Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

24 setembro, 2018

Temas 2 e 3


A Humanidade não tem uma língua superior às demais, seja para o que for


Esta semana, no dia 17 de Setembro de 2018, vi e ouvi, no programa Prós e Contras da RTP 1, subordinado ao tema Como vai a Educação em Portugal ?, a intervenção de uma aluna portuguesa do ensino secundário, que disse chamar-se Filipa Maia, ter 18 anos, ser de Coimbra e estar ali em representação dos estudantes portugueses (do ensino secundário, presumo). 

Competências triviais

Esta aluna  referiu várias vezes  os «soft skills, um conceito superimportante  para o mundo do trabalho». Quando lhe pediram para traduzir essa expressão inglesa, para que toda a gente que a escutava pudesse entender, ou entender melhor, o que ela estava a dizer, ficou um pouco atrapalhada, até que alguém lhe soprou: “competências transversais” (em meu entender, “competências triviais” seria uma tradução bem mais adequada).  «Sim, é isso», concordou Filipa Maia, para logo acrescentar com um ar desenvolto: «Mas eu não deveria ter de traduzir, porque quando se fala de soft skills é um conceito que todos deviam conhecer, não é uma tradução». «Ora essa!», objecta Fátima Campos, a autora e moderadora do programa, «estamos em Portugal, tem de ter uma tradução para a frase». Resposta pronta de Filipa Maia: «Estamos em Portugal, mas o mundo do trabalho não é Portugal e em Portugal não nos pedem falar Português, pedem-nos falar Inglês, pelo menos Inglês» (sic!

Nas afirmações desta rapariga, detectei (em estado bruto) os estragos provocados pela mesma perniciosa ideologia que detectei (em estado mais refinado), nos livros do neurobiólogo António Damásio (pelos quais,  à parte esse aspecto, tenho bastante apreço).  Critiquei a versão refinada dessa ideologia num artigo que escrevi em Abril deste ano (2018), que foi publicado na revista A Página da Educação, nº 211, II série, este Verão. Tem por título: A ciência não tem uma língua exclusiva, nem uma língua favorita.

A ideologia feiticista do “Inglês über alles”

Que perniciosa ideologia é essa capaz de unir como almas gémeas uma aluna portuguesa de 18 anos e um veterano cientista português (e americano) de reputação mundial ? Podemos resumi-la em poucas linhas:

Existe uma língua superior a todas as demais: a língua inglesa. Só nessa língua, por exemplo, é possível exprimir conceitos, em especial conceitos científicos. Só nessa língua é possível ter pensamentos elevados. Essa língua é também (e não é coincidência!) a língua dos mercados. Ora, os mercados são, como toda gente inteligente sabe, o alfa e o ómega da economia, do mundo do trabalho, da vida em sociedade, da felicidade terrestre.  Por outras palavras, o Inglês é a língua materna dos dignos descendentes actuais do fabuloso rei Midas (os Bill Gates, Jeffrey Bezos, Warren Buffett, etc.), a língua de tudo o que é lucrativo, de tudo o que tem êxito retumbante, de tudo o que reluz com a cor do ouro e o brilho dos diamantes. É a língua que é capaz de transformar, num abrir e fechar de olhos, pobretanas em milionários, milionários em multimilionários, ilustres desconhecidos em superfamosos,  gente muito feia em gente muito bonita,  banais fanfarrões em temíveis figurões (e.g. Donald Trump). Por isso, se tivermos tido o azar de termos nascido e sido criados num país que não tenha sido parte do Império Britânico. não devemos ficar desanimados.  Devemos aprender a falar e a escrever Inglês, a desenvolver e a exercitar as nossas competências triviais nessa abençoada língua em todas as ocasiões e em todos os lugares, porque isso dá-nos logo um suplemento de alma, uma aura de cosmopolitismo, um toque inconfundível de poder, um cartão de visita para encontrarmos os anjos que nos vão ajudar a enriquecer.  

Embora muito em voga nas faculdades de economia — como a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, que passou a ser a Nova School of Business and Economics,  e o Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, que passou a ser a Lisboa School of Economics and Management, e onde, em ambas, apesar de serem estabelecimentos da rede pública, pagos pelo erário público, o ensino passou a ser exclusivamente em Inglês não só nos mestrados e nos doutoramentos, mas também nas licenciaturas (desde o 2º ano), em descarada violação dos artigos 9º, alínea f, e 11º, ponto 3, da Constituição da República Portuguesa — esta é uma ideologia anti-democrática. Não posso desenvolver aqui este aspecto, o mais pernicioso de todos,  desta impante ideologia, ao qual tenciono voltar em melhor oportunidade. De momento, contentar-me-ei em frisar (tal como fiz no artigo de A Página da Educação)  que se trata, também, de uma ideologia completamente falsa. 

Uma ideologia condenada ao declínio

O Inglês é apenas um idioma entre milhares de outros, nem melhor nem pior que os demais. Não tem qualquer propriedade demiúrgica. Há muitas boas razões para aprender a falar e a escrever Inglês, mas não são aquelas que são acarinhadas pela esmagadora maioria dos professores das faculdades de economia e pela quase totalidade dos jornalistas da chamada imprensa económica.  As boas razões que podem ser invocadas para aprender a falar e a escrever bem o Inglêssão semelhantes às que se podem invocar para aprender bem qualquer outro grande idioma (entenda-se, idioma de grande difusão). Bem entendidas, tais razões são semelhantes  às que se podem invocar para aprender bem qualquer pequeno idioma (entenda-se,  idioma de pequena difusão). 

A actual influência (económica, política e cultural)  do Inglês deve-se unicamente ao facto de a revolução industrial e  a economia capitalista moderna terem começado em Inglaterra e dos súbditos de sua Majestade Britânica terem colonizado, antes e durante a Era Vitoriana, imensos territórios por esse mundo fora, sobre os quais conseguiram manter a supremacia até à 2ª guerra mundial  construindo dessa forma um portentoso empreendimento  a que deram o nome de Império Britânico, o maior império que o mundo conheceu até hoje. 


O Império Britânico (territórios a cor-de-rosa) em 1922.


Depois da 2ª guerra mundial, os EUA, uma sua gigantesca ex-colónia, substituiu definitivamente o Império Britânico nesse papel de suprema potência económica e militar à escala planetária, reforçando ainda mais a influência do Inglês por intermédio do seu enormíssimo poderio (Acordos de Bretton Woods, plano Marshall, bolsas Fullbright, Grupo do Banco Mundial, FMI, os filmes de Hollywood e milhares de séries televisivas). 


Hotel Mount Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, onde se realizou, em Julho de 1944,  a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, que originou os Acordos de Bretton Woods. 

Mas essa foi a época (Julho de 1944-Agosto de 1971) [([1])] em que os EUA atingiram o auge do seu poderio. Essa época pertence definitivamente ao passado, pese embora o facto de a sua rançosa nostalgia ter garantido a Donald Trump a sua eleição (To make America great, again) e poder eventualmente garantir a sua reeleição. Nada  é menos certo do que os EUA se poderem manter por muito mais tempo a potência económica e militar suprema à escala mundial. Nada é menos certo do que o Inglês se poder manter por mais meio século como o idioma internacionalmente mais falado.

Seja como for, a  importância cultural do Inglês não se pode sequer comparar à de nenhum dos 5 idiomas que  desempenharam no passado o papel principal como veículos de cultura: o Chinês clássico, o Sânscrito, o Árabe, o Grego e o Latim.  A influência gramatical do Inglês sobre outros grandes idiomas contemporâneos (incluindo o Português) é, felizmente, quase nula. Quanto à influência lexical do Inglês, é bem mais modesta do que se supõe. É, sem dúvida, muitíssimo menor do aquela que o Árabe teve sobre o Persa e o Turco, ou que o Francês teve sobre o Inglês. O que diria Filipa Maia, a rapariga que interveio no “Prós e Contras” num Português estropiado, se soubesse que o Inglês foi buscar ao Francês milhares de “conceitos”  durante a Baixa Idade Média? 

José Manuel Catarino Soares


NOTA
[1] . O governo dos EUA, presidido na altura por Franklin Delano Roosevelt, preparou-se, desde 1944, ainda a 2ª guerra mundial estava longe do fim, para reconstruir, sob a sua égide e hegemonia, o sistema capitalista mundial profundamente devastado pela segunda guerra mundial.  Convocados pelo governo dos EUA, 730 delegados de todos os 44 países aliados encontraram-se, para esse efeito, no Hotel Mount Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, para a Conferência monetária e financeira das Nações Unidas. Os delegados deliberaram e finalmente assinaram os Acordos de Bretton Woods (Bretton Woods Agreement) durante as primeiras três semanas de Julho de 1944. O Acordo ou os Acordos de Bretton Woods estabelecia(m), entre outras medidas, a criação do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), uma das instituições que integrariam mais tarde o grupo do Banco Mundial, a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), ambas com sede em Washington D.C., e a convertibilidade do dólar americano em ouro, que passou a ser, assim, moeda de referência mundial. Os Acordos de Bretton Woods duraram até 15 de Agosto de 1971, quando o Presidente Richard Nixon dos EUA decidiu, unilateralmente, acabar com a convertibilidade do dólar em ouro, o que efetivamente levou ao colapso do principal pilar desses Acordos e tornou o dólar numa moeda fiduciária, como todas as outras.  


21 junho, 2018

tema 4

O que fazer com a obra de Karl Marx nos tempos que correm, 200 anos depois do seu nascimento?

-Parte I-


Resumo

Na 1ª parte deste ensaio, que comportará pelo menos duas partes, argumenta-se, com base num grande acervo de factos pertinentes, a seguinte tese: 

marxismo”, “marxista(s)” [substantivo e adjectivo] e “ditadura do proletariado” são, respectivamente, duas palavras e uma expressão nominal (um certo enlace de palavras) que têm graves e irreparáveis defeitos de fabrico que as tornam impróprias para uso em tudo o que diga respeito à frase: a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores o lema que a Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876) de boa memória inscreveu nos seus estatutos por sugestão de Karl Marx.


1. Introdução


Em 5 de Maio de 1818, no antigo reino da Prússia, na cidade de Tréveris (Trier, em Alemão), situada no que é hoje o Estado da Renânia-Palatinado da República Federal da Alemanha, nascia uma criança de sexo masculino a quem foi dado o nome de Karl Heinrich Marx. Morreria 65 anos depois, em 14 de Março de 1883, em Londres, onde vivia exilado desde 1849 como apátrida, sempre a braços com grandes dificuldades financeiras e persistentes problemas de saúde, mas também sempre amparado pelo carinho e pela ajuda da sua amada esposa e companheira de todas as atribulações, Jenny von Westphalen, falecida 18 meses antes dele, e pela ajuda do seu grande e fiel amigo, Friedrich Engels. 

Karl Heinrich Marx e a sua filha mais velha, Jenny Caroline (1844-1883)
 
Entre estas duas datas, fez muitas coisas notáveis de que destacarei duas, as principais em minha opinião:

1ª) Foi co-fundador e tornou-se na figura central da AIT — Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876)  a primeira organização de trabalhadores assalariados a superar fronteiras nacionais e limites continentais, reunindo membros de todos os países da Europa, dos Estados Unidos da América e de alguns países da América do Sul (Argentina e Uruguai). 

2ª) Escreveu O Capital, uma análise científica do modo capitalista de produção socioeconómica e das relações sociais de produção e de troca atinentes. Em meados do século XIX, na Europa, estas relações já tinham chegado à maturidade na Inglaterra, e estavam prestes a chegar a um nível de maturidade comparável noutros países europeus, como a França e a Alemanha, assim como, com uma rapidez imbatível, do outro lado do Atlântico, nos EUA. Essa foi a razão pela qual a Inglaterra, sendo o país clássico de localização desse processo histórico — que viria ulteriormente a expandir-se, abrangendo outros países da Europa, da América do Norte e dos demais continentes e subcontinentes até formar, a partir do século XX, um sistema de produção dominante à escala planetária — serve de ilustração principal em todo o desenvolvimento teórico de O Capital [[1]].


Como consequência dessas actividades — ambas motivadas e alimentadas pelo seu tenaz combate em prol da auto-emancipação política e socioeconómica dos trabalhadores assalariados — Marx foi, como disse sóbria e eloquentemente Friedrich Engels (1820-1895), o seu maior colaborador e também, como já ficou dito, o seu melhor amigo:

o homem mais odiado e mais caluniado do seu tempo. Governos houve, tanto absolutistas como republicanos, que o deportaram dos seus territórios. Burgueses houve, quer conservadores quer ultrademocráticos, que competiram uns com os outros na acumulação de difamações lançadas contra ele. Ele repelia todos esses actos malevolentes como se fossem teias de aranha, não fazendo caso deles, só lhes respondendo quando uma necessidade extrema a isso o compelia. E morreu estimado, venerado e lamentado por milhões de companheiros-trabalhadores revolucionários — das minas da Sibéria à Califórnia, em todas as partes da Europa e da América — e atrevo-me a dizer que, muito embora possa ter tido muitos adversários, não teve (salvo melhor informação) nenhum inimigo pessoal. O seu nome perdurará através das eras e o mesmo sucederá com a sua obra! [[2]].

Assim aconteceu, de facto, e de muitas maneiras. Por exemplo, eu não estaria a escrever este artigo se isso não tivesse acontecido. Por conseguinte, faz todo o sentido interrogarmo-nos sobre a actualidade da sua obra, aproveitando a efeméride que constitui o bicentenário do seu nascimento.


2018. Trabalhadores instalam uma estátua de Karl Marx na sua cidade natal, Tréveris (Trier), 200 anos depois do seu nascimento.  A estátua, que é de bronze e mede mais de 4 metros de altura (sem o plinto), é da autoria do conhecido escultor chinês Wu Weishan. Foto de Harald Tittel dpa.


2. A pergunta que serve de título


A pergunta que serve de título a este texto tem obviamente respostas muito diferentes consoante o perguntador.

Neste caso, o perguntador inclui-se entre aqueles que entendem que estão reunidas, nos países capitalistas industrial e tecnologicamente mais desenvolvidos, quase todas as condições necessárias para a auto-instituição de sociedades democráticas, tecnologicamente avançadas, ecologicamente sustentáveis, sem classes socioeconómicas e sem Estado [[3]]. Uma tal transformação criaria, por sua vez, condições mais favoráveis para a auto-instituição de sociedades do mesmo tipo nos países industrial e tecnologicamente menos desenvolvidos, ajudando-os a lidar com êxito com muitas das carências e dificuldades com que se debatem.

Em ambos os casos, este desiderato só pode ser alcançado superando o modo de produção económica que prevalece actualmente à escala mundial — aquele que Marx analisou no seu livro O Capital e noutros escritos conexos — cuja perpetuação acarreta (i) a ocorrência de crises periódicas de sobreprodução acompanhada de desemprego em grande escala, (ii) uma gigantesca concentração de riqueza nas mãos de 1% da população mundial,  os maiores detentores dos meios colectivos de produção, (iii) o crescimento das desigualdades de rendimento entre países e entre os membros da população dentro dos países [[4]], assim como (iv) o risco permanente (inclusive por falso alarme ou erro humano) de uma guerra conducente a um holocausto nuclear [[5]], e (v) a degradação, amiúde irreversível, de várias componentes da biosfera e da própria litosfera, de que os exemplos mais flagrantes são a aniquilação em grande escala de populações de verterbrados e invertebrados, e a tendência para a exaustão da energia química não-renovável acumulada no subsolo durante centenas de milhões de anos sob a forma de combustíveis fósseis (carvão mineral, petróleo e gás natural) [[6]].

É partindo destas premissas que procurarei responder à pergunta do título. Por conseguinte, este texto interessará, em primeiro lugar, aos leitores que partilham essas premissas, e, em segundo lugar, aos que não têm opinião formada sobre o assunto, mas que têm, em contrapartida, curiosidade suficiente para se informarem sobre ele.

Não vejo qual seja o interesse que poderá apresentar para outras categorias de leitores, em particular para os panglossianos, aqueles que acreditam que vivemos no melhor dos mundos possíveis ou muito perto disso. Presumo, portanto, que lhes estarei a fazer um favor no que respeita ao bom emprego do seu tempo ao avisá-los que este texto não é para eles. Não encontrarão nele nada que conforte a sua crença.


3. Marx não é nem o pai nem o padrinho do “marxismo”


Antes de prosseguirmos, é necessário dissipar uma confusão costumaz. Uma coisa é a obra de Marx como autor e como cidadão activo, outra, inteiramente diferente, o torvelinho a que se convencionou chamar “marxismo.” Convém destrinçar nitidamente a obra marxiana (a obra de Karl Marx) do “marxismo”.

A vida e a obra de Marx são constituídas por acontecimentos e factos conhecidos ou conhecíveis na sua maior parte, ou mesmo na sua quase totalidade no que respeita aos seus escritos. Podemos discutir sobre a vida de Marx — em particular a sua vida de cidadão — e sobre a sua obra com argumentos melhores ou piores, do ponto de vista da sua pertinência e coerência, e até susceptíveis, em muitos casos, de serem empiricamente corroborados ou refutados pelos factos disponíveis.


Da esquerda para a direita. Em pé: Marx e Engels. Sentadas: as três filhas de Marx  Jenny Caroline (1844-1883), Jenny Julia Eleanor (1855-1898) e Jenny Laura (1845-1911).

Já não se pode dizer o mesmo de “marxismo”/marxista. Estas palavras significam um rol de coisas díspares e muitas vezes contraditórias para as diferentes pessoas que as utilizaram e as utilizam correntemente. Começaram por ser inventadas e utilizadas pejorativamente por críticos e adversários de Marx na AIT, reunidos em torno de Bakunine. Depois, foram reivindicadas orgulhosamente por alguns dos camaradas e discípulos de Marx para designar a interpretação que faziam (e não faziam todos a mesma, bem longe disso) da obra marxiana. Daí que um biógrafo de Marx, Maximilien Rubel (1905-1996), tenha podido afirmar, não sem algum fundamento, que «o marxismo é o maior, se não o mais trágico, mal-entendido do século [XX]», e que um outro biógrafo de Marx, Michel Henry (1922-2002), tenha podido afirmar, também com algum fundamento, que «o marxismo é o conjunto dos contra-sensos que foram ditos sobre Marx [[7]]

Esse conjunto de contra-sensos começou a formar-se ainda Marx era vivo, não apenas por via dos seus adversários, mas também e principalmente por via de indivíduos que se diziam seus camaradas e discípulos e que, como já foi dito, se auto-intitulavam “marxistas”, o que levou Marx a reagir várias vezes perante o desaforo, afirmando: «uma coisa é certa: eu não sou marxista 

Não se tratava, de modo nenhum, como alguns autores pretendem, de uma reacção perfunctória, de uma mera «piada dialéctica» [[8]] ou de um simples «gracejo acutilante» [[9]]. Pelo contrário, Marx repudiava com o maior vigor qualquer tentativa de associar o seu nome, de modo proprietário ou propagandístico, a qualquer projecto ou programa político ou a qualquer novo desenvolvimento científico.

O desprezo que Marx nutria pelo chamado “marxismo” e o escárnio com que mimoseava os chamados “marxistas” estão bem documentados. Alinharei os testemunhos disponíveis por ordem cronológica:

1) Ora, aquilo a que se chama marxismo em França é deveras um artigo muito peculiar, de tal maneira que Marx disse a Paul Lafargue [genro de Marx e futuro dirigente do Partido Operário Francês, N.E]: «uma coisa é certa: eu não sou marxista» [no original: Ce qu'il y a de certain c'est que moi, je ne suis pas Marxiste] (Carta de Friedrich Engels a Eduard Bernstein, 2 de Novembro de 1882. Marx & Engels Collected Works, Lawrence & Wishart 1992, vol. 46, p.353).

German Alexandrovich Lopatin, um jornalista russo, membro do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores, tradutor do 1º tomo de O Capital em Russo, encontrou-se com Friedrich Engels, em Setembro de 1883, para discutirem sobre as perspectivas de uma revolução russa. Lopatin contou mais tarde alguns pormenores dessa conversa, numa carta a um membro do partido russo Norodnaiia Voliia [A Vontade do Povo] que contém a seguinte passagem:

2) Não se esqueça do que eu já lhe disse — que Marx nunca foi um marxista. Engels contou-me que, no período da luta de Brousse, Malon e Companhia, [no seio do movimento socialista em França, N.E] Marx disse um dia com uma gargalhada: «Só posso dizer uma coisa, que não sou marxista» (Carta de Lopatin a M. N. Oschanina, em 20 de Setembro de 1888, traduzida do russo. Karl Marx-Friedrich Engels Werke, Dietz Verlag, Berlin, 1962, band [= vol.] 21, p.489).

3) Meu caro Lafargue. Nós [Marx e eu] nunca vos chamámos outra coisa senão os chamados Marxistas e eu não saberia como descrever-vos de outra maneira. Mas se vocês tiverem outro nome, igualmente sucinto, digam-nos que nós aplicá-lo-emos devidamente e com todo o gosto às vossas pessoas (Carta de Friedrich Engels a Paul Lafargue, em 11 de Maio de 1889. Marx & Engels Collected Works, Lawrence & Wishart 2010, vol. 48, p.312).

4) Mas, como eu disse, isto é tudo em segunda mão [Engels refere-se ao que um tal Paul Barth teria escrito sobre Marx, a fazer fé no relato de um tal Moritz Wirth que Engels acabara de ler, N.E] e o pequeno Moritz é um amigo sem o qual podemos passar muito bem. Hoje em dia, o ponto de vista materialista sobre a história também não tem falta dessa espécie de amigos a quem ele serve de pretexto para não estudarem história. Tal como Marx disse, no fim dos anos 1870, referindo-se aos Marxistas franceses: «Tout ce que je sais, c’est que je ne suis pas marxiste» [“Tudo o que sei é que eu não sou marxista”, N.E] (Carta de Friedrich Engels a Conrad Schmidt, em 5 de Agosto de 1890. A frase em Francês pertence ao original. Marx & Engels Collected Works, Lawrence & Wishart 2010, vol. 49, p.7; Marx/Engels Internet Archive [marxists.org]2000).

5) Todos esses cavalheiros patinham no marxismo, mas daquele género que vocês conheceram em França há dez anos e do qual Marx dizia: «Tudo o que sei, é que eu não sou marxista!» E ele teria dito provavelmente desses cavalheiros o que Heine dizia dos seus imitadores: «Semeei dragões e colhi pulgas» (Carta de Friedrich Engels a Paul Lafargue, em 27 de Agosto de 1890. Marx & Engels Collected Works, Lawrence & Wishart 2010, vol. 49, p.22).

6) Marx também previu essa espécie de discípulos quando, no fim dos anos 1870, disse do então prevalecente “Marxismo” de certos franceses: «tout ce que je sais c’est que moi je ne suis pas marxiste» — “tudo o que sei é que eu não sou marxista (Carta de Friedrich Engels ao editor do Sachsiche Arbeiter-Zeitung, Nº 105, 31 de Agosto de 1890. Marx & Engels Collected Works. Lawrence & Wishart 2010, Volume 27, p.71).

A um seu insinuante e manhoso admirador que lhe tinha escrito a desculpar-se, com a maior desfaçatez, por ter plagiado abundantemente O CapitalMarx respondeu:

(A) Todavia, pondo de parte as suas bem divertidas razões [para me plagiar descaradamente, N.E], sou de opinião que, se o senhor tivesse citado O Capital e o seu autor, isso teria sido deveras uma grande asneira. É preciso evitar que os programas partidários fiquem na dependência de autores individuais ou de  livros. Mas permita-me que acrescente que eles também não são o lugar adequado para novos desenvolvimentos científicos, como aqueles que foram extraídos por si de O Capital, e que tais desenvolvimentos são completamente desajustados num comentário sobre um Programa com cujos objectivos eles não têm a mínima relação (Carta de Marx a Henry Hyndman, 2 de Julho de 1881. Marx & Engels Collected Works. Lawrence & Wishart 2010, Vol. 46, p.103).

No mesmo ano, num comentário ao Manual de Economia Política de Adolf Wagner, escreveu:

(B)  Valor. Segundo o senhor Wagner, a teoria do valor de Marx é «a pedra angular do seu sistema socialista» (p.45). Dado que eu nunca erigi um sistema socialista”, isto é uma fantasia de Wagner, Schäffle e tutti quanti (K. Marx [1881]. Notes on Adolph Wagner’s “Lehrbuch der politischen Ökonomie”. Marx & Engels Collected Works, Lawrence & Wishart 1989, vol.24, p.533).
           
No Verão e no Outono de 1882, depois de uma temporada na Argélia para tratar da sua saúde abalada, Marx desloca-se clandestinamente a França para aí continuar o tratamento. Fica alojado na casa de uma das suas filhas, Jenny Caroline Marx Longuet, em Argenteuil, de modo a poder frequentar diariamente as termas de águas sulfurosas de Enghien-les-Bains, vila situada a menos de 10 km de distância e servida por um combóio directo e frequente. Durante a sua estada em França realizam-se os congressos dos dois partidos socialistas rivais: o dos “Guesdistas” (ditos “marxistas”), em Roanne, e o dos “Possibilistas” (ditos anti-“marxistas”), em Saint-Étienne. É então que Marx escreve ao seu amigo Engels:
(C) Se o governo francês — REPRESENTADO PELO VIGARISTA FINANCEIRO Duclerc — soubesse da minha presença aqui (tendo em conta nomeadamente a vacatura do Parlamento), poderia, mesmo sem a autorização do dr. Dourlen [Marx refere-se aqui, gracejando, ao seu médico, que o tinha “proíbido” terminantemente de abandonar o solo francês antes de terminar o tratamento, N.E], mandar-me fazer as malas, visto que os Marxistas e os Antimarxistas”, que realizaram os seus respectivos congressos em Roanne e St. Étienne, fizeram ambos tudo o que estava ao seu alcance para estragar a minha estada em França (Carta de Marx a Engels, 9 de Outubro de 1882. Marx & Engels Collected Works, Lawrence & Wishart 2010, vol. 46, p.339) [[10]].


A penúltima foto de Karl Marx, em 27 de Abril de 1882, já viúvo, durante a sua curta estada em Argel, alguns meses antes de ter ido passar uma temporada com a sua filha Jenny Caroline Marx Longuet, em Argenteuil, nos subúrbios de Paris.    

Podemos afirmar, portanto, com toda a segurança, que “marxismo” é uma palavra com dois usos principais, ambos espúrios.  

Para entendermos o primeiro uso, temos de pôr em cena um conjunto muito diverso de pessoas, partidos e agrupamentos políticos que afirmam encontrar na obra de Marx e de Engels [[11]] a sua principal fonte de inspiração — direito que, obviamente, ninguém lhes pode negar. Até aqui, tudo bem. Porém, o caso muda de figura quando esses indivíduos, partidos e agrupamentos políticos se julgam autorizados, com base nesse direito, a criar e utilizar um -ismo derivado do nome de Marx (o “marxismo”) para qualificarem uma, duas ou todas as seguintes coisas:

(i) as suas (deles) doutrinas ou análises filosóficas, históricas, culturais, sociais, económicas e políticas;

(ii) o seu (deles) método de análise de problemas filosóficos, históricos, culturais, sociais, económicos e políticos;

(iii) os seus (deles) programas ou projectos políticos.

Por essa razão, (a) os autores e apologistas dessas doutrinas e análises; (b) os utilizadores desses métodos; (c) os autores e defensores desses programas ou projectos; assim como (d) os membros desses partidos e agrupamentos (note-se que os quatro conjuntos [a, b, c, d] não coincidem necessariamente uns com os outros) autodesignam-se por “marxistas”.

Alguns juntam a marxismo/marxista o prefixo neo- (neomarxismo/ neomarxista). Outros ainda, juntam a marxismo um segundo -ismo, derivado do pseudónimo (“Lenine”) de um político russo, Vladimir Ilyich Ulyanov (1870-1924), para se autodesignarem (marxismo-leninismo/marxistas-leninistas [[12]]), ou até um terceiro -ismo (marxismo-leninismo-maoísmo/marxistas-leninistas-maoístas), este último derivado de Máo Zédōng (1893-1976), o nome próprio de um político chinês. Como se trata, em todos os casos, de reincidir na mesma prática com argumentos da mesma índole, considerarei os “neomarxistas”, os “marxistas-leninistas” e os “marxistas-leninistas-maoístas” como subconjuntos do conjunto dos “marxistas”, sem entrar em pormenores sobre o que os distingue especificamente uns dos outros. Ora, Marx teria considerado todos esses termos, na sua acepção e no seu uso correntes, como um abuso de linguagem e um desaforo grotesco, pelas razões já apontadas.

O segundo uso do termo é obra de um conjunto de outras pessoas, partidos e agrupamentos políticos, também ele muito diverso, para quem os termos “marxismo” e “marxista(s)” servem para qualificar, de modo antagonístico ou pejorativo, o combate por uma sociedade sem classes socioeconómicas e sem Estado, do qual Marx foi, sem dúvida, uma figura maior e incontornável. Chamá-los-ei, por comodidade de expressão, “antimarxistas”.

Partilho a conclusão sobre o “marxismo” e os “marxistas” a que Cyril Smith (1929-2008) chegou ao cabo de uma investigação aprofundada [[13]]:

Mas, a um nível fundamental, aquilo a que demos o nome de “Marxismo” não era apenas diferente das ideias de Marx, mas o seu exacto oposto. O quadro teórico chamado “Marxismo” pretendia ser uma doutrina, por vezes mesmo “uma mundivisão completa e integral” (Plekhanov, Lenine). Quando nós, “Marxistas”, declarávamos que eramos “científicos”, tínhamos em mente uma analogia com as certezas das ciências naturais. Víamo-nos a nós próprios como os herdeiros da tradição conhecida como o Iluminismo que, no século dezoito, lutara tão valentemente contra as velhas ideias da religião e da superstição, lançando as bases da moderna ciência racional da natureza, assim como da liberdade, igualdade e fraternidade. Os “Marxistas” explicaram que esses pensadores do século dezoito não foram capazes de chegar a uma visão científica da história, mas que o “Marxismo” tinha conseguido suprir essa extensão. Havia uma teoria da história chamada materialismo histórico, uma doutrina económica referida por vezes como economia marxista, e um ponto de vista filosófico chamado materialismo dialéctico”. Nada disto pode ser encontrado nos escritos de Karl Marx (…) (Cyril Smith [2002], Karl Marx and Human Self-creation).

Daqui se segue que os “antimarxistas”, na medida em que tomam estas três coisas como alvo das suas críticas a Marx, se assemelham aos caçadores de gambozinos.


3. Objectivo deste artigo


Para completar o esclarecimento sobre o título deste texto, resta agora dizer qual é o seu propósito.

Mas, primeiro, há que fazer duas ressalvas muito importantes. A primeira ressalva é esta: a obra completa de Marx e Engels ainda não foi toda publicada, decorridos que são mais de 100 anos depois do seu falecimento — 135 e 113 anos respectivamente. A MEGA1 (Marx-Engels-Gesamtausgabe 1), a 1ª tentativa de edição histórico-crítica dos escritos de Marx e Engels, terminou tragicamente em 1941, com 12 volumes publicados (dos 36 projectados), após o assassinato do seu editor,  David Riazanov, em 1938, sentenciado à morte em Moscovo por um dos julgamentos encenados com que Estaline destruiu fisicamente a grande maioria dos dirigentes do partido bolchevique, que tinham sido seus ex-camaradas em 1917 e nos anos seguintes. Até à data, dos 114 volumes previstos pela chamada MEGA2 (Marx-Engels-Gesamtausgabe 2) — a 2ª tentativa e a mais completa de edição histórico-crítica (em alemão e noutras línguas originais) das obras de Marx e Engels — foram publicados 66 volumes. Estes abrangem principalmente a chamada 1ª secção, que inclui todas as obras e manuscritos dos dois autores, excluindo O Capital (32 volumes), assim como a chamada 2ª secção, que inclui O Capital e todo o trabalho preparatório a partir de 1857 (15 volumes). Esta 2ª secção está disponível desde 2012, data em que terminou a sua publicação. Faltam ainda, portanto, 48 volumes. São, todos eles, volumes da 3ª secção (que inclui as cartas trocadas entre os dois autores e entre eles e terceiros) e volumes da 4ª secção (constituída por excertos). Destes 48 volumes, 20 (cartas e excertos) serão publicados exclusivamente em formato digital [[14]]. A publicação dos 114 volumes previstos estará completa dentro de 15 anos, se as previsões se cumprirem. No entanto, a publicação da MEGA2 teve já efeitos muito benéficos. Em particular, ela

tem oferecido a oportunidade de conhecer manuscritos até aqui inéditos e que nos revelam um Marx crítico das limitações de seu próprio trabalho e permanentemente insatisfeito diante do que já havia escrito. Ele permaneceu sempre disposto a rever e actualizar as suas formulações, a mergulhar em novos materiais empíricos e a deles extrair consequências teóricas, o que explica em boa medida o carácter provisório e fragmentário de muitas das suas elaborações. O mesmo pode ser dito em relação às pesquisas em curso sobre outros textos, cuja publicação também está prevista pela MEGA2, mas que ainda permanecem inéditos, como os Exzerpthefte (Hugo E.A. da Gama Cerqueira [2015]. “Breve história da edição crítica das obras de Karl Marx”. Brazilian Journal of Political Economy 35 (4), 2015, pp. 825-844 [esta citação foi ligeiramente editada para a tornar conforme ao Português europeu, N.E]).


Um manuscrito de Marx e Engels. Decifrar a caligrafia destes dois homens, especialmente a de Marx, tem sido, desde sempre, uma das maiores dificuldades encontradas na edição histórico-crítica das suas obras.


A segunda ressalva reporta-se ao seguinte facto: uma parte considerável da obra publicada de Marx pertence, hoje em dia, ao domínio público, e pode, por conseguinte, ser lida e fruída por qualquer pessoa [[15]].

Pois bem, tendo em conta estas duas ressalvas, proponho-me examinar essa herança a benefício de inventário (se me é permitida a analogia) [[16]]. Por outras palavras, vamos examinar aqui o que, em minha opinião, podemos e devemos reter da obra de Marx, se quisermos dar continuidade ao seu combate por uma sociedade sem classes socioeconómicas e sem Estado, ao qual dedicou uma vida inteira de estudo histórico e filosófico, investigação científica e acção política.

Um exame deste género implica ler Marx «com atenção, sem devoção nem deferência», «sem lhe conceder privilégios particulares», mas implica também fazê-lo sem ter uma pedra em cada mão pronta a ser-lhe atirada à figura. Se é necessário revisitar a obra de Marx «não é para que ela nos forneça respostas antes de lhe pormos novas questões, nem para que ela nos forneça um quadro de referência invariável e tranquilizador.» Mas também não é para a questionarmos «de maneira iconoclasta, desrespeitosa», como se se tratasse de desacreditar as arengas de um vendedor de indulgências [[17]].

Em suma e mais simplesmente: a obra de Marx deve ser lida, estudada e interrogada de maneira crítica, como convém à obra de um grande autor. Esse é, de resto, o modo de leitura consentâneo com o lema cartesiano de Marx: De omnibus dubitandum (= duvidar de tudo) [[18]].

Assim sendo, talvez não seja inútil assinalar desde já ao leitor uma lição que aprendi à minha custa na realização do inventário crítico que aqui apresentarei. É esta: no desenvolvimento da argumentação, terei de entrar em choque muito mais vezes com os “marxistas” do que com os “antimarxistas.”  

Há boas razões para essa assimetria. Os “marxistas” pretendem justificar as suas convicções e preferências nos campos da economia política, da sociologia, da política, da filosofia e da história como se elas fossem as de Marx, ou, pelo menos, como se elas decorressem da aplicação do mesmo método de investigação e análise que Marx empregaria em circunstâncias semelhantes, se fosse vivo. Por essa razão, cometem amiúde o erro de confundirem os seus desejos com a realidade.

Já os “antimarxistas” optam, o mais das vezes, por justificar as suas preferências e convicções nesses campos como se elas fossem confutações auto-evidentes das posições de Marx. Por essa razão, cometem também amiúde o erro de confundirem os seus desejos com a realidade. Distinguem-se, todavia, dos “marxistas” porque, ao contrário destes, não confundem as suas posições com as posições de Marx, nem reivindicam o nome de Marx como caução para as suas análises e práticas. São seus adversários e, regra geral, nada lhes desagradaria mais do que serem tomados como seus discípulos (ainda que relutantes).

Estou bem ciente que existem, entre os “antimarxistas”, adversários cultos e intelectualmente argutos das teorias e análises de Marx (e.g. Eugen von Böhm-Bawerk, Vilfredo Pareto, Joseph Schumpeter, Benedetto Croce, Ludwig von Mises, Raymond Aron, Karl Popper, Isaiah Berlin, Ernest van den Haag), que não podem, por isso, ser ignorados. Mas são bem mais numerosos os “antimarxistas” que atribuem a Marx objectivos, ideias e práticas que carecem amiúde de qualquer referência à sua obra ou que se caracterizam pela deturpação ou pela ignorância completa dela.

Marx disse uma vez, a este propósito, que teria de ter vários assessores para poder responder ao fluxo incessante de patranhas, patacoadas e disparates que eram ditos sobre a sua obra escrita e sobre a sua acção política. Como era pobre demais para se dar a esse luxo e tinha coisas bem mais importantes para fazer, só lhe restava encolher os ombros e seguir em frente neste particular, adoptando como sua divisa um versículo de Dante: «Segui il tuo corso, et lascia dir le genti» (“Segue o teu caminho, e não faças caso do que os outros dizem” [[19]]). Seguir-lhe-ei o exemplo.

Em resumo, a pergunta que serve de título a este texto pode, agora, ser respondida concretamente. Tendo em conta o facto de Marx ter dedicado a sua vida ao projecto político da auto-emancipação dos trabalhadores assalariados conducente a uma sociedade sem classes socioeconómicas e sem Estado, trata-se de tentar dividir a obra de Marx em duas partes bem distintas, como as duas efígies de Marx reproduzidas mais abaixo:

— uma parte que podemos abandonar sem mágoa «à crítica roedora dos ratos», a exemplo do que Marx e Engels fizeram ao seu manuscrito sobre A Ideologia Alemã [[20]],

— e outra parte que continuará a servir de alimento intelectual a quem, como eu, compartilhe o projecto político que o animava, por ter conseguido superar com êxito os testes e as provações a que a experiência a submeteu durante os últimos 150 anos. Essa parte constitui o legado de Marx, tal como o entendo [[21]].


Efígies de Marx num semáforo da sua cidade natal, Tréveris (Al. Trier). Foto da Reuters.

4. Lenine descobre a pedra de toque de um metal fantasmático


É um facto que o próprio Marx tentou estabelecer o que deveria constar desse legado. Isso aconteceu apenas uma vez, que eu saiba. É o que testemunha o seguinte trecho de uma carta sua:  

(D)  Agora no que me diz respeito: não me cabe o mérito de ter descoberto a existência das classes na sociedade moderna, nem tão pouco a luta que nela travam. Muito antes de mim, historiadores burgueses tinham exposto a evolução histórica dessa luta de classes, e economistas burgueses tinham descrito a sua anatomia económica. A minha originalidade consistiu em demonstrar:

1.     que a existência das classes está ligada apenas a certas fases históricas  do 
desenvolvimento da produção;

2.     que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado;

3.   que mesmo esta ditadura representa apenas uma transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes.  


(Excerto de uma carta enviada por Karl Marx a Joseph Weydemeyer, em 5 de Março de 1852. Correspondance Marx-Engels, t. III, lettre 36. Éditions Sociales 1972, p.76-81).

Assim, estas três proposições (D1, D2 e D3) constituem outras tantas   teses através das quais Marx caracterizou, em 1852, a originalidade do seu contributo teórico como investigador.

Há quem pretenda afirmar, com base neste trecho, que foi o próprio Marx quem definiu, afinal, através destas três teses, o conteúdo do “marxismo”. O exemplo mais conhecido dessa pretensão é o de Lenine. No comentário que fez, em 1917, da citação D escreveu:

O essencial na doutrina de Marx é a luta de classes. É o que se diz e é o que se escreve muito frequentemente. Mas é inexacto. E dessa inexactidão resultam correntemente deformações oportunistas do marxismo, falsificações tendentes a torná-lo aceitável pela burguesia. Porque a doutrina da luta de classes não foi criada por Marx, mas pela burguesia, antes de Marx, e ela é, de maneira geral, aceitável pela burguesia (…). Só é marxista a pessoa que estende o reconhecimento da luta de classes até ao reconhecimento da ditadura do proletariado. É o que distingue fundamentalmente o marxista do vulgar pequeno (e também do grande) burguês. É com esta pedra de toque que é preciso testar a compreensão e o reconhecimento efectivo do marxismo.  (Lenine [1917]. L’État et la Révolution, p. 17. Os sublinhados e o realce a traço grosso são do original. O realce a vermelho foi acrescentado por mim).

Temos aqui uma curiosa situação. Lenine assegura-nos que sabe qual é a pedra de toque que distingue um “marxista” de um burguês (pequeno ou grande). Todavia, essa pedra de toque tem por função avaliar a pureza de um metal precioso, mas fantasmático, o “marxismo”, cujo carácter fantasmal Marx seria o primeiro a denunciar como tal — à semelhança do que fez a criança com o fato novo do Imperador, no conto homónimo de Hans Christian Andersen. Por outras palavras, com a pedra de toque de Lenine podemos distinguir, diz ele, os “marxistas” dos não-“marxistas”. O que não podemos é incluir Marx no primeiro grupo, porque ele sempre se definiu como fazendo parte do segundo.


Tudo o que sei é que eu não sou marxista — apotegma socrático de Karl Marx que os chamados marxistas” nunca serão capazes  de entender.

Detenhamo-nos durante alguns momentos nesta afirmação, para que não subsista qualquer dúvida sobre o seu significado. 

Os comentários supracitados de Lenine entram directamente em choque, como vimos mais acima, com as ideias de Marx sobre a natureza dos projectos políticos, dos programas partidários e do desenvolvimento da ciência. Como frisou o próprio Marx, os projectos políticos e os programas partidários —  em particular, os projectos e programas dos partidos e das organizações que afirmam querer contribuir para a luta pela emancipação socioeconómica dos trabalhadores como obra dos próprios trabalhadores — não devem estar enfeudados às ideias de qualquer indivíduo, por muito meritórias (pertinentes, audaciosas e coerentes) que sejam. Do mesmo modo, as teorias e análises científicas não devem estar enfeudadas às ideias de qualquer indivíduo, por mais meritórias (pertinentes, audaciosas e coerentes) que sejam.

A razão é a mesma em ambos os casos: tanto os projectos políticos e os programas partidários como as teorias e análises científicas são obras eminentemente cooperativas, onde as contribuições individuais se inscrevem como fibras ou nós de uma grande e interminável rede intra- e intergeracional. São também, em ambos os casos, construções eminentemente falíveis, pois estão sujeitas ao veredicto da experiência — da observação e/ou da experimentação — que as pode descartar se não provarem a sua têmpera.

Houve, na história da ciência, cientistas notabilíssimos como, por exemplo, Galileu, Newton, Lavoisier, Ampère, Pasteur, Claude Bernard, Mendel, Marie Curie, Einstein. Mas não há, nem nunca houve,  galileísmonewtonismolavoisierismoamperismopasteuris-mobernardismomendelismocurienismoeinsteinismo. Tais rótulos, se alguém os inventasse, seriam motivo de chacota pelos cientistas. Em ciência, e mesmo em filosofia, não há maneira de transformar avanços teóricos ou metodológicos em -ismos derivados de nomes próprios [[22]], nem tão pouco há maneira de o fazer em política sem cair no “culto da personalidade”, na bajulice, na crendice e na charlatanice. Deste modo, compreender-se-á melhor o escárnio com que Marx tratava o “marxismo”.

Em suma, não devemos confundir marxiano/marxiana (um livro, um argumento, um conceito, uma teoria, uma análise, um método, etc., que tem por autor Marx) e marxista. O primeiro adjectivo tem um significado claro e inequívoco, o segundo é a porta de entrada para um labirinto escuro, cheio de imundícies e sem saída de emergência.

Veremos mais adiante como avaliar concretamente as teses com que Marx resumia o seu contributo (o contributo marxiano) em 5 de Março de 1852. Porém, antes de aí chegarmos, convém ter em conta que Marx tinha 33 anos nessa data. Ora, Marx faleceu em 1883, com 65 anos. Os 32 anos que medeiam entre estas duas datas foram os mais importantes da sua vida de militante e activista político, cientista, jornalista e crítico implacável de tudo o que existe” de apologético da exploração e opressão do homem pelo homem. Foi nesse período que escreveu as suas obras principais de crítica da economia política, que considerava como o seu grande contributo científico para a compreensão da sociedade industrial moderna e para a auto-emancipação política e socioeconómica do proletariado. Refiro-me, entre outros, aos seguintes escritos:

Introdução à crítica da economia política (1857) ; Esboços da crítica da economia política [Al. Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie] (1857-1858, publicação póstuma); Contribuição à crítica da economia política (1859); Teorias sobre a Mais-Valia (1862-1863, pub. póstuma), concebido como o tomo 4 de O Capital; Salário, Preço e Lucro (1865); O Capital, tomo 1 (1867); Um capítulo inédito de O Capital (1867, pub. póstuma); A nacionalização da terra (1869); Carta a Nikolai sobre o desenvolvimento económico da Rússia (1877, pub. póstuma); Rascunhos da carta e carta a Vera Zasulitch sobre o desenvolvimento económico da Rússia (1881, pub. póstuma); os diferentes manuscritos e as várias redacções de muitos deles (1861-1863, 1865-1867, 1870 e 1875-1878) que foram postumamente editados e publicados por Engels com o título de O Capital, tomo 2 (pub. póstuma em 1885) e O Capital, tomo 3 (pub. póstuma em 1894).


Marx em 1866, nos primeiros anos da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT).

Foi também durante este período que Marx desenvolveu, como vimos, a sua actividade política mais importante — a de membro fundador e organizador fundamental da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), também conhecida, simplesmente, como A Internacional ou, muito mais tarde, retrospectivamente, como a 1ª Internacional (1864-1876) — e que escreveu muitos dos seus textos políticos mais importantes, entre os quais:

As revoluções de 1848 e o proletariado (1856) ; Escritos (artigos e cartas) sobre a guerra civil nos EUA (1861-1862); Alocução inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864), Estatutos gerais da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864) ; Instruções aos delegados do conselho central da A.I.T sobre as diferentes questões a debater no congresso de Genebra (1866), co-autor F. Engels; A Polónia, a Rússia e a Europa (1867); A Guerra Civil em França (1871); A liberdade de expressão (1872); A indiferença  relativamente à política (1874); Crítica do programa de Gotha [/Glosas marginais ao programa do partido social-democrata dos trabalhadores da Alemanha] (1875, p. póstuma); Resumo Crítico de “Estatismo e Anarquia”, de Mikhaïl Bakunine (1874 ou 1875, pub. póstuma).


Delegados participantes no 1º Congresso (1866) da Associação Internacional dos Trabalhadores, realizado em Genebra, Suíça.  

Por isso, a discussão que se segue da carta de Marx de 1852 (citação D) será feita à luz não só da sua obra ulterior (1852-1883), mas também à luz da história que decorreu desde o falecimento de Marx (1883) e de Engels (1895) até aos nossos dias.

Para fixar as ideias e para balizar a discussão neste particular, quero afirmar desde já que considero que a tentativa que Marx fez, em 1852,  de definir o seu legado foi prematura (tendo em conta tudo o que Marx realizou ao longo da sua vida, antes e depois dessa data) e equívoca (no que respeita ao seu conteúdo). Concretamente, quero afirmar desde já que incluo D1 (a tese 1 da citação D), no legado de Marx, mas não incluo D2 e D3 (as teses 2 e 3 da citação D) nesse legado. Na minha opinião, essas duas teses de Marx são ambas anfibológicas. Só poderão ser incluídas no seu legado mediante uma série de correcções e qualificações críticas. (Veremos em momento mais oportuno que o próprio Marx se encarregou de fazer algumas dessas correcções e qualificações).  

Por conseguinte, a discussão incidirá apenas sobre as teses 2 e 3.


5. Três perguntas


Consideremos, primeiro, a tese 2: «a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado». Deixemos de lado, por enquanto, a proposição em si mesma, para nos concentramos apenas na expressão “ditadura do proletariado.”

A primeira questão que temos de pôr é: o que significavam (a) ‘proletariado’, (b) ‘ditadura’ e (c) ‘ditadura do proletariado’ para Marx?

A resposta à pergunta (a) remete-nos, antes de mais, para a Roma antiga e para as sociedades capitalistas da 1ª metade do século XIX.


6. Proletariado


Segundo Cícero, a palavra latina proletarius/proletarii (proletário /proletários), que deriva de proles (prole, linhagem, os filhos), teria sido inventada pelo sexto rei de Roma, Sérvio Túlio (Servius Tulius, 579-535 a.C.), para designar, no quadro da sua reforma militar e censitária do reino, os membros da sexta e última classe do censo, a mais pobre de todas, que estavam isentos de imposto por não possuírem terras nem fortuna pecuniária e que não tinham direitos políticos pela mesma razão. Sérvio Túlio apelidou de ‘proletários’ os cidadãos romanos desta classe censitária, «para fazer ver que só lhes  era pedido que dessem filhos e uma posteridade ao Estado» [[23]].

Segundo o erudito Aulo Gélio (Lat. Aulus Gellius), do século II, eram considerados proletários, na época da República romana, os indivíduos do sexo masculino que, de acordo com o censo, não possuíam terras nem mais do que 1500 asses [[24]] e os que não possuíam nada, ou quase nada, para além da sua própria pessoa. Estes últimos eram conhecidos por ‘capitecenses’ (Lat. capite censi), aqueles que se limitavam a declarar o seu nome ao censo público (Lat. census) pelo facto de nada ou quase nada possuírem e que eram, por conseguinte, referidos apenas como cabeça de casal (Lat. caput/capita, cabeça/cabeças), e não como detentores de certos rendimentos e direitos. Aulo Gélio informa-nos que os proletários com rendimentos abaixo dos 385 asses já eram considerados capitecenses. E acrescenta que as autoridades do Estado romano não tinham confiança no patriotismo dos proletários e ainda menos no patriotismo dos proletários mais pobres, os capitecenses. Eis, nas suas palavras, a razão dessa desconfiança:

Como a riqueza das posses era considerada como um motivo de apego à República, e como era olhada como sendo um dos laços mais fortes que uniam os cidadãos à pátria, nunca se recrutavam os proletários e os capitecenses, salvo em situações de perigo iminente, por causa da indigência e da pobreza que eram ordinariamente a marca comum da sua condição [[25]].
Na primeira metade do século XIX, são criados os termos classe proletária e proletariado em França e na Prússia (hoje Alemanha).  Com eles pretendia-se designar os trabalhadores manuais sem terra e sem outros meios de produção, a classe mais numerosa nos países europeus onde o modo de produção capitalista (ou o capitalismo”, para abreviar) estava mais desenvolvido e também, porventura, a classe mais pobre [[26]].

Em 1832, em Lyon, Antoine Vidal é o primeiro a utilizar o termo ‘classe proletária’ no L’Echo de la Fabrique [O Eco da Fábrica], o primeiro jornal proletário da França, fundado no rescaldo da revolta dos canuts (1831), os proletários tecelões nas fábricas de seda de Lyon. Para Vidal, o principal redactor do Eco da Fábrica, a classe proletária, da qual declara fazer parte com orgulho, é, ao mesmo tempo, a mais útil («porque produz para todos») e a mais desprezada (porque «parece não existir à face da Terra senão para ser tiranizada e servir para a fortuna e para os caprichos dos grandes [[27]]») 

Para Antoine Vidal, assim como para os socialistas, comunistas e anarquistas que se multiplicam durante os anos 1830-1840 [[28]], trata-se de assinalar que esses trabalhadores não são apenas numerosos, úteis e pobres; são também cidadãos excluídos, desprovidos de direitos políticos pela Constituição censitária da Monarquia de Julho, o regime político em vigor em França nessa época. Por aqui se vê claramente que a referência erudita aos proletarii da antiguidade, a última das classes censitárias da república romana, é deliberada.

Outubro de 1831. Luta armada nas ruas de Lyon (França) em frente à igreja de Saint-Nizier durante a revolta dos canuts (proletários tecelões da indústria da seda). Autor do quadro: anónimo do século XIX.

Durante a revolução de 1848, a ala trabalhista (a que se reclama da classe proletária) da oposição republicana à Monarquia de Julho [[29]] utiliza o termo classe proletária em sentido polémico e com fins de agitação política. Trata-se de reivindicar para essa classe excluída da existência política, o acesso aos direitos políticos, a conquista da democracia que existia exclusivamente para a classe burguesa e para os restos da nobreza [[30]].


Meninos proletários a trabalhar 10 horas por dia, 6 dias por semana, numa fábrica têxtil em Macon, Georgia, EUA, em 1909. Foto de Lewis W. Hine.

Na década de 1840, o termo classe proletária é adaptado para o alemão (proletariat), onde surge, em 1842, pela mão do economista Lorentz von Stein, que estuda as correntes socialistas/comunistas, embora ele próprio fosse hostil ao socialismo/comunismo. Em seguida, o termo é retomado pelo jovem filósofo Moses Hess, director do jornal  Rheinische Zeitung (o antecessor do Neue  Rheinische Zeitung de que falaremos mais à frente) com quem Engels e Marx tinham, na altura, muitas afinidades, entre as quais o facto de todos eles se declararem simpatizantes do comunismo. Aliás, os três aderiram, em 1847, à Liga dos Justos, crismada, pouco depois, de Liga dos Comunistas.


EUA, 1913. Mulheres e crianças proletárias a trabalhar como abridores de ostras numa fábrica de conservas na Carolina do Sul. Um dos rapazes tinha 10 anos e o outro 11 anos. Foto de Lewis W. Hine. 

Em suma, Marx e Engels não criaram o termo proletariado, limitaram-se a adoptá-lo, com o sentido que ele tinha na época. Mas vão afeiçoá-lo pouco a pouco a uma acepção que lhes é própria. Isso será feito em três fases [[31]].  

1ª fase. Em 1843, o jovem Marx emprega o termo ‘proletariado’ na sua crítica à filosofia do direito e à concepção do Estado de Hegel. No prefácio que redige para o Manuscrito de Kreuznach [[32]], Marx usa o termo para designar o «sujeito social» (entenda-se, o protagonista) finalmente identificado da emancipação geral da «sociedade civil moderna». Por que seria o proletariado esse sujeito? Porque é esta classe que, segundo Marx, «sofre a injustiça mais despudorada» e a única que só pode ter por mira «uma reconquista total do homem

2ª fase. Na Ideologia Alemã (1845) e um pouco mais tarde no Manifesto do Partido Comunista (1848), Marx e Engels afirmam o papel histórico — o de motor das transformações socioeconómicas — das lutas de classes e definem o antagonismo moderno que opõe o proletariado e a burguesia capitalista. O proletariado é caracterizado pela sua posição no seio de um modo de produção (o modo de produção capitalista) e das relações sociais de produção e troca que lhe correspondem. Ele é simultaneamente a classe que produz as riquezas que fazem crescer o capital e a classe que está excluída da posse dos meios colectivos de produção (que pertencem aos detentores do capital). 

A sociedade inteira divide-se cada vez mais em duas classes directamente opostas: a burguesia e o proletariado (Marx e Engels. Manifesto do Partido Comunista).


Mulheres proletárias numa fábrica de sapatos em São Petersburgo (Rússia) em 1888.

Ora, este proletariado foi a própria burguesia que o engendrou e é ela que o desenvolve mais a cada dia que passa para fazer frente às exigências decorrentes da conquista de novos mercados e da exploração mais profunda de antigos mercados. Com efeito:

à medida que a burguesia cresce, isto é, que o capital cresce, cresce também o proletariado, ou seja, a classe dos trabalhadores modernos que só têm meios de existência quando encontram trabalho, e que só encontram trabalho quando o seu trabalho faz crescer o capital (Marx e Engels. Manifesto do Partido Comunista. Minha tradução a partir da edição inglesa).

Desta forma, Marx e Engels aprofundam a análise que Engels tinha feito do proletariado inglês no seu livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845). Em 1852, Marx salientará tudo o que separa o proletariado romano do proletariado da moderna sociedade capitalista:

Esquecemo-nos [facilmente, mas não devíamos, N.E] da frase de Sismondi: “O proletariado romano vivia à custa da sociedade, ao passo que a sociedade moderna vive à custa do proletariado” (K. Marx [1852], O 18 de Brumário de Louis Bonaparte).


Menina proletária encarregada dos teares de algodão de toda uma ala de uma grande fábrica têxtil (Mollahan Mills) em Newberry, Carolina do Sul, EUA, em 1908. Repare-se que esta criança, que aparenta ter cerca de 10 anos, não tem sapatos (tem apenas calçadas umas meias altas escuras, talvez de algodão) um facto muito comum no proletariado infantil da época. Foto de Lewis W. Hine.

3ª fase. Finalmente, a distinção entre trabalho concreto e trabalho abstracto, trabalho socialmente necessário e sobretrabalho, trabalho e força de trabalho e a descoberta da mais-valia (Al. Mehrwert) vão permitir a Marx precisar a caracterização do proletariado no processo de produção do capital e expor de um modo inédito a sua situação no seio da sociedade capitalista.
Convém lembrar, a este propósito, que, nos anos 1840, Marx ainda não tinha terminado a sua crítica da economia política, muito longe disso. Isso só vai suceder, nalguns aspectos fundamentais, no final da década seguinte, embora Marx tenha prosseguido até ao fim da sua vida essa crítica, agregando-lhe constantemente novos temas ou aprofundando/reelaborando os já tratados.

A década de 1850 é importante como década charneira neste particular. Como assinala Engels [[33]], os escritos de crítica da economia política de Marx que apareceram antes do primeiro fascículo de Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), diferem bastante dos que foram produzidos depois dessa data — Salário, Preço e Lucro (1865), a vasta série de escritos preparatórios de O Capital, e o próprio O Capital (tomo 1, 1867; tomo 2, 1885; tomo 3, 1894). Uma prova disso é a sua monografia Trabalho Assalariado e Capital (1849). Nessa altura, Marx ainda não tinha estabelecido a destrinça fundamental entre trabalho e força de trabalho, razão pela qual ela não aparece nesse texto. Encontramo-la, porém, perfeitamente delineada em Salário, Preço e Lucro (1865), assim como a distinção entre ‘trabalho (socialmente) necessário’ e ‘sobretrabalho’.

Rapazinhos proletários (breaker boys) numa mina de carvão (antracite) em S. Pittston, Pensilvânia, em 1911. Os breaker boys tinham como tarefa separar à mão o carvão das impurezas que, em parte, inalavam sem querer. Foto de Lewis W. Hine. 

Este ponto é importante para compreendermos que estas distinções — que estão ambas na base da descoberta da ‘mais-valia’ (a fracção do sobretrabalho de que se apropria o capitalista) — têm imediata repercussão no conceito de proletariado. No vocabulário de Marx e Engels, a palavra ‘proletariado’ deixa de designar simplesmente os trabalhadores manuais mais numerosos, pobres e oprimidos. A partir dos anos 1860, ela passa a designar, mais especificamente, no contexto da sociedade industrial capitalista, o conjunto dos trabalhadores que vendem (/alugam) a sua força de trabalho durante um certo nº de horas — por dia, por semana e por mês — aos empresários detentores do capital, a classe dos capitalistas (também apelidada de burguesia), em troca de uma certa soma de dinheiro (o salário). Os capitalistas fazem frutificar o seu capital — o dinheiro que utilizaram para comprar ou alugar meios industriais de produção (ferramentas, maquinaria, edifícios, terra, matéria prima, matérias auxiliares) e pagar salários — através da mais-valia criada pelo sobretrabalho não pago fornecido pelos trabalhadores proletários durante o nº de horas em que estes se dispuseram a alugar-lhes a sua força de trabalho por um salário. É este o significado da expressão exploração capitalista [do proletariado].

O que ficou dito explica o conceito marxiano de proletariado, considerado na sua vertente socioeconómica, tal como foi elaborado ao cabo de demoradas investigações sobre a sociedade industrial capitalista. O conceito marxiano de proletariado não se esgota, porém, neste âmbito, visto que tem também uma vertente sociopolítica, que se revelará muito contenciosa para os chamados marxistas. A ela voltaremos em momento mais apropriado.

Proletários (homens adultos e rapazinhos) numa fábrica de garrafas de vidro, à meia-noite, em Indiana, EUA, em 1908. Foto de Lewis W. Hine.


7. Ditadura

A resposta à pergunta (b) — cf. secção 5, 2º parágrafo — remete-nos de novo para a Roma antiga.
7.1. Primeira acepção do termo “ditadura”
Em todas as línguas modernas indo-europeias, a palavra ditadura (Fr. dictature, Al. diktatur, Ingl. dictatorship, etc.) começou por fazer referência à dictatura (derivado de dictare, “ditar”) na República Romana antiga, um importante dispositivo constitucional que durou mais de três séculos e que deixou uma marca duradoura na filosofia política.
Esse dispositivo só era accionado em circunstâncias críticas bem caracterizadas e segundo procedimentos legais bem definidos. Através dele, era conferido o exercício do poder político a um magistrado de confiança com vista a enfrentar uma situação de emergência interna ou externa considerada de grande perigosidade para a República romana. Havia duas variedades de ditadura:  a dictatura rei gerunda causa (“a ditadura para conseguir que as coisas sejam feitas”) e a dictatura seditiones sedandae et rei gerundae causa (“a ditadura para pôr um fim à insurreição interna e para conseguir que as coisas sejam feitas”). A lex curiata, o diploma legal que legitimava uma certa ditadura, fixava o propósito da sua instituição. Num total de 90 ditaduras registadas em 300 anos de história deste dispositivo, cerca de 50 foram rei gerunda causa. A seditiones sedandae causa é invocada 4 vezes.
A linha divisória entre assuntos civis e assuntos militares — e, por conseguinte, entre os dois tipos de ditadura — era, todavia, muito ténue. Uma prova disso é o facto de o magistrado investido como ditador rei gerundae causa ser, regra geral, um ditador militar, um poderoso general dos exércitos romanos cujo imperium (poder e autoridade) se estendia a toda a cidade de Roma e a toda a vida romana. Os poderes do magistrado investido como ditador (assim chamado porque dictat, isto é, decide sem consultar outro colega) eram de imperium maius (isto é, muito mais amplos do que os dos cônsules), mas eram limitados à missão que lhe era confiada pela República romana (não podia, por exemplo, revogar as leis em vigor) e a ditadura não podia exceder um período máximo de seis meses [[34]].
Por outras palavras, a ditadura era concebida como um último baluarte de defesa da república romana perante a ameaça iminente de um inimigo externo ou de subversão interna da ordem constitucional. Em suma, era um regime de excepção, destinado a enfrentar uma situação inteiramente inusitada de grande perigo. O seu objectivo proclamado era o de preservar o status quo republicano. Na verdade, o dispositivo da ditadura romana era formalmente dirigido contra todos aqueles que, hoje em dia, muitos de nós não hesitariam em acusar de quererem instaurar (ou de terem instaurado)…uma “ditadura”. Funcionou sempre bem durante três séculos, até ao momento em que Caio Júlio César (100 a.C-44 a.C.) destruiu a ditadura republicana e se declarou “ditador” vitalício e com plenos poderes, ou seja, ditador na acepção actual do termo.

Nas repúblicas representativas (e nas monarquias parlamentares) dos dias de hoje, a que impropriamente se dá o nome de “democracias”, o dispositivo mais semelhante à ditadura romana é a declaração do ‘estado de sítio’ (ou da ‘lei marcial’ nos países anglófonos). Este dispositivo tem três características idênticas à ditadura romana: (i) baseia-se na legalidade constitucional, não na tirania ou na autocracia, (ii) é temporário, (iii) é limitado nos seus poderes, e não absoluto, especialmente por lhe estar vedado impor novas constituições ou sequer novas leis. É com certeza um dispositivo que pode ser muito facilmente virado contra a electividade dos chamados “representantes” do povo, mas é também possível apresentá-lo, como tem sido feito amiúde, como uma medida extraordinária para evitar a destruição da “democracia” às mãos de um inimigo antidemocrático.
Esta ambiguidade da ditadura romana recebeu uma espécie de carta de alforria no século XIX, pela mão da revolução francesa de 1789 e das revoluções de 1848. Foi durante elas que emergiram as acepções contraditórias da palavra “ditadura.”

7.2. Segunda acepção do termo “ditadura”

A suspensão da Constituição francesa de 1793, já depois de ter sido ratificada, e a proclamação do governo revolucionário baseado na Convenção (Constituinte) Nacional são o primeiro exemplo moderno de instauração de uma “ditadura” que utiliza uma fraseologia de inspiração romana como cobertura de um novo conteúdo muito pouco romano.  

Consideremos o teor do decreto da Convenção que institui o governo revolucionário de 10 de Outubro de 1793:

Art.1º. O governo provisório de França é revolucionário até à [instauração da] paz.

Art.2º. O conselho executivo provisório, os generais, os ministros, os corpos constituídos, são colocados sob a vigilância do Comité de Salvação Pública que prestará contas da sua actividade de 8 em 8 dias.

Art.3º. Toda e qualquer medida de segurança deve ser tomada pelo conselho executivo provisório, mediante autorização do Comité [de Salvação Pública], que prestará contas à Convenção.

Art.4º. As leis revolucionárias devem ser executadas rapidamente [[35]] (…)

As justificações que o Comité de Salvação Pública dá para os seus poderes ditatoriais — acompanhados pelo adiamento da entrada em vigor de uma Constituição recém-aprovada, durante uma guerra interna e externa, feito em nome da segurança pública e da defesa da mesma Constituição — têm um cunho romano, prova evidente da consciência que os seus promotores tinham de que não agiam em terreno completamente virgem do ponto de vista doutrinário.

Contudo, a legitimidade deste decreto estava longe de ser unanimemente aceitada no campo revolucionário. Essa foi a razão que levou os Girondinos a atacar «a ditadura da Convenção Nacional» (o zénite da república representativa nesta época) e a «ditadura da Comuna de Paris» (a manifestação mais democrática da vontade popular expressa de baixo para cima que o mundo das sociedades pós-gentílicas tinha visto desde a Grécia dos séculos Vº e IVº a.C. até a essa data).

Como sublinha Andrew Arato, a Convenção (Constituinte) deveria ter sido dissolvida após a ratificação da Constituição, a qual não previa qualquer disposição legal para um governo provisório ditatorial por vontade dela própria ou de qualquer outra entidade representativa [[36]]. Mais importante ainda, neste contexto, foi a mudança de interpretação das tarefas da ditadura (i.e., no caso em apreço, as tarefas do governo revolucionário provisório) que deixa de ser encarada, como era na antiga República romana, como um instrumento provisório (ainda que de último recurso) da preservação da ordem constitucional vigente, para passar a ser vista como um instrumento de criação de uma nova ordem constitucional e de uma nova realidade social e política.

É esta mudança radical no conceito de ditadura que é apresentada com muita clareza por Maximilien de Robespierre no seu famoso discurso sobre “A teoria do governo revolucionário”, proferido perante a Convenção, no dia 25 de Dezembro de 1793, e destinado a justificar o governo revolucionário (i.e., na prática, o Comité de Salvação Pública) instaurado em Outubro de 1793:

(...) A finalidade do governo constitucional é a de conservar a República; a finalidade do governo revolucionário é a de fundá-la.

A revolução é a guerra da liberdade contra os seus inimigos; a Constituição é o regime da liberdade victoriosa e tranquila.

O governo revolucionário tem necessidade de uma actividade extraordinária precisamente porque está em guerra. Está submetido a regras menos uniformes e menos rigorosas porque as circunstâncias em que se encontra são tempestuosas e móveis e sobretudo porque é forçado a empregar incessantemente recursos novos e rápidos para fazer frente a novos perigos…O governo revolucionário tem a obrigação de assegurar toda a protecção nacional aos bons cidadãos; a sua única obrigação perante os inimigos do povo é infligir-lhes a morte.


Maximilien de Robespierre (1758-1794). Advogado. Membro do Clube dos Jacobinos. Presidente da Convenção Nacional (durante 14 dias) e, ulteriormente, membro do Comité de Salvação Pública (durante 1 ano e 1 dia). Preso e condenado à morte, sem julgamento, em 27 de Julho de 1794, por muitos dos convencionais que o tinham anteriormente apoiado. Guilhotinado no dia seguinte. Nota: Este magnífico retrato digital é obra de Julien Lasbleiz, um multifacetado artista plástico e cineasta francês. Foi realizado, em 2014, tendo como referências (i) a máscara mortuária que Philippe Froesh usou, em 2013, para a sua reconstrução do rosto de Robespierre, e (ii) os retratos existentes de Robespierre, de modo a conseguir chegar a um resultado tão realista quanto possível. A finalização do retrato foi executada de modo a dar a impressão de que se trata de uma pintura a óleo. 

A ideia de que uma Assembleia Constituinte e um governo revolucionário escolhido por ela e responsável perante ela pudessem ser, respectivamente, o garante legislativo e o órgão executivo-legislativo de uma “ditadura de classe” (da classe burguesa no caso em apreço) exercida da maneira mais concentrada, directa e ampla possível, teve, como veremos de seguida, uma grande influência sobre o jovem Marx.

7.3. Uma ilustração da “ditadura” da democracia

Marx, com 30 anos na altura, foi um interveniente directo na revolução alemã de 1848, na sua qualidade de redactor-chefe do jornal diário Neue Rheinische Zeitung Organ der Democratie, publicado na cidade de Colónia, porta-voz da esquerda democrática alemã.

Exemplar do Neue Rheinische Zeitung, organ der democratie [Nova Gazeta Renana, órgão da democracia], o jornal diário de Colónia do qual Karl Marx foi fundador e redactor-chefe.

O primeiro-ministro do governo provisório saído dessa revolução, o senhor Camphausen, um capitalista accionista do Neue Rheinische Zeitung, estava apostado em fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para impedir que a revolução pudesse derrubar a monarquia prussiana e o seu governo absolutista. O seu argumento principal, que não se cansava de repetir, era este: (i) se a Assembleia Nacional e o seu governo (o governo chefiado por ele, Camphausen) assumissem o poder soberano em nome da vontade popular, isso seria instaurar uma “ditadura” a ditadura da democracia. (ii) Se o seu governo reformasse o sistema elitista de voto de maneira a instaurar o sufrágio universal, isso seria também instaurar uma “ditadura” a ditadura da democracia.

A linha política defendida por Marx nas páginas do Neue Rheinische Zeitung era exactamente a oposta: a Assembleia Nacional deveria declara-se soberana, repudiar o governo absolutista e apelar ao povo para defender por todos os meios a representação nacional. Foi neste contexto que Marx escreveu nas páginas do Neue Rheinische Zeitung:

Todo e qualquer Estado provisório que se estabeleça depois de uma revolução requer uma ditadura, e uma ditadura enérgica que esteja à altura. Desde o início que criticámos Camphausen por não agir ditatorialmente destruindo e eliminando imediatamente os remanescentes das velhas instituições. Assim, enquanto o senhor Camphausen se auto-embalava com sonhos constitucionais, o partido derrotado fortalecia as suas posições na burocracia e no exército na verdade, aventurava-se mesmo, aqui e ali, a travar uma luta aberta.

Mas quais eram, afinal, as medidas “ditatoriais” que, na opinião de Marx, a Assembleia Nacional democraticamente eleita deveria tomar, e como se ficaria a parecer a “ditadura” da democracia depois de as tomar? Uma parte da resposta já foi mencionada: teriam de ser medidas destinadas a “destruir e eliminar imediatamente os remanescentes das velhas instituições [feudais].” Mas que medidas eram essas exactamente? Elas foram expressas em muitas passagens do livro Revolução e Contra-Revolução na Alemanha em 1848 escrito por Marx. O trecho seguinte representa bem essas passagens:  

Se a Assembleia estivesse possuída do mínimo de energia, teria dissolvido imediatamente a Dieta e teria mandado os seus membros recolherem ao domicílio —  e não havia na Alemanha um órgão corporativo que fosse mais impopular do que a Dieta , substituindo-a por um governo federal formado com membros escolhidos no seio da Assembleia. Ter-se-ia declarado a única expressão legal da vontade soberana do povo alemão, e teria conferido desse modo validade legal a todos os seus decretos. Acima de tudo, teria garantido a sua existência através de uma força armada e organizada no país que desmantelasse qualquer oposição dos Governos [regionais].

7.4. Terceira e quarta acepções de “ditadura”

A revolução francesa de 1848 oferece-nos mais um contexto para examinarmos o modo como Marx empregava a palavra “ditadura”.

Em Junho de 1848, o “Partido da Ordem” (o partido da burguesia conservadora que reunia as suas duas facções monárquicas, os legitimistas e os orleanistas) dissolve a comissão executiva da Assembleia Nacional Constituinte, empossa o general Cavaignac, investindo-o com os poderes inerentes ao estado de sítio, e dá-lhe a missão de derrotar a insurreição proletária — missão que ele cumpre a preceito: 3.000 prisioneiros fuzilados e 15.000 deportados sem julgamento. Marx descreve Cavaignac e as medidas por ele tomadas da maneira mais negativa possível. Mas isso não o impede de qualificar esse regime de ditadura militar no sentido romano do termo:

A victória de Junho levou, durante algum tempo, toda a França burguesa a saudar Cavaignac como o seu salvador, e quando, pouco tempo depois das jornadas de Junho, o partido anti-republicano [os monárquicos orleanistas e os monárquicos legitimistas do “Partido da Ordem”, N.E] recuperou a sua independência, a ditadura militar e o estado de sítio em Paris só lhe permitiram mostrar os chifres de um modo muito tímido e com muita prudência. (…) Durante algum tempo, o exército e a classe camponesa acreditaram que a ditadura militar punha na ordem do dia da França a guerra com o estrangeiro e a “glória”, ao mesmo tempo. Mas Cavaignac não era a ditadura do sabre sobre a sociedade burguesa; era a ditadura da burguesia por intermédio do sabre. E, na altura, a burguesia não requeria do militar Cavaignac mais do que os seus serviços de gendarme [o equivalente a um militar da GNR, entre nós, N.E] [[37]].

Aqui, Marx faz uma clara distinção entre a ditadura de uma classe e a ditadura sobre uma classe. Quando, na fase seguinte dos acontecimentos, o “Partido da Ordem” usou a sua maioria parlamentar para descartar o sufrágio universal, Marx comentou:

Ao repudiar o sufrágio universal com o qual se tinha embandeirado e do qual tinha extraído a sua omnipotência, a burguesia confessa abertamente: «A nossa ditadura existiu pela vontade do povo; agora tem de ser consolidada contra a vontade do povo [[38]]

Esta referência a uma “ditadura” baseada no sufrágio universal e reflectindo “a vontade do povo” é outra indicação da grande aura desta palavra no vocabulário marxiano. “Ditadura” significa aqui, muito simplesmente, “poder de Estado”, “supremacia política de uma classe socioeconómica”.

Por outro lado, Marx qualifica os golpes de Estado feitos pelos dois Bonapartes (Napoleão Bonaparte, mais tarde apelidado de Napoleão I, e o seu sobrinho e herdeiro Luís-Napoleão Bonaparte, que se intitularia de Napoleão III) e os regimes autoritários a que dão origem de ditadura militar e de despotismo, simultaneamente (cf. K. Marx [1853], O 18 de Brumário de Louis Bonaparte) [[39]].

Estes matizes terminológicos no emprego da palavra “ditadura” não são, de modo nenhum, fortuitos. Eles decorrem dos diferentes papéis desempenhados, em diferentes conjunturas, por estes diferentes agentes políticos no quadro das instituições políticas existentes, bem como da sua relação com a classe socioeconómica a que pertenciam no desempenho desses papéis, sobretudo no que diz respeito ao desempenho de funções governamentais.

Camille Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just, Napoleão, os heróis, assim como os partidos e a massa da primeira Revolução francesa, desempenharam com uma roupagem romana e servindo-se de uma fraseologia romana a tarefa da sua época, a saber: a eclosão e a instauração da sociedade burguesa moderna.

Dito de outro modo, estes heróicos “gladiadores” políticos (o termo é de Marx)

encontraram nas tradições estritamente clássicas da República romana os ideais e as formas de arte, as ilusões de que tinham necessidade para dissimularem perante si próprios o conteúdo estritamente burguês das suas lutas e para manterem o seu entusiasmo ao nível da grande tragédia histórica. (…) 

Se os primeiros [Desmoulins, Danton, Robespierre, Saint-Just] reduziram a estilhas as instituições feudais e cortaram as cabeças feudais que tinham crescido nessas instituições, Napoleão criou, dentro da França, as condições graças às quais se podia doravante desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade parcelar do solo e utilizar as forças produtivas industriais libertadas da nação, ao passo que, fora da França, ele varria em todo o lado as instituições feudais na medida em que isso era necessário para criar à sociedade burguesa em França a envolvência de que ela tinha necessidade no continente europeu. Depois de estabelecida a nova forma de sociedade, desapareceram os colossos pré-diluvianos, e, com eles, a Roma ressuscitada: os Brutos, os Gracos, os Publícolas, os tribunos, os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, na sua sóbria realidade, tinha criado os seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes na pessoa dos Say, dos Cousin, dos Royer-Collard, dos Benjamin Constant e dos Guizot [[40]].

E foi assim que a revolução francesa de 1789 a 1814 se vestiu sucessivamente com o guarda-roupa da República romana e com o guarda-roupa do Império Romano, e que a revolução de 1848 não conseguiu fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793 a 1795. Na verdade, o período de 1848 a 1851, de Cavaignac a Napoleão III,

não fez senão evocar o espectro da grande Revolução francesa, desde [Armand] Marrast, o republicano das luvas amarelas, que tomou o lugar [de presidente da Câmara de Paris] do velho [Jean Sylvain] Bailly, até ao aventureiro [Luís Bonaparte] que dissimula os seus traços de uma banalidade repelente debaixo da máscara mortuária de ferro de Napoleão [[41]].

7.5.  Resumo

Em resumo, na sua análise das lutas de classes na Alemanha e na França de 1848 a 1851, Marx emprega o termo “ditadura”:

(i) no seu sentido tradicional, romano (exemplificado, no seu pior, pela ditadura do general Cavaignac);

(ii) no seu sentido despótico, bonapartista (exemplificado por Napoleão Bonaparte e pelo seu sobrinho, Luís-Napoleão Bonaparte);

(iii) num sentido revolucionário, como um “governo enérgico” respaldado num órgão de poder democrático (exemplificado pelo governo da Convenção Nacional de 1793);

(iv) num sentido metafórico, como sinónimo de “poder de Estado de uma classe socioeconómica”, independentemente das modalidades do seu exercício [[42]].

O facto importante a reter é este: em meados do século XIX, a palavra “ditadura” ainda conserva o seu sentido romano, original correspondente ao que modernamente se designa por “estado de sítio” (Ingl. martial law). Neste seu sentido, ela não é, por si só, um sinónimo de despotismo, tirania, absolutismo ou autocracia, termos com os quais se pode, eventualmente, combinar metaforicamente. Sobretudo, a palavra “ditadura” nunca é contraposta à palavra “democracia”. A aura contemporânea que faz com que “ditadura” seja, para muitos de nós, indivíduos do século XXI, uma palavra que evoca um regime político execrável, antitético da democracia, ainda não existia.


8. A ditadura do proletariado


Passemos agora à última pergunta que formulámos na secção 5, a pergunta (c): que significado tinha a expressão “ditadura do proletariado” (Al. diktatur des Proletariats) para Marx?

Hal Draper (1914-1990) fez um estudo minucioso das ocorrências da expressão “ditadura do proletariado” na obra de Marx e de Engels [[43]]. Os seus achamentos são muito interessantes.

a) Draper só encontrou 11 ocorrências dessa expressão na obra publicada de Marx e Engels (contando as ocorrências num mesmo locus [texto] como uma só).

b) Essas ocorrências distribuem-se desigualmente por três períodos bem distintos.

Período 1: de 1850 a 1852, o período pós-revolucionário que se seguiu às grandes convulsões sociais de 1848-1849.

Locus 1. Marx, As Lutas de Classes em França 1848–1850 (texto escrito de Janeiro a Março de 1850)

Locus 2. Marx, Ao Editor do Neue Deutsche Zeitung! (“Neue Deutsche Zeitung” nº 158, 4 de Julho de 1850)

Locus 3. Marx, Carta a Joseph Weydemeyer (5 de Março de 1852)

Período 2: de 1872 a 1875, o período pós-revolucionário  que se seguiu à Comuna de Paris.

Locus 4. Marx, Discurso no banquete de celebração do sétimo aniversário da Associação Internacional dos Trabalhadores, em 25 de Setembro de 1871, em Londres (publicado pelo jornal “The World” de Nova Iorque, em 15 de Outubro de 1871)

Locus 5. Marx,  A indiferença relativamente à política (texto escrito em Janeiro de 1873 e publicado  no “Almanacco Republicano per l’anno 1874”)

Locus 6. Engels, Sobre a Questão da Habitação III (texto publicado no jornal “Der Volksstaat” de Leipzig, em 1872 e 1873) 

Locus 7. Engels,  O programa dos fugitivos Blanquistas da Comuna de Paris (texto escrito em 26 de Junho de 1874) 

Locus 8. Marx, Crítica do Programa de Gotha (texto escrito de Abril a Maio de 1875)

Período 3: de 1890-1893, um período em que Marx já não era vivo e que, por conseguinte, envolve apenas Engels.

Locus 9. Engels, Carta a Conrad Schmidt (27 Outubro 1890)

Locus 10. Engels, Introdução à monografia de K. Marx, A Guerra Civil em França (texto escrito em 18 de Março de 1891)

Locus 11. Engels, Uma crítica do projecto de programa social-democrata de 1891  (texto escrito entre 18 e 29 de Junho de 1891).

Estes são os loci onde encontramos a expressão “ditadura do proletariado” escrita pela mão de Marx e pela mão de Engels. Convém acrescentar ainda um locus independente deles: o testemunho de Alexei Mikhailovich Voden, Conversas com Engels (travadas em 1893).

c) Em todas as ocorrências, qualquer que seja o período, a expressão “ditadura do proletariado” não significa nada mais nem nada menos, para Marx e Engels, do que “regime político do proletariado” [[44]], “exercício do poder político pela classe proletária”, “constituição do proletariado em classe politicamente autónoma”, “conquista da democracia pelo proletariado”, “uma república democrática em que o proletariado tem a supremacia política”, a “substituição do poder de Estado da burguesia por um poder novo, verdadeiramente democrático,” como regime de transição para uma sociedade sem classes socioeconómicas, sem antagonismos de classes e sem Estado. 

À pergunta de Bakunine: «O que quer dizer o proletariado organizado em classe dominante?»Marx respondeu: «Significa que os proletários, em vez de lutarem individualmente contra as classes economicamente privilegiadas, adquiriram poder e organização suficientes para empregarem meios comuns de coerção na sua luta contra elas. Mas [para isso] só podem empregar meios económicos que suprimam o seu carácter de trabalhadores assalariados e, por conseguinte, o seu próprio carácter  de classe. Destarte, a sua dominação termina com a sua victória total, visto que o seu carácter de classe desaparece» (K. Marx. Resumo Crítico do livro Estatismo e Anarquia de Mikhaïl Bakunine, escrito em 1874 ou 1875).

d) A motivação principal do emprego da expressão “ditadura do proletariado” em Marx e Engels foi a de contrariarem e combaterem a ideia-força de uma ala muito influente do movimento socialista de então, os correligionários de Louis-Auguste Blanqui (1805-1881), conhecidos por “Blanquistas”.


      Louis-Auguste Blanqui aos 30 anos (1835), 
retratado pela Madame Blanqui. 
                         
Para os “Blanquistas”, um pequeno número de revolucionários destemidos, resolutos e disciplinados (como eles próprios se consideravam e com razão) seria capaz de organizar secretamente um golpe de Estado, tomar o poder e mantê-lo em nome das massas populares, desde que conseguisse obter o seu apoio com medidas políticas apropriadas, organizá-las e educá-las sob o seu comando para virem a conseguir exercer elas próprias o poder quando estivessem aptas a fazê-lo — isto é, quando os revolucionários, do alto do seu juízo, decidissem que as massas populares tinham, finalmente, alcançado esse grau de aptidão. Até lá, durante um período transitório mais ou menos longo, no mínimo de uma geração, o país seria governado pelos revolucionários. Isso exigiria a férrea centralização do poder (legislativo, governativo, judiciário) nas mãos do novo governo revolucionário, uma situação a que se pode aplicar o termo “ditadura” a ditadura de um partido, em vez da ditadura de um homem só como na Roma antiga.

Seria um erro subestimar a influência desta ideia de uma ditadura de revolucionários esclarecidos que educam e dirigem as massas populares para a instauração do socialismo. Ela teve a sua primeira e mais pura expressão em François Nöel (“Graco”) Babeuf e a sua “Conspiração dos Iguais” durante a revolução francesa de 1789, de que os “Blanquistas” se consideravam herdeiros. Ela teve a sua segunda expressão no século XIX, nas insurreições fracassadas de 12 de Maio de 1839, de 15 de Maio de 1848, e de 31 de Outubro de 1870, em que Blanqui e os “Blanquistas” desempenharam um papel determinante. E a mesma ideia tornará a ressuscitar na Rússia, no princípio do século XX, sob a pluma de Lenine, como observou perspicazmente Rosa Luxemburgo [[45]].

A influência do “Blanquismo” durante a vida de Marx e Engels, especialmente no período 2 supramencionado, pode ser avaliada pelo facto de Louis-Auguste Blanqui que jazia nessa altura na prisão por ordem de Adolphe Thiers como represália pelo seu papel na insurreição de Outubro de 1870 ter sido eleito presidente da Comuna de Paris em 1871 in absentia. A Comuna de Paris propôs (em vão) a Thiers a libertação de Blanqui em troca da libertação do arcebispo de Paris e de toda uma série de clérigos seus reféns.


Louis-Auguste Blanqui já idoso. 

Outro sinal inconfundível da influência do “Blanquismo” foi o facto da maioria dos membros do governo da Comuna de Paris (designado por “Comissão Executiva da Comuna de Paris) serem “Blanquistas”. Não é de admirar, portanto, que o termo “ditadura do proletariado” surja sempre, na prosa de Marx e de Engels, em conexão com o “Blanquismo” e em contraposição ao seu conceito de “ditadura revolucionária dos destemidos”. Como observa Hal Draper:

Normalmente, a expressão de Marx para essa ideia [a ditadura do proletariado] era “regime político do proletariado” [rule of proletariat], “poder político do proletariado”, etc., como no Manifesto [do Partido Comunista]. Mas quando se trata de contrapor este conceito de classe à ditadura do tipo Blanquista, o conceito é expresso na fórmula “ditadura de classe”. A ditadura de classe é então contraposta à ditadura Blanquista para fazer o contraste (H. Draper, Capítulo 1 de The ‘Dictatorship of the Proletariat’ from Marx to Lenin, Monthly Review Press, 1987).

“Ditadura de classe” significa pois, neste contexto, poder político comum e colectivo de uma classe socioeconómica, neste caso a classe proletária. Nas frentes unidas com os Blanquistas, só esta fórmula era aceitável para Marx e Engels. 


9. A carta de Marx a Weydemeyer


Regressemos agora à carta que Marx escreveu ao seu amigo e camarada Joseph Weydemeyer em 5 de Março de 1852.  É a primeira e a única vez que a expressão “ditadura do proletariado” ocorre na correspondência privada de Marx. Por que é que isso acontece nesta ocasião? Por uma boa e simples razão.

Depois de ter fugido da Alemanha (onde era perseguido) para a Suíça (onde não consegue encontrar trabalho), Weydemeyer — membro, como Marx, da Liga dos Comunistas e ex-redactor do Neue Rheinische Zeitung  — decide emigrar para os EUA. A conselho de Marx, instala-se em Nova Iorque, onde chega a 7 de Novembro de 1851. O primeiro artigo que escreve em solo americano é publicado num jornal de língua alemã, o Turn-Zeitung, no dia 1 de Janeiro de 1852. Tem por título A Ditadura do Proletariado. Segundo Draper, este é provavelmente o único artigo que foi publicado com um tal título até 1918. O mais interessante é que o artigo não é, no essencial, sobre a ditadura do proletariado. Na sua maior parte, é um condensado do Manifesto do Partido Comunista (1848) de Marx e Engels. Há uma referência à ditadura do proletariado que só aparece no último parágrafo.


Joseph Weydemeyer (1818-1866). Geómetra, ex-oficial do exército da Prússia e, mais tarde, tenente-coronel do Exército de Abraham Lincoln na guerra civil americana, jornalista, comunista, amigo pessoal de Karl Marx. 

Quando Marx escreve a sua carta, ele acabou de receber um exemplar do Turn-Zeitung com o artigo A Ditadura do Proletariado de Weydemeyer. A carta tem por objectivo dar ao seu amigo sugestões de material para novos artigos e conselhos sobre o modo de lidar com opositores seus americanos. É neste contexto que Marx escreve o trecho já nosso conhecido:

Agora no que me diz respeito: não me cabe o mérito de ter descoberto a existência das classes na sociedade moderna, nem tão pouco a luta que nela travam. Muito antes de mim, historiadores burgueses tinham exposto a evolução histórica dessa luta de classes, e economistas burgueses tinham descrito a sua anatomia económica. A minha originalidade consistiu em demonstrar (1) que a existência das classes está ligada apenas a certas fases históricas do desenvolvimento da produção;(2) que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; (3) que mesmo esta ditadura representa apenas uma transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes. 

Ao usar, aqui, a expressão “ditadura do proletariado” Marx não fazia mais do que dar eco ao título do artigo de Weydemeyer, o qual, por sua vez, dava eco aos artigos de Marx sobre As Lutas de Classes em França 1848-1850, publicados nos quatro primeiros números do jornal Neue Rheinische Zeitung de que Weydemeyer tinha sido também redactor. Em ambos os casos, tratava-se de uma expressão cujo significado especial era perfeitamente conhecido por estes dois homens.

Nos 20 anos seguintes não há nenhuma ocorrência dessa expressão nos escritos públicos ou privados de Marx ou de Engels. Durante estas duas décadas, os contactos dos dois homens com os “Blanquistas” foram também muito escassos, razão pela qual o termo não é usado. Os “Blanquistas” continuam a falar, como de costume, das vantagens que adviriam da ditadura dos revolucionários ou o que vem a ser mesmo no seu vocabulário da “ditadura de Paris” (sobre a província), ao passo que Marx e Engels continuam a falar, como de costume, do “regime político do proletariado” ou do “poder político da classe trabalhadora”. Como vimos, a “ditadura do proletariado” é a reformulação dessas duas fórmulas quando se trata de contrapô-la à “ditadura de uma minoria revolucionária ao estilo “Blanquista”.

Quando Marx escreve A Guerra Civil em França (1871) ainda não tem contacto com os “Blanquistas” [[46]], razão pela qual o termo “ditadura do proletariado” não aparece nesse trabalho. No entanto, há dois aspectos desse texto que são importantes para o resto da história.

1) Marx apresenta a Comuna (decalque do Fr. commune) de Paris como «um governo da classe trabalhadora (…), a forma política finalmente encontrada para levar a cabo a emancipação económica do Trabalho». Estas e outras formulações semelhantes correspondem ao que ele, na carta a Weydemeyer e noutras ocasiões, denominara “ditadura do proletariado.”


Edital de proclamação da Comuna de Paris em 29 de Março de 1871 e das suas primeiras medidas legislativas.

Barricada na praça Vendôme, na embocadura da rua de Castiglione, durante a Comuna de Paris de 1871. Foto de Bruno Braquehais.

2) Ao mesmo tempo, A Guerra Civil em França descreve com cores fortes o carácter retintamente democrático da Comuna de Paris, bem manifesto nas suas medidas, como, por exemplo: A) o fim de toda a investidura hierárquica; B) a eleição por sufrágio universal de deputados [chamados conselheiros] municipais em todos os arrondissements da Comuna (i.e. do município) de Paris [[47]], responsáveis perante as assembleias dos seus eleitores e revogáveis por elas em qualquer  momento; C) a auto-instituição do exercício do poder executivo e legislativo pelos deputados constituintes da Comuna de Paris; D) a instituição do princípio da electividade para todos os juízes, magistrados judiciais, polícias e funcionários administrativos parisienses, e do princípio da sua responsabilidade perante a Comuna de Paris; E) a abolição do exército profissional permanente e a sua substituição por uma milícia de todos os cidadãos com um tempo de serviço individual muito curto; F) a decisão da Comuna de Paris de entregar as empresas fechadas ou abandonadas pelos seus proprietários capitalistas aos trabalhadores que nelas trabalhavam, a fim de lhes permitir, mediante uma prestação pecuniária à Comuna, transformá-las em empresas cooperativas e geri-las democraticamente como tal.


Edital da Comuna de Paris decretando a abolição do serviço militar obrigatório nas fileiras do exército profissional e a instituição, em lugar do exército profissional, de uma milícia constituída por todos os cidadãos válidos e com um tempo de serviço individual curto.

Edital da Comuna de Paris de 20 de Abril de 1871 com o decreto da abolição do trabalho nocturno.

Marx resume estas e outras medidas dizendo que «a grande medida social da Comuna foi a sua própria existência e a sua própria acção. As suas medidas particulares só podiam indicar a tendência de um governo do povo e pelo povo». A Comuna «dotou a República de instituições de base realmente democráticas.» Em contrapartida, os “Blanquistas” consideraram as medidas democráticas da Comuna de Paris como uma manifestação de fraqueza e um erro. Como bem observou Hal Draper, «o contraste entre estas duas análises diametralmente opostas da democracia da Comuna estava contido em embrião nas duas formulações diferentes da “ditadura”» (op.cit.) [[48]].

Barricada no cruzamento do Boulevard Voltaire com o Boulevard  Richard-Lenoir, durante a Comuna de Paris de 1871.


10. Vislumbre da 2ª parte deste artigo


Aqui chegados, creio que o leitor já tem todos os elementos que lhe permitirão concluir que, agora, sabe ao certo (se é que ainda não sabia, como julgo ser muito provável [[49]]) duas coisas:

(i) qual foi o motivo que levou Marx a inventar a expressão “ditadura do proletariado” a saber, manter um canal de comunicação aberto com os “Blanquistas”, o partido socialista mais prestigiado e influente no seio dos proletários franceses da sua época;

(ii) qual era o significado que Marx atribuía à expressão “ditadura do proletariado” — a saber, a forma republicana democrática que permite realizar a emancipação económica do proletariado e que a Comuna de Paris de 1871 conseguiu corporizar pela 1ª vez na história, durante 2 meses e 10 dias, antes de ser afogada em sangue pelos seus inimigos.


Barricada na rua Charonne durante a Comuna de Paris. 

E creio ter também fornecido ao leitor todos os elementos que lhe permitirão concluir que sabe agora (se é que as desconhecia, o que creio ser também muito provável) quais são as razões para considerar que essa expressão é uma má metáfora. Na verdade, podemos afirmar, tirando partido de uma análise retrospectiva, que essa expressão metafórica estava, em razão de grave e irreparável defeito de fabrico, fadada para semear a confusão, em vez de oferecer aos seus utentes um foco de luz brilhante sobre o conceito que pretende transmitir.

Nessa ordem de ideias, mostrarei, na 2ª parte deste artigo, como a expressão “ditadura do proletariado”, em virtude da sua irremediável anfibologia, se prestou a ser utilizada de duas maneiras insidiosas que metamorfosearam completamente, desfigurando-o, o seu significado marxiano aos olhos de dezenas de milhões de trabalhadores por esse mundo fora. Ambas as metamorfoses se produziram na Rússia.

A primeira metamorfose ocorreu por via das doutrinas de Lenine e da actuação governamental do partido bolchevique entre Julho de 1918 e Janeiro de 1924, que a utilizaram como sinónimo de uma ditadura ao estilo “Blanquista” (isto é, paternalista nas palavras e férrea nos actos) de um partido sobre o pequeno proletariado russo para, alegadamente, ensiná-lo a realizar a sua emancipação económica nas condições concretas muito adversas de um imenso país agrário e atrasado, mas cobiçado por várias potências imperialistas hostis. A segunda metamorfose ocorreu por via das doutrinas de Estaline e da actuação governamental da sua facção no partido bolchevique entre 1924 e 1928, que lhe conferiram ulteriormente (1928-1953) ressonâncias sinistras ao utilizá-la como fórmula oficial de caracterização de um regime de despotismo sanguinário sobre o proletariado e o campesinato russos e sobre todos os povos não-russos da ex-Rússia czarista.   

Reduzida ao essencial, a mensagem da 2ª parte deste artigo será, pois, a seguinte: quem compreende a necessidade de prosseguir a luta de Marx por uma sociedade democrática, tecnologicamente avançada, ecologicamente sustentável, sem classes socioeconómicas e sem Estado, tem motivos históricos mais do que suficientes para abandonar de vez essa infeliz expressão marxiana à crítica roedora dos ratos. Feito isto, teremos de ver que modificações devem ser feitas nas teses 2 e 3 da carta de Marx a Weydemeyer para lhes restituir o seu sentido emancipatório.


José Manuel Catarino Soares

Lisboa, 20-06-2018

P.S. Todas as fotos sobre o trabalho fabril do proletariado que ilustram este texto, são, com uma excepção, do sociólogo Lewis Wickes Hine (1874-1940). Hine, um ex-professor do ensino liceal e fotógrafo amador, percorreu os EUA de lés a lés, de 1908 a 1924, tirando milhares de fotos com vista a ilustrar a exploração capitalista desenfreada do trabalho infantil nas fábricas e nos campos. Estava convencido (com razão) que essa seria uma poderosa arma para combater esse flagelo. Infelizmente, não há documentação fotográfica que ilustre, de modo comparável, as condições de vida e de trabalho do proletariado europeu (incluindo o proletariado infantil e feminino) no século XIX. Sobre elas possuímos apenas documentação escrita (embora muito vasta) e alguma gravura, pintura e património  edificado com valor documental. A tecnologia fotográfica só começou a generalizar-se — e, ainda assim, de modo muito incipiente — já Marx e Engels eram ambos homens de idade avançada. Todavia, as fotos de Lewis W. Hine, mais de meio século depois da monografia A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845) de Friedrich Engels, permitem-nos imaginar, de modo muito vívido, como seriam (ainda piores, sem dúvida) as condições de trabalho e de vida do proletariado europeu na época de Marx e Engels, ajudando-nos a compreender melhor o significado prático e histórico da fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores.  






NOTAS

[1]. O plano de desenvolvimento teórico que Marx gizou para O Capital, em 1865/1866, e que não sofreu modificações ulteriores, compreendia 4 partes: 1) o processo de produção do capital; 2) o processo de circulação do capital; 3) formas do processo de conjunto  [unidade dos processos 1 e 2] ; 4) contribuição à história da teoria desenvolvida em 1, 2 e 3. Só a parte 1 foi publicada durante a vida de Marx, em 1867 (O Capital, volume 1). As partes 2 e 3, inacabadas, foram editadas e publicadas postumamente por Friedrich Engels em 1885 (O Capital, volume 2) e 1895 (O Capital, volume 3), respectivamente. A edição MEGA2 permitiu já constatar que os manuscritos originais de Marx relativos à parte 3 são bem diferentes da versão editada e publicada por Engels como volume 3 de O Capital. Qualquer discussão futura terá de reportar-se à edição MEGA2. Os rascunhos para a parte 4 foram publicados postumamente por Karl Kautsky, de 1905 a 1910, em 3 volumes, com o título Teorias sobre a Mais-Valia, embora com muitas alterações e muitos cortes do texto original que edições ulteriores reverteram. Marx escreveu muitos outros livros, ensaios e artigos sobre temas de economia política, política, sociologia, filosofia e história caracterizados por uma crítica cerrada e inédita da sociedade vigente. Mas, O Capital, apesar de ter ficado inacabado, é o seu magnum opus.   

[2] . Excerto da oração fúnebre proferida em Inglês por Friedrich Engels em 17 de Março de 1883, junto à sepultura de Karl Marx e de sua esposa Johanna (“Jenny”) Bertha Julie von Westphalen (falecida 18 meses antes), no cemitério de Highgate, em Londres (Karl Marx's Funeral. Der Sozialdemokrat, 22-03-1883.https://www.marxists.org/archive/marx/works/1883/death/dersoz1.htm).

[3]. A única condição necessária em falta nesses países — da Europa Ocidental (todos), da Europa Oriental (República Checa, Eslováquia, Polónia), da Federação Russa (pelo menos as oblasts da sua parte europeia), da América do Norte (EUA e Canadá), da Oceania (Austrália e Nova Zelândia) e da Ásia Oriental (Japão, Coreia do Sul, Taiwan) — é a unidade esclarecida, organizada e resoluta da maioria dos trabalhadores assalariados (que constituem também a grande maioria da população desses países) em torno da razoabilidade e da necessidade de alcançar este objectivo. Voltarei a este assunto na 3ª parte deste artigo.

[4]. Oito indivíduos possuem, neste momento, mais riqueza do que metade da população mais pobre do planeta. Para estas e outras estatísticas conexas, ver Thomas Piketty (2014), O Capital no Século XXI. Lisboa. Temas e Debates; Deborah Hardoon, Sophia Ayele & Ricardo Fuentes-Nieva (2016), A Economia para o 1%. Oxfam, https://www.oxfam.org.br/noticias/relatorio_davos_2016; Branco Milanovic (2017), A Desigualdade no Mundo. Lisboa. Actual Editora.

[5]A revista Bulletin of the Atomic Scientists tem um relógio do apocalipse [nuclear] bem conhecido. O seu último relatório anual assinala que estamos a dois minutos do apocalipse nuclear (cf. It is two minutes to midnight. 2018 Doomsday Statement. Science and Security Board. Bulletin of the Atomic Scientists. Editor, John Mecklin. Disponível em https://thebulletin.Org/sites/default/files/2018%20 Doomsday%20Clock% 20Statement.pdf.

[6]. É verdade que o consumo dos combustíveis fósseis trouxe muitos benefícios à civilização e à humanidade, entre os quais se contam o de ter evitado uma deflorestação mais drástica nos quatro continentes habitados. Mas a exploração destes combustíveis, tendo sido sempre conduzida sob a perspectiva do lucro, não acautelou os interesses da humanidade a  longo prazo. Os capitalistas e gestores das indústrias de combustíveis fósseis parecem ter adoptado, até aos anos 1970, o lema de madame Pompadour: «Depois de nós [que venha] o dilúvio!» 

[7]. Maximilien Rubel (1974/2016), Marx, critique du marxisme. Paris, Payot; Michel Henry (1976/1991), Marx, tome I. Une philosophie de la réalité. Paris, Gallimard, 1976, p.9 (reedição:  collection "Tel", 1991).

[8] . «Tudo o que sei”, disse Marx, é que eu não sou um marxista. O que nos anos 1870 era uma clara piada dialéctica transformou-se, desde então, num problema político de primeira importância»  (John Molyneux, “What is the real marxist tradition?”  International Socialism 2:20, July 1983). Concordo com a apódose (2ª parte) desta frase, mas não com a prótase (1ª parte). Voltarei a este assunto na 2ª parte deste artigo.

[9] . É assim que Hal Draper qualifica a frase de Marx. E explica: «Por gracejo acutilante  [“pointed quip”] entendo um reparo feito de uma maneira jocosa de modo a suavizar um assunto sério» (Karl Marx’s Theory of Revolution, vol.II. New York. Monthly Review Press, 1978). Mas ele próprio reconhece, no mesmo livro, que marxismo e marxista são termos que Marx não poderia deixar de repudiar, sem qualquer jocosidade, por ponderosas razões de princípio. Voltarei a este assunto na 2ª parte deste texto.

[10] . Salvo menção em contrário, a tradução de todas citações feitas ao longo deste texto é da minha lavra. A sigla N.E corresponde a “nota editorial.”

[11] . Por “a obra de Marx” deve entender-se, no presente contexto, uma forma abreviada de dizer: “a obra de Marx e as obras de Marx escritas em colaboração com Engels.” Semelhantemente, por “a obra de Engels”, deve entender-se, no presente contexto, uma forma abreviada de dizer: “a obra de Engels e as obras de Engels escritas em colaboração com Marx.”

[12] . Por seu turno, marxismo-leninismo é utilizado amiúde como sinónimo de estalinismo, um -ismo derivado do pseudónimo (“Estaline”) de um outro político russo(/georgiano), Iossif Vissariónovitch Djugashvili (1878-1953). “Estalinismo” tem, porém, uma segunda acepção, desta feita perfeitamente adequada, quando a palavra é usada para designar o regime político que vigorou na Rússia entre 1928-1953 e, sob formas mitigadas, entre 1956 e 1985. 

[13] . Ver, em particular, Cyril Smith (1996), Marx at the Millenium. London. Pluto Press; Cyril Smith (2005). Karl Marx and the Future of the Human. Lanham. Lexington BooksCyril Smith (2004), Marx and Materialism (disponível em https://www.marxists.org/subject/marxmyths/index.htm).

[14] . Tobias Buck,“Plan to publish full works of Marx is long tome in the making”. Financial Times, June 15, 2018.

[15] . O maior acervo é a parte que foi traduzida em Inglês  — os 50 volumes da Marx & Engels Collected Works, na Digital Edition da Lawrence & Wishart. Estes volumes estão acessíveis em <https://archive.org/details/MarxEngelsCollectedWorksVolume10M>. Para os leitores que desejem ler Marx (e Engels) em Alemão, a edição mais acessível é Karl Marx, Friedrich Engels, Werke (Berlin, 1956–83), cujo texto está disponível na www em dois formatos: a paginação da versão impressa está incluída em <http://www.dearchiv.de/php/mewinh.php> e excluída em <http://www.mlwerke.de/me/>. 

[16] . No direito das sucessões, a aceitação  “a benefício de inventário” é a faculdade, concedida  ao(s) herdeiro(s), de querer(em), antes de aceitar uma herança, que seja feito um inventário com tudo o que a compõe — bens e dívidas — e de responder(em) pelas dívidas do falecido somente até onde alcancem os bens da herança, isto é, os arrolados no inventário, cabendo aos credores o ónus de demonstrar a existência de outros bens pertencentes à herança.

[17] . Os enunciados entre aspas angulares são de Jean-Marie Vicent no seu livro Un Autre Marx (2001), éditions Page Deux, collection Cahiers Libres. Eles exprimem bem a atitude ambivalente deste autor perante a obra de Marx, sintetizada nesta frase sibilina: «Marx não está completamente inocente dos extravios do marxismo.» Esta afirmação aberrante tem sido repetida vezes sem conta. Ainda recentemente, um economista, professor na Universidade Católica de Lisboa, o fez da seguinte forma: «Mas a herança de Marx não pode ser desligada do que foi realizado em seu nome», nomeadamente «os regimes marxistas» que «geraram das piores desgraças da história» (João César das Neves. "Veneno na Ferida". Diário de Notícias, 17-03-2018). Isto ilustra bem a observação de Maximilien Rubel: «Pretender fazer acreditar, por exemplo, que “Marx é o fundador do marxismo” daria simplesmente vontade de rir se esta fórmula absurda não se encontrasse em publicações sérias como são certas grandes enciclopédias impressas em numerosos países» («Et si Marx était le premier anti-marxiste?» Entrevista a Maximilien Rubel de Jean-Paul Kauffmann, no jornal Le Matin, 30 de Março de 1983). 

[18] . Cf. Karl Marx (1865), Confession (https://www.marxists.org,archive/marx/works/1865/04/01. htm).

[19]. «Toda e qualquer opinião baseada na crítica científica é bem-vinda Quanto aos preconceitos da chamada opinião pública, à qual nunca fiz concessões, a minha divisa de hoje e de sempre é a do grande florentino: Segui il tuo corso, e lascia dir le genti’» (K. Marx. Prefácio ao tomo 1 de O Capital. 1867). Na verdade, Marx adaptou o versículo de Dante aos seus propósitos. O versículo original é: Vien dietro a me, e lascia dir le genti[Segue-me, e não faças caso do que os outros dizem ou, na tradução de José Pedro Xavier Pinheiro, Segue-me: a vozes vãs ouvido escasso!]. (Dante Alighieri [1321]. A Divina Comédia. Purgatório. Canto 5º, versículo 13). Sobre Marx como admirador de Dante,  ver o estudo de Giovanni Sgro’« Segui il tuo corso, e lascia dir le genti !  Karl Marx lettore della Commedia.» Dante: Rivista Internazionale di Studi su Dante Alighieri. X. 2013. Fabrizio Serra Editore, Pisa · Roma.

[20] O manuscrito deste livro, redigido entre Setembro de 1845 e Maio de 1848 — mas deixado não apenas inacabado, como também em estado fragmentário, como hoje sabemos graças à edição MEGA2  só seria  publicado postumamente em 1932. Isto, porque o editor a quem Marx e Engels tinham confiado a sua impressão acabou por avisá-los que o não faria. Comentando este facto uma década depois, Marx escreveu: «Tínhamos [com esse manuscrito, N.E] alcançado o nosso objectivo: clarificar as nossas ideias para nosso próprio governo. Por isso, abandonámos de bom grado o manuscrito à crítica roedora dos ratos.» (Préface. Contribution à la Critique de l’Économie Politique [1859]).

[21] . “O legado de Marx” é função da “obra de Marx” (cf. nota 11 supra). Por isso, pode incluir (se for caso disso) trabalhos de Marx que têm Engels como co-autor. Mas Engels não é um mero apêndice de Marx, mas, antes, um teórico de grande gabarito com um pensamento próprio (e muitas vezes oposto ao de Marx), razão pela qual a sua obra a solo não deve ser confundida com a de Marx. Por essa razão, “o legado de Engels”, individualmente considerado, não entra no âmbito deste artigo, salvo expressa menção em contrário.

[22] . É verdade que se fala de taylorismo, fordismo, darwinismo social, etc. em sociologia, e de cesarismo, bonapartismo, salazarismo, estalinismo, etc. em filosofia política. Mas trata-se, nesses casos, de denominar não teorias filosóficas ou científicas, mas fenómenos muito diversos (tecnologias sociais, regimes políticos, ideologias, doutrinas, etc.), que têm, aliás, um denominador comum: o facto de comportarem todos eles uma crença ideológica de um tipo especial. Refiro-me à crença num indivíduo investido de um poder carismático avassalador, ou possuidor de poderes demiúrgicos, ou numa estirpe de seres humanos com essas propriedades.

[23] . Cícero, De Republica, livro II, cap. XXI. Remacle.org. Minha tradução a partir do francês.

[24] . Asses eram moedas de bronze cujo peso passou progressivamente de 324 a 20 gramas.

[25] . Aulu-Gelle [= Aulo Gélio], Nuits attiques, livro XVI, cap. 10. Remacle.org. Este autor informa-nos que o cônsul Caio Mário (em Latim, Gaius Marius, 150-75 a.C.) foi o primeiro a recrutar em massa os proletários capitecenses para o exército, para combater o rei Jugurta da Numídia (um reino africano berbere), os Cimbros e os Teutões (duas tribos germânicas), situação nunca vista até então.

[26] . O proletariado europeu do século 19 é maioritariamente rural, porque é nas regiões agrícolas que trabalhava e residia. Este padrão sociogeográfico vai manter-se ao longo de todo o século XIX, apesar do grande crescimento numérico e do grau de concentração do proletariado fabril urbano. (Cf. Charles Tilly: ‘Demographic Origin of the European Proletariat’, in David Levine, ed., Proletarianization and Family History. N.Y. 1984, p. 36).

[27] . Jacques Guilhaumou. «De “peuple” à “prolétaire(s)”: Antoine Vidal, porte-parole des ouvriers dans “L'Echo de la Fabrique” en 1831-1832 ». Semen — Revue de sémio-linguistique des textes et discours. Presses Universitaires de l'Université de Franche Comté (Pufc), 2008, pp.101-115. <halshs-00345065>

[28] . Convém lembrar que o termo ‘anarquista’ (um neologismo criado por Pierre-Joseph Proudhon) é, em bom rigor, anacrónico neste contexto.  Nessa época, os precursores dos anarquistas auto-intitulavam-se “mutualistas.” Os seus sucessores adoptaram diversos nomes como, por exemplo, os de “colectivistas”, “democratas socialistas”, socialistas, “sindicalistas  revolucionários” , federalistas”, libertários” (um neologismo criado pelo anarquista Pierre Déjacque),   “anarco-sindicalistas”,  “anarquistas comunistas”, comunistas libertários”, socialistas libertários (v. Alexander Berkman [1929], What is Communist Anarchism?, USA. The Vanguard Press, reeditado em Inglês, a partir de 1946, pela Freedom Press, Londres, com o título A.B.C of Anarchism; Rudolf Rocker [1938], Anarcho-Syndicalism, Martin Secker & Warburg Ltd, Londres, reeditado em 1989 pela Pluto Press, Londres; Gaston Leval [1956], «Socialisme Libertaire ! Pourquoi?» Contre-Courant; Daniel Guérin [1970], Anarchism: from theory to practice. New York. Monthly Review Press; Émile Carme, Le communisme libertaire: qu’est-ce donc ? www.revue-ballast.fr; Felipe Corrêa [2013], Surgimento e breve perspectiva histórica do anarquismo (1868-2012). Faísca Publicações Libertárias. www.editorafaisca.net

[29] . A oposição republicana comportava também facções pequeno-burguesas e facções burguesas. Em 1848, as primeiras viriam a agrupar-se no partido da Montagne e as segundas em torno do jornal parisiense Le National. 

[30] . Cf. Claude Nicolet (1997). ‘Introduction. Dictature, Absolutisme et Totalitarisme’. Revue Française d’Histoire des Idées Politiques,nº 6, 2e semestre, p.230

[31] .  Isabelle Garo. ‘Le peuple chez Marx, entre prolétariat et nation. www.contretemps.eu.

[32] . O Manuscrito de Kreuznach, também conhecido por Crítica da filosofia do direito público de Hegel, só foi publicado postumamente em 1927.

[33] . F. Engels. Introdução à edição de 1891 do texto Trabalho Assalariado e Capital (1848) de Karl Marx.

[34] . Ver Mário Curtis Giordani (1996), Iniciação ao Direito Romano. 3ª edição. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris Ltda; Claude Nicolet (2004),  «Dictatorship in Rome». In Dictatorship in History and Theory. Bonapartism, Caesarism, and Totalitarianism. Edited by Peter Baehr & Melvin Richter. Cambridge University Press; Clinton L. Rossiter (1948/2007), Constitutional Dictatorship, Crisis Government in the Modern Democracies. New Jersey. Princeton University Press.

[35] . Archives parlementaires, 1ère série, Convention nationale, séance du 10 octobre 1793.

[36]. Andrew Arato (2003), Conceptual History of Dictatorship (and its Rivals). In E. Peruzzotti & M. Plot, eds., Critical Theory and Democracy: Civil Society, Dictatorship and Constitutionalism in Andrew Arato's Democratic Theory (Routledge, October 2012).

[37] . K. Marx (1850), As Lutas de Classes em França de1848 a 1850. A tradução é minha a partir da tradução francesa, mas o leitor interessado dispõe de uma tradução portuguesa desta monografia acessível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/11/lutas_class/index.htm .

[38] . K. Marx (1850), As Lutas de Classes em França  de 1848 a 1850.

[39] . Brumário é o 2º mês do calendário republicano francês, criado durante a revolução de 1789-1792 e utilizado de 1792 a 1806. Em 18 de Brumário (= 9 de Novembro) de 1799, o general Napoleão Bonaparte executou um golpe de estado que derrubou o governo do Directório e instaurou a sua ditadura pessoal, qualificada de “Consulado”. Ao falar da «segunda edição do 18 de Brumário», Marx faz alusão ao golpe de Estado executado pelo presidente da república Luís-Napoleão Bonaparte na noite de 1 para 2 Dezembro de 1851 e a instauração da sua ditadura pessoal, qualificada de “2º Império.”

[40] . K. Marx (1852), O 18 de Brumário de Louis Bonaparte. A tradução do excerto é minha, mas o leitor interessado dispõe de uma tradução portuguesa desta monografia acessível em https://www. marxists.org/ portugues/marx/1852/brumario/index.htm.

[41] . K. Marx (1852), O 18 de Brumário de Louis Bonaparte.

[42] . “Metafórico”, mas não idiossincrático. Este uso metafórico do termo “ditadura” não tem a sua origem em Marx, mas em autores que se situam, no que diz respeito ao espectro político, no quadrante oposto ao seu, como, por exemplo, o alemão Lorenz von Stein, o espanhol Juan Donoso Cortés e o francês François Guizot.

[43] . Hal Draper (1962), “Marx and the Dictatorship of the Proletariat”. New Politics, Vol. 1, Nº. 4, Summer 1962, pp. 93 ff; Hal Draper (1987), “The ‘Dictatorship of the Proletariat’ in Marx and Engels”. Cap.1 de The ‘Dictatorship of the Proletariat’ from Marx to Lenin. New York. Monthly Review Press.

[44] . O termo alemão mais frequentemente usado por Marx é herrschaft, que é normalmente traduzido em Inglês por rule. Traduzo herrschaft por regime político ou governação.

[45] . Rosa Luxemburgo (1904), Questões Organizativas da Social-Democracia Russa, texto publicado em Inglês sob o título enganador de Leninism or Marxism? [Leninismo ou Marxismo?](https://www.marxists.org/archive/luxemburg/1904/questions-rsd/)

[46] . Isso só vai ocorrer depois da derrota da Comuna de Paris, em 1871. Um numeroso grupo de ex-communards (membros da Comuna de Paris) “Blanquistas” procura então refúgio na Inglaterra, onde residem Marx e Engels. Das discussões que travam com Marx e Engels, resultará uma notável evolução política de muitos deles, que os levará a aderir à Associação Internacional de Trabalhadores e a alinharem-se, dentro e fora dela, com as posições de Marx.

[47] . Os arrondissements do município de Paris são uma divisão administrativa equivalente grosso modo às freguesias do município de Lisboa.

[48] . Diga-se, porém, em abono da verdade, que uma parte considerável dos “Blanquistas” virá a fazer um balanço diferente dos pontos fortes e fracos da actuação da Comuna de Paris, como já tive ocasião de assinalar (cf. nota 46 supra).

[49] . «Provável» no sentido de probabilidade Bayesiana, bem entendido.