Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

24 setembro, 2018

Temas 2 e 3


A Humanidade não tem uma língua superior às demais, seja para o que for


Esta semana, no dia 17 de Setembro de 2018, vi e ouvi, no programa Prós e Contras da RTP 1, subordinado ao tema Como vai a Educação em Portugal ?, a intervenção de uma aluna portuguesa do ensino secundário, que disse chamar-se Filipa Maia, ter 18 anos, ser de Coimbra e estar ali em representação dos estudantes portugueses (do ensino secundário, presumo). 

Competências triviais

Esta aluna  referiu várias vezes  os «soft skills, um conceito superimportante  para o mundo do trabalho». Quando lhe pediram para traduzir essa expressão inglesa, para que toda a gente que a escutava pudesse entender, ou entender melhor, o que ela estava a dizer, ficou um pouco atrapalhada, até que alguém lhe soprou: “competências transversais” (em meu entender, “competências triviais” seria uma tradução bem mais adequada).  «Sim, é isso», concordou Filipa Maia, para logo acrescentar com um ar desenvolto: «Mas eu não deveria ter de traduzir, porque quando se fala de soft skills é um conceito que todos deviam conhecer, não é uma tradução». «Ora essa!», objecta Fátima Campos, a autora e moderadora do programa, «estamos em Portugal, tem de ter uma tradução para a frase». Resposta pronta de Filipa Maia: «Estamos em Portugal, mas o mundo do trabalho não é Portugal e em Portugal não nos pedem falar Português, pedem-nos falar Inglês, pelo menos Inglês» (sic!

Nas afirmações desta rapariga, detectei (em estado bruto) os estragos provocados pela mesma perniciosa ideologia que detectei (em estado mais refinado), nos livros do neurobiólogo António Damásio (pelos quais,  à parte esse aspecto, tenho bastante apreço).  Critiquei a versão refinada dessa ideologia num artigo que escrevi em Abril deste ano (2018), que foi publicado na revista A Página da Educação, nº 211, II série, este Verão. Tem por título: A ciência não tem uma língua exclusiva, nem uma língua favorita.

A ideologia feiticista do “Inglês über alles”

Que perniciosa ideologia é essa capaz de unir como almas gémeas uma aluna portuguesa de 18 anos e um veterano cientista português (e americano) de reputação mundial ? Podemos resumi-la em poucas linhas:

Existe uma língua superior a todas as demais: a língua inglesa. Só nessa língua, por exemplo, é possível exprimir conceitos, em especial conceitos científicos. Só nessa língua é possível ter pensamentos elevados. Essa língua é também (e não é coincidência!) a língua dos mercados. Ora, os mercados são, como toda gente inteligente sabe, o alfa e o ómega da economia, do mundo do trabalho, da vida em sociedade, da felicidade terrestre.  Por outras palavras, o Inglês é a língua materna dos dignos descendentes actuais do fabuloso rei Midas (os Bill Gates, Jeffrey Bezos, Warren Buffett, etc.), a língua de tudo o que é lucrativo, de tudo o que tem êxito retumbante, de tudo o que reluz com a cor do ouro e o brilho dos diamantes. É a língua que é capaz de transformar, num abrir e fechar de olhos, pobretanas em milionários, milionários em multimilionários, ilustres desconhecidos em superfamosos,  gente muito feia em gente muito bonita,  banais fanfarrões em temíveis figurões (e.g. Donald Trump). Por isso, se tivermos tido o azar de termos nascido e sido criados num país que não tenha sido parte do Império Britânico. não devemos ficar desanimados.  Devemos aprender a falar e a escrever Inglês, a desenvolver e a exercitar as nossas competências triviais nessa abençoada língua em todas as ocasiões e em todos os lugares, porque isso dá-nos logo um suplemento de alma, uma aura de cosmopolitismo, um toque inconfundível de poder, um cartão de visita para encontrarmos os anjos que nos vão ajudar a enriquecer.  

Embora muito em voga nas faculdades de economia — como a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, que passou a ser a Nova School of Business and Economics,  e o Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, que passou a ser a Lisboa School of Economics and Management, e onde, em ambas, apesar de serem estabelecimentos da rede pública, pagos pelo erário público, o ensino passou a ser exclusivamente em Inglês não só nos mestrados e nos doutoramentos, mas também nas licenciaturas (desde o 2º ano), em descarada violação dos artigos 9º, alínea f, e 11º, ponto 3, da Constituição da República Portuguesa — esta é uma ideologia anti-democrática. Não posso desenvolver aqui este aspecto, o mais pernicioso de todos,  desta impante ideologia, ao qual tenciono voltar em melhor oportunidade. De momento, contentar-me-ei em frisar (tal como fiz no artigo de A Página da Educação)  que se trata, também, de uma ideologia completamente falsa. 

Uma ideologia condenada ao declínio

O Inglês é apenas um idioma entre milhares de outros, nem melhor nem pior que os demais. Não tem qualquer propriedade demiúrgica. Há muitas boas razões para aprender a falar e a escrever Inglês, mas não são aquelas que são acarinhadas pela esmagadora maioria dos professores das faculdades de economia e pela quase totalidade dos jornalistas da chamada imprensa económica.  As boas razões que podem ser invocadas para aprender a falar e a escrever bem o Inglêssão semelhantes às que se podem invocar para aprender bem qualquer outro grande idioma (entenda-se, idioma de grande difusão). Bem entendidas, tais razões são semelhantes  às que se podem invocar para aprender bem qualquer pequeno idioma (entenda-se,  idioma de pequena difusão). 

A actual influência (económica, política e cultural)  do Inglês deve-se unicamente ao facto de a revolução industrial e  a economia capitalista moderna terem começado em Inglaterra e dos súbditos de sua Majestade Britânica terem colonizado, antes e durante a Era Vitoriana, imensos territórios por esse mundo fora, sobre os quais conseguiram manter a supremacia até à 2ª guerra mundial  construindo dessa forma um portentoso empreendimento  a que deram o nome de Império Britânico, o maior império que o mundo conheceu até hoje. 


O Império Britânico (territórios a cor-de-rosa) em 1922.


Depois da 2ª guerra mundial, os EUA, uma sua gigantesca ex-colónia, substituiu definitivamente o Império Britânico nesse papel de suprema potência económica e militar à escala planetária, reforçando ainda mais a influência do Inglês por intermédio do seu enormíssimo poderio (Acordos de Bretton Woods, plano Marshall, bolsas Fullbright, Grupo do Banco Mundial, FMI, os filmes de Hollywood e milhares de séries televisivas). 


Hotel Mount Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, onde se realizou, em Julho de 1944,  a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, que originou os Acordos de Bretton Woods. 

Mas essa foi a época (Julho de 1944-Agosto de 1971) [([1])] em que os EUA atingiram o auge do seu poderio. Essa época pertence definitivamente ao passado, pese embora o facto de a sua rançosa nostalgia ter garantido a Donald Trump a sua eleição (To make America great, again) e poder eventualmente garantir a sua reeleição. Nada  é menos certo do que os EUA se poderem manter por muito mais tempo a potência económica e militar suprema à escala mundial. Nada é menos certo do que o Inglês se poder manter por mais meio século como o idioma internacionalmente mais falado.

Seja como for, a  importância cultural do Inglês não se pode sequer comparar à de nenhum dos 5 idiomas que  desempenharam no passado o papel principal como veículos de cultura: o Chinês clássico, o Sânscrito, o Árabe, o Grego e o Latim.  A influência gramatical do Inglês sobre outros grandes idiomas contemporâneos (incluindo o Português) é, felizmente, quase nula. Quanto à influência lexical do Inglês, é bem mais modesta do que se supõe. É, sem dúvida, muitíssimo menor do aquela que o Árabe teve sobre o Persa e o Turco, ou que o Francês teve sobre o Inglês. O que diria Filipa Maia, a rapariga que interveio no “Prós e Contras” num Português estropiado, se soubesse que o Inglês foi buscar ao Francês milhares de “conceitos”  durante a Baixa Idade Média? 

José Manuel Catarino Soares


NOTA
[1] . O governo dos EUA, presidido na altura por Franklin Delano Roosevelt, preparou-se, desde 1944, ainda a 2ª guerra mundial estava longe do fim, para reconstruir, sob a sua égide e hegemonia, o sistema capitalista mundial profundamente devastado pela segunda guerra mundial.  Convocados pelo governo dos EUA, 730 delegados de todos os 44 países aliados encontraram-se, para esse efeito, no Hotel Mount Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, para a Conferência monetária e financeira das Nações Unidas. Os delegados deliberaram e finalmente assinaram os Acordos de Bretton Woods (Bretton Woods Agreement) durante as primeiras três semanas de Julho de 1944. O Acordo ou os Acordos de Bretton Woods estabelecia(m), entre outras medidas, a criação do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), uma das instituições que integrariam mais tarde o grupo do Banco Mundial, a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), ambas com sede em Washington D.C., e a convertibilidade do dólar americano em ouro, que passou a ser, assim, moeda de referência mundial. Os Acordos de Bretton Woods duraram até 15 de Agosto de 1971, quando o Presidente Richard Nixon dos EUA decidiu, unilateralmente, acabar com a convertibilidade do dólar em ouro, o que efetivamente levou ao colapso do principal pilar desses Acordos e tornou o dólar numa moeda fiduciária, como todas as outras.  


Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana