Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

26 junho, 2025

 tema 2

O QUE VIRÁ DEPOIS DO FIM DA AGRESSÃO AMERICANO-SIONISTA AO IRÃO?

 

Uma declaração da “Iniciativa Um só Estado Democrático [*] 

26-06-2025

(Tradução de José Catarino Soares)


Muro que separa Israel da Cisjordânia, mandado construir por Ariel Sharon [1928-2014], primeiro-ministro de Israel de 2001 a 2006.


A agressão americano-sionista ao Irão terminou abruptamente, sem que a colónia [entender: Israel, n.d.t.] atingisse qualquer dos seus objectivos declarados: efectuar uma mudança de regime e acabar com o programa nuclear [do Irão]. O regime iraniano sofreu perdas, mas está longe de ter sido desestabilizado; e embora não se saiba ao certo que danos sofreram as instalações nucleares iranianas, elas ainda lá estão, juntamente com o urânio enriquecido e os conhecimentos científicos necessários para prosseguir com o programa nuclear. A busca de dominação incontestada por parte da colónia falhou até agora, mas a sua sede de dominação não. É por isso que é crucial que os palestinianos e os árabes, bem como os israelitas e o resto do mundo, aprendam com o que aconteceu e transformem esse conhecimento em acções políticas concretas.

OS PALESTINIANOS E OS ÁRABES, PARTICULARMENTE NA REGIÃO AL-SHAM, TÊM DE RECONHECER A NECESSIDADE DE UM PROGRAMA POLÍTICO PRÓPRIO

Temos de compreender que nem a República Islâmica do Irão nem ninguém se apressará a salvar-nos. A República Islâmica, que não se mexeu para impedir o genocídio [em Gaza, n.d.t.], mexeu-se para proteger os seus próprios interesses e depois manteve Gaza fora do acordo de cessar-fogo. É isto que os Estados fazem: procuram zelar pelos seus próprios interesses, não os dos outros. A colónia, o Irão, a Turquia e outros Estados têm programas políticos. Onde está o nosso programa?

Temos de reavivar o nosso programa e regressar à visão histórica de um só Estado palestiniano democrático. Isto não significa esperar que os dirigentes políticos existentes o façam, mas sim criar e aderir a organizações políticas libertadoras e democráticas que desafiem as direcções políticas existentes. Em Gaza, estas organizações desempenhariam um papel no “dia seguinte[à desocupação por Israel, n.d.t.]. Na Cisjordânia, trabalhariam para prevenir a próxima destruição étnica, talvez em linha com o documento “Palestinianos, previnam-se contra a ameaça de uma próxima Nakba!”. Na Palestina de 1948, teriam encontrado formas de desempenhar um papel fora da estrutura sionista.

Na diáspora, estas organizações desenvolveriam a capacidade política, mediática e organizacional para desafiar a hegemonia cultural sionista e participar em movimentos descolonizadores locais. E nos países vizinhos não estatais [entender: não soberanos, n.d.t.], como o Líbano, a Síria ou a Jordânia, é necessário juntar movimentos com um programa político para o estabelecimento de Estados que rompam com os actuais modelos identitários e coordenem esforços contra a normalização.

OS ISRAELITAS TÊM DE COMPREENDER QUE O SIONISMO FALHOU

A sua afirmação de que só abandonando as suas sociedades de origem e criando uma nova sociedade, “etnicamente pura”, com um Estado exclusivamente para eles, é que os judeus podem estar seguros, provou ser falsa. Não só o exército de ocupação israelita não conseguiu subjugar a resistência palestiniana numa pequena área sitiada, como também não conseguiu manter a população israelita a salvo dos mísseis iranianos e infligir quaisquer danos duradouros ao Irão.


Uma imagem com ar livre, céu, edifício, viagem

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Uma bandeira de Israel assinala a área onde foram construídas novas casas de um colonato israelita ilegal na Cisjordânia. 25/10/2021.Fonte: AP -Ariel


Que outra reacção se poderia esperar da colonização, do apartheid e do genocídio perpetrado pelos colonos [israelitas] na Palestina e na região? Serão os edifícios destruídos em toda a colónia a segurança que o sionismo prometeu? A dependência total do apoio dos Estados Unidos é a “auto-determinação judaica”? O que acontecerá quando, por qualquer razão, um governo americano decidir deixar de apoiar a colónia?


Muro que separa a Faixa de Gaza de Israel, mandado construir, em 2023, por Benjamim Netanyahu, actual primeiro-ministro de Israel


É tempo de os israelitas abandonarem o sionismo. Alguns estão a optar por deixar a Palestina neste momento, enquanto outros estão a optar por trabalhar com os palestinianos para desmantelar o Estado dos colonos e estabelecer a sua antítese: um só Estado palestiniano democrático onde os habitantes de todas as identidades [étnicas e religiosas, n.d.t.] possam viver juntos como faziam antes do sionismo. Quantos mais o fizerem e quanto mais cedo o fizerem, mais perto estaremos todos da verdadeira segurança — segurança baseada na descolonização, na justiça e na dignidade e não na opressão.

O RESTO DO MUNDO TEM DE COMPREENDER QUE A COLÓNIA É UM AMEAÇA PARA O MUNDO INTEIRO

 Não está apenas a cometer genocídio na Palestina e a destruir países vizinhos. Iniciou uma campanha de bombardeamento do Irão, que fica a 1.500 km de distância, sem ser provocada. Chegou mesmo a visar aliados, cortando o fornecimento de gás à Jordânia, e vozes sionistas pronunciaram-se recentemente a favor de acções militares contra o Egipto, o Paquistão, o Qatar e a Turquia.

O que impedirá a colónia de atacar Chipre, a Grécia ou outros países se sentir que estes representam uma ameaça para si, talvez até alargando o seu âmbito de agressão se se tornar mais forte nos próximos anos? O que acontecerá se recorrer à “opção Sansão” e utilizar as suas armas nucleares de forma preventiva caso se sinta ameaçada por uma ameaça militar convencional? Poderá o mundo dar-se ao luxo de tolerar a existência de um Estado tão desonesto?

As últimas semanas, anos e décadas mostraram que a colónia é uma ameaça para todos na Palestina, na região de Al-Sham e no mundo. A “Iniciativa Um Só Estado Democrático” apela a todos para irem além dos meios de protesto a que temos recorrido até agora e para se juntarem a organizações políticas que se unam em torno de uma visão que seja a antítese do projecto sionista: Uma visão de um só Estado democrático, do rio [Jordão] ao mar [Mediterrâneo], e de uma verdadeira democracia para além do rio e do mar.

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[*]Fonte: https://mobadara.ps/en/statements/what-comes-after-the-end-of-the-us-zionist-aggression-on-iran/

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[n.d.t.= nota do tradutor]

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Anexo. O comentário de Joaquim Camacho (ver mais abaixo) vinha acompanhado dos seguintes fotogramas, que não são inseríveis no espaço dos comentários. A solução foi inseri-los aqui (J.C.S).







16 junho, 2025

 Temas 1, 2, 3

Indulgências para pecados imaginários, remorsos fictícios e ressentimentos melífluos

no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

José Catarino Soares

 

Na cidade algarvia de Lagos, a convite do Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, a romancista e conselheira de Estado Lídia Jorge proferiu um longo discurso no dia 10 de Junho [de 2025] — “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”.

Lídia Jorge discursando em Lagos, no dia 10 de Junho de 2025


O seu discurso pode ser lido na íntegra aqui:  https://visao.pt/atualidade/ politica/2025-06-10-o-discurso-de-lidia-jorge-na-integra-a-mensagem-do-10-de-junho-que-sera-recordada/.

1. A primeira parte do discurso de Lídia Jorge

Até sensivelmente à primeira metade do seu discurso (de 15 páginas), a oradora vai discorrendo sobre Camões e sobre o tempo que ao poeta coube em sorte viver.

Uma imagem com desenho, Cara humana, quadro, homem

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Retrato de Luís Vaz de Camões (1577) por Fernão Gomes


A dado passo, porém, Lídia Jorge formula a seguinte tese: tal como Portugal entrou num novo e sombrio ciclo na sequência do desastre que representou a batalha de Alcácer Quibir (1578) e que Camões assinalou numa das últimas estrofes do Canto X de Os Lusíadas, também o mundo contemporâneo entrou num novo e sombrio ciclo.

«O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque [de pôr ao pescoço, n.e.]

E os cidadãos são apenas público, que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global. Porque nós, agora, somos outros».

E como escolheu a oradora desenvolver esta interessante tese? Recuando no tempo, até a um dia de calor tórrido em Agosto 1444, quando desembarcaram em Lagos 235 indivíduos raptados e escravizados nas costas da Mauritânia e como foram repartidos pelos seus proprietários escravistas (um deles o infante D. Henrique).

Lagos. Núcleo Museológico Rota da Escravatura, inaugurado em 2005, e instalado no antigo edifício da Vedoria, edificado no século XVII, e que desempenhou também as funções de Alfândega, Casa da Guarda e Prisão Militar. Este edifício foi construído perto do rossio onde, em 1444, se fez venda dos primeiros escravos chegados a Lagos, referenciado como Terreiro da Porta da Vila (medieval) nas fontes coevas.


Não consigo imaginar uma maneira mais abstrusa de desenvolver a tese de que um novo tempo está a acontecer à escala global. Mas o defeito poderá ser meu, que não entendo o alcance nem a pertinência do paralelismo com o que sucedeu em Lagos em 1444.

2. A segunda parte do discurso de Lídia Jorge

Seja como for, é a partir desse momento do seu discurso que Lídia Jorge se permite fazer toda uma série de entorses a factos da história de Portugal e da humanidade para sustentar um postulado (P) muito curioso [1], mas já enunciado frequentemente noutros fóruns nos últimos anos [2]: a de que

(P) ― os portugueses contemporâneos têm de expiar colectivamente os “pecados” (reais e imaginários), incluindo os crimes mais nefandos, cometidos pelos seus antepassados, para ganharem o reino dos céus na Terra.

Segundo a artista portuguesa Graça Quilomba, a residir em Berlim, a maneira de pôr em prática este postulado consiste em transformá-lo num processo,

«um processo psicológico que passa de negação a culpa, de culpa a vergonha, de vergonha a reconhecimento e de reconhecimento a reparação. Quando estou em Portugal sinto que estamos completamente na negação» [3].

Não preciso de analisar o modo como Lídia Jorge articula uma variante deste postulado na segunda parte do seu discurso, porque o historiador (e também romancista) João Pedro Marques já o fez com a sua habitual competência, sobriedade e clareza, num texto intitulado Considerações sobre um discurso de Lídia Jorge, publicado no seu blogue, Céu Enganador.

O texto de João Pedro Marques que pode ser lido aqui [https://ceuenganador.webnode.pt/] é uma breve mas incisiva lição de história contra a ignorância atrevida sobre os Descobrimentos portugueses e o tráfico transatlântico de escravos do século XVI a meados do século XIX.

E é também uma crítica acutilante da autoflagelação identitária que faz do remorso, da mágoa e do ressentimento por pecados imaginários como, por exemplo, o “pecado dos Descobrimentos” (?!) referido por Lídia Jorge os elementos progressistas (!!) indispensáveis da nova e redentora (!!) narrativa identitária do Portugal do século XXI.

[P.S. 10-08-2025: Acrescento agora o excelente texto de António Guerreiro, intitulado A Metáfora do Sangue, de que não tinha conhecimento à época e que pode ser lido aqui:https://www.publico.pt/2025/06/20/culturaipsilon/cronica/metafora-sangue-2136897

O que eu me proponho fazer no resto deste artigo é prolongar a reflexão [destes dois autores] noutras direcções.

Regressemos, então, ao postulado P.

3.   O comércio das indulgências e os seus questores

Esse postulado é reminiscente do dos “perdoadores” profissionais, os questores de indulgências envolvidos, outrora (séculos XIII-XVI), no comércio das indulgências da Santa Sé.  

Os questores (Lat. quaestores) eram representantes de vários escalões da hierarquia da Igreja Católica Apostólica Romana, frequentemente membros de ordens religiosas, que eram enviados para arrecadar fundos para a Igreja Católica, geralmente em troca de indulgências. As indulgências, nesse contexto, eram remissões de penas temporais por pecados já perdoados, oferecidas em troca de doações financeiras.

4. O comércio das indulgências em versão woke

O comércio das indulgências não desapareceu nos desvãos da história. Mudou de promotores, de questores e de clientelas.

O caso mais notável é o do movimento activista woke [4], cujas bandeiras ideológicas foram explicitamente integradas nas práticas e nos comportamentos dos gestores empresariais de topo e dos gestores políticos de topo que têm vindo a pilotar o processo de globalização transnacional nos últimos 30 anos.

«As grandes empresas tecnológicas e muitas outras empresas proeminentes têm apoiado os direitos LGBTQ+, apesar do risco de alienarem os seus accionistas conservadores. Porque é que o fazem? De que forma é que ser amigo das pessoas LGBTQ+ beneficia as empresas? No seu estudo, Veda Fatmy, John Kihn, Jukka Sihvonen e Sami Vähämaa concluíram que as políticas empresariais favoráveis à comunidade LGBTQ+ têm um impacto positivo na avaliação do mercado de acções e no desempenho financeiro das empresas» [5].

Por outras palavras, uma das chaves do êxito do movimento woke consistiu  na sua capacidade de mostrar aos gestores de topo das grandes empresas e aos gestores de topo das instituições estatais (incluindo as que têm o monopólio legal do uso das armas de guerra e o monopólio legal do uso da violência repressiva contra cidadãos nacionais e estrangeiros) o muito que podem ganhar se actuarem como beneméritos concessores de direitos LGBTQ+, émulos, no estádio zero da religião (ver nota [8])dos questores do outrora próspero comércio das indulgências.

Um exemplo dessa actuação é a comemoração pela CIA do Mês do ORGULHO GAY e LÉSBICO [Ingl. “Gay and Lesbian Pride Month”] que começou a ser comemorado, a partir de 1999, em Junho, por força da Proclamação 7203 do presidente Bill Clinton, e que evoluiu, com o passar dos anos, para o Mês do ORGULHO LGBTQ+.

«Este mês [Junho de 2023, o mês do Orgulho LGBTQ+], estamos orgulhosos não só dos agentes homossexuais que nos ajudaram a dar golpes de Estado e a assassinar chefes de Estado, mas também dos agentes homossexuais que nos ajudaram a fomentar a dissidência e a fazer com que os golpes de Estado parecessem descontentamento orgânico em sociedades com regimes que nos desagradam» (Jessica Burbank, agente da CIA, no X, 7 de Junho de 2023).

Uma imagem com texto, captura de ecrã, Tipo de letra

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5. Reciclagem do comércio das indulgências

O movimento woke é originário dos EUA. Mas bem depressa saltou fronteiras e chegou a outros países dos dois lados do Atlântico incluindo o Canadá, o Brasil, o Reino Unido, a França (muito fortemente em todos eles) e até Portugal (muito fracamente, mas com tendência a crescer) além de muitos países que foram, outrora, possessões ultramarinas do Reino Unido, da França, de Portugal, das Terras Baixas (Holanda), da Bélgica, da Espanha e da Alemanha, com especial destaque para os países da Comunidade do Caribe (Caricom).  

Nesse movimento migratório, o comércio das indulgências foi reciclado e posto de novo a circular sob um novo nome:  reparações. O movimento woke exige reparações monetárias (a indivíduos, comunidades e governos de 30 países), no valor de 107,8 biliões de dólares americanos, a pagar por 10 países (incluindo Portugal, que teria de pagar 20,6 biliões de dólares [=18 biliões de euros], números redondos),[6] além de reparações não monetárias (como, por exemplo, o cancelamento de dívidas de Estados) e materiais (como, por exemplo, a devolução de peças museológicas, artefactos e restos mortais). E exige também uma mudança na narrativa de factos passados e da memória colectiva.

Que factos passados? Apenas os factos passados dos últimos 500 anos e apenas os factos passados relativos aos africanos de pele muito escura e de cabelo encarapinhado — os “negros” na terminologia woke.              

Mas as reparações são a outra face, a face mais visível, de um objectivo impregnado de um elemento fortíssimo de niilismo: o objectivo de corrigir o passado. Os questores das reparações querem fazer justiça, olhando para o passado dos africanos “negros” nos últimos 500 anos com os olhos do presente (isto é, com os conceitos e com os juízos morais do presente, incluindo, em lugar proeminente, os do movimento woke), corrigindo com os olhos do presente aquilo que está mal no passado.   

E é aqui que a porca torce o rabo.                                                                  

«A história foi feita pelos homens que viveram cada momento e que avaliaram os problemas da sua época com os seus conceitos, com os seus valores, com a sua capacidade de intervenção. É possível, aceitável, corrigir coisas recentes. Agora, tentar corrigir coisas que aconteceram há 400, 500 anos, e que eram consideradas aceitáveis na altura é uma coisa completamente absurda. E o movimento woke é isso que quer. Neste caso concreto da escravatura, quer reparações pagas pelos brancos [*] – e apenas pelos brancos [*], esquecendo que o tráfico transatlântico de escravos foi um negócio com duas partes, os europeus de um lado e os potentados africanos do outro lado…Foi um negócio lucrativo para ambas as partes. E por isso os africanos não queriam largá-lo, tiveram de ser forçados muitas vezes manu militari, com navios de guerra, porque para eles era lucrativo.

O movimento woke considera que a culpa é exclusiva dos brancos [*], ignorando esse aspecto que referi e ignorando outra coisa igualmente importante: é que a escravidão e o comércio de escravos a larga distância já existiam em África antes de os brancos [*] lá chegarem. África já vendia escravos para o mundo muçulmano desde o séc. VII/VIII d.C. Quando os portugueses lá chegam, no século XV, já África tinha vendido mais de cinco milhões de escravos negros para o mundo muçulmano. Os woke ignoram isso tudo e querem que os brancos [*] assumam a responsabilidade exclusiva. E querem que paguem indemnizações fortíssimas. Os woke julgam-se Deus, julgam ter poderes de justiça divina, julgam ter capacidade para recompensar os justos e castigar os pecadores» [7].

[*] Apenas um reparo. “Brancos”, aqui, não é a palavra certa, porque os próceres do movimento woke não se interessam minimamente pelas responsabilidades na escravidão e no comércio de escravos “negros” que cabem aos árabes e berberes. Ora, estes são, na sua grande maioria, “brancos”. Para o movimento woke a culpa da escravidão e do comércio de escravos “negros” de longa distância é exclusivamente dos europeus brancos” (ou dos seus descendentes norte-americanos e sul-americanos). Os “brancos” não-europeus estão isentos de culpa, assim como os europeus “não-brancos”.

Uma imagem com mapa, texto

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Mapa das rotas do tráfico transatlântico de escravos africanos “negros” nos séculos XVI -XVIII. Fonte: Caricom


6. Uma conjectura sociológica

Regressando ao que ficou dito na nota [1], coloco-me a questão de saber se a má-consciência individual e o remorso postiço suscitados pelo discurso da alegada culpabilidade colectiva dos portugueses contemporâneos pelo tráfico atlântico e transatlântico de escravos africanos de meados do século XV a meados do século XIX, poderão ter uma explicação sociológica e não apenas psicológica.

Isto porque parece óbvio que nem todas as classes e camadas sociais são igualmente permeáveis a um discurso tão abertamente contra-intuitivo e falacioso — «pois então, se não foste tu, foi o teu pai! [ou foi o teu avô, ou o teu bisavô, ou o teu trisavô, ou o teu tetravô], o que no fim de contas vem a dar no mesmo».

Nesse sentido, conjecturo que o impacto emocional e ideológico que esse tipo de discurso culpabilizador poderá produzir no grande público seja especialmente apelativo naqueles sectores dos meso-assalariados CCS em processo acelerado de desreligionização (entender: de domiciliação no estádio zombi da religião cristã [8]).

O termo meso-assalariados CCS [um neologismo construído a partir de meso- (do Gr. mésos), elemento formador de palavras que exprime a ideia de algo que está num posição “central”, “média”, “intermédia” entre duas coisas, + assalariados, e onde CCS = com cursos superiores] deve entender-se, neste contexto, como denominação genérica de uma classe de assalariados diplomados do ensino superior (politécnico e universitário) e constituída quer por (i) gestores, supervisores, assessores, consultores, formadores, provedores, auditores jurídicos, curadores, técnicos, tecnólogos que trabalham nos escalões intermédios de empresas privadas, empresas públicas e na administração pública (central, regional e local), quer  por (ii) todos aqueles, nos órgãos do poder político (executivo, legislativo e judiciário), a quem é delegado poder político para assegurarem a reprodução social do sistema constitucional vigente (notários, oficiais de justiça, magistrados do ministério público, juízes, autarcas, deputados, governantes).

Convém salientar, a este propósito, que  os meso-assalariados CCS (que outros autores apelidam de “nova classe média” ou “nova pequena-burguesia”, termos que me parecem ambos inadequados) é a classe social ideologicamente mais instável e volúvel de todas em virtude das duas funções antagónicas que os seus membros exercem [a função de supervisão, vigilância e controlo dos processos de trabalho, que a vincula ao capital, e a função de coordenação e unidade dos processos de trabalho, que a vincula ao trabalhador colectivo] no processo de produção e apropriação dos bens e serviços (Guglielmo Carchedi, Frontiers of Political Economy. Verso, 1991).

É nesta duplicidade antagónica das funções laborais exercidas pelos meso-assalariados CCS, combinada com a ansiedade e desorientação cultural decorrentes do estádio zombi da religião, que vejo a brecha por onde se insinuam com êxito os sentimentos de culpabilidade vergonhosa pelo passado histórico instilados pelos novos questores de indulgências.

Naturalmente, será necessário desenvolver um projecto de investigação empírica para testar esta conjectura. Talvez haja algum(a) doutorando/a em ciências sociais que se atreva a pegar nesta sugestão.

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Notas e Referências

[1] É inegável que este tipo de mensagem tem um impacto emocional e ideológico muito forte junto de certos sectores do público, ao criar artificialmente um sentimento de má-consciência culposa. O historiador João Pedro Marques relatou, por exemplo, num dos seus artigos, o que ocorreu no Reino Unido, o país onde esse impacto é mais forte:

«Há várias entidades e cidadãos(ãs) britânicos(as) a pôr a corda ao pescoço, a vestir o hábito de penitente e a ceder jubilosamente a essa pressão e chantagem. Em Fevereiro de 2023, uma conhecida pivô e jornalista da BBC, tornou público que iria doar 100 mil libras para projectos comunitários na ilha de Granada como forma de reparação pela ligação de remotos familiares seus à escravatura e a plantações de cana-de-açúcar na ilha. E fez mais: abandonou a BBC para dedicar o seu tempo a campanhas públicas em favor de reparações pela escravatura. No seguimento da sua decisão, mais de 100 famílias britânicas com antepassados envolvidos no sistema escravista comprometeram-se publicamente a disponibilizar importantes quantias como forma de se purgarem desse pecado e de ajudarem as antigas colónias britânicas nas Caraíbas» (“Pela porta das traseiras”. Céu Enganador, 28-12-2023) E em Portugal também temos casos desses, como, por exemplo, o de Catarina Demony, uma jornalista portuguesa, correspondente da agência global de notícias Reuters, co-autora do filme Debaixo do Tapete, estreado em 2023 (v. João Pedro Marques, “A redenção de Catarina Demony”, Céu Enganador, 1-08.2024) e o de Alfredo de Sousa, co-fundador dos Celeste/ Mariposa, grupo DJ e editora de música (Joana Gorjão Henriques, «Há muito mais famílias que tiveram escravos.” Mas não se fala disso». Público, 23 de Setembro de 2017).

[2] Por exemplo, a que encontramos na “Declaração do Porto: reparar o irreparável”, de 7 de Julho 2023 (in Buala,

 https://www.buala.org/pt/mukanda/declaracao-do-porto-reparar-o-irreparavel).

[3] In Rui Braga, “Justiça racial e colonialismo em Portugal: da negação à reparação”. Open Democracy, 31 de Agosto 2020. Imagine-se o que significaria a generalização deste piedoso mandamento a todas as épocas e a todos os povos-nações do planeta, começando pelos Ingleses, os Alemães e os Americanos! João Pedro Marques trata o assunto no que se refere tão somente à chamadas reparações (uma variante contemporânea [e pós-zombi para os seus questores] do comércio de indulgências) pela escravatura transatlântica em muitos dos seus artigos no Céu Enganador. Ver, por exemplo, “A conta já chegou. São 20 biliões de dólares”,25-09-2023 “Reparações? O abuso de uma velha ideia”.17-02-2025¸ “Reparações: do pressuposto falso à ideia absurda”, “Reparações? O abuso de uma velha ideia”, 17-02-2025; “Tráfico de escravos: má ou boa consciência”, 08-05-2024; “Reparações nunca! Seriam um nó cego”, 16-12-2024; “Repitam comigo: o tráfico foi uma parceria”, 22-05-2024.  

[4] Pelo termo woke (Ingl. literalmente, “acordei[pretérito perfeito simples <past simple> do verbo wake]; em gíria norte-americana, “estar desperto e alerta para as injustiças e as segregações sociais”) deve entender-se, neste contexto, um movimento activista com três componentes interligadas: 1) constelação de direitos LGBTQ+; 2) teoria crítica da raça; 3) cultura do apagamento-censura-e-destruição [Ingl. cancel culture]. A terceira componente é uma componente niilista. [Niilismo: (do latim nihil: nada) designa uma concepção em que tudo o que existe (coisas, factos, valores, princípios, teorias, mundo) é ou pode ser negado e reduzido a nada por um acto de vontade; em que há uma necessidade de criar o vazio]. A primeira componente possui também um forte elemento niilista, representado pela letra T [= transexual] da sigla LGBTQ+, porque é evidentemente impossível, biologicamente, um homem transformar-se (ou ser transformado) em mulher ou uma mulher transformar-se (ou ser transformada) em homem. Por conseguinte, não existem nem podem existir pessoas “transsexuais” e qualificar de “transgéneros” as pessoas que negam essa impossibilidade e afirmam ter mudado de sexo não altera esse facto. As demais facetas do movimento woke (luta contra a desigualdade de direitos e a segregação no acesso ao emprego, à educação escolar, à saúde e à habitação com base no sexo, na escolha dos parceiros sexuais e nas características fenotípicas aparentes dos indivíduos impropriamente apelidadas de “raça”) têm um teor benévolo, positivo, nos seus intuitos. Mas também elas padecem de algo semelhante, no plano intelectual, ao “ouvido vertiginoso” pelo contacto permanente em que se encontram com as facetas ideológicas niilistas. A este propósito ver, por exemplo, White Fragility: Why It’s So Hard for White People to Talk About Racism (2018, Beacon Press), de Robin DiAngelo, vs Woke Racism: How a New Religion Has Betrayed Black People (2021, Portfolio), de John McWhorter, ou, em Português, Uma gota de sangue: história do pensamento racial (2009, Contexto), de Demétrio Magnoli.

[5] Veda Fatmy, John Kihn, Jukka Sihvonen. Sami Vähäma, “Why do corporations embrace the LGBTQ+ cause? LSE Business Review, February 23, 2023.

[6] Estes números são os do relatório, Quantification of Reparation for Transatlantic Chattel Slavery, Brattle, June 8, 2022.

[7] Entrevista a João Pedro Marques, “No movimento woke há sentimento de culpa, ingenuidade e fanatismo”. Sol, 20 de Março de 2024.

[8] Emprego aqui “zombi no sentido que lhe deu Emmanuel Todd na sua teoria dos três estádios da religião monoteísta, quer do cristianismo (católico, ortodoxo e protestante), quer do judaísmo e do islamismo: 1) um estádio activo da religião, no qual as pessoas são crentes e praticantes; 2) um estádio zombi da religião, na qual as pessoas já não são crentes e praticantes, mas conservam nos seus hábitos sociais, valores e comportamentos herdados da religião activa precedente, sem terem consciência disso; 3) um estádio zero da religião, no qual os hábitos sociais, valores e comportamentos herdados da religião desapareceram. Conjecturo que neste último caso o espaço ideológico deixado vago pela religião seja, amiúde (mas não necessariamente, bem entendido), ocupado por crenças e doutrinas niilistas entenda-se, baseadas num imperativo de apagamento-censura-e-destruição de monumentos, memórias, livros, factos, pessoas e da própria realidade, de criação do vazio.

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Post-Scriptum. 22-06-2025

Quem leia só os comentários de Albarda-mos e Whale Project (no blogue Estátua de Sal, que fez uma chamada de atenção para este meu artigo) ficará com a ideia de que artigo que escrevi é sobre o racismo, ou sobre a escravidão e a escravatura desde os primórdios da civilização, ou sobre a ascensão da extrema-direita. Mas quem tenha lido o artigo sabe que não é o caso. O artigo é sobre alguns argumentos falaciosos desenvolvidos por Lídia Jorge no seu discurso em 10 de Junho de 2025 sobre um alegado “remorso” dos portugueses contemporâneos pel’ “o pecado dos Descobrimentos”.

Mais abrangente e especificamente, o artigo é sobre os argumentos falaciosos desenvolvidos pelo movimento woke (v. nota [4]) para justificar a bondade dos 107,8 biliões de dólares americanos (93,5 biliões de euros) que 31 Estados (caribenhos, norte-, centro- e sul-americanos, mas curiosamente, nenhum africano) teriam o direito de exigir a 10 Estados (incluindo Portugal, que teria de pagar 20,6 biliões de dólares [=18 biliões de euros], números redondos), a título de reparações compensatórias pelo tráfico transatlântico de escravos entre 1502 e 1888.

Albarda-mos diz que «não compreende a alusão aos muçulmanos para enquadrar o esclavagismo externo dos africanos, pois antes sequer do Islão existir, os pagãos romanos /…/ já lá iam [a África] importar escravos». Pois é muito fácil de compreender se se der ao trabalho de ler o discurso de Lídia Jorge em 10 de Junho último e estudar as obras dos historiadores da escravatura em Portugal — por exemplo, as obras do professor João Pedro Marques («Os sons do silêncio: O Portugal de Oitocentos e a Abolição dos Escravos [1999]». Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa; «Portugal e a escravatura dos Africanos [2004]». Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa.; «Sá da Bandeira e o Fim da Escravidão: vitória da moral, desforra do interesse [2008]». Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa; «Escravatura — perguntas e respostas [2017]». Guerra e Paz Editores. Lisboa).

Lídia Jorge afirmou no seu discurso:

«Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso, por aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com pólos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX. Lagos expõe a memória desse remorso».

A afirmação é falsa. Não foram os portugueses que inauguraram “o tráfico negreiro intercontinental em larga escala”. Quando os navegadores portugueses passaram o Cabo Bojador e chegaram às costas da Senegâmbia, já os traficantes muçulmanos de escravos haviam comprado e transportado para o mundo árabe 5,7 milhões de pessoas “negras”. Lembremos que, em meados do século VII d.C., o Islão árabe se propagou pelo norte da África a partir do Egipto, atravessando o deserto do Saara e alcançando toda a região do Magrebe. Nesse processo, os berberes foram islamizados e arabizados. No início do século VIII, os berberes, convertidos ao Islão, participaram da invasão da Península Ibérica, onde foram apelidados de “mouros” pelos cristãos.

A objecção de Albarda-mos segundo a qual antes do Islão existir já os romanos antigos capturavam escravos em África não é pertinente neste contexto. Os escravos de Roma eram capturados por toda a Europa e na região do Mediterrâneo, incluindo povos celtas, germânicos, trácios, eslavos, cartagineses — enfim, gente que na terminologia woke é qualificada de “branca” e, por conseguinte, sem interesse como vítimas da escravatura susceptíveis de serem arroladas pelo Brattle Group para fins de reparação compensatória aos seus putativos descendentes. Da época de Diocleciano (284-305 d.C.) até à conquista árabe do Egipto, só um pequeno número de escravos da Roma antiga (cerca de um oitavo) vinha de fora destas regiões, incluindo alguns da África “negra”, subsaariana, via Egipto e Mauritânia (William L. Westermann, «The Slave Systems of Greek and Roman Antiquity». Philadelphia: Memoirs of the American Philosophical Society. 1955). Nada que se compare com o tráfico de escravos africanos em larga escala que os traficantes árabes e berberes organizaram a partir do século VII e que CONTINUAVA MUITO ACTIVO quando os navegadores portugueses de outrora chegaram a África.

Albarda-mos acha que estes factos «não servem de grande álibi». Álibi para quem? Ele não o diz. Mas só poderá ser, digo eu, para quem tem interesse em esconder bem escondido dois factos: 1) que o tráfico intercontinental de escravos africanos “negros” não começou com os Descobrimentos portugueses, e 2) que «o tráfico transatlântico de escravos ter sido, quase desde o seu início, uma parceria Luso-Africana (e, depois, “Euro-Africana)» (João Pedro Marques. “Repitam comigo: o tráfico [de escravos] foi uma parceria”. In Céu Enganador, 22-05-2024). Ou seja, foi um hediondo negócio que resultou da conjugação dos interesses dos navegadores, comerciantes e povoadores portugueses (e, depois, ingleses, holandeses, americanos, brasileiros, etc.) com os interesses dos escravistas africanos e potentados “negros” da África subsaariana. A natureza e o alcance desta parceria escravista foram estabelecidos com grande e minucioso acervo de provas pelo historiador John Thornton, num livro publicado em 1998 e que ficou justamente célebre: «Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680». Cambridge University Press.

«Mas se os poderosos da Europa controlavam o comércio dos mares, em África não podiam dominar nem a costa nem a navegação costeira e, nas Américas, as regiões dominadas estavam rodeadas de povos hostis e, por vezes, agressivos. Assim, o papel dos [potentados] africanos no desenvolvimento do Atlântico não seria simplesmente secundário, em qualquer dos lados do Atlântico. Em África, são os [potentados] africanos que determinam o seu papel comercial e, na América, foram muitas vezes o grupo mais importante entre os primeiros colonos. Mesmo quando não desempenhavam um papel político especial, podiam frequentemente tirar partido da incompletude do domínio europeu. /…/ Não houve conquistas europeias dramáticas em África, e mesmo os escravos que inundaram o Atlântico Sul e sustentaram a colonização na América foram mais frequentemente comprados do que capturados. Este estado de coisas já estava a ser posto em prática pelas expedições de Diogo Gomes em 1456-62 e caracterizaria as relações entre europeus e africanos nos séculos vindouros» (Thornton, pp. 42-43).

Esta verdade sobre a natureza desta parceria não é apenas incómoda: é também, em bom rigor, intolerável para os actuais questores de indulgências (o Brattle Group) ao serviço dos promotores das reparações monetárias pelo tráfico transatlântico de escravos africanos dos séculos XV-XIX. Porquê? Porque (i) arrasa a tese woke de que os escravistas e os traficantes de escravos africanos do século XV em diante eram exclusivamente europeus (juntamente com os seus descendentes norte-, centro- e sul-americanos) e porque (ii) o Brattle Group teria de refazer todos os cálculos das reparações compensatórias e encontrar os descendentes dos escravistas e traficantes africanos de escravos a quem também caberia exigi-las, de acordo com a sua lógica. Só que, desta vez, eles teriam de ser procurados não só na Europa e nas Américas, mas também em África, nos próprios territórios onde eram capturados e/ou vendidos em primeira mão os escravos africanos. Grande berbicacho para o Brattle Group (!), imagino.  

Quanto à objecção de Albarda-mos, estamos, portanto, conversados: não tem pernas para andar. Mas isso não impede o seu autor de achar que ela lhe permite afirmar que o meu artigo é «particularmente fraco devido à sua estrutura cronológica mal urdida e aos raciocínios deturpados por essas deturpações históricas e culturais». Está no seu direito e eu estou no meu em retribuir-lhe a mesma avaliação relativamente ao seu comentário, deixando aos leitores a tarefa de pronunciarem o veredicto sobre quem a merece.  

Passemos agora, para finalizar este P.S. que já vai longo (mas que espero que não seja maçador), ao Whale Project. Este leitor-comentador diz recusar «qualquer discurso desculpabilizante» [dos portugueses e outros europeus traficantes de escravos, presumo] com o argumento de que «muita gente fez o mesmo [que eles]. Quem esquece o passado está condenado a repeti-lo». Certo.

Mas, então, temos também de recusar qualquer discurso desculpabilizante dos africanos subsaarianos traficantes de escravos africanos subsaarianos com o argumento de que muitos portugueses e outros europeus fizeram igual ou pior. Temos de recusar ter dois pesos e duas medidas. Temos de tratar todos os traficantes de escravos africanos --- sejam eles traficantes africanos magrebinos [árabes e berberes], traficantes europeus, traficantes [norte-, centro- e sul-] americanos, traficantes caribenhos ou traficantes africanos subsaarianos --- com a mesma bitola. E temos de relembrar, as vezes que foram necessárias, que, para acabar com o tráfico de escravos africanos, no século XIX, foi necessário agir não só contra os traficantes europeus e descendentes de europeus (portugueses, ingleses, holandeses, americanos, brasileiros, etc.), mas também contra os negreiros africanos e os potentados “negros” que não queriam terminar aquele negócio tão lucrativo.

Por último, mas não menos importante nos dias que correm, temos de repudiar o conto do vigário das alegadas reparações monetárias às vítimas desse negócio tenebroso, pela razões apontadas no artigo Indulgências para pecados imaginários, remorsos fictícios e ressentimentos melífluos no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste P.S. e no comentário que fiz no blogue Estátua de Sal (reproduzido mais abaixo).

Saúde! Saravá!

07 junho, 2025

 

A guerra onde os corpos das mulheres 

perderam os seus direitos

Mariam Khateeb [*]

 

(In Mondoweiss, 19 de Maio de 2025. Tradução de José Catarino Soares)

 

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A guerra em Gaza não é apenas a história de escombros e ataques aéreos. É a história da rapariga que fica com o período sob bombardeamentos, da mãe que sangra em silêncio e aborta em pisos frios ou que dá à luz sob drones.

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Um bebé palestiniano recém-nascido sob as bombas israelitas na faixa de Gaza, Palestina.Foto: Mondoweiss. 


Em Outubro, sangrei durante dez dias sem ter acesso a uma casa de banho em condições.

A casa para onde fugimos ‒ como a maioria dos abrigos em Gaza ‒ não tinha privacidade. Quarenta pessoas dormiam em dois quartos. A casa de banho não tinha porta, apenas uma cortina rasgada. Lembro-me de esperar que todos dormissem para me poder limpar com uma garrafa de água e restos de pano. Lembro-me de rezar para não manchar o colchão que partilhava com três primos. Lembro-me da vergonha — não do meu corpo, mas de ser incapaz de cuidar dele.

Na guerra, o corpo perde os seus direitos, especialmente o corpo feminino.

Os títulos dos jornais raramente falam disto, do que significa para uma rapariga ter o período [menstrual, n.d.t.] sob bombardeamentos, de mães forçadas a sangrar em silêncio e a abortar em pisos frios ou a dar à luz sob drones. A guerra em Gaza não é apenas uma história de escombros e ataques aéreos. É uma história de corpos interrompidos, invadidos e sem descanso. E, no entanto, de alguma forma, esses corpos continuam. [n.d.t.= nota do tradutor]

Como mulher palestiniana e estudante deslocada que vive agora no Egipto, carrego comigo esta memória corporal. Não como uma metáfora, mas como um facto. O meu corpo ainda se retrai perante ruídos fortes. A minha digestão vacila. O meu sono vem em fragmentos. Conheço muitas mulheres ‒ amigas, familiares, vizinhas que desenvolveram doenças crónicas durante a guerra, que perderam a menstruação durante meses, cujos seios secaram quando tentavam amamentar nos abrigos. A guerra entra no corpo como uma doença e fica.

O corpo de Gaza é um mapa de interrupções. Aprende cedo a contrair-se — a ocupar menos espaço, a manter-se alerta, a suprimir o desejo, a fome, a hemorragia. A natureza pública da deslocação destrói a privacidade, enquanto o medo constante corrói o sistema nervoso. As mulheres que antes preservavam o seu pudor, mudam de roupa à frente de estranhos. As raparigas deixam de falar dos seus ciclos [menstruais, n.d.t.]. A dignidade torna-se um fardo que ninguém pode suportar.

É este o paradoxo da sobrevivência: o mesmo corpo a que é negada a segurança torna-se o instrumento de resistência. As mulheres cozinham lentilhas à luz das velas, acalmam as crianças nas caves, embalam os moribundos. Estes actos não são passivos; são radicais. Menstruar, carregar, alimentar, acalmar no meio da destruição é insistir na vida.

Volto, uma e outra vez, à imagem da minha mãe durante a guerra. As costas curvadas sobre uma panela, as mãos a tremer, os olhos a perscrutar o tecto a cada som. Não comia até que toda a gente comesse. Não dormia até as crianças estarem a dormir. O seu corpo suportava a arquitectura da guerra e da maternidade ao mesmo tempo. Apercebo-me agora de como a sua exaustão era política — como o seu trabalho, tal como o de tantas mulheres palestinianas, desafiava a lógica da aniquilação.

Não há tenda para o corpo em Gaza. Não há espaço seguro onde o corpo feminino se possa desdobrar sem medo. A guerra despoja-nos não só das nossas casas e pertences, mas também dos rituais que nos tornam humanos: tomar banho, menstruar, chorar em privado. Mas mesmo sem abrigo, os nossos corpos resistem. Lembram-se. Resistem.

E talvez, na sua persistência trémula, escrevam a história mais verdadeira de todas.

 

Soldada israelita (Serdadu Yahudi Penjajah) e mulher palestiniana  (Muslimah Pemberani) em confronto verbal. Fonte: X.com @sahabatalaqsha


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O texto original, em Inglês, pode ser lido aqui:

https://mondoweiss.net/2025/05/the-war-where-womens-bodies-lost-their-rights/?fbclid=IwY2xjawKwfpZleHRuA2FlbQIxMQBicmlkETFGNFhPVWRYMlpxSmc5aE1IAR4O3Ia3THiludGGNtXSOuyWvbH7c3cnPPGYYhIIB8KbFMq4ElKPhYeTzKkAXw_aem_BRodxBgrnM6iLjjHQ2rYWQ

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[*] Mariam Katheeb, é o nome literário de Mariam Mohammed El Khatib, uma prosadora, poeta e activista palestiniana de Gaza. Estuda medicina dentária no Egipto, onde também prossegue o seu trabalho literário. Os seus escritos ‒ publicados em plataformas como This Week in Palestine, We Are Not Numbers e Avery Review ‒ exploram temas como a memória, a guerra e a resistência, especialmente a partir de perspectivas feministas e existenciais. Utiliza a narração de histórias como forma de resistência cultural, documentando a experiência palestiniana e amplificando as vozes do seu povo.