tema 4
O que fazer com a obra de Karl Marx nos tempos
que correm, 200 anos depois do seu nascimento?
-Parte I-
Resumo
Na 1ª parte deste ensaio, que comportará pelo menos duas partes, argumenta-se, com base num grande acervo de factos pertinentes, a
seguinte tese:
“marxismo”, “marxista(s)”
[substantivo e adjectivo] e “ditadura do proletariado” são, respectivamente,
duas palavras e uma expressão nominal (um certo enlace de palavras) que têm graves e irreparáveis defeitos de
fabrico que as tornam impróprias para uso em tudo o que diga respeito à frase: a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios
trabalhadores — o lema que a Associação
Internacional dos Trabalhadores (1864-1876) de boa memória inscreveu nos seus estatutos
por sugestão de Karl Marx.
1. Introdução
Em 5 de Maio de 1818, no antigo reino da
Prússia, na cidade de Tréveris (Trier, em Alemão), situada no que é hoje
o Estado da Renânia-Palatinado da República Federal da Alemanha, nascia uma
criança de sexo masculino a quem foi dado o nome de Karl Heinrich Marx. Morreria
65 anos depois, em 14 de Março de 1883, em Londres, onde vivia exilado desde
1849 como apátrida, sempre a braços com grandes dificuldades financeiras e persistentes problemas de saúde, mas também sempre amparado pelo carinho e pela ajuda da sua amada esposa e companheira de todas as atribulações, “Jenny” von Westphalen, falecida 18 meses antes dele, e pela ajuda do seu grande e fiel amigo, Friedrich Engels.
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Karl Heinrich Marx e a sua filha mais velha, Jenny Caroline (1844-1883)
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Entre estas duas datas, fez muitas coisas
notáveis de que destacarei duas, as principais em minha opinião:
1ª) Foi co-fundador e tornou-se na figura
central da AIT — Associação Internacional dos
Trabalhadores (1864-1876) — a primeira organização de trabalhadores
assalariados a superar fronteiras nacionais e limites continentais, reunindo
membros de todos os países da Europa, dos Estados Unidos da América e de alguns países da América do Sul (Argentina e Uruguai).
2ª) Escreveu O
Capital, uma análise científica do modo capitalista de produção socioeconómica
e das relações sociais de produção e de troca atinentes. Em meados do século
XIX, na Europa, estas relações já tinham chegado à maturidade na Inglaterra, e estavam prestes a chegar a um nível de maturidade comparável noutros países europeus, como a França e a
Alemanha, assim como, com uma rapidez imbatível, do outro lado do Atlântico, nos EUA. Essa foi a razão pela qual a Inglaterra, sendo o país clássico de
localização desse processo histórico — que viria ulteriormente a expandir-se, abrangendo outros países da Europa, da América do Norte e dos demais continentes e subcontinentes até formar, a partir do século
XX, um sistema de produção dominante à escala planetária — serve de ilustração principal
em todo o desenvolvimento teórico de O Capital [[1]].
Como consequência dessas actividades — ambas motivadas
e alimentadas pelo seu tenaz combate em prol da auto-emancipação política e socioeconómica dos trabalhadores assalariados — Marx foi, como disse sóbria e
eloquentemente Friedrich Engels (1820-1895), o seu maior colaborador e também, como já ficou dito, o seu melhor amigo:
o homem mais odiado e mais caluniado do seu tempo.
Governos houve, tanto absolutistas como republicanos, que o deportaram dos seus
territórios. Burgueses houve, quer conservadores quer ultrademocráticos, que competiram
uns com os outros na acumulação de difamações lançadas contra ele. Ele repelia
todos esses actos malevolentes como se fossem teias de aranha, não fazendo caso
deles, só lhes respondendo quando uma necessidade extrema a isso o compelia. E
morreu estimado, venerado e lamentado por milhões de companheiros-trabalhadores
revolucionários — das minas da Sibéria à Califórnia, em todas as partes da
Europa e da América — e atrevo-me a dizer que, muito embora possa ter tido
muitos adversários, não teve (salvo melhor informação) nenhum inimigo pessoal. O
seu nome perdurará através das eras e o mesmo sucederá com a sua obra! [[2]].
Assim aconteceu, de facto, e de muitas maneiras.
Por exemplo, eu não estaria a escrever este artigo se isso não
tivesse acontecido. Por conseguinte, faz todo o sentido interrogarmo-nos sobre
a actualidade da sua obra, aproveitando a efeméride que constitui o
bicentenário do seu nascimento.
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2018. Trabalhadores instalam uma estátua de Karl Marx na sua cidade natal, Tréveris (Trier), 200 anos depois do seu nascimento. A estátua, que é de bronze e mede mais de 4 metros de altura (sem o plinto), é da autoria do conhecido escultor chinês Wu Weishan. Foto de Harald Tittel dpa.
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2. A pergunta que serve de título
A pergunta que serve de título a este texto tem
obviamente respostas muito diferentes consoante o perguntador.
Neste caso, o perguntador inclui-se entre aqueles
que entendem que estão reunidas, nos países capitalistas industrial e tecnologicamente
mais desenvolvidos, quase todas as condições necessárias para a
auto-instituição de sociedades democráticas, tecnologicamente avançadas, ecologicamente
sustentáveis, sem classes socioeconómicas e sem Estado [[3]].
Uma tal transformação criaria, por sua vez, condições mais favoráveis para a
auto-instituição de sociedades do mesmo tipo nos países industrial e tecnologicamente
menos desenvolvidos, ajudando-os a lidar com êxito com muitas das carências e dificuldades
com que se debatem.
Em ambos os casos, este desiderato só pode ser
alcançado superando o modo de produção económica que prevalece actualmente à
escala mundial — aquele que Marx analisou no seu livro O Capital e
noutros escritos conexos — cuja perpetuação acarreta (i) a ocorrência de crises periódicas de sobreprodução acompanhada de desemprego em grande escala, (ii) uma gigantesca concentração
de riqueza nas mãos de 1% da população mundial, os maiores detentores dos meios colectivos de produção, (iii) o crescimento das
desigualdades de rendimento entre países e entre os membros da população dentro dos países [[4]], assim como (iv) o risco permanente (inclusive por falso alarme ou erro humano) de uma guerra conducente a um holocausto nuclear [[5]],
e (v) a degradação, amiúde irreversível, de várias componentes da biosfera e da própria litosfera, de que os exemplos mais flagrantes são a aniquilação em grande escala de populações de verterbrados e invertebrados, e a tendência para a exaustão da energia química não-renovável acumulada no subsolo durante centenas de milhões de
anos sob a forma de combustíveis fósseis (carvão mineral, petróleo e gás natural) [[6]].
É partindo destas premissas que procurarei
responder à pergunta do título. Por conseguinte, este texto interessará, em
primeiro lugar, aos leitores que partilham essas premissas, e, em segundo lugar,
aos que não têm opinião formada sobre o assunto, mas que têm, em contrapartida,
curiosidade suficiente para se informarem sobre ele.
Não vejo qual seja o interesse que poderá apresentar para outras
categorias de leitores, em particular para os panglossianos, aqueles que acreditam
que vivemos no melhor dos mundos possíveis ou muito perto disso. Presumo,
portanto, que lhes estarei a fazer um favor no que respeita ao bom emprego do
seu tempo ao avisá-los que este texto não é para eles. Não encontrarão nele nada que conforte a
sua crença.
3. Marx não é nem o pai nem o padrinho do “marxismo”
Antes de prosseguirmos, é necessário dissipar
uma confusão costumaz. Uma coisa é a obra de Marx como autor e como cidadão
activo, outra, inteiramente diferente, o torvelinho a que se convencionou
chamar “marxismo.” Convém destrinçar nitidamente a obra marxiana (a obra
de Karl Marx) do “marxismo”.
A vida e a obra de Marx são constituídas por
acontecimentos e factos conhecidos ou conhecíveis na sua maior parte, ou mesmo
na sua quase totalidade no que respeita aos seus escritos. Podemos discutir
sobre a vida de Marx — em particular a sua vida de cidadão — e sobre a sua obra
com argumentos melhores ou piores, do ponto de vista da sua pertinência e
coerência, e até susceptíveis, em muitos casos, de serem empiricamente corroborados
ou refutados pelos factos disponíveis.
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Da esquerda para a direita. Em pé: Marx e Engels. Sentadas: as três filhas de Marx — Jenny Caroline (1844-1883), Jenny Julia Eleanor (1855-1898) e Jenny Laura (1845-1911).
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Já não se pode dizer o mesmo de “marxismo”/“marxista.” Estas palavras significam um rol de coisas díspares e muitas vezes
contraditórias para as diferentes pessoas que as utilizaram e as utilizam
correntemente. Começaram por ser inventadas e utilizadas pejorativamente por críticos e adversários de Marx na AIT, reunidos em torno de Bakunine. Depois, foram reivindicadas orgulhosamente por alguns dos camaradas e discípulos de Marx para designar a interpretação que faziam (e não faziam todos a mesma, bem longe disso) da obra marxiana. Daí que um biógrafo de Marx, Maximilien Rubel (1905-1996), tenha
podido afirmar, não sem algum fundamento, que «o
marxismo é o maior, se não o mais trágico, mal-entendido do século [XX]», e que um outro biógrafo de Marx, Michel Henry (1922-2002), tenha podido
afirmar, também com algum fundamento, que «o
marxismo é o conjunto dos contra-sensos que foram ditos sobre Marx [[7]].»
Esse conjunto de contra-sensos começou a
formar-se ainda Marx era vivo, não apenas por via dos seus adversários, mas também e principalmente por via de indivíduos que se diziam seus camaradas e discípulos e que, como já foi dito, se auto-intitulavam “marxistas”, o que levou Marx a reagir
várias vezes perante o desaforo, afirmando: «uma
coisa é certa: eu não sou marxista.»
Não se tratava, de modo nenhum, como alguns
autores pretendem, de uma reacção perfunctória, de uma mera «piada
dialéctica» [[8]]
ou de um simples «gracejo acutilante» [[9]].
Pelo contrário, Marx repudiava com o maior vigor qualquer tentativa de associar
o seu nome, de modo proprietário ou propagandístico, a qualquer projecto ou programa
político ou a qualquer novo desenvolvimento científico.
O desprezo que Marx nutria pelo chamado
“marxismo” e o escárnio com que mimoseava os chamados “marxistas” estão bem
documentados. Alinharei os testemunhos disponíveis por ordem cronológica:
1) Ora, aquilo a que se chama “marxismo” em França
é deveras um artigo muito peculiar, de tal maneira que Marx disse a Paul
Lafargue [genro de Marx e futuro dirigente do Partido Operário Francês, N.E]: «uma coisa é certa: eu não sou marxista» [no original: Ce qu'il y a de certain c'est que moi, je ne suis pas Marxiste] (Carta de Friedrich
Engels a Eduard Bernstein, 2 de Novembro de 1882. Marx & Engels Collected Works, Lawrence & Wishart 1992, vol. 46, p.353).
German Alexandrovich Lopatin, um jornalista
russo, membro do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores,
tradutor do 1º tomo de O Capital em Russo, encontrou-se com Friedrich Engels, em
Setembro de 1883, para discutirem sobre as perspectivas de uma revolução russa.
Lopatin contou mais tarde alguns pormenores dessa conversa, numa carta a um
membro do partido russo Norodnaiia Voliia [A Vontade do Povo] que contém a seguinte passagem:
2) Não se esqueça do que eu já lhe disse — que Marx nunca
foi um marxista. Engels contou-me que, no período da luta de Brousse, Malon e
Companhia, [no seio do movimento
socialista em França, N.E] Marx disse um dia com uma gargalhada: «Só posso
dizer uma coisa, que não sou marxista» (Carta de Lopatin a M. N. Oschanina, em 20 de Setembro de 1888,
traduzida do russo. Karl
Marx-Friedrich Engels Werke, Dietz Verlag, Berlin, 1962, band [= vol.] 21, p.489).
3) Meu caro Lafargue. Nós [Marx e eu] nunca vos chamámos outra coisa senão “os chamados Marxistas” e eu não saberia como
descrever-vos de outra maneira. Mas se vocês tiverem outro nome, igualmente
sucinto, digam-nos que nós aplicá-lo-emos devidamente e com todo o gosto às
vossas pessoas (Carta
de Friedrich Engels a Paul Lafargue, em 11 de Maio de 1889. Marx
& Engels Collected Works, Lawrence & Wishart 2010, vol. 48, p.312).
4) Mas, como eu disse, isto é tudo em segunda mão [Engels
refere-se ao que um tal Paul Barth teria escrito sobre Marx, a fazer fé no
relato de um tal Moritz Wirth que Engels acabara de ler, N.E] e o pequeno Moritz é um amigo sem o qual podemos passar
muito bem. Hoje em dia, o ponto de vista materialista sobre a história também
não tem falta dessa espécie de amigos a quem ele serve de pretexto para não estudarem história. Tal como Marx disse,
no fim dos anos 1870, referindo-se aos Marxistas franceses: «Tout ce que je sais, c’est que je ne suis pas marxiste» [“Tudo o que sei
é que eu não sou marxista”, N.E] (Carta de Friedrich Engels a Conrad
Schmidt, em 5 de Agosto de 1890. A frase em Francês pertence ao original. Marx & Engels Collected Works, Lawrence & Wishart 2010, vol. 49, p.7; Marx/Engels
Internet Archive [marxists.org]2000).
5) Todos esses cavalheiros patinham no marxismo, mas daquele
género que vocês conheceram em França há dez anos e do qual Marx dizia: «Tudo o que sei, é que eu não sou marxista!» E ele teria dito provavelmente desses cavalheiros o que
Heine dizia dos seus imitadores: «Semeei
dragões e colhi pulgas» (Carta de Friedrich Engels a Paul Lafargue, em 27 de Agosto de 1890. Marx & Engels
Collected Works, Lawrence & Wishart 2010, vol. 49, p.22).
6) Marx também previu essa espécie de discípulos quando, no fim dos anos 1870, disse do então prevalecente
“Marxismo” de certos franceses: «tout ce que je sais
c’est que moi je ne suis pas marxiste» — “tudo
o que sei é que eu não sou marxista” (Carta de Friedrich Engels ao editor do Sachsiche Arbeiter-Zeitung, Nº 105, 31 de Agosto de 1890. Marx
& Engels Collected Works. Lawrence & Wishart 2010, Volume 27, p.71).
A um seu insinuante e manhoso admirador que lhe tinha escrito a desculpar-se, com a
maior desfaçatez, por ter plagiado abundantemente O Capital, Marx respondeu:
Podemos afirmar, portanto, com toda a segurança,
que “marxismo” é uma palavra com dois usos principais, ambos espúrios.
Para entendermos o primeiro uso, temos de pôr em
cena um conjunto muito diverso de pessoas, partidos e agrupamentos políticos que
afirmam encontrar na obra de Marx e de Engels [[11]]
a sua principal fonte de inspiração — direito que, obviamente, ninguém lhes
pode negar. Até aqui, tudo bem. Porém, o caso muda de figura quando esses
indivíduos, partidos e agrupamentos políticos se julgam autorizados, com base
nesse direito, a criar e utilizar um -ismo derivado do nome de Marx (o “marxismo”)
para qualificarem uma, duas ou todas as seguintes coisas:
(i) as suas (deles) doutrinas ou análises filosóficas, históricas, culturais, sociais, económicas e políticas;
(ii) o seu (deles)
método de análise de problemas filosóficos, históricos, culturais, sociais, económicos e políticos;
(iii) os seus (deles)
programas ou projectos políticos.
Por essa razão, (a) os autores e apologistas dessas
doutrinas e análises; (b) os utilizadores desses métodos; (c) os
autores e defensores desses programas ou projectos; assim como (d) os
membros desses partidos e agrupamentos (note-se que os quatro conjuntos [a, b,
c, d] não coincidem necessariamente uns com os outros) autodesignam-se por “marxistas”.
Alguns juntam a marxismo/marxista o prefixo neo- (neomarxismo/
neomarxista). Outros ainda, juntam a marxismo um segundo -ismo,
derivado do pseudónimo (“Lenine”) de um político russo, Vladimir Ilyich Ulyanov
(1870-1924), para se autodesignarem (marxismo-leninismo/marxistas-leninistas
[[12]]),
ou até um terceiro -ismo (marxismo-leninismo-maoísmo/marxistas-leninistas-maoístas),
este último derivado de Máo Zédōng (1893-1976), o nome próprio de um político
chinês. Como se trata, em todos os casos, de reincidir na mesma prática
com argumentos da mesma índole, considerarei os “neomarxistas”, os “marxistas-leninistas”
e os “marxistas-leninistas-maoístas” como subconjuntos do conjunto dos
“marxistas”, sem entrar em pormenores sobre o que os distingue especificamente
uns dos outros. Ora, Marx teria considerado todos esses termos, na sua acepção
e no seu uso correntes, como um abuso de linguagem e um desaforo grotesco,
pelas razões já apontadas.
O segundo uso do termo é obra de um conjunto de
outras pessoas, partidos e agrupamentos políticos, também ele muito diverso, para
quem os termos “marxismo” e “marxista(s)” servem para qualificar, de modo antagonístico
ou pejorativo, o combate por uma sociedade sem classes socioeconómicas e sem
Estado, do qual Marx foi, sem dúvida, uma figura maior e incontornável. Chamá-los-ei,
por comodidade de expressão, “antimarxistas”.
Partilho a conclusão sobre o “marxismo” e os
“marxistas” a que Cyril Smith (1929-2008) chegou ao cabo de uma
investigação aprofundada [[13]]:
Mas, a um nível fundamental, aquilo a que demos o nome de
“Marxismo” não era apenas diferente das
ideias de Marx, mas o seu exacto oposto. O quadro teórico chamado
“Marxismo” pretendia ser uma doutrina, por vezes mesmo “uma mundivisão completa e
integral” (Plekhanov, Lenine). Quando nós, “Marxistas”, declarávamos que
eramos “científicos”, tínhamos em mente uma analogia com as certezas das
ciências naturais. Víamo-nos a nós próprios como os herdeiros da tradição
conhecida como o Iluminismo que, no século dezoito, lutara tão valentemente contra
as velhas ideias da religião e da superstição, lançando as bases da moderna ciência
racional da natureza, assim como da liberdade, igualdade e fraternidade. Os
“Marxistas” explicaram que esses pensadores do século dezoito não foram capazes
de chegar a uma visão científica da história, mas que o “Marxismo” tinha
conseguido suprir essa extensão. Havia uma “teoria da história”
chamada “materialismo histórico”, uma “doutrina económica”
referida por vezes como “economia marxista”, e um ponto de vista
filosófico chamado “materialismo dialéctico”. Nada disto pode ser
encontrado nos escritos de Karl Marx (…) (Cyril Smith [2002], Karl
Marx and Human Self-creation).
Daqui se segue que os “antimarxistas”, na medida
em que tomam estas três coisas como alvo das suas críticas a Marx, se
assemelham aos caçadores de gambozinos.
3. Objectivo deste artigo
Para completar o esclarecimento sobre o título
deste texto, resta agora dizer qual é o seu propósito.
Mas, primeiro, há que fazer duas ressalvas muito importantes. A
primeira ressalva é esta: a obra completa de Marx e Engels ainda não foi
toda publicada, decorridos que são mais de 100 anos depois do seu falecimento — 135 e 113 anos respectivamente. A MEGA1 (Marx-Engels-Gesamtausgabe 1), a 1ª tentativa de edição histórico-crítica dos escritos de Marx e Engels, terminou tragicamente em 1941, com 12 volumes publicados (dos 36 projectados), após o assassinato do seu editor, David Riazanov, em 1938, sentenciado à morte em Moscovo por um dos julgamentos encenados com que Estaline destruiu fisicamente a grande maioria dos dirigentes do partido bolchevique, que tinham sido seus ex-camaradas em 1917 e nos anos seguintes. Até à data, dos 114 volumes previstos pela chamada MEGA2 (Marx-Engels-Gesamtausgabe 2)
— a 2ª tentativa e a mais completa de edição histórico-crítica (em alemão e noutras línguas originais) das obras de Marx e Engels — foram publicados 66 volumes. Estes abrangem principalmente a chamada 1ª secção, que inclui todas as obras e manuscritos dos dois autores, excluindo O Capital (32 volumes), assim como a chamada 2ª secção, que inclui O Capital e todo o trabalho preparatório a partir de 1857 (15 volumes). Esta 2ª secção está disponível desde 2012, data em que terminou a sua publicação. Faltam ainda, portanto, 48 volumes. São, todos eles, volumes da 3ª secção (que inclui as cartas trocadas entre os dois autores e entre eles e terceiros) e volumes da 4ª secção (constituída por excertos). Destes 48 volumes, 20 (cartas e excertos) serão publicados exclusivamente em formato
digital [[14]]. A
publicação dos 114 volumes previstos estará completa dentro de 15 anos, se as
previsões se cumprirem. No entanto, a publicação da MEGA2
teve já efeitos muito benéficos. Em particular, ela
tem
oferecido a oportunidade de conhecer manuscritos até aqui inéditos e que nos
revelam um Marx crítico das limitações de seu próprio trabalho e permanentemente
insatisfeito diante do que já havia escrito. Ele permaneceu sempre disposto a
rever e actualizar as suas formulações, a mergulhar em novos materiais
empíricos e a deles extrair consequências teóricas, o que explica em boa medida
o carácter provisório e fragmentário de muitas das suas elaborações. O mesmo
pode ser dito em relação às pesquisas em curso sobre outros textos, cuja
publicação também está prevista pela MEGA2, mas que ainda permanecem inéditos,
como os Exzerpthefte (Hugo E.A. da Gama Cerqueira
[2015]. “Breve história da edição crítica das obras de Karl Marx”. Brazilian
Journal of Political Economy 35 (4), 2015, pp. 825-844 [esta citação foi ligeiramente editada para a tornar conforme ao Português europeu, N.E]).
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Um manuscrito de Marx e Engels. Decifrar a caligrafia destes dois homens, especialmente a de Marx, tem sido, desde sempre, uma das maiores dificuldades encontradas na edição histórico-crítica das suas obras.
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A segunda ressalva reporta-se ao seguinte facto: uma parte considerável
da obra publicada de Marx pertence, hoje em dia, ao domínio público, e pode,
por conseguinte, ser lida e fruída por qualquer pessoa [[15]].
Pois bem, tendo em conta estas duas ressalvas, proponho-me examinar essa
herança a benefício de inventário (se me é permitida a analogia) [[16]].
Por outras palavras, vamos examinar aqui o que, em minha opinião, podemos e devemos reter da obra de Marx, se
quisermos dar continuidade ao seu combate por uma sociedade sem classes
socioeconómicas e sem Estado, ao qual dedicou uma vida inteira de estudo histórico e filosófico, investigação científica e acção política.
Um exame deste género implica ler Marx «com atenção, sem devoção nem deferência», «sem lhe conceder privilégios
particulares», mas implica também fazê-lo sem ter uma pedra em cada
mão pronta a ser-lhe atirada à figura. Se é necessário revisitar a obra de Marx
«não é para que ela nos forneça respostas antes
de lhe pormos novas questões, nem para que ela nos forneça um quadro de
referência invariável e tranquilizador.» Mas também não é para a questionarmos
«de maneira iconoclasta, desrespeitosa»,
como se se tratasse de desacreditar as arengas de um vendedor de indulgências [[17]].
Em suma e mais simplesmente: a obra de Marx deve
ser lida, estudada e interrogada de maneira
crítica, como convém à obra de um grande autor. Esse é, de resto, o modo de
leitura consentâneo com o lema cartesiano de Marx: De
omnibus dubitandum (= duvidar de tudo) [[18]].
Assim sendo, talvez não seja inútil assinalar desde
já ao leitor uma lição que aprendi à minha custa na realização do inventário crítico
que aqui apresentarei. É esta: no desenvolvimento da argumentação, terei de
entrar em choque muito mais vezes com os “marxistas” do que com os “antimarxistas.”
Há boas razões para essa assimetria. Os “marxistas”
pretendem justificar as suas convicções e preferências nos campos da economia política, da sociologia, da política, da
filosofia e da história como se elas fossem as de Marx, ou, pelo menos, como se
elas decorressem da aplicação do mesmo método de investigação e análise que
Marx empregaria em circunstâncias semelhantes, se fosse vivo. Por essa razão,
cometem amiúde o erro de confundirem os seus desejos com a realidade.
Já os “antimarxistas” optam, o mais das vezes,
por justificar as suas preferências e convicções nesses campos como se
elas fossem confutações auto-evidentes das posições de Marx. Por essa razão,
cometem também amiúde o erro de confundirem os seus desejos com a realidade. Distinguem-se, todavia, dos
“marxistas” porque, ao contrário destes, não confundem as suas posições com as
posições de Marx, nem reivindicam o nome de Marx como caução para as suas
análises e práticas. São seus adversários e, regra geral, nada lhes
desagradaria mais do que serem tomados como seus discípulos (ainda que relutantes).
Estou bem ciente que existem, entre os “antimarxistas”,
adversários cultos e intelectualmente argutos das teorias e análises de Marx (e.g. Eugen von Böhm-Bawerk, Vilfredo Pareto, Joseph Schumpeter, Benedetto Croce, Ludwig
von Mises, Raymond Aron, Karl Popper, Isaiah Berlin, Ernest van den Haag), que não podem, por isso,
ser ignorados. Mas são bem mais numerosos os “antimarxistas” que atribuem a
Marx objectivos, ideias e práticas que carecem amiúde de qualquer referência à
sua obra ou que se caracterizam pela deturpação ou pela ignorância completa
dela.
Marx disse uma vez, a este propósito, que teria
de ter vários assessores para poder responder ao fluxo incessante de patranhas,
patacoadas e disparates que eram ditos sobre a sua obra escrita e sobre a sua
acção política. Como era pobre demais para se dar a esse luxo e tinha coisas
bem mais importantes para fazer, só lhe restava encolher os ombros e seguir em
frente neste particular, adoptando como sua divisa um versículo de Dante: «Segui il
tuo corso, et lascia dir le genti» (“Segue o teu caminho, e não
faças caso do que os outros dizem” [[19]]).
Seguir-lhe-ei o exemplo.
Em resumo, a pergunta que serve de título a este
texto pode, agora, ser respondida concretamente. Tendo em conta o facto de
Marx ter dedicado a sua vida ao projecto político da auto-emancipação dos
trabalhadores assalariados conducente a uma sociedade sem classes socioeconómicas
e sem Estado, trata-se de tentar dividir a obra de Marx em duas partes bem distintas, como as duas efígies de Marx reproduzidas mais abaixo:
— uma parte que podemos abandonar sem mágoa «à
crítica roedora dos ratos», a exemplo do que Marx e Engels
fizeram ao seu manuscrito sobre A Ideologia
Alemã [[20]],
— e outra parte que continuará a servir de
alimento intelectual a quem, como eu, compartilhe o projecto político que o
animava, por ter conseguido superar com êxito os testes e as provações a que a experiência
a submeteu durante os últimos 150 anos. Essa parte constitui o legado de
Marx, tal como o entendo [[21]].
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Efígies de Marx num semáforo da sua cidade natal, Tréveris (Al. Trier). Foto da Reuters. |
4. Lenine descobre a pedra de toque de um metal fantasmático
É um facto que o próprio Marx tentou estabelecer
o que deveria constar desse legado. Isso aconteceu apenas uma vez, que eu saiba.
É o que testemunha o seguinte trecho de uma carta
sua:
(D) Agora no que me diz respeito: não me cabe o mérito de ter
descoberto a existência das classes na sociedade moderna, nem tão pouco a luta
que nela travam. Muito antes de mim, historiadores burgueses tinham exposto a
evolução histórica dessa luta de classes, e economistas burgueses tinham
descrito a sua anatomia económica. A minha originalidade consistiu em
demonstrar:
1.
que a existência das classes está ligada
apenas a certas fases históricas do
desenvolvimento da produção;
2.
que a
luta das classes conduz necessariamente à ditadura
do proletariado;
3. que
mesmo esta ditadura representa apenas uma transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes.
(Excerto de uma carta enviada por Karl Marx a Joseph Weydemeyer, em 5 de
Março de 1852. Correspondance Marx-Engels, t. III, lettre 36. Éditions Sociales
1972, p.76-81).
Assim, estas três proposições (D1,
D2 e D3) constituem outras tantas teses através das quais Marx caracterizou, em
1852, a originalidade do seu contributo teórico como investigador.
Há quem pretenda afirmar, com
base neste trecho, que foi o próprio Marx quem definiu, afinal, através
destas três teses, o conteúdo do “marxismo”. O exemplo mais conhecido dessa
pretensão é o de Lenine. No comentário que fez, em 1917, da citação D escreveu:
Temos aqui uma curiosa situação. Lenine assegura-nos que sabe qual é a
pedra de toque que distingue um “marxista” de um burguês (pequeno ou grande). Todavia,
essa pedra de toque tem por função avaliar a pureza de um metal precioso, mas fantasmático, o
“marxismo”, cujo carácter fantasmal Marx seria o primeiro a denunciar como tal — à semelhança do
que fez a criança com o fato novo do Imperador, no conto homónimo de Hans Christian Andersen. Por outras palavras,
com a pedra de toque de Lenine podemos distinguir, diz ele, os “marxistas” dos
não-“marxistas”. O que não podemos é incluir Marx no primeiro grupo, porque ele
sempre se definiu como fazendo parte do segundo.
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Tudo o que sei é que eu não sou marxista — apotegma socrático de Karl Marx que os chamados “marxistas” nunca serão capazes de entender.
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Detenhamo-nos durante alguns momentos nesta afirmação, para que não
subsista qualquer dúvida sobre o seu significado.
Os comentários supracitados de Lenine entram directamente em choque, como
vimos mais acima, com as ideias de Marx sobre a natureza dos projectos
políticos, dos programas partidários e do desenvolvimento da ciência. Como frisou
o próprio Marx, os projectos políticos e os programas partidários — em particular, os projectos e programas dos
partidos e das organizações que afirmam querer contribuir para a luta pela
emancipação socioeconómica dos trabalhadores como obra dos próprios trabalhadores
— não devem estar enfeudados às ideias de qualquer indivíduo, por muito meritórias
(pertinentes, audaciosas e coerentes) que sejam. Do mesmo modo, as teorias e
análises científicas não devem estar enfeudadas às ideias de qualquer
indivíduo, por mais meritórias (pertinentes, audaciosas e coerentes) que sejam.
A razão é a mesma em ambos os casos: tanto os projectos políticos e os programas
partidários como as teorias e análises científicas são obras eminentemente cooperativas,
onde as contribuições individuais se inscrevem como fibras ou nós de uma grande e interminável rede intra- e intergeracional. São também, em ambos os casos, construções eminentemente
falíveis, pois estão sujeitas ao veredicto da experiência — da observação e/ou da experimentação — que as pode
descartar se não provarem a sua têmpera.
Houve, na história da ciência, cientistas notabilíssimos como, por exemplo,
Galileu, Newton, Lavoisier, Ampère, Pasteur, Claude Bernard, Mendel, Marie
Curie, Einstein. Mas não há, nem nunca houve, “galileísmo”, “newtonismo”, “lavoisierismo”, “amperismo”, “pasteuris-mo”, “bernardismo”, “mendelismo”, “curienismo”, “einsteinismo.” Tais
rótulos, se alguém os inventasse, seriam motivo de chacota pelos cientistas. Em
ciência, e mesmo em filosofia, não há maneira de transformar avanços teóricos
ou metodológicos em -ismos derivados
de nomes próprios [[22]], nem tão pouco há
maneira de o fazer em política sem cair no “culto da personalidade”, na
bajulice, na crendice e na charlatanice. Deste modo, compreender-se-á melhor o
escárnio com que Marx tratava o “marxismo”.
Em suma, não devemos confundir marxiano/marxiana
(um livro, um argumento, um conceito, uma teoria, uma análise, um método, etc.,
que tem por autor Marx) e marxista. O
primeiro adjectivo tem um significado claro e inequívoco, o segundo é a porta
de entrada para um labirinto escuro, cheio de imundícies e sem saída de
emergência.
Veremos mais adiante como avaliar concretamente as teses com que Marx
resumia o seu contributo (o contributo marxiano)
em 5 de Março de 1852. Porém, antes de aí chegarmos, convém ter em conta que Marx tinha 33
anos nessa data. Ora, Marx faleceu em 1883, com 65 anos. Os 32 anos que medeiam
entre estas duas datas foram os mais importantes da sua vida de militante e activista político,
cientista, jornalista e “crítico implacável de tudo o que existe” de apologético da exploração e opressão do homem pelo homem. Foi nesse período que escreveu as suas obras principais
de crítica da economia política, que considerava como o seu grande contributo
científico para a compreensão da sociedade industrial moderna e para a auto-emancipação política e socioeconómica do proletariado. Refiro-me, entre outros, aos
seguintes escritos:
— Introdução à crítica da economia política (1857) ; Esboços da crítica
da economia política [Al. Grundrisse der
Kritik der Politischen Ökonomie] (1857-1858, publicação póstuma); Contribuição à crítica da
economia política (1859); Teorias sobre a Mais-Valia (1862-1863, pub.
póstuma), concebido como o tomo 4 de O Capital; Salário, Preço e Lucro (1865); O Capital, tomo 1 (1867); Um capítulo
inédito de O Capital (1867, pub. póstuma);
A
nacionalização da terra (1869); Carta a Nikolai
sobre o desenvolvimento económico da Rússia
(1877, pub. póstuma); Rascunhos da carta e carta a Vera Zasulitch sobre o
desenvolvimento económico da Rússia (1881, pub. póstuma); os diferentes
manuscritos e as várias redacções de muitos deles (1861-1863, 1865-1867, 1870 e
1875-1878) que foram postumamente editados e publicados por Engels com o título
de O Capital, tomo 2 (pub.
póstuma em 1885) e O Capital, tomo 3 (pub. póstuma em 1894).
|
Marx em 1866, nos primeiros anos da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).
|
Foi também durante este período que Marx desenvolveu, como vimos, a sua
actividade política mais importante — a de membro fundador e organizador fundamental
da Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT),
também conhecida, simplesmente, como A
Internacional ou, muito mais tarde, retrospectivamente, como a 1ª Internacional (1864-1876) — e que escreveu
muitos dos seus textos políticos mais importantes, entre os quais:
— As
revoluções de 1848 e o proletariado (1856) ; Escritos (artigos e cartas) sobre a guerra civil nos EUA
(1861-1862); Alocução
inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864), Estatutos gerais da Associação Internacional dos
Trabalhadores (1864) ; Instruções aos
delegados do conselho central da A.I.T sobre as diferentes questões a debater
no congresso de Genebra (1866), co-autor F. Engels; A Polónia, a
Rússia e a Europa (1867); A Guerra Civil em França (1871); A liberdade de expressão (1872); A indiferença relativamente à política (1874); Crítica do programa de Gotha [/Glosas marginais
ao programa do partido social-democrata dos trabalhadores da Alemanha]
(1875, p. póstuma); Resumo Crítico de “Estatismo e Anarquia”, de Mikhaïl
Bakunine (1874 ou 1875, pub. póstuma).
|
Delegados participantes no 1º Congresso (1866) da Associação Internacional dos Trabalhadores, realizado em Genebra, Suíça. |
Por isso, a discussão que se segue da carta de Marx de 1852 (citação D) será feita à luz não só da sua obra
ulterior (1852-1883), mas também à luz da história que decorreu desde o falecimento
de Marx (1883) e de Engels (1895) até aos nossos dias.
Para fixar as ideias e para balizar a discussão neste particular, quero
afirmar desde já que considero que a tentativa que Marx fez, em 1852, de definir o seu legado foi prematura (tendo
em conta tudo o que Marx realizou ao longo da sua vida, antes e depois dessa
data) e equívoca (no que respeita ao seu conteúdo). Concretamente, quero
afirmar desde já que incluo D1 (a
tese 1 da citação D), no legado de
Marx, mas não incluo D2 e D3 (as teses 2 e 3 da citação D) nesse legado. Na minha opinião, essas
duas teses de Marx são ambas anfibológicas. Só poderão ser incluídas no seu
legado mediante uma série de correcções e qualificações críticas. (Veremos em
momento mais oportuno que o próprio Marx se encarregou de fazer algumas dessas
correcções e qualificações).
Por conseguinte, a discussão incidirá apenas sobre as teses 2 e 3.
5. Três perguntas
Consideremos, primeiro, a tese 2: «a
luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado». Deixemos de
lado, por enquanto, a proposição em si mesma, para nos concentramos apenas na
expressão “ditadura do proletariado.”
A primeira questão que temos de pôr é: o que significavam (a) ‘proletariado’, (b) ‘ditadura’ e (c) ‘ditadura
do proletariado’ para Marx?
A resposta à pergunta (a) remete-nos, antes de mais, para a Roma antiga e
para as sociedades capitalistas da 1ª metade do século XIX.
6. Proletariado
Segundo Cícero, a palavra latina proletarius/proletarii
(proletário /proletários), que deriva de proles
(prole, linhagem, os filhos), teria sido inventada pelo sexto rei de Roma, Sérvio
Túlio (Servius Tulius, 579-535 a.C.),
para designar, no quadro da sua reforma militar e censitária do reino, os
membros da sexta e última classe do censo, a mais pobre de todas, que estavam
isentos de imposto por não possuírem terras nem fortuna pecuniária e que não tinham
direitos políticos pela mesma razão. Sérvio Túlio apelidou de ‘proletários’ os
cidadãos romanos desta classe censitária, «para fazer ver que só lhes era pedido que dessem filhos e uma posteridade
ao Estado» [[23]].
Segundo o erudito Aulo Gélio (Lat. Aulus Gellius), do século II, eram considerados proletários, na
época da República romana, os indivíduos do sexo masculino que, de acordo com o
censo, não possuíam terras nem mais do que 1500 asses [[24]]
e os que não possuíam nada, ou quase nada, para além da sua própria pessoa.
Estes últimos eram conhecidos por ‘capitecenses’ (Lat. capite censi), aqueles que se limitavam a declarar o seu nome ao
censo público (Lat. census) pelo
facto de nada ou quase nada possuírem e que eram, por conseguinte, referidos apenas
como cabeça de casal (Lat. caput/capita, “cabeça/cabeças”), e não como detentores de certos rendimentos e
direitos. Aulo Gélio informa-nos que os
proletários com rendimentos abaixo dos 385 asses já eram considerados capitecenses. E acrescenta que as
autoridades do Estado romano não tinham confiança no patriotismo dos
proletários e ainda menos no patriotismo dos proletários mais pobres, os capitecenses.
Eis, nas suas palavras, a razão dessa desconfiança:
Como a
riqueza das posses era considerada como um motivo de apego à República, e como
era olhada como sendo um dos laços mais fortes que uniam os cidadãos à pátria,
nunca se recrutavam os proletários e os capitecenses, salvo em situações de
perigo iminente, por causa da indigência e da pobreza que eram ordinariamente a
marca comum da sua condição [[25]].
Na primeira metade do século XIX, são criados os termos classe proletária e proletariado em França e na Prússia (hoje Alemanha). Com eles pretendia-se designar os
trabalhadores manuais sem terra e sem outros meios de produção, a classe mais
numerosa nos países europeus onde o modo de produção capitalista (ou “o capitalismo”, para abreviar) estava mais desenvolvidoe também, porventura, a classe mais pobre [[26]].
Em 1832, em Lyon, Antoine Vidal é o primeiro a utilizar o termo ‘classe
proletária’ no L’Echo
de la Fabrique [O Eco da
Fábrica], o primeiro jornal proletário da França, fundado no rescaldo da revolta
dos canuts (1831), os proletários tecelões nas
fábricas de seda de Lyon. Para Vidal, o principal redactor do Eco da Fábrica,
a classe proletária, da qual declara fazer parte com orgulho, é, ao mesmo tempo,
a mais útil («porque
produz para todos») e a mais desprezada (porque «parece não
existir à face da Terra senão para ser tiranizada e servir para a fortuna e
para os caprichos dos grandes [[27]]»)
Para Antoine
Vidal, assim como para os socialistas, comunistas e anarquistas que se
multiplicam durante os anos 1830-1840 [[28]], trata-se de
assinalar que esses trabalhadores não são apenas numerosos, úteis e pobres; são
também cidadãos excluídos, desprovidos de direitos políticos pela Constituição
censitária da Monarquia de Julho, o regime político em vigor em França nessa
época. Por aqui se vê claramente que a referência erudita aos proletarii da antiguidade, a última das
classes censitárias da república romana, é deliberada.
|
Outubro de 1831. Luta armada nas ruas de Lyon (França) em frente à igreja de Saint-Nizier durante a revolta dos canuts (proletários tecelões da indústria da seda). Autor do quadro: anónimo do século XIX. |
Durante a revolução de 1848, a ala trabalhista (a que se reclama da classe
proletária) da oposição republicana à Monarquia de Julho [[29]]
utiliza o termo classe proletária em
sentido polémico e com fins de agitação política. Trata-se de reivindicar para
essa classe excluída da existência política, o acesso aos direitos políticos, a
conquista da democracia que existia exclusivamente para a classe burguesa e
para os restos da nobreza [[30]].
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Meninos proletários a trabalhar 10 horas por dia, 6 dias por semana, numa fábrica têxtil em Macon, Georgia, EUA, em 1909. Foto de Lewis W. Hine.
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Na década de 1840, o termo classe
proletária é adaptado para o alemão (proletariat),
onde surge, em 1842, pela mão do economista Lorentz von Stein, que estuda as
correntes socialistas/comunistas, embora ele próprio fosse hostil ao socialismo/comunismo.
Em seguida, o termo é retomado pelo jovem filósofo Moses Hess, director do
jornal Rheinische Zeitung (o antecessor do Neue Rheinische
Zeitung de que falaremos
mais à frente) com quem Engels e Marx tinham, na altura, muitas afinidades,
entre as quais o facto de todos eles se declararem simpatizantes do comunismo. Aliás,
os três aderiram, em 1847, à Liga dos Justos, crismada, pouco depois, de Liga dos
Comunistas.
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EUA, 1913. Mulheres e crianças proletárias a trabalhar como abridores de ostras numa fábrica de conservas na Carolina do Sul. Um dos rapazes tinha 10 anos e o outro 11 anos. Foto de Lewis W. Hine.
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Em suma, Marx e Engels não
criaram o termo proletariado, limitaram-se
a adoptá-lo, com o sentido que ele tinha na época. Mas vão afeiçoá-lo pouco a pouco a
uma acepção que lhes é própria. Isso será feito em três fases [[31]].
1ª fase. Em 1843, o jovem Marx
emprega o termo ‘proletariado’ na sua crítica à filosofia do direito e à
concepção do Estado de Hegel. No prefácio que redige para o Manuscrito de Kreuznach
[[32]], Marx usa o termo
para designar o «sujeito social» (entenda-se, o protagonista) finalmente
identificado da emancipação geral da «sociedade civil moderna». Por que seria o
proletariado esse sujeito? Porque é esta classe que, segundo Marx, «sofre a
injustiça mais despudorada» e a única que só pode ter
por mira «uma reconquista total do homem.»
2ª fase. Na Ideologia Alemã (1845) e um pouco mais tarde no Manifesto do
Partido Comunista (1848), Marx e Engels afirmam o papel histórico —
o de motor das transformações socioeconómicas — das lutas de classes e definem o antagonismo moderno que opõe o
proletariado e a burguesia capitalista. O proletariado é caracterizado pela sua
posição no seio de um modo de produção (o modo de produção capitalista) e das
relações sociais de produção e troca que lhe correspondem. Ele é
simultaneamente a classe que produz as riquezas que fazem crescer o capital e a
classe que está excluída da posse dos meios colectivos de produção (que
pertencem aos detentores do capital).
Desta
forma, Marx e Engels aprofundam a análise que Engels tinha feito do
proletariado inglês no seu livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845). Em 1852, Marx salientará tudo o que
separa o proletariado romano do proletariado da moderna sociedade capitalista:
Esquecemo-nos [facilmente, mas não devíamos, N.E] da frase de Sismondi: “O proletariado romano vivia à
custa da sociedade, ao passo que a sociedade moderna vive à custa do
proletariado” (K. Marx [1852], O
18 de Brumário de Louis Bonaparte).
|
Menina proletária encarregada dos teares de algodão de toda uma ala de uma grande fábrica têxtil (Mollahan Mills) em Newberry, Carolina do Sul, EUA, em 1908. Repare-se que esta criança, que aparenta ter cerca de 10 anos, não tem sapatos (tem apenas calçadas umas meias altas escuras, talvez de algodão) um facto muito comum no proletariado infantil da época. Foto de Lewis W. Hine. |
3ª fase. Finalmente, a distinção entre trabalho concreto e
trabalho abstracto, trabalho socialmente necessário e sobretrabalho, trabalho e
força de trabalho e a descoberta da mais-valia (Al. Mehrwert) vão permitir a Marx precisar a caracterização do
proletariado no processo de produção do capital e expor de um modo inédito a
sua situação no seio da sociedade capitalista.
Convém lembrar, a este propósito,
que, nos anos 1840, Marx ainda não tinha terminado a sua crítica da economia
política, muito longe disso. Isso só vai suceder, nalguns aspectos
fundamentais, no final da década seguinte, embora Marx tenha prosseguido até ao
fim da sua vida essa crítica, agregando-lhe constantemente novos temas ou aprofundando/reelaborando os já tratados.
A década de 1850 é importante
como década charneira neste particular. Como assinala Engels [[33]],
os escritos de crítica da economia política de Marx que apareceram antes do primeiro fascículo de Contribuição à
Crítica da Economia Política (1859),
diferem bastante dos que foram produzidos depois dessa data — Salário, Preço e Lucro (1865), a vasta série de escritos preparatórios de O Capital,
e o próprio O Capital (tomo 1, 1867; tomo 2, 1885; tomo 3, 1894). Uma
prova disso é a sua monografia Trabalho Assalariado e Capital (1849). Nessa altura, Marx ainda não tinha
estabelecido a destrinça fundamental entre trabalho
e força de trabalho, razão pela qual
ela não aparece nesse texto. Encontramo-la, porém, perfeitamente delineada em Salário, Preço e Lucro (1865), assim como a
distinção entre ‘trabalho (socialmente) necessário’ e ‘sobretrabalho’.
|
Rapazinhos proletários (breaker boys) numa mina de carvão (antracite) em S. Pittston, Pensilvânia, em 1911. Os breaker boys tinham como tarefa separar à mão o carvão das impurezas que, em parte, inalavam sem querer. Foto de Lewis W. Hine.
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Este ponto é importante para compreendermos que estas distinções — que estão ambas na base da descoberta da ‘mais-valia’ (a fracção do sobretrabalho de que se apropria o capitalista) — têm imediata repercussão no conceito de proletariado. No vocabulário de Marx e Engels, a palavra ‘proletariado’ deixa de designar simplesmente os trabalhadores manuais mais numerosos, pobres e oprimidos. A partir dos anos 1860, ela passa a designar, mais especificamente, no contexto da sociedade industrial capitalista, o conjunto dos trabalhadores que vendem (/alugam) a sua força de trabalho durante um certo nº de horas — por dia, por semana e por mês — aos empresários detentores do capital, a classe dos capitalistas (também apelidada de burguesia), em troca de uma certa soma de dinheiro (o salário). Os capitalistas fazem frutificar o seu capital — o dinheiro que utilizaram para comprar ou alugar meios industriais de produção (ferramentas, maquinaria, edifícios, terra, matéria prima, matérias auxiliares) e pagar salários — através da mais-valia criada pelo sobretrabalho não pago fornecido pelos trabalhadores proletários durante o nº de horas em que estes se dispuseram a alugar-lhes a sua força de trabalho por um salário. É este o significado da expressão exploração capitalista [do proletariado].
O que ficou dito explica o conceito marxiano de proletariado,
considerado na sua vertente socioeconómica, tal como foi elaborado ao cabo de demoradas
investigações sobre a sociedade industrial capitalista. O conceito marxiano de
proletariado não se esgota, porém, neste âmbito, visto que tem também uma
vertente sociopolítica, que se revelará muito contenciosa para os chamados “marxistas”. A ela voltaremos em momento mais
apropriado.
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Proletários (homens adultos e rapazinhos) numa fábrica de garrafas de vidro, à meia-noite, em Indiana, EUA, em 1908. Foto de Lewis W. Hine.
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A resposta à pergunta (b)
— cf. secção 5, 2º parágrafo — remete-nos de novo para a Roma antiga.
7.1. Primeira acepção do termo “ditadura”
Em todas as línguas
modernas indo-europeias, a palavra ditadura
(Fr. dictature, Al. diktatur, Ingl. dictatorship, etc.) começou por fazer referência à dictatura (derivado de dictare, “ditar”) na República Romana
antiga, um importante dispositivo constitucional que durou mais de três séculos
e que deixou uma marca duradoura na filosofia política.
Esse dispositivo só era
accionado em circunstâncias críticas bem caracterizadas e segundo procedimentos
legais bem definidos. Através dele, era conferido o exercício do poder político
a um magistrado de confiança com vista a enfrentar uma situação de emergência
interna ou externa considerada de grande perigosidade para a República romana. Havia
duas variedades de ditadura: a dictatura rei
gerunda causa (“a ditadura para
conseguir que as coisas sejam feitas”) e a dictatura
seditiones sedandae et rei gerundae causa (“a ditadura para pôr um fim à insurreição
interna e para conseguir que as coisas sejam feitas”). A lex curiata, o diploma legal que legitimava uma certa ditadura,
fixava o propósito da sua instituição. Num total de 90 ditaduras registadas em
300 anos de história deste dispositivo, cerca de 50 foram rei gerunda causa. A seditiones
sedandae causa é invocada 4 vezes.
A linha divisória entre
assuntos civis e assuntos militares — e, por conseguinte, entre os dois tipos
de ditadura — era, todavia, muito ténue. Uma prova disso é o facto de o
magistrado investido como ditador rei
gerundae causa ser, regra geral, um
ditador militar, um poderoso general dos exércitos romanos cujo imperium (poder e autoridade) se estendia
a toda a cidade de Roma e a toda a vida romana. Os poderes do magistrado
investido como ditador (assim chamado porque dictat, isto é, decide sem consultar outro colega) eram de imperium maius (isto é, muito mais
amplos do que os dos cônsules), mas eram limitados à missão que lhe era
confiada pela República romana (não podia, por exemplo, revogar as leis em
vigor) e a ditadura não podia exceder um período máximo de seis meses [[34]].
Por outras palavras, a ditadura
era concebida como um último baluarte de defesa da república romana perante a
ameaça iminente de um inimigo externo ou de subversão interna da ordem
constitucional. Em suma, era um regime de excepção,
destinado a enfrentar uma situação inteiramente inusitada de grande
perigo. O seu objectivo proclamado era o de preservar o status quo republicano. Na verdade, o
dispositivo da ditadura romana era formalmente dirigido contra todos aqueles
que, hoje em dia, muitos de nós não hesitariam em acusar de quererem instaurar
(ou de terem instaurado)…uma “ditadura”. Funcionou sempre bem durante três séculos,
até ao momento em que Caio Júlio César (100 a.C-44 a.C.) destruiu a ditadura
republicana e se declarou “ditador” vitalício e com plenos poderes, ou seja,
ditador na acepção actual do termo.
Nas repúblicas
representativas (e nas monarquias parlamentares) dos dias de hoje, a que
impropriamente se dá o nome de “democracias”, o dispositivo mais semelhante à
ditadura romana é a declaração do ‘estado de sítio’ (ou da ‘lei marcial’ nos
países anglófonos). Este dispositivo tem três características idênticas à ditadura
romana: (i) baseia-se na legalidade constitucional, não na tirania ou na
autocracia, (ii) é temporário, (iii) é limitado nos seus poderes, e não
absoluto, especialmente por lhe estar vedado impor novas constituições ou
sequer novas leis. É com certeza um dispositivo que pode ser muito facilmente
virado contra a electividade dos chamados “representantes” do povo, mas é
também possível apresentá-lo, como tem sido feito amiúde, como uma medida
extraordinária para evitar a destruição da “democracia” às mãos de um inimigo
antidemocrático.
Esta ambiguidade da ditadura
romana recebeu uma espécie de carta de alforria no século XIX, pela mão da
revolução francesa de 1789 e das revoluções de 1848. Foi durante elas que
emergiram as acepções contraditórias da palavra “ditadura.”
7.2. Segunda
acepção do termo “ditadura”
A suspensão da
Constituição francesa de 1793, já depois de ter sido ratificada, e a
proclamação do governo revolucionário baseado na Convenção (Constituinte)
Nacional são o primeiro exemplo moderno de instauração de uma “ditadura” que
utiliza uma fraseologia de inspiração romana como cobertura de um novo conteúdo
muito pouco romano.
Consideremos o
teor do decreto da Convenção que institui o governo revolucionário de 10 de
Outubro de 1793:
Art.1º. O governo provisório de França é
revolucionário até à [instauração da] paz.
Art.2º. O conselho executivo provisório, os generais, os ministros, os corpos
constituídos, são colocados sob a vigilância
do Comité de Salvação Pública que prestará contas da sua actividade de 8
em 8 dias.
Art.3º. Toda e qualquer medida de segurança
deve ser tomada pelo conselho executivo provisório, mediante autorização do
Comité [de Salvação
Pública], que prestará
contas à Convenção.
Art.4º. As leis revolucionárias devem ser
executadas rapidamente [[35]]
(…)
As justificações
que o Comité de Salvação Pública dá para os seus poderes ditatoriais — acompanhados pelo adiamento da entrada em vigor de uma Constituição recém-aprovada, durante uma guerra interna e externa, feito em nome da segurança pública e da defesa da mesma
Constituição — têm um cunho romano, prova evidente da consciência que os seus
promotores tinham de que não agiam em terreno completamente virgem do ponto de
vista doutrinário.
Contudo, a legitimidade
deste decreto estava longe de ser unanimemente aceitada no campo revolucionário.
Essa foi a razão que levou os Girondinos a atacar «a ditadura da Convenção
Nacional» (o zénite da república representativa nesta época) e a «ditadura da
Comuna de Paris» (a manifestação mais democrática da vontade popular expressa
de baixo para cima que o mundo das sociedades pós-gentílicas tinha
visto desde a Grécia dos séculos Vº e IVº a.C. até a essa data).
Como sublinha Andrew
Arato, a Convenção (Constituinte) deveria ter sido dissolvida
após a ratificação da Constituição, a qual não previa qualquer disposição legal
para um governo provisório ditatorial por vontade dela própria ou de qualquer
outra entidade representativa [[36]].
Mais importante ainda, neste contexto, foi a mudança de interpretação das
tarefas da ditadura (i.e., no caso em apreço, as tarefas do governo
revolucionário provisório) que deixa de ser encarada, como era na antiga
República romana, como um instrumento provisório (ainda que de último recurso) da
preservação da ordem constitucional vigente, para passar a ser vista como um
instrumento de criação de uma nova ordem
constitucional e de uma nova realidade social e política.
É esta mudança radical
no conceito de ditadura que é apresentada com muita clareza por Maximilien de Robespierre no seu
famoso discurso sobre “A teoria do governo revolucionário”,
proferido perante a Convenção, no dia 25 de Dezembro de 1793, e destinado a
justificar o governo revolucionário (i.e., na prática, o Comité de Salvação Pública) instaurado em Outubro de 1793:
(...) A finalidade do governo
constitucional é a de conservar a República; a finalidade do governo revolucionário
é a de fundá-la.
A revolução é a guerra da liberdade contra
os seus inimigos; a Constituição é o regime da liberdade victoriosa e
tranquila.
O governo revolucionário tem necessidade de
uma actividade extraordinária precisamente porque está em guerra. Está submetido
a regras menos uniformes e menos rigorosas porque as circunstâncias em que se
encontra são tempestuosas e móveis e sobretudo porque é forçado a empregar incessantemente
recursos novos e rápidos para fazer frente a novos perigos…O governo
revolucionário tem a obrigação de assegurar toda a protecção nacional aos bons
cidadãos; a sua única obrigação perante os inimigos do povo é infligir-lhes a
morte.
|
Maximilien de Robespierre (1758-1794). Advogado. Membro do Clube dos Jacobinos. Presidente da Convenção Nacional (durante 14 dias) e, ulteriormente, membro do Comité de Salvação Pública (durante 1 ano e 1 dia). Preso e condenado à morte, sem julgamento, em 27 de Julho de 1794, por muitos dos convencionais que o tinham anteriormente apoiado. Guilhotinado no dia seguinte. Nota: Este magnífico retrato digital é obra de Julien Lasbleiz, um multifacetado artista plástico e cineasta francês. Foi realizado, em 2014, tendo como referências (i) a máscara mortuária que Philippe Froesh usou, em 2013, para a sua reconstrução do rosto de Robespierre, e (ii) os retratos existentes de Robespierre, de modo a conseguir chegar a um resultado tão realista quanto possível. A finalização do retrato foi executada de modo a dar a impressão de que se trata de uma pintura a óleo.
|
A ideia de que uma
Assembleia Constituinte e um governo revolucionário escolhido por ela e responsável
perante ela pudessem ser,
respectivamente, o garante legislativo e o órgão executivo-legislativo de uma “ditadura
de classe” (da classe burguesa no caso em apreço) exercida da maneira mais
concentrada, directa e ampla possível, teve, como veremos de seguida, uma
grande influência sobre o jovem Marx.
7.3. Uma ilustração da “ditadura” da democracia
Marx, com 30 anos na altura, foi um
interveniente directo na revolução alemã de 1848, na sua qualidade de redactor-chefe do jornal diário Neue Rheinische Zeitung — Organ der Democratie, publicado na cidade de Colónia, porta-voz da esquerda democrática
alemã.
|
Exemplar do Neue Rheinische Zeitung, organ der democratie [Nova Gazeta Renana, órgão da democracia], o jornal diário de Colónia do qual Karl Marx foi fundador e redactor-chefe.
|
O primeiro-ministro
do governo provisório saído dessa revolução, o senhor Camphausen, um
capitalista accionista do Neue
Rheinische Zeitung, estava
apostado em fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir que a
revolução pudesse derrubar a monarquia prussiana e o seu governo absolutista. O
seu argumento principal, que não se cansava de repetir, era este: (i) se a
Assembleia Nacional e o seu governo (o governo chefiado por ele, Camphausen) assumissem
o poder soberano em nome da vontade popular, isso seria instaurar uma
“ditadura” — a ditadura da democracia. (ii) Se o seu governo reformasse
o sistema elitista de voto de maneira a instaurar o sufrágio universal, isso
seria também instaurar uma “ditadura” — a ditadura da democracia.
A linha política
defendida por Marx nas páginas do Neue Rheinische Zeitung era exactamente a oposta: a Assembleia Nacional deveria declara-se
soberana, repudiar o governo absolutista e apelar ao povo para defender por
todos os meios a representação nacional. Foi neste contexto que Marx escreveu nas páginas do Neue
Rheinische Zeitung:
Todo e qualquer Estado provisório que se
estabeleça depois de uma revolução requer uma ditadura, e uma ditadura enérgica
que esteja à altura. Desde o início que criticámos Camphausen por não agir
ditatorialmente destruindo e eliminando imediatamente os remanescentes das
velhas instituições. Assim, enquanto o senhor Camphausen se auto-embalava com
sonhos constitucionais, o partido derrotado fortalecia as suas posições na
burocracia e no exército — na
verdade, aventurava-se mesmo, aqui e ali, a travar uma luta aberta.
Mas quais eram,
afinal, as medidas “ditatoriais” que, na opinião de Marx, a Assembleia Nacional
democraticamente eleita deveria tomar, e como se ficaria a parecer a “ditadura”
da democracia depois de as tomar? Uma parte da resposta já foi mencionada: teriam
de ser medidas destinadas a “destruir e eliminar imediatamente os remanescentes das
velhas instituições [feudais].” Mas que medidas eram essas exactamente? Elas foram
expressas em muitas passagens do livro Revolução e Contra-Revolução na Alemanha em 1848 escrito por Marx. O trecho seguinte representa
bem essas passagens:
…Se a
Assembleia estivesse possuída do mínimo de energia, teria dissolvido
imediatamente a Dieta e teria mandado os seus membros recolherem ao domicílio — e não havia na Alemanha um órgão corporativo
que fosse mais impopular do que a Dieta —, substituindo-a por um governo federal
formado com membros escolhidos no seio da Assembleia. Ter-se-ia declarado a
única expressão legal da vontade soberana do povo alemão, e teria conferido
desse modo validade legal a todos os seus decretos. Acima de tudo, teria
garantido a sua existência através de uma força armada e organizada no país que
desmantelasse qualquer oposição dos Governos [regionais].
7.4. Terceira e quarta acepções de “ditadura”
A revolução francesa
de 1848 oferece-nos mais um contexto para examinarmos o modo como Marx
empregava a palavra “ditadura”.
Em Junho de 1848, o
“Partido da Ordem” (o partido da burguesia conservadora que reunia as suas duas
facções monárquicas, os legitimistas e os orleanistas) dissolve a comissão executiva da Assembleia Nacional Constituinte,
empossa o general Cavaignac, investindo-o com os poderes inerentes ao estado de
sítio, e dá-lhe a missão de derrotar a insurreição proletária — missão que ele cumpre a
preceito: 3.000 prisioneiros fuzilados e 15.000 deportados sem julgamento. Marx descreve
Cavaignac e as medidas por ele tomadas da maneira mais negativa possível. Mas
isso não o impede de qualificar esse regime de ditadura militar no sentido romano do termo:
A victória de Junho levou, durante algum
tempo, toda a França burguesa a saudar Cavaignac como o seu salvador, e quando,
pouco tempo depois das jornadas de Junho, o partido anti-republicano [os monárquicos
orleanistas e os monárquicos legitimistas do “Partido da Ordem”, N.E] recuperou a sua independência, a ditadura
militar e o estado de sítio em Paris só lhe permitiram mostrar os chifres de um
modo muito tímido e com muita prudência. (…) Durante algum tempo, o exército e a classe camponesa
acreditaram que a ditadura militar punha na ordem do dia da França a guerra com
o estrangeiro e a “glória”, ao mesmo tempo. Mas
Cavaignac não era a ditadura do sabre sobre a sociedade burguesa; era a
ditadura da burguesia por intermédio do sabre. E, na altura, a burguesia não requeria do militar Cavaignac mais do que os
seus serviços de gendarme [o equivalente a um militar da GNR, entre nós, N.E] [[37]].
Aqui, Marx faz uma
clara distinção entre a ditadura de uma
classe e a ditadura sobre uma classe.
Quando, na fase seguinte dos acontecimentos, o “Partido da Ordem” usou a sua
maioria parlamentar para descartar o sufrágio universal, Marx comentou:
Ao repudiar o sufrágio universal com o qual
se tinha embandeirado e do qual tinha extraído a sua omnipotência, a burguesia
confessa abertamente: «A nossa ditadura existiu
pela vontade do povo; agora tem de ser consolidada contra a vontade do povo [[38]].»
Esta referência a
uma “ditadura” baseada no sufrágio universal e reflectindo “a vontade do povo”
é outra indicação da grande aura desta palavra no vocabulário marxiano. “Ditadura”
significa aqui, muito simplesmente, “poder de Estado”, “supremacia política de
uma classe socioeconómica”.
Por outro lado, Marx
qualifica os golpes de Estado feitos pelos dois Bonapartes (Napoleão Bonaparte,
mais tarde apelidado de Napoleão I, e o seu sobrinho e herdeiro Luís-Napoleão
Bonaparte, que se intitularia de Napoleão III) e os regimes autoritários a que
dão origem de ditadura militar e de despotismo, simultaneamente (cf. K. Marx [1853], O 18 de Brumário
de Louis Bonaparte) [[39]].
Estes matizes
terminológicos no emprego da palavra “ditadura” não são, de modo nenhum,
fortuitos. Eles decorrem dos diferentes papéis desempenhados, em diferentes
conjunturas, por estes diferentes agentes políticos no quadro das instituições políticas
existentes, bem como da sua relação com a classe socioeconómica a que
pertenciam no desempenho desses papéis, sobretudo no que diz respeito ao
desempenho de funções governamentais.
Camille Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão,
os heróis, assim como os partidos e a massa da primeira Revolução francesa, desempenharam
com uma roupagem romana e servindo-se de uma fraseologia romana a tarefa da sua época, a saber: a
eclosão e a instauração da sociedade burguesa moderna.
Dito de outro modo,
estes heróicos “gladiadores” políticos (o termo é de Marx)
encontraram nas tradições estritamente
clássicas da República romana os ideais e as formas de arte, as ilusões de que
tinham necessidade para dissimularem perante si próprios o conteúdo estritamente
burguês das suas lutas e para manterem o seu entusiasmo ao nível da grande
tragédia histórica. (…)
Se os primeiros [Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just] reduziram a estilhas as instituições
feudais e cortaram as cabeças feudais que tinham crescido nessas instituições,
Napoleão criou, dentro da França, as condições graças às quais se podia
doravante desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade parcelar do
solo e utilizar as forças produtivas industriais libertadas da nação, ao passo
que, fora da França, ele varria em todo o lado as instituições feudais na
medida em que isso era necessário para criar à sociedade burguesa em França a
envolvência de que ela tinha necessidade no continente europeu. Depois de
estabelecida a nova forma de sociedade, desapareceram os colossos
pré-diluvianos, e, com eles, a Roma ressuscitada: os Brutos, os Gracos, os Publícolas, os tribunos, os senadores e
o próprio César. A sociedade
burguesa, na sua sóbria realidade, tinha criado os seus verdadeiros intérpretes
e porta-vozes na pessoa dos Say, dos
Cousin, dos Royer-Collard, dos Benjamin
Constant e dos Guizot [[40]].
E foi assim que a revolução francesa de 1789 a 1814 se vestiu
sucessivamente com o guarda-roupa da República romana e com o guarda-roupa do
Império Romano, e que a revolução de 1848 não conseguiu fazer nada melhor do que
parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793 a 1795. Na verdade, o período de 1848 a 1851, de Cavaignac a
Napoleão III,
não fez
senão evocar o espectro da grande Revolução francesa, desde [Armand] Marrast,
o republicano das luvas amarelas, que tomou o lugar [de presidente
da Câmara de Paris] do velho [Jean Sylvain] Bailly, até ao aventureiro [Luís Bonaparte] que dissimula
os seus traços de uma banalidade repelente debaixo da máscara mortuária de
ferro de Napoleão [[41]].
7.5. Resumo
Em resumo, na sua
análise das lutas de classes na Alemanha e na França de 1848 a 1851, Marx emprega
o termo “ditadura”:
(i) no seu sentido
tradicional, romano (exemplificado, no seu pior, pela ditadura do general Cavaignac);
(ii) no seu sentido despótico, bonapartista (exemplificado por Napoleão
Bonaparte e pelo seu sobrinho, Luís-Napoleão Bonaparte);
(iii) num sentido revolucionário, como um “governo enérgico” respaldado num
órgão de poder democrático (exemplificado pelo governo da Convenção Nacional de
1793);
(iv) num sentido metafórico, como
sinónimo de “poder de Estado de uma classe socioeconómica”, independentemente
das modalidades do seu exercício [[42]].
O facto importante
a reter é este: em meados do século XIX,
a palavra “ditadura” ainda conserva o seu sentido romano, original —correspondente ao
que modernamente se designa por “estado de sítio” (Ingl. martial law). Neste
seu sentido, ela não é, por si só, um sinónimo de despotismo, tirania,
absolutismo ou autocracia, termos com os quais se pode, eventualmente, combinar
metaforicamente. Sobretudo, a palavra “ditadura” nunca é contraposta à palavra “democracia”. A aura contemporânea
que faz com que “ditadura” seja, para muitos de nós, indivíduos do século XXI, uma
palavra que evoca um regime político execrável, antitético da democracia, ainda não existia.
8. A ditadura do proletariado
Passemos agora à última
pergunta que formulámos na secção 5, a pergunta (c): que significado tinha a
expressão “ditadura do proletariado” (Al. diktatur des Proletariats) para Marx?
Hal Draper (1914-1990)
fez um estudo minucioso das ocorrências da expressão
“ditadura do proletariado” na obra de Marx e de Engels [[43]]. Os seus
achamentos são muito interessantes.
a) Draper só encontrou 11 ocorrências dessa expressão na
obra publicada de Marx e Engels (contando as ocorrências num mesmo locus [texto] como uma só).
b) Essas ocorrências distribuem-se desigualmente por três
períodos bem distintos.
— Período 1: de
1850 a 1852, o período pós-revolucionário que se seguiu às grandes convulsões
sociais de 1848-1849.
Locus 1. Marx, As Lutas de Classes em França 1848–1850 (texto escrito
de Janeiro a Março de 1850)
Locus 2. Marx, Ao Editor do
Neue Deutsche Zeitung! (“Neue Deutsche Zeitung” nº 158, 4 de
Julho de 1850)
Locus 3. Marx, Carta a Joseph
Weydemeyer (5 de Março de
1852)
— Período 2: de 1872 a 1875, o período
pós-revolucionário que se seguiu à
Comuna de Paris.
Locus 4. Marx, Discurso no banquete de celebração do sétimo aniversário
da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 25 de Setembro de 1871, em
Londres (publicado pelo jornal “The
World” de Nova Iorque, em 15 de Outubro de 1871)
Locus 5. Marx, A indiferença
relativamente à política (texto
escrito em Janeiro de 1873 e publicado no “Almanacco Republicano per
l’anno 1874”)
Locus 6. Engels, Sobre a Questão da Habitação III (texto
publicado no jornal “Der
Volksstaat” de Leipzig, em 1872 e 1873)
Locus 7. Engels, O programa
dos fugitivos Blanquistas da Comuna de Paris (texto escrito em 26 de Junho de 1874)
Locus 8. Marx, Crítica do Programa
de Gotha (texto escrito de
Abril a Maio de 1875)
— Período 3: de 1890-1893,
um período em que Marx já não era vivo e que, por
conseguinte, envolve apenas Engels.
Locus 9. Engels, Carta a Conrad Schmidt (27 Outubro 1890)
Locus 10. Engels, Introdução à monografia de K. Marx, A Guerra Civil
em França (texto escrito em 18 de Março de 1891)
Locus 11. Engels, Uma crítica do projecto de programa social-democrata de
1891 (texto escrito entre 18
e 29 de Junho de 1891).
Estes são os loci onde encontramos a expressão “ditadura do proletariado” escrita pela mão de Marx e pela mão de Engels. Convém acrescentar ainda um locus independente deles: o testemunho de Alexei Mikhailovich Voden, Conversas com Engels (travadas em 1893).
c) Em todas as ocorrências, qualquer que seja o período, a
expressão “ditadura do
proletariado” não significa nada mais nem nada menos, para Marx e Engels,
do que “regime político do proletariado” [[44]],
“exercício do poder político pela classe proletária”, “constituição do proletariado em
classe politicamente autónoma”, “conquista da democracia pelo proletariado”, “uma
república democrática em que o proletariado tem a supremacia política”, a “substituição
do poder de Estado da burguesia por um poder novo, verdadeiramente democrático,”
como regime de transição para uma sociedade sem classes socioeconómicas, sem antagonismos de classes e sem
Estado.
À pergunta de Bakunine: «O que quer dizer “o proletariado organizado em classe dominante?”», Marx respondeu: «Significa que os proletários, em vez de lutarem individualmente contra as classes economicamente privilegiadas, adquiriram poder e organização suficientes para empregarem meios comuns de coerção na sua luta contra elas. Mas [para isso] só podem empregar meios económicos que suprimam o seu carácter de trabalhadores assalariados e, por conseguinte, o seu próprio carácter de classe. Destarte, a sua dominação termina com a sua victória total, visto que o seu carácter de classe desaparece» (K. Marx. Resumo Crítico do livro Estatismo e Anarquia de Mikhaïl Bakunine, escrito em 1874 ou 1875).
d) A motivação principal do emprego da expressão “ditadura
do proletariado” em Marx e Engels foi a de contrariarem e combaterem a ideia-força de uma
ala muito influente do movimento socialista de então, os correligionários de Louis-Auguste Blanqui (1805-1881), conhecidos por “Blanquistas”.
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Louis-Auguste Blanqui aos 30 anos (1835),
retratado pela Madame Blanqui.
|
Para os
“Blanquistas”, um pequeno número de revolucionários destemidos, resolutos
e disciplinados (como eles próprios se consideravam e com razão) seria capaz de organizar secretamente um golpe de Estado, tomar o poder e mantê-lo em nome
das massas populares, desde que conseguisse obter o seu apoio com medidas políticas
apropriadas, organizá-las e educá-las sob o seu comando para virem a conseguir
exercer elas próprias o poder quando estivessem aptas a fazê-lo — isto é, quando os revolucionários, do alto do seu juízo, decidissem que as
massas populares tinham, finalmente, alcançado esse grau de aptidão. Até lá, durante
um período transitório mais ou menos longo, no mínimo de uma geração, o país
seria governado pelos revolucionários. Isso exigiria a férrea centralização do
poder (legislativo, governativo, judiciário) nas mãos do novo governo
revolucionário, uma situação a que se pode aplicar o termo “ditadura” — a ditadura de um
partido, em vez da ditadura de um homem só como na Roma antiga.
Seria um erro
subestimar a influência desta ideia de uma ditadura de revolucionários
esclarecidos que educam e dirigem as massas populares para a instauração do
socialismo. Ela teve a sua primeira e mais pura expressão em François Nöel
(“Graco”) Babeuf e a sua “Conspiração dos Iguais” durante a revolução francesa de
1789, de que os “Blanquistas”
se consideravam herdeiros. Ela teve a sua segunda expressão no século XIX, nas
insurreições fracassadas de 12 de Maio de 1839, de 15 de Maio de 1848, e de 31
de Outubro de 1870, em que Blanqui e os “Blanquistas” desempenharam um papel determinante.
E a mesma ideia tornará a ressuscitar na Rússia, no princípio do século XX, sob
a pluma de Lenine, como observou perspicazmente Rosa Luxemburgo [[45]].
A influência do
“Blanquismo” durante a vida de Marx e Engels, especialmente no período 2 supramencionado,
pode ser avaliada pelo facto de Louis-Auguste Blanqui — que jazia nessa altura
na prisão por ordem de Adolphe Thiers como represália pelo seu papel na
insurreição de Outubro de 1870 — ter sido eleito
presidente da Comuna de Paris em 1871 in
absentia. A Comuna de Paris propôs (em vão) a Thiers a libertação de
Blanqui em troca da libertação do arcebispo de Paris e de toda uma série de
clérigos seus reféns.
|
Louis-Auguste Blanqui já idoso. |
Outro sinal
inconfundível da influência do “Blanquismo” foi o facto da maioria dos membros do
governo da Comuna de Paris (designado por “Comissão Executiva” da Comuna de Paris) serem “Blanquistas”. Não é de admirar, portanto,
que o termo “ditadura do proletariado” surja sempre, na prosa de Marx e de
Engels, em conexão com o “Blanquismo”
e em contraposição ao seu conceito de
“ditadura revolucionária dos destemidos”. Como observa Hal Draper:
Normalmente, a expressão de Marx para essa
ideia [a ditadura do
proletariado]
era “regime político do proletariado” [rule of proletariat], “poder político do proletariado”, etc., como no Manifesto [do Partido
Comunista]. Mas quando se trata de contrapor este
conceito de classe à ditadura do tipo Blanquista, o conceito é expresso na
fórmula “ditadura de classe”. A
ditadura de classe é então contraposta à ditadura Blanquista para fazer o
contraste (H. Draper, Capítulo
1 de The ‘Dictatorship of the Proletariat’ from Marx to Lenin, Monthly
Review Press, 1987).
“Ditadura de
classe” significa pois, neste contexto, poder político comum e colectivo de uma
classe socioeconómica, neste caso a classe proletária. Nas frentes unidas com
os Blanquistas, só esta fórmula era aceitável para Marx e Engels.
9. A carta de Marx a Weydemeyer
Regressemos agora
à carta que Marx escreveu ao seu amigo e camarada Joseph Weydemeyer
em 5 de Março de 1852. É a primeira e a
única vez que a expressão “ditadura do proletariado” ocorre na correspondência
privada de Marx. Por que é que isso acontece nesta ocasião? Por uma boa e
simples razão.
Depois de ter
fugido da Alemanha (onde era perseguido) para a Suíça (onde não consegue
encontrar trabalho), Weydemeyer — membro, como Marx, da Liga dos Comunistas e ex-redactor do Neue Rheinische Zeitung — decide emigrar para os EUA. A conselho de Marx,
instala-se em Nova Iorque, onde chega a 7 de Novembro de 1851. O primeiro
artigo que escreve em solo americano é publicado num jornal de língua alemã, o Turn-Zeitung, no dia 1 de Janeiro de
1852. Tem por título A Ditadura do
Proletariado. Segundo Draper, este é provavelmente o único artigo
que foi publicado com um tal título até 1918. O mais interessante é que o
artigo não é, no essencial, sobre a ditadura do proletariado. Na sua maior
parte, é um condensado do Manifesto do Partido Comunista (1848) de Marx
e Engels. Há uma referência à ditadura do proletariado que
só aparece no último parágrafo.
|
Joseph Weydemeyer (1818-1866). Geómetra, ex-oficial do exército da Prússia e, mais tarde, tenente-coronel do Exército de Abraham Lincoln na guerra civil americana, jornalista, comunista, amigo pessoal de Karl Marx.
|
Quando Marx
escreve a sua carta, ele acabou de receber um exemplar do Turn-Zeitung com o artigo A Ditadura do Proletariado de Weydemeyer. A carta tem por objectivo dar ao
seu amigo sugestões de material para novos artigos e conselhos sobre o modo de
lidar com opositores seus americanos. É neste contexto que Marx escreve o
trecho já nosso conhecido:
Agora no que me diz respeito: não me cabe o mérito de ter
descoberto a existência das classes na sociedade moderna, nem tão pouco a luta
que nela travam. Muito antes de mim, historiadores burgueses tinham exposto a
evolução histórica dessa luta de classes, e economistas burgueses tinham
descrito a sua anatomia económica. A minha originalidade consistiu em
demonstrar (1) que a existência das
classes está ligada apenas a certas fases
históricas do desenvolvimento da produção;(2) que a luta das classes conduz
necessariamente à ditadura do
proletariado; (3) que mesmo esta ditadura representa
apenas uma transição para a abolição de
todas as classes e para uma
sociedade sem classes.
Ao usar, aqui, a
expressão “ditadura do proletariado” Marx não fazia mais do que dar eco ao
título do artigo de Weydemeyer, o qual, por sua vez, dava eco aos artigos de
Marx sobre As Lutas de Classes em França
1848-1850, publicados nos quatro
primeiros números do jornal Neue Rheinische Zeitung de que Weydemeyer tinha
sido também redactor. Em ambos os
casos, tratava-se de uma expressão cujo significado especial era perfeitamente
conhecido por estes dois homens.
Nos 20 anos
seguintes não há nenhuma ocorrência dessa expressão nos escritos públicos ou
privados de Marx ou de Engels. Durante estas duas décadas, os contactos dos
dois homens com os “Blanquistas” foram também muito escassos, razão pela qual o
termo não é usado. Os “Blanquistas” continuam a falar, como de costume, das
vantagens que adviriam da ditadura dos revolucionários ou — o que vem a ser
mesmo no seu vocabulário — da “ditadura de
Paris” (sobre a província), ao passo que Marx e Engels continuam a falar, como
de costume, do “regime político do proletariado” ou do “poder político da
classe trabalhadora”. Como vimos, a “ditadura do proletariado” é a reformulação
dessas duas fórmulas quando se trata de contrapô-la à “ditadura de uma minoria revolucionária” ao
estilo “Blanquista”.
Quando Marx
escreve A
Guerra Civil em França (1871) ainda
não tem contacto com os “Blanquistas” [[46]],
razão pela qual o termo “ditadura do proletariado” não aparece nesse trabalho.
No entanto, há dois aspectos
desse texto que são importantes para o resto da história.
1) Marx apresenta a Comuna (decalque do Fr. commune) de Paris como «um governo da
classe trabalhadora (…), a forma política finalmente encontrada para levar a cabo a
emancipação económica do Trabalho». Estas e outras formulações
semelhantes correspondem ao que ele, na carta a Weydemeyer e noutras ocasiões, denominara
“ditadura do proletariado.”
|
Edital de proclamação da Comuna de Paris em 29 de Março de 1871 e das suas primeiras medidas legislativas.
|
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Barricada na praça Vendôme, na embocadura da rua de Castiglione, durante a Comuna de Paris de 1871. Foto de Bruno Braquehais. |
2) Ao mesmo tempo, A Guerra Civil em França descreve com cores fortes o carácter
retintamente democrático da Comuna de Paris, bem manifesto nas suas medidas, como,
por exemplo: A) o fim de toda a
investidura hierárquica; B) a eleição
por sufrágio universal de deputados [chamados “conselheiros”] municipais em todos os arrondissements da Comuna (i.e. do município)
de Paris [[47]],
responsáveis perante as assembleias dos seus eleitores e revogáveis por elas em
qualquer momento; C) a auto-instituição do exercício do poder executivo e legislativo
pelos deputados constituintes da Comuna de Paris; D) a instituição do princípio da electividade para todos os juízes,
magistrados judiciais, polícias e funcionários administrativos parisienses, e do
princípio da sua responsabilidade perante a Comuna de Paris; E) a abolição do exército profissional permanente
e a sua substituição por uma milícia de todos os cidadãos com um tempo de
serviço individual muito curto; F) a
decisão da Comuna de Paris de entregar as empresas fechadas ou abandonadas
pelos seus proprietários capitalistas aos trabalhadores que nelas trabalhavam,
a fim de lhes permitir, mediante uma prestação pecuniária à Comuna,
transformá-las em empresas cooperativas e geri-las democraticamente como tal.
|
Edital da Comuna de Paris decretando a abolição do serviço militar obrigatório nas fileiras do exército profissional e a instituição, em lugar do exército profissional, de uma milícia constituída por todos os cidadãos válidos e com um tempo de serviço individual curto.
|
|
Edital da Comuna de Paris de 20 de Abril de 1871 com o decreto da abolição do trabalho nocturno.
|
Marx resume estas
e outras medidas dizendo que «a grande medida
social da Comuna foi a sua própria existência e a sua própria acção. As suas
medidas particulares só podiam indicar a tendência de um governo do povo e pelo
povo». A Comuna «dotou a República de instituições de base realmente
democráticas.» Em contrapartida,
os “Blanquistas” consideraram as medidas democráticas da Comuna de Paris como
uma manifestação de fraqueza e um erro. Como
bem observou Hal Draper, «o contraste entre estas duas análises diametralmente
opostas da democracia da Comuna estava contido em embrião nas duas formulações diferentes
da “ditadura”» (op.cit.) [[48]].
|
Barricada no cruzamento do Boulevard Voltaire com o Boulevard Richard-Lenoir, durante a Comuna de Paris de 1871. |
10. Vislumbre da 2ª parte deste artigo
Aqui chegados,
creio que o leitor já tem todos os elementos que lhe permitirão concluir
que, agora, sabe ao certo (se é que ainda não sabia, como julgo ser muito
provável [[49]]) duas coisas:
(i) qual foi o
motivo que levou Marx a inventar a expressão “ditadura do proletariado” — a saber, manter
um canal de comunicação aberto com os “Blanquistas”, o partido socialista mais prestigiado e influente no seio dos proletários franceses da sua época;
(ii) qual era o significado que Marx atribuía à expressão “ditadura do
proletariado” — a saber, a forma republicana democrática que permite realizar a
emancipação económica do proletariado e que a Comuna de Paris de 1871 conseguiu
corporizar pela 1ª vez na história, durante 2 meses e 10 dias, antes de ser afogada em sangue pelos seus inimigos.
|
Barricada na rua Charonne durante a Comuna de Paris.
|
E creio ter também
fornecido ao leitor todos os elementos que lhe permitirão concluir que sabe agora (se é que as desconhecia, o que creio ser também muito provável) quais são
as razões para considerar que essa expressão é uma má metáfora. Na verdade,
podemos afirmar, tirando partido de uma análise retrospectiva, que essa
expressão metafórica estava, em razão de grave e irreparável defeito de fabrico, fadada
para semear a confusão, em vez de oferecer aos seus utentes um foco de luz brilhante
sobre o conceito que pretende transmitir.
Nessa ordem de
ideias, mostrarei, na 2ª parte deste artigo, como a expressão “ditadura do
proletariado”, em virtude da sua irremediável anfibologia, se prestou a ser utilizada
de duas maneiras insidiosas que metamorfosearam completamente, desfigurando-o,
o seu significado marxiano aos olhos de dezenas de milhões de trabalhadores por
esse mundo fora. Ambas as metamorfoses se produziram na Rússia.
A primeira metamorfose
ocorreu por via das doutrinas de Lenine e da actuação governamental do partido
bolchevique entre Julho de 1918 e Janeiro de 1924, que a utilizaram como sinónimo de uma ditadura ao
estilo “Blanquista” (isto é, paternalista nas palavras e férrea nos actos) de um
partido sobre o pequeno proletariado russo para, alegadamente, ensiná-lo a
realizar a sua emancipação económica nas condições concretas muito adversas de
um imenso país agrário e atrasado, mas cobiçado por várias potências
imperialistas hostis. A segunda metamorfose ocorreu por via das doutrinas de
Estaline e da actuação governamental da sua facção no partido bolchevique entre
1924 e 1928, que lhe conferiram ulteriormente (1928-1953) ressonâncias
sinistras ao utilizá-la como fórmula oficial de caracterização de um regime de despotismo
sanguinário sobre o proletariado e o campesinato russos e sobre todos os povos
não-russos da ex-Rússia czarista.
Reduzida ao essencial,
a mensagem da 2ª parte deste artigo será, pois, a seguinte: quem
compreende a necessidade de prosseguir a luta de Marx por uma sociedade
democrática, tecnologicamente avançada, ecologicamente sustentável, sem classes
socioeconómicas e sem Estado, tem motivos históricos mais do que suficientes para
abandonar de vez essa infeliz expressão marxiana à crítica roedora dos ratos.
Feito isto, teremos de ver que modificações devem ser feitas nas teses 2 e 3 da
carta de Marx a Weydemeyer para lhes restituir o seu sentido emancipatório.
José Manuel Catarino
Soares
Lisboa, 20-06-2018
P.S. Todas as fotos sobre o trabalho fabril do proletariado que ilustram este texto, são, com uma excepção, do sociólogo Lewis Wickes Hine (1874-1940). Hine, um ex-professor do ensino liceal e fotógrafo amador, percorreu os EUA de lés a lés, de 1908 a 1924, tirando milhares de fotos com vista a ilustrar a exploração capitalista desenfreada do trabalho infantil nas fábricas e nos campos. Estava convencido (com razão) que essa seria uma poderosa arma para combater esse flagelo. Infelizmente, não há documentação fotográfica que ilustre, de modo comparável, as condições de vida e de trabalho do proletariado europeu (incluindo o proletariado infantil e feminino) no século XIX. Sobre elas possuímos apenas documentação escrita (embora muito vasta) e alguma gravura, pintura e património edificado com valor documental. A tecnologia fotográfica só começou a generalizar-se — e, ainda assim, de modo muito incipiente — já Marx e Engels eram ambos homens de idade avançada. Todavia, as fotos de Lewis W. Hine, mais de meio século depois da monografia A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845) de Friedrich Engels, permitem-nos imaginar, de modo muito vívido, como seriam (ainda piores, sem dúvida) as condições de trabalho e de vida do proletariado europeu na época de Marx e Engels, ajudando-nos a compreender melhor o significado prático e histórico da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores.
[1]. O plano de desenvolvimento teórico que Marx
gizou para O Capital, em 1865/1866, e que não sofreu modificações
ulteriores, compreendia 4 partes: 1) o processo de produção do capital; 2) o
processo de circulação do capital; 3) formas do processo de conjunto [unidade dos processos 1 e 2] ; 4) contribuição à história da teoria desenvolvida em
1, 2 e 3. Só a parte 1 foi publicada durante a vida de Marx, em 1867 (O Capital, volume 1). As partes
2 e 3, inacabadas, foram editadas e publicadas postumamente por Friedrich Engels em 1885 (O Capital, volume 2) e 1895 (O Capital, volume 3), respectivamente. A edição MEGA2 permitiu já constatar que os manuscritos originais de Marx relativos à parte 3 são bem diferentes da versão editada e publicada por Engels como volume 3 de O Capital. Qualquer discussão futura terá de reportar-se à edição MEGA2. Os rascunhos para a
parte 4 foram publicados postumamente por Karl Kautsky, de 1905 a 1910, em 3
volumes, com o título Teorias sobre a Mais-Valia,
embora com muitas alterações e muitos cortes do texto original que edições ulteriores reverteram. Marx
escreveu muitos outros livros, ensaios
e artigos sobre temas de economia política, política, sociologia, filosofia e
história caracterizados por uma crítica cerrada e inédita da sociedade vigente.
Mas, O Capital, apesar de ter ficado inacabado, é o seu magnum opus.
[4]. Oito indivíduos possuem, neste momento, mais riqueza do que metade da população mais pobre do planeta. Para estas e outras estatísticas conexas, ver Thomas Piketty (2014), O Capital no Século XXI. Lisboa. Temas e
Debates; Deborah Hardoon, Sophia Ayele & Ricardo Fuentes-Nieva (2016), A Economia para o 1%. Oxfam, https://www.oxfam.org.br/noticias/relatorio_davos_2016;
Branco Milanovic (2017), A Desigualdade
no Mundo. Lisboa.
Actual Editora.
[7]. Maximilien Rubel
(1974/2016), Marx, critique du marxisme. Paris, Payot; Michel Henry (1976/1991), Marx, tome I. Une philosophie de la réalité. Paris, Gallimard, 1976, p.9 (reedição: collection "Tel", 1991).
[8] . «“Tudo o que sei”, disse Marx, “é que eu não sou
um marxista.” O que nos anos 1870 era uma clara piada dialéctica
transformou-se, desde então, num problema político de primeira importância» (John Molyneux, “What is the real marxist tradition?” International Socialism 2:20, July 1983). Concordo com a apódose (2ª parte) desta frase, mas não com a prótase (1ª parte). Voltarei a este assunto na 2ª parte deste artigo.
[11] . Por “a obra de Marx” deve entender-se, no presente contexto, uma forma
abreviada de dizer: “a obra de Marx e as obras de Marx escritas em colaboração
com Engels.” Semelhantemente, por “a obra de Engels”, deve entender-se, no
presente contexto, uma forma abreviada de dizer: “a obra de Engels e as obras
de Engels escritas em colaboração com Marx.”
[14] . Tobias Buck,“Plan to publish full works of Marx is long tome
in the making”. Financial Times, June 15, 2018.
[17] . Os enunciados entre aspas angulares são de Jean-Marie Vicent no seu
livro Un Autre Marx (2001), éditions
Page Deux, collection Cahiers Libres. Eles exprimem
bem a atitude ambivalente deste autor perante a obra de Marx, sintetizada nesta
frase sibilina: «Marx
não está completamente inocente dos extravios do marxismo.» Esta afirmação aberrante tem sido repetida vezes sem conta. Ainda recentemente, um economista, professor na Universidade Católica de Lisboa, o fez da seguinte forma: «Mas a herança de Marx não pode ser desligada do que foi realizado em seu nome», nomeadamente «os regimes marxistas» que «geraram das piores desgraças da história» (João César das Neves. "Veneno na Ferida". Diário de Notícias, 17-03-2018). Isto ilustra bem a observação de Maximilien Rubel: «Pretender
fazer acreditar, por exemplo, que “Marx é o fundador do marxismo” daria
simplesmente vontade de rir se esta fórmula absurda não se encontrasse em
publicações sérias como são certas grandes enciclopédias impressas em numerosos
países» («Et
si Marx était le premier anti-marxiste?» Entrevista a Maximilien Rubel de Jean-Paul Kauffmann, no jornal Le Matin, 30 de Março de 1983).
[19]. «Toda e
qualquer opinião baseada na crítica científica é bem-vinda Quanto aos
preconceitos da chamada opinião pública, à qual nunca fiz concessões, a minha
divisa de hoje e de sempre é a do grande florentino: ‘Segui il tuo corso, e lascia dir le genti’» (K. Marx.
Prefácio ao tomo 1 de O Capital.
1867). Na verdade, Marx adaptou o versículo de Dante aos seus propósitos. O
versículo original é: “Vien dietro a
me, e lascia dir le genti” [“Segue-me, e não faças caso do que os outros
dizem” ou, na tradução de
José Pedro Xavier Pinheiro, Segue-me: a vozes vãs ouvido escasso!]. (Dante Alighieri [1321]. A Divina
Comédia. Purgatório. Canto 5º, versículo 13). Sobre Marx como admirador de Dante, ver o estudo de Giovanni Sgro’« “Segui il tuo corso, e lascia dir le genti !” Karl Marx lettore della Commedia.» Dante: Rivista Internazionale di Studi su Dante Alighieri. X. 2013. Fabrizio Serra Editore, Pisa · Roma.
[23] . Cícero, De Republica, livro
II, cap. XXI. Remacle.org. Minha
tradução a partir do francês.
[30] . Cf. Claude Nicolet (1997). ‘Introduction. Dictature, Absolutisme et
Totalitarisme’. Revue Française d’Histoire
des Idées Politiques,nº 6, 2e semestre, p.230
[35] . Archives parlementaires, 1ère
série, Convention nationale, séance du 10 octobre 1793.
[37] . K. Marx (1850), As Lutas de
Classes em França de1848 a 1850. A tradução é minha a partir da tradução francesa, mas o leitor interessado dispõe de uma tradução portuguesa desta monografia acessível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/index.htm .
[38] . K. Marx (1850), As Lutas de
Classes em França de 1848 a 1850.
[41] . K. Marx (1852), O 18 de Brumário
de Louis Bonaparte.
[43] . Hal Draper
(1962), “Marx and the Dictatorship of the Proletariat”.
New
Politics,
Vol. 1, Nº. 4, Summer 1962, pp. 93 ff; Hal Draper (1987), “The ‘Dictatorship of
the Proletariat’ in Marx and Engels”. Cap.1 de The ‘Dictatorship of the
Proletariat’ from Marx to Lenin. New York.
Monthly Review Press.
[45] . Rosa Luxemburgo (1904), Questões
Organizativas da Social-Democracia Russa, texto publicado em Inglês sob o
título enganador de Leninism or Marxism? [Leninismo ou
Marxismo?](https://www.marxists.org/archive/luxemburg/1904/questions-rsd/)
[46] . Isso só vai ocorrer depois da derrota da Comuna de Paris, em 1871. Um
numeroso grupo de ex-communards
(membros da Comuna de Paris) “Blanquistas” procura então refúgio na Inglaterra,
onde residem Marx e Engels. Das discussões que travam com Marx e Engels,
resultará uma notável evolução política de muitos deles, que os levará a aderir
à Associação Internacional de Trabalhadores e a alinharem-se, dentro e fora dela, com as posições
de Marx.
[48] . Diga-se, porém, em abono da verdade, que uma parte considerável dos
“Blanquistas” virá a fazer um balanço diferente dos pontos fortes e fracos da
actuação da Comuna de Paris, como já tive ocasião de assinalar (cf. nota 46 supra).
[49] . «Provável» no sentido de probabilidade Bayesiana, bem entendido.