTAN] disseram que não se
expandiriam, mas estão a expandir-se
[19]. [destaques a traço grosso acrescentados ao
original, N.E.]
Finalmente,
em 21 de Fevereiro de 2022, quatro dias antes da invasão da Ucrânia, Putin
fez um balanço geral das ameaças que, segundo ele, pesavam sobre a Rússia. Eis
alguns excertos desse seu discurso que são relevantes para os propósitos deste
artigo.
Alguns Estados membros da OTAN continuam muito cépticos quanto à
adesão da Ucrânia à OTAN. Estamos a receber sinais de algumas capitais europeias
que nos dizem para não nos preocuparmos, uma vez que isso não acontecerá
literalmente da noite para o dia. De facto, os nossos parceiros americanos
também nos estão a dizer a mesma coisa. “«Muito bem, então», respondemos nós, «se não acontecer amanhã, então acontecerá depois de amanhã. O que é que isso muda do ponto de vista histórico? Absolutamente
nada»”.
Em Março de 2021, foi adoptada uma nova Estratégia Militar na
Ucrânia. Este documento é quase inteiramente dedicado ao confronto com a Rússia
e estabelece o objectivo de envolver Estados estrangeiros num conflito com o
nosso país. A estratégia estipula a organização do que pode ser descrito como
um movimento terrorista subterrâneo na Crimeia e em Donbass. Define também os
contornos de uma potencial guerra, que deverá terminar, segundo os estrategas
de Kiev, «com a assistência da
comunidade internacional em condições favoráveis à Ucrânia», bem como ⎼ ouçam com atenção, por favor ⎼ «com o apoio militar estrangeiro no confronto geopolítico
com a Federação Russa». De facto, isto não é mais do que uma preparação para as
hostilidades contra o nosso país, a Rússia.
Como sabemos, já hoje foi afirmado que a Ucrânia pretende criar
as suas armas nucleares, e isto não é uma pura gabarolice [Putin refere-se aqui, aparentemente,
ao discurso de Zelinsky de 19 de Fevereiro de 2022. Regressaremos a este
assunto mais adiante, na secção 5, N.E.]. A
Ucrânia tem as tecnologias nucleares criadas no tempo da União Soviética e
veículos de lançamento para tais armas, incluindo aviões, bem como os mísseis
tácticos de precisão Tochka-U de concepção soviética, que têm um alcance
de mais de 100 quilómetros.
Mas eles podem fazer mais; é apenas uma questão de tempo. A investigação básica que necessitam para o
fazer existe desde a era soviética. Por outras palavras, a aquisição de armas
nucleares tácticas será muito mais fácil para a Ucrânia do que para alguns
outros Estados que não vou mencionar aqui, que estão a conduzir essa
investigação, sobretudo se Kiev receber apoio tecnológico estrangeiro. Também
não podemos descartar essa possibilidade.
Se a Ucrânia adquirir armas de destruição maciça, a situação no mundo e na Europa irá mudar drasticamente, especialmente para nós, para a Rússia. Não podemos deixar de reagir a este perigo real, tanto mais que, permitam-me que o repita, os patronos ocidentais da Ucrânia podem ajudá-la a adquirir estas armas para criar mais uma ameaça ao nosso país [20]. [destaques a traço grosso acrescentados ao original, N.E.]
24 de Setembro de 2021.Soldados ucranianos participam em exercícios militares anuais conjuntos com os EUA e outros países da OTAN perto de Lviv, Ucrânia. Foto de Yuriy Dyachyshy. |
2.3. Resumo
Em
suma, o contencioso de Putin em relação à OTAN pode ser resumido da seguinte
maneira:
A) A OTAN deveria ter-se dissolvido na
sequência da reunificação da Alemanha (1990), imediatamente a seguir ao fim do
Pacto de Varsóvia (1991) e ao desaparecimento da União Soviética (1991), os
seus proclamados inimigos. Ou então deveria ter-se reconfigurado (como propôs
Gorbachev com a sua ideia da “Casa Comum Europeia”)
de modo a integrar numa aliança comum todos os países outrora pertencentes a um
ou outro desses dois blocos militares, incluindo, em primeiro lugar, a Rússia.
B)
Contudo,
a OTAN não só não se dissolveu, nem se reconfigurou para albergar a Rússia,
como tem vindo também a expandir-se, por ondas sucessivas, para leste da
Alemanha. Tem hoje quase o dobro de Estados-membros (30) do que tinha em 1991 (16). Tudo indica que a sua expansão só
se deterá quando estiver completamente colada às fronteiras da Rússia — o que
ficará mais perto de acontecer quando a Geórgia e a Ucrânia, que já pediram a
sua adesão à OTAN, forem formalmente admitidas.
24 de Setembro de 2021.Soldados ucranianos participam em exercícios militares anuais conjuntos com os EUA e outros países da OTAN perto de Lviv, Ucrânia. Foto de Yuriy Dyachyshy. |
C) A expansão da OTAN viola
grosseiramente as garantias que os EUA, o Reino Unido, a França e Alemanha (os quatro
principais países da OTAN na Europa), deram a Gorbachev, em 1990-1991, que a
OTAN não avançaria “nem um centímetro para leste da
Europa”, depois da unificação da Alemanha. Viola também, de modo
igualmente grosseiro, as garantias dadas a Ieltsin, no quadro da chamada “Parceria para a Paz”, no tempo de Clinton.
D) A expansão da OTAN viola também o
princípio básico da segurança cooperativa e colectiva dos países — um princípio que está vertido em
muitos tratados e acordos internacionais
subscritos pelos países da OTAN (incluindo os EUA) e pela Rússia. Trata-se do princípio da indivisibilidade dos
benefícios da segurança: a segurança de uns países não pode ser alcançada à
custa da insegurança de outros [21].
E)
Como
a Rússia pediu a sua adesão à OTAN várias vezes e esta foi sempre recusada, só
resta uma explicação lógica e geopoliticamente verosímil para a expansão da
OTAN. Esta organização militar ⎼ fundada,
financiada no essencial e dirigida pelos EUA ⎼ elegeu a Rússia (que é uma federação
multinacional, multiétnica e plurilingue) como seu inimigo na Europa. Os EUA
não aceitam coexistir pacificamente com a Rússia, porque a Rússia é o maior
país do mundo, com imensas riquezas naturais e é também, como os EUA, uma
grande potência nuclear e, mais ainda, uma potência que não conseguem
subordinar, como o fizeram relativamente a todos os demais Estados europeus [22].
E) Por isso, querem aniquilar a Rússia.
Primeiro, pretendem cercá-la através da OTAN, de maneira a que esta venha a ficar
colada às suas maiores fonteiras europeias, para, seguidamente, poderem
atacá-la com maior facilidade e rapidez e conseguirem desmembrá-la, como
fizeram com a Jugoslávia (que também era uma federação multinacional, multiétnica
e plurilingue). O pretexto para esse ataque será encontrado quando todas as
condições para o seu êxito estiverem reunidas. Será, verosimilmente, uma
provocação ou/e uma campanha de mentiras em grande escala.
F) A Rússia não permitirá que isso aconteça.
3. Rossia delenda est/Rossia delenda non est
Julgo
ter resumido com exactidão o contencioso de Putin em relação à OTAN tal como
ele o foi expondo, em múltiplas ocasiões, ao longo dos últimos 15 anos e do
qual citei alguns excertos representativos na secção 2.
Por
muito que Emmanuel Macron («O discurso de Putin é paranóico», 21 de Fevereiro), o
Libération («Vladimir Putin, o louco de Moscovo»,
21 de Fevereiro), Bernard Guetta [deputado do Parlamento Europeu do grupo de
Macron] («Putin ficou maluco», France Inter
Radio, 21 de Fevereiro), Milos Zeman
[presidente da República Checa] («Putin é maluco»,
Guardian 24 de Fevereiro), Alexei Navalny («Putin
está doido», Reuters, 2 de Março), o Financial Times («É forçoso duvidar do seu sentido de racionalidade», 4
de Março), o Washington Post («Putin é
instável?», 6 de Março) e outros acreditem nisso, ou nos queiram fazer
acreditar, a argumentação de Putin não é, de modo nenhum, como se constata, o
charabiá confuso, incoerente e delirante de um louco ou de um paranóico.
É,
isso sim, o arrazoado bem controlado de um estadista e autocrata putativo que faz
uma análise geopolítica da situação em que se encontra e avalia realisticamente
(de acordo com o “realismo” estreito e enviesado próprio da classe que
representa na Rússia) as suas possibilidades de sobrevivência na luta feroz que
trava com os EUA e a OTAN.
Fica
patente, creio, que a motivação geopolítica da conduta de Putin em relação
à OTAN pode ser resumida pela fórmula
latina Rossia delenda non est ! (“A Rússia não será destruída!”). Como se trata
de um autocrata putativo, a fórmula não tem a grandiloquência que poderia ter
se fôsse aplicada a um estadista com poderes mais modestos.
Esta
fórmula evoca, por antonímia, a famosa frase Carthago
delenda est! (que significa “Cartago será
destruída!” ou “Cartago tem de ser destruída!” ou
“É preciso destruir Cartago!”),
tradicionalmente atribuída a Catão, o Ancião, que morreu em 149 a.C. Segundo reza
a tradição, Catão, o Ancião, senador romano, proferia esta frase de cada vez
que começava ou terminava um discurso perante o Senado Romano, qualquer que
fosse o assunto. Catão acabou por fazer vingar a sua ideia. Após uma curta
campanha e um longo cerco que durou de 149 a 146 a.C., a cidade de Cartago (situada
na costa do golfo de Tunes) foi destruída e arrasada pelos exércitos romanos.
Os
EUA também tiveram o seu Catão. Já o referi na secção 1 (Introdução)
deste artigo. Chamava-se Zbigniew Brzezinski (1928-2017) — professor
universitário, autor de numerosas obras de geopolítica, co-fundador com o
multimilionário David Rockfeller da Comissão
Trilateral, Conselheiro do Presidente Lyndon Johnson de 1966 a 1968 e
Conselheiro Nacional de Segurança do Presidente Jimmy Carter de 1977 a 1981.
Doutrinariamente, Brzezinski era um geopolitólogo da corrente idealista-wilsoniana
[23], da
qual é, aliás, um exemplo perfeito [24].
Recorde-se
o que, em 1997, Brzezinski, escrevia, a propósito da Rússia.
A Rússia continua a ser responsável pela maior parcela de território
do mundo, abrangendo dez fusos horários e fazendo com que os Estados Unidos, a
China ou uma Europa alargada pareçam anões quando comparados com ela [25].
A Ucrânia era, para ele, um «espaço importante no tabuleiro de xadrez eurasiático» [26], cujo controlo é suposto tornar possível uma dominação sobre o mundo, nomeadamente através de um enfraquecimento da Rússia. Por isso, Brzezinski identifica a Ucrânia como o Estado «merecedor do mais forte apoio geopolítico da América»[27]. É, para os EUA, «o Estado crítico»[28] entre os «pivôs geopolíticos chave da Eurásia» [29]; sendo os «pivôs geopolíticos» definidos como sendo «Estados cuja importância deriva não do seu poder e motivação, mas sim da sua localização sensível e das consequências da sua condição potencialmente vulnerável para o comportamento dos actores geostratégicos» [30], tais como a Rússia. Para Brzezinski, era preciso cortar definitivamente todos os laços privilegiados de natureza histórica, linguística, cultural, económica e política que ligam a Ucrânia à Rússia, pois «sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império eurasiático» [31].
Zbigniew Brzezinski (1928-2017), em Março de 1977, pouco depois de ter iniciado funções como Conselheiro de Segurança Nacional do presidente Jimmy Carter dos EUA. Foto de Jack E. Kightlinger. |
Depois de atrair a Ucrânia para o campo da OTAN, escrevia Brzezinski, era preciso preparar uma segunda etapa. Rossia delenda est ! [É preciso destruir a Rússia!], diria Catão. «Sim, estimado Catão», responderia Brzezinski, «mas não a arrasando, como os romanos fizeram a Cartago ou como nós fizemos a Hiroshima e a Nagasaki — a não ser, é claro (Deus nos livre!), que isso se revele absolutamente necessário. A solução mais inteligente é desmembrar a Rússia em três partes, exercendo sobre ela uma constante corrida aos armamentos e uma constante ameaça nuclear».
Considerando o tamanho do país e a sua diversidade, um sistema
político descentralizado e uma economia de mercado livre reuniriam as condições
ideais para fazer frutificar /…/ os vastos recursos naturais da Rússia. Uma Confederação da Rússia –
composta por uma Rússia europeia, uma República Siberiana e uma República do
Extremo Oriente frouxamente ligadas umas às outras – seria igualmente mais
benéfica para desenvolver relações económicas mais estreitas com os seus
vizinhos. Cada uma das entidades confederadas teria melhores condições para
desenvolver o potencial criativo local, durante séculos abafado pela pesada mão
burocrática de Moscovo. Assim, uma Rússia descentralizada terá menos propensão
para fazer valer as suas pretensões imperiais [32]. [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]
Não
sei se Putin leu The Grand Chessboard: The American Primacy and Its Geopolitical Imperatives
[“O Grande Tabuleiro de Xadrês: A primazia americana e os seus imperativos
geopolíticos”.1997], o tratado de geopolítica onde Brzezinski
expõe estas ideias. Presumo que sim. Mas mesmo que o não tenha lido,
sabemos que está perfeitamente cônscio da ameaça de desmembramento da Rússia
enunciada por Brzezinski, a qual, aliás, não é original. Com efeito, no seu
discurso de 21 de Dezembro de 2021, Putin
afirmou:
Lembrem-se: em 1918, um assessor do Presidente dos EUA, Woodrow
Wilson, disse que seria um alívio para o mundo inteiro se em vez de uma
grande Rússia, fosse criado um Estado separado na Sibéria e outros quatro
países na parte europeia.
Em 1991, dividimo-nos em 12 partes, e fomos nós próprios que o fizemos. Ainda assim, parece que isto não foi suficiente para os nossos parceiros. Eles acreditam que a Rússia é demasiado grande como é hoje. Isto acontece porque os próprios países europeus se transformaram em pequenos Estados. Em vez de vastos impérios, eles são agora pequenos Estados com 60 a 80 milhões de pessoas [esta acepção de “pequenos Estados” só é válida para a Alemanha (83,2 milhões de pessoas), a França (67,3 milhões), o Reino Unido (63 milhões) e a Itália (59,5 milhões). A Espanha (48 milhões), a Polónia (38,4 milhões) e a Roménia (19,6 milhões) já estão bem abaixo desse escalão. Todos os outros países da Europa têm populações com grandezas muito inferiores, raramente ultrapassando os 10-15 milhões de pessoas, N.E.]. Contudo, mesmo depois do colapso da União Soviética e de termos ficado apenas com 146 milhões de pessoas, isso ainda é demasiado para eles. Creio que esta é a única forma de explicar esta pressão implacável. [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]
4. Duas perguntas
Esclarecida a motivação geopolítica de Putin para invadir a Ucrânia (não confundir “motivação geopolítica” com “justificação legal” e “justificação legítima [política e/ou moral]”, questões que serão abordadas nas secções 7 e 8, mais adiante), podemos finalmente abordar uma questão sobre a conduta de Putin que a muitos parece um enigma.
Ela desdobra-se em duas perguntas indissociáveis uma da outra, que são a razão de ser deste artigo (a terceira parte de um ensaio de quatro partes):
1) Por
que razão Putin decidiu invadir a Ucrânia agora [em 24 de Fevereiro de
2022] e não bem mais cedo ou bem mais tarde?
2) Como qualificar a invasão da Ucrânia em termos estratégicos e no âmbito da doutrina do seu mentor e mandante, Putin?
5. Porquê em 24 de Fevereiro?
Comecemos
pela primeira pergunta, relativa à data da invasão. Conjecturo que a resposta
resulta da combinação de quatro informações distintas.
# A
primeira prende-se com os mísseis hipersónicos (como, por exemplo, o 3M22
Tsircon, da Rússia, ou o Hawk, dos EUA).
Durante
a “Guerra Fria”, os EUA e a União Soviética, equipados com mísseis
nucleares ⎼ mais de 60.000 ogivas entre ambos ⎼, desenvolveram um vocabulário comum
para o pesadelo mundial que criaram. O tempo de voo entre os EUA e a Rússia, e
vice-versa, para um MBIC (Míssil Balístico InterContinental)
era de cerca de 20 minutos. Uma vez que ambos os lados tinham armas nucleares
mais do que suficientes para exterminar completamente toda a vida humana e
destruir uma parte do ecossistema terrestre (em particular quase todo o reino Animalia), eles chamaram a esta situação, Mutual Assured Destruction
(“Destruição Mútua Assegurada”), cujo acrónimo, M.A.D.,
se pronuncia do mesmo modo do que a palavra inglesa mad
(louco) — um termo e um acrónimo apropriados.
Os
instrumentos e técnicas de detecção e alerta de um lançamento “inimigo”
tornaram-se, entretanto, muito sofisticados, de modo que havia tempo suficiente
para ir de “porta-em-porta”, durante 20 minutos, para determinar se o que
estavam a detectar e o aviso de alerta correspondia a um problema instrumental,
a um lançamento de satélite inofensivo, a um ataque nuclear, ou a outra coisa
qualquer. Foi neste contexto que foi desenvolvida a noção de primeiro ataque (Ingl. “first strike”) ou ataque preemptivo (Ingl. “preemptive strike”), um
modo de ataque nuclear concebido para neutralizar as armas nucleares de
retaliação do “inimigo”, porque quem quisesse “vingar-se” teria de lançar o seu
projétil nuclear antes da chegada do projétil do inimigo.
Primeiro ataque, também conhecido como ataque nuclear preemptivo, é um ataque ao arsenal nuclear de um inimigo que impede a retaliação contra o atacante de um modo eficaz. Um primeiro ataque bem sucedido danificaria os mísseis inimigos que estão prontos para lançamento e impediria o adversário de preparar outros para um contra-ataque que visasse os arsenais nucleares do inimigo e as suas instalações de lançamento [33].
Os
mísseis hipersónicos vieram modificar
profundamente as premissas do “primeiro ataque”, introduzindo uma nova noção: a
de lançamento-imediatamente-a-seguir-a-um-aviso-de-alerta
(Ingl. “launch on warning”).
Os
mísseis hipersónicos são os que são movidos por um motor de foguete, ou por um
reactor estator, durante parte de seu voo — o que lhes permite atingirem uma
velocidade muito elevada, maior do que Mach 5, e adoptarem um perfil de voo em
altitudes menores do que os mísseis balísticos. Isso
torna a sua detecção e intercepção extremamente difíceis. O lançamento-imediatamente-a-seguir-a-um-aviso-de-alerta
significa que o tempo necessário para verificar se se trata de um falso alarme é tão curto que quem se
queira “vingar” do inimigo, terá, à cautela, de lançar os seus mísseis ao primeiro aviso de
alerta — um procedimento de racionalidade altamente questionável pelas razões
já mencionadas. Ora, é este procedimento que se tornou quase “obrigatório”, por
força das circunstâncias, com os mísseis hipersónicos [34].
Feito
este esclarecimento, regressemos à eventualidade de mísseis hipersónicos serem
implantados na Ucrânia para a qual, como vimos, Putin alertou no seu discurso 30
de Novembro de 2021. Do ponto de vista de Putin, isso constituiria um “ameaça existencial” (sic) para a Rússia.
Porquê? Porque o tempo de voo de um míssil hipersónico entre, por exemplo, Kiev
e Moscovo (que distam uma da outra 868 km por estrada e 762 km por via aérea)
seria de 5 minutos.
Talvez,
nessa altura, não tenha ficado claro para todos os leitores a razão pela qual esse
tempo de voo constituiria uma “ameaça existencial” para a Rússia. Mas creio que
agora terá ficado claro para qualquer leitor que isso equivale a dizer que
qualquer lançamento da Ucrânia de um míssil hipersónico desencadeará automaticamente
um lançamento-imediatamente-a-seguir-a-um-aviso-de-alerta por parte da Rússia,
e vice-versa: qualquer lançamento da Rússia de um míssil hipersónico...É um
cenário de destruição mútua assegurada.
# O
segundo elemento a ter em conta para respondermos à pergunta («Por que razão
Putin decidiu invadir a Ucrânia agora [em 24 de Fevereiro de 2022] e não muito
mais cedo ou muito mais tarde»?) prende-se com outro facto também
referido nos discursos de Putin. Em Setembro de 2020, Volodymyr Zelensky promulgou a Estratégia Nacional de Segurança da Ucrânia e em Março
de 2021 promulgou a nova Estratégia Militar da Ucrânia [35]. Sabemos que adiou o mais que pôde a
promulgação da Estratégia Nacional de
Segurança da Ucrânia (levou mais de seis meses a promulgá-la) e que o fez com
muita relutância [36]. O caso não era para menos, porque a
adopção desse documento significou, na prática, a renúncia ao cumprimento dos
Acordos de Minsk e do programa eleitoral de Zelensky relativamente aos
territórios russófonos do Donbass.
Lembremo-nos
que Zelensky foi eleito numa plataforma de redução das hostilidades com a
Rússia. O ponto central do programa eleitoral de Zelensky era a sua vontade de aplicar a “fórmula
Steinmeier” concebida pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão Frank-Walter
Steinmeier, que apelou a eleições para orgãos de autogoverno nas regiões maioritariamente de língua russa
de Donetsk e Luhansk, como condição necessária para alcançar uma solução
pacífica no Donbass que evitasse um desenlace secessionista de uma parte, pelo
menos, desse território.
A
aprovação da nova Estratégia de Segurança Nacional
da Ucrânia e, seis meses depois, da nova Estratégia
Militar da Ucrânia ⎼
documentos que devem ter sido redigidos por especialistas da OTAN e por
elementos do comando das Forças Armadas da Ucrânia ⎼ representou a renúncia de Zelensky ao
seu programa original, um facto que os seus críticos da véspera se apressarem a
aplaudir calorosamente [37]. Estes documentos consagraram sem papas na
língua a tese de que o inimigo principal da Ucrânia era a Rússia e que a tarefa
principal da Ucrânia era preparar-se, nos prazos mais breves possíveis e com a
ajuda da OTAN, para uma guerra generalizada com a Rússia. Tudo profecias
autoconfirmatórias.
Esta
reviravolta de Zelensky também poderá explicar a sua oposição à visita do
Presidente da Alemanha à Ucrânia, justificada oficiosamente por negócios que o
visitante teria tido outrora na Ucrânia que não são bem vistos pelo poder
ucraniano actual. Mas a verdadeira razão dessa oposição, que causou um incidente diplomático [38],
poderá ser outra. É que o actual presidente alemão é…o mesmo Steinmeier que
Zelensky tanto apreciava outrora como Ministro dos Negócios Estrangeiros da
Alemanha. «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades»,
como dizia o poeta.
# O terceiro elemento a ter em conta
para respondermos à pergunta («Por que razão Putin decidiu invadir a Ucrânia agora [em 24
de Fevereiro de 2022] e não muito mais cedo ou muito mais tarde»?)
prende-se com uma declaração política conjunta ⎼ intitulada “A parceria estratégica
EUA-Ucrânia” ⎼
que o governo dos EUA e o governo da Ucrânia emitiram em 1 de Setembro de
2021, na qual os EUA prometem, entre outras coisas, reforçar a sua ajuda e
cooperação militar com a Ucrânia em todos os planos (incluindo cibersegurança,
espionagem, vigilância por satélites), com envio de armas militares avançadas ⎼ como parte do apoio ao programa de
acção para a adesão (PAA) da Ucrânia à OTAN ⎼ e na qual o governo dos EUA e o
governo da Ucrânia se comprometem a desenvolver esforços conjuntos para impedir
o funcionamento do gasoduto russo conhecido, em Inglês, por Nord Stream 2 — sim,
leram bem, impedir que a Alemanha e outros países europeus se possam abastecer
de gás russo barato por essa via [https:// www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/09/01/joint-statement-on-the-u-s-ukraine-strategic-partnership/5/]
#
O quarto elemento a ter em conta para respondermos à pergunta («Por que razão
Putin decidiu invadir a Ucrânia agora [em 24 de Fevereiro de 2022] e não muito
mais cedo ou muito mais tarde»?) prende-se com o anúncio que Zelensky fez em 19 de
Fevereiro de 2022, na Conferência sobre Política de Segurança de Munique, de
que a Ucrânia está pronta a renunciar ao cumprimento do Memorando de Budapeste sobre Garantia de Segurança em troca de um
lugar na OTAN.
Recorde-se
que o Memorando de Budapeste sobre Garantias de
Segurança é um acordo político assinado em Budapeste (Hungria) em
5 de dezembro de 1994. Nesse memorando, a Rússia, o Reino Unido e os EUA
coíbem-se de ameaçar ou utilizar a força militar ou a coerção económica contra
a Ucrânia, a Bielorrússia e o Cazaquistão, «excepto em
legítima defesa ou de outra forma que esteja em conformidade com a Carta das
Nações Unidas». Em contrapartida (e em consequência deste memorando e de
outros acordos assinados entre 1993 e 1996), a Bielorrússia, o Cazaquistão e a
Ucrânia abdicaram da posse das armas nucleares que pertenciam a União
Soviética, mas que estavam estacionadas no seu território. Com a dissolução da
União Soviética, essas armas passaram para a posse da Rússia. A Bielorrússia, o
Cazaquistão e a Ucrânia passaram também a coibir-se de fabricar ou albergar
armas nucleares no seu território.
O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskyy discursa na Conferência de Munique sobre Política de Segurança, em 19 de Fevereiro de 2022. Fonte: president.gov.ua ura 1 |
Foi este acordo que Zelensky decidiu pôr em causa no seu discurso em Munique.
A Ucrânia recebeu garantias de segurança por ter desistido da
terceira força nuclear do mundo. Não temos essas armas. Também não dispomos de
segurança. Também não temos uma parte do território do nosso Estado que é maior em área
do que a Suíça, a Holanda, ou a Bélgica. E o mais importante — não temos
milhões dos nossos cidadãos. Não temos tudo isto.
Por conseguinte, temos alguma coisa. Temos o direito de exigir
uma mudança de uma política de apaziguamento para uma política que assegure a
segurança e garantias de paz.
/…/
Eu quero acreditar que a OTAN e o seu artigo 5 serão mais eficazes
do que o Memorando de Budapeste. /…/ E espero que ninguém pense na Ucrânia como sendo uma conveniente e
eterna zona-tampão entre o Ocidente e a Rússia. Isso nunca acontecerá. Ninguém
permitirá que isso aconteça. /…/
Desde 2014, a Ucrânia tentou por três vezes convocar consultas com
os Estados-fiadores do Memorando de
Budapeste. Três vezes sem êxito. Hoje a Ucrânia fá-lo-á pela quarta vez. Eu,
como Presidente, farei isto pela primeira vez. Mas tanto eu como a Ucrânia vamos
fazer isto pela última vez.
Se as consultas não voltarem a acontecer ou se os seus resultados
não garantirem segurança para o nosso país, a Ucrânia terá todo o direito de
acreditar que o Memorando de Budapeste não está a funcionar e todas as decisões
do pacote de 1994 ficam em causa [39]
[o destaque a traço grosso foi acrescentado ao original, N.E.]
Parece(-me) claro, pela leitura deste discurso na íntegra, que Zelensky anunciou a sua disposição de autorizar o fabrico caseiro de armas nucleares no seu país, com o auxílio da OTAN, ou pelo menos com o seu beneplácito.
6. Putin aplica a doutrina Bush na Ucrânia
A resposta à segunda pergunta (Como qualificar a invasão da Ucrânia em termos estratégicos e no âmbito da doutrina do seu mentor e mandante, Putin?) contém o cerne da resposta à primeira. A invasão da Ucrânia pelas forças armadas da Rússia qualifica-se, em minha opinião, como uma guerra “com luneta de chave dupla,” a saber: (i) uma guerra de defesa colectiva das Repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk e (ii) uma “guerra preemptiva” contra a ameaça nuclear ucraniana/Otaniana.
“Preempção” é um termo técnico do direito comercial
e da informática, campos onde, aliás, significa coisas diferentes. O seu
emprego no vocabulário militar é mais recente e ainda inusitado, mas não o
conceito que designa. Na realidade, o conceito de guerra preemptiva não é novo.
O que é novo é a ênfase que lhe foi conferido pela nova doutrina estratégica
dos EUA no período posterior aos ataques às torres gémeas de Nova Iorque em 11
de Setembro de 2001.
Os
leitores que já eram adultos no ano 2003 lembrar-se-ão, porventura, que o
conceito da guerra preemptiva saltou para as primeiras páginas dos jornais
nessa época, em relação com a invasão do Iraque em 2003. Isso não aconteceu por
acaso. Em Setembro de 2002, o conceito de “guerra
preemptiva” foi definido e enunciado na National
Security Strategy of the United States [Estratégia de Segurança Nacional
dos EUA], comummente conhecida como Doutrina Bush.
O
significado mais importante desse documento encontra-se no seu capítulo V,
intitulado Impedir os nossos inimigos de nos ameaçarem e ameaçarem os nossos aliados e
os nossos amigos com armas de destruição maciça. É aí que encontramos a
definição americana de guerra preemptiva.
Os EUA têm mantido a opção de actuar preemptivamente para conter
uma ameaça à segurança nacional. A maior ameaça é o risco da inacção — é
imperioso efectuar uma acção antecipatória para nos defendermos, mesmo
que subsista incerteza tanto sobre o momento como sobre o local do ataque
inimigo. Se for necessário, actuaremos preemptivamente para evitar ou
prevenir tais actos hostis pelos nossos adversários. /…/ Procederemos sempre
deliberadamente, ponderando as consequências das nossas acções [40] [o
destaque a traço grosso foi acrescentado ao original, N.E.]
Na
concepção estado-unidense, o ataque preemptivo é, portanto, uma modalidade do
ataque preventivo alegadamente destinada a impedir actos hostis do inimigo,
mesmo quando se desconhece quer o momento quer o local exactos da ocorrência
dos ditos actos.
Encontram-se
formulações semelhantes a esta nos documentos estratégicos de defesa de outros
países. É o caso da Lei de Programação Militar
da França para o período 2003-2008, aprovada igualmente em Setembro de 2002. O
documento redefine a estratégia francesa no pós-11 de Setembro.
No
seu capítulo 3 (“Funções Estratégicas”)
refere-se à necessidade, «no exterior das nossas
fronteiras», de «estar em condições de
identificar e prevenir as ameaças o mais cedo possível». «Nesse quadro, a possibilidade de uma acção preemptiva
poderia ser considerada /…/ desde
que se verifique uma situação de ameaça explícita e reconhecida» [41]. [o
destaque a traço grosso foi acrescentado ao original, N.E.]
Existe
uma diferença subtil entre estes dois conceitos ‒ o americano e o francês ‒ de
guerra (ou acção militar letal/destrutiva) preemptiva. Na doutrina estratégica
norte-americana, prevê-se a possibilidade de desencadear uma acção preemptiva, empregando
a força letal ou destrutiva, no âmbito da “prevenção”, isto é, antes da ameaça
se poder
configurar como iminente. Assim sendo, a preempção evolui de uma estratégia
defensiva para uma estratégia ofensiva. No caso da doutrina estratégica da França
e de muitos outros países, a possibilidade de actuar preemptivamente depende da
constatação e reconhecimento de uma evidente ameaça directa e iminente,
continuando a acção preemptiva a situar-se no quadro de uma estratégia
essencialmente defensiva [42].
Esta
diferença entre os dois conceitos de guerra (ou acção militar letal/ destrutiva)
preemptiva pode ser ilustrada com dois exemplos concretos. Quando, em 1967, a
Força Aérea de Israel atacou os aeroportos e destruiu no chão os aviões de
guerra da Força Aérea do Egipto na chamada “Guerra
dos Seis Dias”, executou o que os generais franceses, à luz da sua
doutrina estratégica, apelidam de acção ou guerra preemptiva. Isto, bem
entendido, se admitirmos como verdadeira a alegação de Israel de que estaria
iminente um ataque egípcio contra Israel.
Em
contraste, em 1981, quanto Israel bombardeou e destruiu o reactor de teste de
materiais nucleares em construção em Osirak, perto de Bagdá (Iraque), executou
o que os generais americanos apelidam de acção ou guerra preemptiva. Isto
porque a possibilidade do Iraque lançar uma bomba nuclear sobre Israel não
estava, de modo nenhum, iminente, mesmo que dessemos de barato que o reactor de
Osirak tivesse sido projectado para fabricar armas nucleares para atacar
Israel, e não para fins pacíficos.
Para
fixar as ideias chamarei, doravante, guerra
preemptiva (ou acção militar preemptiva)
à guerra (ou acção militar) preemptiva no sentido americano (ou seja, ofensivo)
do termo e guerra preventiva (ou acção
militar preventiva) à guerra (ou acção militar) preemptiva no
sentido francês (ou seja, defensivo) do termo.
Feito
este esclarecimento e esta ressalva terminológica, estou agora em condições de
exactificar o significado da invasão militar da Ucrânia e a guerra contra a
Ucrânia ordenadas por Putin. Trata-se uma guerra preemptiva no sentido
americano (ou seja, ofensivo) do termo.
Parece(-me)
claro, por tudo o que foi dito nas secções anteriores, que Putin aplicou a
doutrina Bush à Ucrânia, lançando uma guerra preemptiva contra um Estado que
constitui, a seus olhos, uma ameaça existencial para o Estado russo dada a sua
intenção reiterada de aderir à OTAN e, mais recentemente, de se dotar de
armamento nuclear.
Quanto à questão de saber por que razão esse ataque preemptivo foi lançado agora, em 24 de Fevereiro de 2022 (e não bem mais cedo ou bem mais tarde) a resposta parece-me igualmente óbvia em função das quatro ordens de factos descritos na secção 5: era agora ou nunca.
Putin
convenceu-se que a sua janela de oportunidade para lançar o seu ataque
preemptivo contra a Ucrânia se poderia fechar a qualquer momento. Bastaria para
tanto que a OTAN decidisse admitir formalmente a Ucrânia, o que poderia estar
iminente como sugeriu a resposta que Biden deu a Zelensky em 9 de Dezembro de
2021 (cf. 2.ª parte deste ensaio, OTAN: natureza e
historial, antes e depois de 1991,
secção 4).
Ora,
a partir do momento em que a Ucrânia estivesse na OTAN, um ataque russo a esse
país seria interpretado como um ataque à OTAN no seu conjunto, de acordo com o
artigo 5.º desta organização militar que estipula que um ataque a um dos seus
membros é um ataque a todos. E um ataque da OTAN à Rússia em retaliação à sua
invasão da Ucrânia seria o início de terceira guerra mundial, abrindo a
perspectiva do fim iminente da humanidade tal como a conhecemos hoje e, muito
possivelmente, a sua extinção total como biospécie.
Várias passagens dos discursos Putin de 21 de Fevereiro e 24 de Fevereiro de 2022 corroboram adicionalmente esta dupla explicação do significado estratégico que a invasão da Ucrânia representa nos planos de Putin e da data que escolheu para a executar.
7. Uma guerra não-provocada, ilegal e ilegítima ?
Espero ter conseguido mostrar nas secções anteriores
deste texto (que é a 3.ª parte do ensaio A
Guerra na Ucrânia) e nas duas partes anteriores do mesmo ensaio
(1.ª parte: Crónica
de uma guerra pré-anunciada; 2.ª parte: OTAN: natureza e historial, antes e
depois de 1991) que a
Rússia (entenda-se, a elite dirigente russa, com Putin à cabeça) tem razões de
sobra para se sentir traída, enganada e ameaçada pela OTAN (entenda-se, pelas
elites dirigentes dos seus Estados-membros, com os EUA à cabeça) desde, pelo
menos, 1997. A Rússia tem também razões bastantes para se sentir desconfiada e
zangada com a Ucrânia (entenda-se: com a elite dirigente ucraniana, com Poroshenko
e agora Zelinsky à cabeça) desde, pelo menos, 2014.
Do ponto de vista geopolítico (o quadro doutrinal de que as elites dirigentes dos Estados se servem preferencialmente para analisar os acontecimentos e processos que determinam as relações entre os Estados no espaço mundial e para guiar a sua conduta nesse espaço) e, em particular, do ponto de vista da máxima de Mearsheimer (cf. Introdução deste texto), a Rússia tem, de facto, carradas de razão para se sentir vexada.
Mas esse capital de queixas não lhe confere qualquer direito à ultima ratio regum, a não ser em circunstâncias especiais previstas no direito internacional público. /.../
Se
não, vejamos:
—
A alínea 3 do artigo 2 da Carta das Nações Unidas
(1945), estabelece que «todos os [Estados] membros resolverão as suas controvérsias internacionais por
meios pacíficos».
—
A proibição do uso da força, entendida como acção armada entre Estados,
encontra a sua expressão mais clara na alínea 4 do artigo 2 da Carta:
Os membros [da
ONU] deverão abster-se nas suas relações
internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a
integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de
qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas.
É
verdade que a proibição do uso da força coexiste, no direito internacional
público, com o reconhecimento de situações nas quais o recurso a acções armadas
é permitido a título excepcional. Esse reconhecimento surge logo no preâmbulo
da Carta das Nações Unidas, onde é dito que «a força armada
não será usada a não ser no interesse comum». A Carta reconhece expressamente
duas dessas excepções: o direito à legítima defesa (previsto no artigo 51.º) e
a possibilidade de o Conselho de Segurança autorizar acções armadas para manter
ou restaurar a paz e a segurança internacionais (prerrogativa regulada pelo
Capítulo VII da Carta e, mais especificamente, pelo artigo 42.º).
A
legítima defesa autoriza que os Estados lancem mão de acções militares para
responder a uma violação da proibição do uso da força, isto é, a legítima
defesa só é possível em resposta a um “ataque armado” (armed attack, na versão inglesa da Carta das Nações Unidas) ou a uma “agressão armada” (agression armée, na versão francesa da Carta). A
acção militar em legítima defesa é um uso legal da força justamente porque tem
como objectivo repelir um uso prévio e ilegal da força por parte de outro
Estado. A lógica é semelhante ao direito à legítima defesa que as ordens jurídicas
nacionais garantem aos indivíduos. Ponto crucial: a permissibilidade da
legítima defesa deve sempre ser interpretada de forma conjunta com o artigo 2,
alínea 4, da Carta, contribuindo para a construção de uma perspectiva analítica
e interpretativa restritiva, empenhada em garantir a proibição do uso da força [43].
Como seria de esperar, o direito à legítima defesa é o argumento mais frequentemente invocado pelos Estados para justificarem acções militares. E foi esse também um dos argumentos (designadamente artigo 51.º da Carta das Nações Unidas) que a Rússia invocou para justificar a sua invasão da Ucrânia. /.../ O artigo 51.º diz o seguinte:
Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima
defesa individual ou colectiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um
Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as
medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais.
Ora, (A) a Ucrânia não cometeu nem ameaçou cometer nenhum ataque armado contra a Rússia antes do dia 24 de Fevereiro de 2022, nem qualquer outro Estado ameaçou fazê-lo. (B) Mesmo que a Rússia pudesse demonstrar que a Ucrânia fez, durante anos a fio, ataques contra os russos e os ucranianos russófonos nas regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk (e julgo que não terá qualquer dificuldade em demonstrá-lo), o artigo 51.º não permitiria uma acção em legítima defesa colectiva, porque as repúblicas populares de de Donetsk e Luhansk não são Estados membros da ONU, apesar da sua secessão da Ucrânia e do reconhecimento pela Rússia da sua independência. Existem numa espécie de limbo legal, à luz do direito internacional público, tal como este foi plasmado em 1945 na Carta da Nações Unidas.
Por outro lado, as declarações de Putin de que (C) a Ucrânia estava a cometer um “genocídio” contra os habitantes russos e russófonos nas repúblicas populares de Donetsk e Luhansk, embora constituam um esforço indisfarçado para justificar o uso da força da Rússia utilizando a linguagem do direito internacional público, não dão (nem dariam) à Rússia o direito de iniciar uma invasão da Ucrânia, mesmo que haja provas (ou houvesse provas) inequívocas de serem verdadeiras.
[P.S-1. <21-04-2023>. Actualmente, considero que os argumentos (A), (B) e (C) são inválidos. Cheguei a esta conclusão através de uma análise posterior, feita em Março de 2023, com base num estudo mais aprofundado dos factos pertinentes. Essa nova análise consta de um livro de que sou autor intitulado: Dissipando a névoa artificial da guerra — um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal].
A Convenção sobre o Genocídio (1948/1951) define genocídio como certas acções específicas destinadas a destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, “racial” ou religioso. Não vou aqui discutir se existem provas inequívocas de que a Ucrânia (entenda-se, as forças armadas e as forças paramilitares [denominadas “Guarda Nacional”] da Ucrânia ou o Serviço de Segurança da Ucrânia [SBU, na sigla ucraniana]) tenha estado envolvida em qualquer das acções supramencionadas, nem vou aqui discutir se existem provas inequívocas de uma intenção de destruir, no todo ou em parte, qualquer grupo na Ucrânia Oriental, na chamada região da Donbass. Esta questão merece uma investigação separada que não tenho os meios de efectuar.
[P.S-2. Fiz essa investigação ulteriormente, cujos resultados expus, resumidamente, no livro supramencionado. Foi ela que me levou a reapreciar e a corrigir os argumentos (A), (B) e (C) expendidos neste artigo que hoje considero errados].
Seja
como for, ainda que o governo ucraniano tenha cometido inúmeras violações dos
direitos humanos contra os russos e/ou contra os ucranianos russófonos da
região da Donbass, no leste da Ucrânia, nem a Convenção
sobre o Genocídio nem a Carta das Nações
Unidas autorizam as partes na convenção ou os Estados membros da ONU a
usar a força das armas para pôr termo a actos de genocídio ou graves violações
dos direitos humanos noutros Estados.
[P.S.-3. Mas ela é legalmente admissível, como mostrei no meu livro, à luz do Princípio Responsabilidade de Proteger (RdP) [Ingl. “Responsability to Protect” ou RtoP ou R2P]. O princípio da RdP foi explicitamente adoptado, como novo princípio internacional do direito internacional público, nos parágrafos 138 e 139 da declaração final da Cimeira Mundial de chefes de Estado e de governo de 14-16 de Setembro de 2005 e foi também adoptado, ipsis verbis, na resolução da Assembleia Geral da ONU em 16 de Setembro de 2005].
Desafortunadamente
(e talvez não seja o fruto do acaso), o texto da Carta
das Nações Unidas e a jurisprudência do Tribunal
Internacional de Justiça (TIJ) [44], não permitem concluir taxativamente
se a legítima defesa pode ser praticada em antecipação a um ataque iminente ⎼ ou seja, se a legítima defesa por
meio de um acção militar preventiva ou de uma guerra preventiva é legal ⎼ ou se, pelo contrário, é preciso que
um ataque armado ocorra materialmente contra o seu território para que um
Estado possa ripostar invocando a legítima defesa.
Mesmo
assim, parece ser hoje consensual entre os especialistas de direito público
internacional afirmar que um ataque iminente é suficiente para o exercício da
legítima defesa. Em 2004, um painel convocado pelo Secretário-Geral da ONU, na
altura Kofi Annan, declarou que um Estado ameaçado «pode
realizar acções militares desde que o ataque ameaçador seja iminente,
que não haja nenhum outro meio de o evitar e que a acção seja proporcional» (par. 188, itálico no original). A
Associação de Direito Internacional (ILA), por sua vez, afirmou em 2018 que «há um apoio aparentemente crescente à visão de que o direito
à legítima defesa existe em relação a ataques manifestamente iminentes,
entendidos de maneira estrita (p.13)» [45]. [itálico no original]
Assim,
a permissibilidade da legítima defesa preventiva depende de critérios temporais
(“o ataque acontecerá sem demora” ou “esta é a última oportunidade para evitá-lo”) e exige
um elevado grau de certeza (“o ataque certamente ou
muito provavelmente acontecerá”). Em 1981, por exemplo, o Conselho de
Segurança da ONU recusou os argumentos apresentados por Israel para justificar
o bombardeio do reactor nuclear iraquiano de Osirak com base num risco nuclear futuro
e altamente incerto.
A
“legítima defesa preemptiva” (doutrina Bush)
não ganhou adeptos. Basta notar que os documentos supracitados a propósito da legítima
defesa preventiva são posteriores à Doutrina Bush. Mesmo os EUA deixaram de
advogar activamente a figura da “legítima defesa
preemptiva”, que desapareceu das estratégias de segurança nacional
posteriores. Desse modo, a maioria dos Estados e dos juristas que se ocupam do
direito internacional público rejeita, hoje em dia, a legalidade de acções militares
preventivas contra ameaças militares que não sejam iminentes.
A
Rússia poderá invocar a legítima defesa para justificar a legalidade da sua
guerra preemptiva contra a Ucrânia?
Putin discursando com o mapa da Rússia em pano de fundo. |
Não. /.../ A ameaça nuclear que a Ucrânia representava para a Rússia à data de 24 de Fevereiro de 2022 referia-se ao domínio dos factos realmente possíveis, não ao domínio dos factos actuais. À luz do direito internacional público (pelo menos no seu estado actual), não existe legítima defesa preemptiva. A acção militar preemptiva é ilegal e ilegítima à mesma luz, assim como a guerra preemptiva. São acontecimentos que nada pode justificar (não confundir com “explicar”) à luz do direito internacional público no seu estado actual.
[P.S.-3. Em contrapartida, a Rússia pode invocar o artigo 51.º da Carta da ONU (ou seja, a legítima defesa colectiva ou individual), conjugado com o n.º 2 do artigo 1.º (o respeito do princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos) e com o princípio da Responsabilidade de Proteger, para justificar a legalidade da sua invasão da Ucrânia. Desenvolvi esta tese no livro já mencionado: Dissipando a Névoa Artificial da Guerra — um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal.]
8. Uma guerra é uma guerra
Não precisamos, porém, de conhecer o direito internacional público para sabermos que a invasão da Ucrânia e a guerra que se lhe seguiu ‒ seja ela legal ou ilegal, legítima ou ilegítima ‒ são, como qualquer guerra, uma actividade de morticínio organizado do homem pelo homem e de destruição brutal das suas condições materiais ‒ físicas, biológicas e sociais ‒ de vida. Para isso, basta ver a terrível calamidade que tem sido para as populações que habitam o território ucraniano e o território das repúblicas populares de Luhansk e Donetsk, no seio das quais já provocou, até ao momento em que escrevo estas linhas (22 de Abril de 2022), 5.264 vítimas civis. Este número inclui:
um total de 2.345 mortos (703 homens, 429 mulheres, 44 raparigas e
63 rapazes, assim como 70 crianças e 1.036 adultos cujo sexo é ainda
desconhecido); um total de 2.919 feridos (339 homens, 271 mulheres, 61
raparigas e 66 rapazes, assim como 158 crianças e 2.024 adultos cujo sexo é
ainda desconhecido).
Nas regiões de Donetsk e Luhansk: 2.344 vítimas (930 mortos e 1.414
feridos). Em território controlado pelo Governo: 1.939 vítimas (851 mortos e
1.088 feridos) Em território controlado pelas autoproclamadas “repúblicas”: 405
vítimas (79 mortos e 326 feridos).
Noutras regiões da Ucrânia (a cidade de Kyiv [Kiev], e as regiões de Cherkasy, Chernihiv, Kharkiv, Kherson, Kyiv, Mykolaiv, Odessa, Sumy, Zaporizhzhia, Dnipropetrovsk, Poltava e Zhytomyr), que estavam sob controlo do Governo quando ocorreram casos a lamentar: 2.920 vítimas (1.415 mortos e 1.505 feridos)[46].
A
guerra já provocou também, até ao dia 20 de Abril, cerca de 5 milhões e 85.360
refugiados ⎼
sobretudo mulheres, crianças e seniores ⎼
e 7,1 milhões de deslocados internos, até ao dia 1 de Abril [47],
além de tremendas destruições materiais e um número desconhecido de baixas
militares de ambos os lados, que será sem dúvida grande, dado o poder mortífero
das armas que estão a ser utilizadas.
A
invasão e a guerra da Ucrânia são também, embora numa escala muitíssimo menor, uma
desgraça para o povo russo, que vai sofrer os efeitos das duras sanções
económicas que a União Europeia, Suíça, Reino Unido, Canadá, EUA, Austrália,
Nova Zelândia, Japão, Coreia do Sul, e Taiwan decretaram em retaliação contra a
Rússia.
Os
efeitos negativos desta guerra repercutir-se-ão também em graus diversos, mas em
todos os planos (incluindo o plano militar), por esse mundo fora, que é hoje um
mundo muito interligado pela internacionalização e transnacionalização das
cadeias de produção e abastecimento do sistema capitalista de produção.
Todos
os produtos em que a Rússia e a Ucrânia são grandes produtores ou até os
maiores produtores mundiais vão escassear e os seus preços vão subir muito e
muito rapidamente devido à guerra e às sanções económicas. É o caso de produtos
agroalimentares básicos, como os cereais (trigo, milho, cevada, centeio) e os óleos
vegetais (com especial destaque para o óleo de sementes de girassol e o óleo de
colza/canola), assim como dos produtos alimentares deles derivados (como, por
exemplo, farinhas, massas alimentícias, pão, rações para animais). É o caso
também dos fertilizantes (azoto/nitrogénio e potássio), dos combustíveis
fósseis (gás natural, petróleo e carvão) e de metais como o paládio, a platina,
o ouro, o níquel, o alumínio, o cobre e a prata necessários a muitos ramos da
indústria transformadora, como, por exemplo, as indústrias automóvel,
aeroespacial, siderúrgica, naval, química, farmacêutica, eléctrica, electrónica,
construção civil e de maquinaria industrial.
Os trabalhadores assalariados dos países membros da União Europeia (UE) serão os primeiros e maiores prejudicados, nestes países, pelo efeito boomerang das sanções económicas decretadas pelo Conselho Europeu. Mas são também estes trabalhadores os primeiros e maiores interessados em pôr um fim à guerra que se trava na Ucrânia.
A
solidariedade com os civis ucranianos e a ajuda humanitária aos civis ucranianos são muito
importantes. Elas são uma prova de que a maioria dos trabalhadores europeus perfilham
o princípio básico da ética agatonista, ainda que nunca tenham ouvido falar de
tal coisa [48], tal como o sr. Jourdain da peça O burguês fidalgo de Molière
fazia prosa sem o saber. Mas a solidariedade não se esgota na ajuda humanitária
e a ajuda humanitária não pode, obviamente, ter outra ambição que não seja a de
minorar os efeitos da guerra.
O
que poderemos então fazer concretamente, nós trabalhadores, para pôr fim a esta
guerra calamitosa ? É uma pergunta muito difícil de responder. Julgo que pelo
menos podemos começar por dizer que não há nada a esperar, nesse particular, dos
métodos e das medidas da União Europeia, dos EUA e da OTAN. Mas esse é um
assunto que terá que ficar para a quarta e última parte deste ensaio.
……………………………………………………………………………….
N.B. Este artigo é a terceira parte de um ensaio intitulado A Guerra na Ucrânia, com quatro partes. Foi originalmente publicado no magazine electrónico "Passa Palavra", em 12 de Maio de 2022. Porém, o artigo aqui publicado não é totalmente idêntico ao publicado nessa revista, porque a minha posição sobre este assunto evoluiu, entretanto, em vários e importantes aspectos como resultado do estudo mais aprofundado que fiz das causas contribuintes da invasão da Ucrânia pela Rússia e da consideração de certos factos que eram desconhecidos à data da redacção original. Por exemplo, se fôsse hoje, teria intitulado o ensaio As Guerras na Ucrânia. Do singular ao plural, vai um mundo de diferenças. Os trechos do artigo original que foram reescritos foram assinalados com uma letra de cor diferente: verde. Os trechos suprimidos foram assinalados com este sinal /.../ em cor vermelha.
……………………………………………………………………………….
Notas e Referências
[1] Esta afirmação está em linha com
outra que tive ocasião de fazer, em nota [a nota 2], na
segunda parte deste ensaio: «a geopolítica é o quadro de análise das relações
internacionais que as elites dirigentes das sociedades contemporâneas preferem
para racionalizar e guiar a sua actuação. Convém ter isto sempre presente
quando analisamos os seus planos, as suas iniciativas, condutas e narrativas».
Para uma caracterização sucinta da geopolítica, ver a nota 8
na primeira parte deste ensaio.
[2] Por “poder”
deve entender-se, no presente contexto, a capacidade de uma instância qualquer
(pessoal ou impessoal) de levar alguém (ou um conjunto de pessoas) a fazer (ou
a não fazer) o que, entregue a si mesma, essa pessoa (ou esse conjunto de
pessoas) não faria necessariamente (ou talvez tivesse feito). Por “poder explícito”
deve entender-se, no presente contexto, uma forma de poder dotada de instâncias
capazes de emitir explicitamente injunções ratificáveis. (Cf. Cornelius
Castoriadis, “Pouvoir, politique, autonomie,” em Le monde morcelée. Paris:
Éditions du Seuil.1990). Por “injunção ratificável”
deve entender-se uma deliberação susceptível de ser aprovada/consentida ou
reprovada/repudiada mediante exame e debate a priori ou a posteriori.
O poder explícito à escala nacional e internacional tem duas vertentes
principais: política e económica. A vertente política do poder explícito, nestes
dois âmbitos, é a que corresponde à tríade constitucional de Montesquieu: poder
legislativo, poder executivo (que seria mais bem apelidado de “governativo”) e
poder jurisdicional. A vertente económica do poder explícito, nestes dois
âmbitos, corresponde aos poderes análogos dos Conselhos de Administração das
empresas privadas (“sociedades comerciais” na terminologia jurídica portuguesa;
“sociedades empresárias” na terminologia jurídica brasileira).
[3] A
primeira citação foi extraída de John Mearsheimer, The Tragedy of Great Power Politics.
(Nova York: Norton and Company, 2001), p.36. A segunda citação foi extraída de John
Mearsheimer, Great Delusion: Liberal Dreams and International Realities (New
Haven and London: Yale University Press. 2018).
Não indico o n.º de página porque a citação foi extraída da edição digital
deste livro, que não possui paginação.
[4] Zbigniew
Brzezinski, “A Geostrategy for Eurasia’, em Preparing America’s Foreign Policy
for the 21st Century, eds. David L. Boren & Edward J. Perins Jr.
(Norman, Oklahoma: University of Oklahoma Press, 1999) p. 311.
[5] Em Portugal, a grande maioria dos
chamados comentadores residentes (e digo
“a grande maioria” porque não tenho a pretensão de os ter ouvido ou lido a
todos) que pontificam semanalmente nos jornais comerciais, rádios e estações de
televisão, incluindo os poucos que se dizem de esquerda, ocultam cientemente
estes factos. Funcionam assim como buracos da memória orwellianos. As excepções
tem sido poucas e sobram dedos de uma só mão para as contar.
[6] No
romance Mil
Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell, o protagonista, Winston
Smith, trabalha no “Ministério da Verdade”,
onde tem como função alterar continuamente notícias antigas de jornais para
servir os interesses de propaganda do governo. Nas paredes das salas e
corredores do edifício do Ministério da Verdade existem dezenas de milhares de
aberturas rectangulares protegidas por tampas metálicas. Essas aberturas são
apelidadas de “buracos da memória”. Servem para
destruir todos os documentos comprometedores. Para isso, basta levantar a tampa
de um buraco da memória e atirar para dentro dele o documento que se pretende destruir.
É imediatamente sugado por uma corrente de ar que o conduz a um dos muitos
incineradores ocultos nas entranhas do edifício.
[7] Para uma breve caracterização da
corrente dita “realística” da geopolítica ver a nota [15] na primeira
parte deste ensaio.
[8]
“Transcript:
2007 Putin Speech and the Following Discussion at the Munich Conference on
Security Policy”. Johnson’s Russia List, March, 17, 2014.
[9] Michael Scott, “Putin lashes out at West’s «new arms
race»”. Reuters, February 8, 2008.
[10] Jamie
Dettmer, “New Arms Race? Putin Boasts of High-Tech Weaponry”, Voa News,
March 1, 2018;
[11] “INF:
Vladimir Putin threatens to mirror US deployment of nuclear missiles in
Europe”, News, DW, 24.10.2018.
[12]
“Putin accuses US of raising risk of nuclear war “, Euroactiv.com with Reuters,
21/12/2018.
[13] O
Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermédio (formalmente Tratado entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas sobre a Eliminação dos seus Mísseis de Alcance
Intermédio e de Menor Alcance), também conhecido como Tratado INF
(do inglês: Intermediate-Range Nuclear Forces) foi um
tratado internacional sobre o controlo de armas nucleares entre os Estados
Unidos e a União Soviética assinado na cidade de Washington, D.C., em 8 de
Dezembro de 1987. Firmaram o tratado pelos EUA o então presidente dos EUA,
Ronald Reagan, e, pela União Soviética o então secretário-geral do Partido
Comunista da União Soviética, Mikhail Gorbachev. Ratificado pelo Congresso dos
Estados Unidos em 27 de Maio do ano seguinte, o mesmo entrou em vigor em 1 de
Junho de 1988. O acordo previa a eliminação (a destruição) dos mísseis
balísticos e de cruzeiro, nucleares ou convencionais, cujo alcance estivesse
entre 500 e 1.000 km (para os mísseis balísticos de curto alcance) e a
proibição (do fabrico, da detenção e dos
ensaios em voo) dos mísseis balísticos cujo alcance estivesse entre 1.000 e
5.500 km. O tratado não se aplicava a mísseis lançados por meios aéreos ou
navais. Até a data-limite de 1 de Junho de 1991, prevista no tratado, 2.692
mísseis de curto e médio alcance; foram destruídos — 846 por parte dos Estados
Unidos e 1.846 por parte da União Soviética. O acordo permitia a qualquer das
partes inspecionar as instalações militares da outra. Contudo, em 20 de outubro
de 2018 os Estados Unidos anunciaram sua retirada do tratado. Segundo o
presidente americano Donald Trump, os russos tinham vindo a violar os termos do
acordo há muitos anos. Esta decisão foi confirmada em 1 de Fevereiro de 2019,
quando os EUA, seguidos pela Rússia, decidiram suspender o tratado por 6 meses.
Em 4 de Março, o presidente russo Vladimir Putin, num ato de retaliação, suspendeu
oficialmente a participação do país no tratado. Os EUA retiraram-se formalmente
do tratado em 2 de Agosto de 2019 (Fonte: Wikipédia).
[14]
“Putin Threatens US With New Arms Race”. Forces Net. 20th
February 2019.
[15] “Expanded
Meeting of the Defence Ministry Board”. The Kremlin. Moscow. December
21, 2021 (http://en.kremlin.ru/events/president/news/67402).
[16] «Tríade nuclear
refere-se à capacidade de lançamento de um arsenal nuclear estratégico, que
consiste em três componentes básicos: mísseis balísticos intercontinentais
terrestres (MBIT), bombardeiros estratégicos e mísseis balísticos lançados por
submarinos (MBLS). O objectivo de ter uma capacidade nuclear de três
ramificações é reduzir significativamente a possibilidade de um inimigo
destruir todas as forças nucleares de um Estado num ataque inicial. Isto, por
sua vez, garante uma ameaça credível de um segundo ataque e, assim, aumenta a
dissuasão nuclear de uma nação» (Fonte: Wikipédia).
[17]
“Russia Calling! Investment Forum”. The Kremlin.
Moscow. November 30, 2021 (http://en.kremlin.ru/events/ president/news/67241).
[18] “Expanded
Meeting of the Defence Ministry Board”. The Kremlin. Moscow. December
21, 2021 (http://en.kremlin.ru/events/president/news/67402).
[19]
“Vladimir Putin’s annual news conference”. The
Kremlin. Moscow. December, 23, 2021 (http://en.kremlin.ru/events/ president/news/67438).
[20] “Address
by the President of the Russian Federation”. The Kremlin. Moscow,
February 21, 2022 (http://en.kremlin.ru/ events/president/news/67828).
[21] Este princípio está vertido em
muitos tratados e acordos internacionais. É o caso da Carta de Segurança Europeia,
subscrita por 54 países membros da OSCE durante a Cimeira de Istambul, em
Novembro de 1999; do Acto Fundador das Relações Mútuas, Cooperação e Segurança
entre a OTAN e a Rússia, de 27 de Maio de 1997; da Carta de Paris para uma Nova Europa,
de 19-21 Novembro de 1990: e dos Acordos de Helsínquia de 1 de Agosto de 1975,
todos subscritos pelos EUA e pela Federação Russa (ou pela União Soviética). Por
exemplo, a Carta de Segurança Europeia assevera que os países são livres de escolher
os seus próprios arranjos de segurança e as suas próprias alianças, mas
acrescenta a cláusula adicional que tais arranjos e alianças «não poderão fortalecer a sua segurança em detrimento da
segurança de outros Estados».
[22] As
relações de vassalagem existentes no seio da OTAN são um facto reconhecido
pelos próprios generais dos Estados-membros da OTAN, como Portugal. Como salientou o general Loureiro dos Santos
[que foi Vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (Portugal) e
Chefe do Estado-Maior do Exército], «o interesse
nacional dos EUA vê todos os outros Estados como entidades de soberania
limitada, guardando a soberania completa apenas para si próprios»
(General Loureiro dos Santos, “Regressa o Império Benigno”? Visão, nº
549, 11 a 17 de Setembro de 2003, p. 54).
[23] Para uma caracterização sucinta do
idealismo wilsoniano, ver a nota 16 da primeira parte deste ensaio.
[24] Um dos muitos exemplos da hipocrisia
e perfídia de Brzezinski foi a sua atitude no Camboja. Os EUA deram dezenas de
milhões de dólares de ajuda ao longo dos anos 1980 aos refugiados cambojanos.
Ao mesmo tempo orquestraram um programa completo de sanções contra o Camboja
porque este estava sob ocupação vietnamita. E para assegurar que Pol Pot e os
Khmers Vermelhos combatessem os ocupantes vietnamitas, o governo Carter-Brzezinski
ajudou a organizar uma ajuda chinesa contínua. «Encorajo
os chineses a apoiar Pol Pot» , disse Zbigniew Brzezinski,
o conselheiro de segurança nacional de Carter na altura. «A questão era como ajudar o povo cambojano. Pol Pot era uma
abominação. Nunca poderíamos apoiá-lo, mas a China poderia». Na ONU, os EUA, juntamente com a
maioria dos países da Europa e da Ásia, deram o lugar do Camboja apenas ao
Governo dos Khmers Vermelhos de Pol Pot e, depois de 1983, em coligação com
outros grupos anti-Vietnamitas cambojanos. Todas as tentativas até então de
descrever o regime dos Khmers Vermelhos como genocida foram rejeitadas pelos EUA
como contraproducentes para encontrar a paz. Apenas em 1989, com o início do
processo de paz em Paris, a palavra genocídio
foi pronunciada em referência a um regime responsável pela morte de mais de um
milhão de civis cambojanos (cf. Elizabeth Becker, “Death of Pol Pot: the
Diplomacy; Pol Pot’s End Won’t Stop U.S. Pursuit of His Circle”. The
New York Times, April 17, 1998).
[25] Zbigniew
Brzezinski, The Grand Chessboard (Basic Books. New York, NY, 1997), p. 202.
[26] Ibid., p. 48.
[27] Ibid., p. 149.
[28] Ibid., p. 149.
[29] Ibid.,
p. 41.
[30] Ibid., p. 41.
[31] Ibid., p.45. É interessante notar que
estas ideias da “Eurásia” e da Rússia como “império” (ou “potência global)
eurasiática” que Brzezinsky desenvolveu no seu livro, foram igualmente
desenvolvidas, no mesmo ano (1997), por um outro geopolitólogo, desta vez
russo, chamado Aleksandr Dugin, num livro intitulado Os fundamentos da geopolítica: o
futuro geopolítico da Rússia; um livro que alguns alegam ter
influenciado a política de Vladimir Putin. Na verdade, há muitas e boas razões
para dizer que Dugin é um émulo de
Brzezinsky. Um trabalha afincadamente para o engrandecimento da elite dirigente
da Rússia; o outro trabalhou afincadamente para o engrandecimento da elite
dirigente dos EUA. Aparentemente, a capacidade influenciadora de Brzezinsky foi
sempre muito superior à de Dugin, até à data.
[32] Zbigniew Brzezinski, The Grand
Chessboard (Basic Books. New York, NY, 1997), pp.201-202; e também ‘A
Geostrategy for Eurasia’, em Preparing America’s Foreign Policy for the 21st Century,
eds. David L. Boren & Edward J. Perins Jr. (Norman, Oklahoma: University of
Oklahoma Press, 1999) p. 56.
[33]
https://www.britannica.com/topic/first-strike
[34] L. Reichard White.
“Is Putin Paranoid?”LewRocckwell.com, March 19, 2022.
[35] Decree
of the President of Ukraine n.º392/2020. On the decision of the National
Security and Defense Council of Ukraine of September 14, 2020 (https://www.president.gov.ua/documents/3922020-35037); Decree of the President of Ukraine n.º 121/2021. On
the decision of the National Security and Defense Council of Ukraine of March
25, 2021 (https://www.president.gov.ua/documents/1212021-37661).
[36] Alyona Getmanchuk, “Russia as aggressor, NATO as
objective: Ukraine’s new National Security Strategy”. Atlantic Council.
September 30, 2020;
[37]
Alyona Getmanchuk, op.cit.; Taras Kuzio, “Russo-Ukrainian War: Time for
Zelenskyy to turn from populism to pragmatism”. Atlantic Council.
October 12, 2020; Taras Kuzio, “The Long and Arduous Road: Ukraine Updates Its
National Security Strategy”. Rusi. 16 October 2020; Maciej Zaniewicz.
“Ukraine’s New Military Security Strategy”. PISM Bulletin N.º 91 (1787),
5 May 2021.
[38] “Scholz «irritado» por Ucrânia
rejeitar visita de presidente alemão”. Diário de Notícias/AFP. 13 de
Abril de 2022.
[39] “Ukraine now has neither weapons nor security:
Zelensky demands Budapest Memorandum consultations”. Euromaidan Press. February
19, 2022.
[40] The National Security Strategy of the United States. White House, September 2002, p.15.
[41] Loi de Programmation Militaire de la France 2003-2008 (Chap. 3, «Les fonctions stratégiques»), disponível em www.defense.gouv.fr.
[42] Sigo aqui a explicação de Luís Leitão Tomé no artigo “Novo Recorte Geopolítico Mundial: uma ordem uni-multipolar, uma grande guerra e o jogo de «contenções múltiplas»”. Nação e Defesa. Outono-Inverno 2003, N.º 106-2.ª série, pp.112-13.
[43] Theo Peixoto Scudellari & Victor Tozetto da Veiga, “A proibição do uso da força nas relações internacionais: uma introdução #1”. Cosmopolita, 21 de Outubro de 2020.
[44] O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) é o principal órgão jurisdicional da ONU, criado pelos artigos 92.º a 96.º da Carta das Nações Unidas e composto por 15 juízes independentes eleitos pelo Conselho de Segurança, por recomendação da Assembleia Geral. A verdade é que, embora jurisdicional, o TIJ não tem uma jurisdição obrigatória a nível internacional: só são parte dele os Estados que assim o entenderem e que manifestem vontade para tal. O TIJ tem a sua sede em Haia (Holanda/País Baixo).
[45] Theo Peixoto Scudellari & Victor Tozetto da Veiga, “A proibição do uso da força nas relações internacionais: uma introdução #2”. Cosmopolita, 12 de Novembro de 2020.
[46] Estes números foram fornecidos pelo Office of the High Commissioner for Human Rights (OHCHR) da ONU em 21 de Abril de 2022. O OHCHR salienta que «A maioria das vítimas civis registadas foi causada pela utilização de armas explosivas com uma vasta área de impacto, incluindo o bombardeamento de armas pesadas de artilharia e sistemas de foguetes de lançamento múltiplo, e ataques aéreos e de mísseis» (“Ukraine: civilian casualty update”, OHCH, 21 April 2022).
[47] Estes números foram fornecidos, respectivamente, pelo Alto-Comissário para os Refugiados da ONU [UNHCR na sigla inglesa] (“Ukraine: civilian casualty update”, OHCH, 21 April 2022), e pela Organização Internacional para as Migrações da ONU [IOM, na sigla inglesa] (“7.1 million internally displaced in Ukraine: UN”. Agence France Press/The Guardian, 5 April 2022).
[48] Sobre a ética agatonista, ver a nota 5 na 1.ª parte deste ensaio.
Post-Scriptum. Terminei este artigo em 22 de Abril e estou a escrever
este P.S. no dia 11 de Maio. A sua razão de ser é uma palestra de Scott
Ritter (11 de Abril de 2022), seguida de perguntas e respostas, de que só ontem
tive conhecimento e que pode ser vista aqui [https://www.youtube.com/
watch?v=OdM5Pkyl0_8]. Scott Ritter é um ex-fuzileiro naval, veterano da
guerra do Golfo Pérsico (1990-1991), que foi inspector-chefe de armamento (1991-1998)
da Comissão Especial das Nações Unidas (UNSCOM na sigla inglesa), criada para
garantir que o Iraque cumpria as directrizes relativas à proibição da produção
e uso de armas de destruição maciça após a Guerra do Golfo. Ritter ficou conhecido
pela sua integridade, bem patente na sua desassombrada declaração de Junho de 1999, que lhe valeu ulteriormente muitos
amargos de boca e muitas armadilhas e perseguições legais: «Quando se faz a pergunta, “O Iraque possui armas biológicas
ou químicas militarmente viáveis?” a resposta é “NÃO!” É um retumbante “NÃO”.
Poderá o Iraque produzir hoje armas químicas a uma escala significativa? Não!
Pode o Iraque produzir armas biológicas a uma escala significativa? Não!
Mísseis balísticos? Não! É “não” em toda a linha. Assim, de um ponto de vista
qualitativo, o Iraque foi desarmado. O Iraque não possui hoje nenhuma
capacidade significativa de armas de destruição maciça» (“Interview with
Scott Ritter”, American Federation of Scientists, June 24, 1999 [https://web.archive.org/web/20000425061608/http://www.fas.org/news/iraq/v1999/07/990712-for.htm]). O ponto para que quero chamar a atenção é o seguinte.
Ritter argumenta que Putin pode invocar o artigo 51.º da Carta das Nações
Unidas (legítima defesa colectiva) se
conseguir mostrar que a sua invasão da Ucrânia foi feita a pedido das novas
Repúblicas independentes do Donetsk e Luhansk para as proteger da agressão da Ucrânia. Não estou de acordo com este
argumento, pelas razões que indiquei no corpo principal deste texto [P.S. Agora um ano mais tarde reconheço que era eu, não Scott Ritter que estava errado]. Todavia,
reconheço que é a primeira e a única tentativa inteligente de que tenho
conhecimento, até à data, de justificar a guerra de Putin com argumentos do
direito internacional público. Mas num ponto tenho de dar razão a Rittter neste
particular. É quando ele afirma que foi com um argumento semelhante (proteger o
direito do Kosovo a ser independente) que os EUA e a OTAN desencadearam a sua
“operação militar especial” contra a Sérvia. Com uma diferença muito importante,
sublinha Ritter: os crimes que a OTAN alegou terem sido cometidos pela Sérvia
no Kosovo, eram uma invencionice, ao passo que os crimes que a Ucrânia tem
praticado, desde 2014, nessas suas duas regiões secessionistas são bem reais. Por
estas e outras razões, o vídeo onde Ritter expõe as suas ideias sobre a guerra
na Ucrânia vale a pena ser visto. Ouvirão, possivelmente, coisas com as quais
não estão de acordo e que arremetem contra a narrativa da guerra que nos entra
pela porta adentro às catadupas, mas que não vos deixarão indiferentes e que desafiarão,
espero, a vossa veia crítica. Façam a experiência.