Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

12 setembro, 2022

 Tema 3

A propósito do assassinato de Darya Dugina [*]

Alan Freeman [1]

 

Uma vez que os factos relativos ao assassinato de Darya Dugina ainda estão sob investigação, ainda não estão assentes, e muito menos ainda foram testados em qualquer tribunal, não me parece adequado começar já a falar sobre “quem cometeu o assassinato”.


Darya Dugina (1992-2022).  Jornalista, politóloga e activista russa.
 Assassinada em 20 de Agosto de 2022,  no distrito de Moscovo, vítima de uma bomba posta
 no seu automóvel, que, muito plausivelmente, visaria assassinar o seu pai, Aleksándr Dugin. 
Foto de 1RNK. Wiki Commons


No entanto, há um ponto que tem de ser salientado: se o leitor pensa que se pode construir uma sociedade viável na qual as pessoas são assassinadas por causa daquilo que pensam, então feche as portas, feche as janelas, olhe para debaixo do automóvel antes de cada viagem e verifique cada porta antes de passar por ela — porque, então, não há limites, nem há lei, nem há forma de responsabilizar os assassinos vulgares.

Este é o perigo da sugestão, que grassa no sistema mediático liberal da comunicação social, de que a tentativa de assassinato [de Aleksándr Dugin] se justifica por causa das ideias de Dugin. Até já vi pessoas afirmarem que a morte da sua filha foi uma coisa boa, porque ela concordava com as ideias dele [2].  Que o Deus dessas pessoas lhes apodreça a alma. Estamos então a dizer que não são só as pessoas, mas também as suas famílias, que constituem alvos legítimos de violência hedionda, porque se dá o caso de não gostarmos do que dizem?

Penso que as pessoas que dizem isto não pensaram bem no assunto. Pelo menos espero que seja essa a explicação.

[Aleksándr] Dugin propaga as suas ideias através dos seus escritos e dos seus livros. Ele não é um funcionário governamental ou um militar e, tal como foi assinalado por Mercouris, ZeroHedge e outros, ele não tem qualquer associação com Putin nem com ninguém no governo ou no Estado russo que possa, de alguma forma, justificar a alegação de que ele é responsável pelas acções do governo russo [3].

Dugin é um escritor. A sua influência resulta do que escreveu. Certo, podemos não concordar com o que ele escreve (eu não concordo), mas não ando por aí a matar pessoas cujas opiniões não me agradam.

Assim, as pessoas que procuram justificar a atrocidade [que foi o assassinato da sua filha Darya Dugina, N.T.] estão, de facto, a dizer que é legítimo assassinar pessoas por causa daquilo que elas pensam [4].

Assassinar pessoas como se fosse um substituto da justiça está errado seja de que maneira for. Os tribunais são a forma de lidar com os perpetradores. A legitimação do assassinato como um procedimento aceitável do Estado é algo que nenhum amante da justiça deveria aceitar.

Mas, para além disso, assassinar pessoas apenas pelo que dizem é simplesmente abrir um caminho para o inferno.

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                                                                   Notas

[*] Este texto foi publicado, em Inglês, no Facebook de Alan Freeman em 23 de Agosto de 2022. O título foi acrescentado por mim, o tradutor, José Catarino Soares. As notas e as fotos também foram acrescentadas por mim.

[1] Alan Freeman foi economista principal da Greater London Authority. Foi professor de economia na Universidade de Greenwich (Inglaterra). Foi também professor visitante na Universidade Metropolitana de Londres, Research Fellow da Queensland University of Technology (Austrália) e investigador associado da Universidade de Kent em Canterbury (Inglaterra). Agora está reformado e vive em Winnipeg (Canadá), onde é co-director do Grupo de Investigação da Economia Geopolítica na Universidade Manitoba. É membro do comité da Associação para a Economia Heterodoxa (www.hetecon.net) e vice-presidente da Associação Mundial de Economia Política. É co-editor da série de livros Future of World Capitalism na Pluto Books, e da série de livros Geopolitical Economyna Manchester University Press. É autor, entre outros livros, de The Benn Heresy (Pluto Press, 2014) e The Politics of Empire (Pluto Press, 2004). Entre os seus artigos mais recentes contam-se “Creative Labor, Mental Objects and the Modern Theory of Production,” in Science & Society (2020), e “A General Theory of Value and Money: Foundations of an Axiomatic Theory,” in World Review of Political Economy (2020). Recebeu o prémio Marxian Economics Award da World Review of Political Economy (WAPE) em 2018.

[2] Aleksándr Dugin é um politólogo contemporâneo russo, autor de uma doutrina geopolítica denominada Neo-Eurasianismo, de uma doutrina política denominada Populismo Integral (que qualificou de quarta teoria política)  e mentor de um movimento denominado Movimento Internacional Euroasiático. É impossível resumir estas duas doutrinas numa nota, em particular o Neo-eurasianismo, dada a diversidade das suas fontes de inspiração. Trata-se de uma complexa amálgama de diversos elementos heterogéneos — uma doutrina geopolítica baseada no Tradicionalismo de René Guénon e Julius Evola; na religião cristã ortodoxa dos chamados Velhos Crentes; no arianismo germânico de Guido von List e Jörg Lanz von Liebenfels; nas elucubrações ocultistas de Herman Wirth; o diferencialismo étnico de Lev Gumilev e Yulian Bromlei; no Eurosianismo dos emigrados russos pós-1919 (Pyotr N. Savitsky, Nikolay S. Trubetskoi, Nikolay N. Alekseev); nas concepções dos organicistas alemães (e.g. Ernst Yünger, Oswald Spencer, Carl Schmitt); na aversão profunda ao globalismo de matriz angloamericana; na admiração pela Ahnenerbe Forschungs und Lehrgemeinschaft [Comunidade para a Investigação e Ensino sobre a Herança Ancestral] e pelos Waffen SS do regime nazi, etc. Salvo melhor informação, a melhor sinopse do Neo-Eurasianismo de Aleksándr Dugin é o estudo de Marlene Laruelle, “Aleksandr Dugin: A Russian Version of the European Radical Right?”. Kennan Institute, Occasional Paper # 294, 2006.

[3] Nos meios liberais e neoliberais e na esquerda socialdemocrata ou cripto-socialdemocrata, está muito enraizada a ideia de que Dugin é o guru de Putin ou, pelo menos, o seu ideólogo favorito. Mas nenhuma dessas ideias tem fundamento factual. Eis uma maneira eufemística de o dizer: «A questão de saber se as ideias de Dugin têm uma influência directa sobre as autoridades russas permanece sem resposta. Estamos inclinados a concordar com a observação de Shlapentokh de que “seria ingénuo assumir que Putin ou qualquer membro do seu círculo próximo começa o seu dia lendo a mais recente publicação de Dugin da mesma a forma como os governantes soviéticos do passado começavam o seu dia lendo o Pravda”» (Anton Shekhovtsov. “Aleksandr Dugin’s Neo-Eurasianism: The New Right à la Russe.” Religion Compass, Vol. 3, Nº. 4 [2009]). Quanto à ideia de que Dugin seria o ideólogo favorito de Putin, já foi competentemente refutada por Marlene Laruelle em vários estudos. Ver, por exemplo, o seu artigo “The intellectual origins of Putin’s invasion.” (Unherd, March 16, 2022) onde se pode ler, a páginas tantas: «Dugin não segreda aos ouvidos do Kremin. Dugin é demasiado radical nas suas formulações [para que isso fosse possível, N.E.], demasiado obscuro e esotérico e cultiva um nível “elevado” de referências intelectuais aos clássicos europeus de extrema-direita que não podem satisfazer as necessidades do governo de Putin. Dugin foi um dos promotores originais de uma noção geopolítica da Eurásia e da Rússia como uma civilização distinta nos anos mil novecentos e noventa, mas esses temas banalizaram-se independentemente  e até mesmo contra a utilização que Dugin deles fez nas décadas seguintes. Ele nunca foi membro de nenhuma das muitas organizações da sociedade civil cooptadas pelo Kremlin, mesmo que tenha sido capaz de angariar alguns patronos nos círculos militar-industrial e dos serviços de segurança».

[4] N.T. = nota do tradutor

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N.B. Propus a publicação deste texto ao magazine luso-brasileiro Passa Palavra (https:// passapalavra.info/) no dia 1 de Setembro de 2022. Em 11 de Setembro de 2022, o colectivo do Passa Palavra informou-me da sua recusa em publicar o texto de Alan Freeman, sem adiantar qualquer razão para essa sua posição. Convém perguntar-nos, então, quais terão sido as razões (não reveladas) para esta censura envergonhada. Não vislumbro nenhuma, se nos ativermos à declaração de princípios que norteia o Passa Palavra [“O que é o Passa Palavra e como se organiza?”, 29/04/2020, https://passapalavra.info/2020/04/131450/]

O Passa Palavra afirma ser «anticapitalista e internacionalista». O Passa Palavra «pretende estimular o confronto de opiniões e o debate» nesse âmbito. O Passa Palavra considera «que as inspirações teóricas únicas, os modelos únicos e os sectarismos de grupo são obstáculos à reflexão sobre as lutas». O Passa Palavra garante: «não somos, nem pretendemos ser, portadores da verdade revolucionária». O Passa Palavra diz que «está aberto à publicação de textos enviados por colaboradores não pertencentes ao coletivo, tanto relatos de lutas como artigos de reflexão, desde que a) obedeçam a um padrão de qualidade que consideramos o mínimo aceitável; b) adotem perspectivas anticapitalistas; c) não defendam os nacionalismos nem os identitarismos.»

Em suma, o Passa Palavra não tem qualquer argumento que lhe permita justificar a sua recusa de publicar do texto de Alan Freeman sem, ao mesmo tempo, renegar todos os seus princípios. 

22 agosto, 2022

Temas 2 e 3

                                Quem anexou a Crimeia:

foi a Rússia ou a Ucrânia?

Segundo artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

José Catarino Soares

1. Lembrete

Um dos factos mais instrutivos sobre as guerras na Ucrânia sim, guerras, porque são duas, não uma, como vimos no artigo anterior desta série é a quantidade assombrosa de omissões deliberadas, mentiras e falsidades que têm sido cometidas e ditas sobre estas guerras. Outro facto instrutivo neste particular é a espantosa confusão entre construtos (como, p.ex., “explicação” e “justificação”, “factor” e “causa”) manifestada por autores de quem não se suspeitaria de antemão que pudessem acalentá-la.  

Esta série de artigos, subordinada ao título «Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!», é uma tentativa, necessariamente modesta, para apontar e refutar algumas dessas omissões deliberadas e mentiras/falsidades e para dissipar algumas dessas confusões.

No primeiro artigo da série (v. As guerras na Ucrânia eram evitáveis: os acordos de Minsk (2015) e as propostas de tratado da Rússia (2021) [Em Tertúlia Orwelliana, Arquivo do Blogue. 4 de Agosto de 2022]) abordei algumas dessas omissões deliberadas:

(1) A primeira guerra na Ucrânia (que opõe, na região da Donbass [a bacia hidrográfica do rio Donets], desde 6 de Abril de 2014, tropas ucranianas e milícias armadas das autoproclamadas repúblicas populares de Lugansk e Donetsk) era perfeitamente evitável.

(2) Os governos da Ucrânia pós-2013 (os governos de Yatsenyuk, Poroshenko e Zelensky) são os únicos responsáveis pela eclosão e pela continuação dessa guerra fratricida.

(3) A segunda guerra na Ucrânia (que opõe, desde 24 de Fevereiro de 2022, tropas russas a tropas ucranianas) era perfeitamente evitável.

(4) Esta segunda guerra não tem apenas um agressor (o governo russo e as tropas russas a seu mando) e um agredido (o governo ucraniano, as tropas ucranianas a seu mando e uma parte da população civil que lhes serve de escudo humano ou que é vítima colateral de ataques das tropas russas). O agredido (o governo ucraniano e as tropas ucranianas a seu mando) é também agressor (das populações da Donbass) que chamaram a Rússia em seu socorro.

(4.1) Acresce que a eclosão da segunda guerra  na Ucrânia teve também persistentes instigadores de longa data os governos dos EUA e a OTAN e temerários provocadores os governos ucranianos de Poroshenko e Zelensky (cf. o meu ensaio A Guerra na Ucrânia, publicado no Passa Palavra [https://passapalavra.info/2022/04/ 143558/] e no presente blogue [v. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do blogue, Maio e Junho de 2022]  e (4.2.) a sua continuação por tempo indefinido tem também fervorosos procuradores e devotados apoiantes: o governo dos EUA, o governo do Reino Unido, a OTAN, a UE.

As duas últimas verdades factuais ‒ (4.1) e (4.2) ‒, apesar de estarem tão extensivamente documentadas quanto as demais, são particularmente melindrosas para a narrativa oficial do impropriamente chamado “Ocidente” sobre as guerras na Ucrânia, porque a deixa agarrada ao chão apenas por alfinetes. Por isso, são tabus no sistema mediático dominante da comunicação social. Mas há falhas e brechas nesse dispositivo.

Uma das mais notáveis, recentemente, é um artigo de Alexander J. Motyl publicado na primeira página do jornal The Hill, com sede em Washington. O título ilustra bem, ainda que inadvertidamente, a proposição (4.2): Russia delenda est! [A Rússia tem de ser destruída!]: O Ocidente tem de destruir a Rússia de Putin [1]. Num artigo anterior [2], publicado em Abril deste ano, o mesmo Motyl já tinha sentenciado que não basta “desputinizar” (sic) a Rússia, é preciso “desmembrá-la” (sic). Quanto aos meios a utilizar para atingir esse grandioso objectivo, Motyl só é claro numa coisa: os ucranianos são a única carne para canhão que pode e deve ser usada à discrição [3].

Uma vez que nem os Estados Unidos nem a Europa querem envolver-se numa guerra com a Rússia ‒ apesar de poderem ter de travar uma guerra se não agirem de forma decisiva em relação à Ucrânia ‒ a única forma de derrotar a Rússia de Putin é armar os ucranianos e dar-lhes os meios militares para expulsarem todas as tropas russas de todos os territórios ucranianos [incluindo a Crimeia, N.E.] [N.E.= nota editorial]

Noam Chomsky esclareceu o sentido prático do título do artigo de Motyl (que inclui o sentido um pouco enigmático da frase entre travessões da citação):

Assim, quando se lê uma manchete num jornal principal dos Estados Unidos que apela:  Russia delenda est (a Rússia tem de ser destruída), o que se está a dizer é: “quero matar toda a gente na Ucrânia e quero avançar para uma guerra nuclear que acabará com a vida humana na Terra” [4].

Neste segundo artigo da série, que acrescenta mais algumas omissões deliberadas, abordo também algumas falsidades/mentiras, todas elas relacionadas com a chamada anexação da Crimeia pela Rússia/ Federação Russa

2. Falsidades e mentiras

2.1. Terminologia

O termo falsidade é o dual de verdade. Significa uma forma extrema de erro. Uma proposição falsa é uma proposição (uma hipótese, uma informação, uma notícia, uma acusação, etc.) que não representa correctamente (que não tem qualquer correspondência válida com) os factos (ou as normas, ou os construtos, ou as ficções) relevantes a que se refere — ou seja, por outras palavras, que pode ser refutada de diversas maneiras [5]. O que vale para uma proposição (o mais simples enunciado significativo constituído por conceitos), vale também para um encadeado coerente de proposições (uma teoria, uma descrição, um relatório, uma narrativa, etc.).

Empregarei a cerquilha (símbolo #) para assinalar a falsidade de uma proposição. 

O termo mentira significa que se afirma uma coisa sabendo que é falsa. Só utilizarei este termo quando a falsidade de uma proposição for publicamente conhecida. Falarei de “falta de integridade” (ou, equivalentemente, de “desonestidade intelectual”) quando alguém (no domínio social-histórico [político incluído], científico ou tecnológico) disser uma mentira ou tratar uma suposição como se fosse uma constatação, dando, assim, livre curso aos seus preconceitos ou fazendo vista grossa sobre explicações alternativas, no afã de fazer afirmações ou acusações falsas. 

2.2.  A Rússia anexou a Crimeia pela força das armas?

O presidente da Ucrânia, Vlodomyr Zelensky, continua a afirmar, frequentemente, que o seu governo está empenhado em recuperar, custe o que custar, TODO o território da Ucrânia. Isso inclui, na sua apreciação, as regiões de Donetsk e Lugansk ‒ o território parcialmente ocupado ou reivindicado pelas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk ‒ e a península da Crimeia, o território da República da Crimeia.  

Voltarei à questão de Donetsk e Lugansk noutro artigo desta série. De momento, deter-me-ei na Crimeia.

Para Zelensky, a situação actual da Crimeia (uma república da Federação Russa/Rússia) é o resultado de uma anexação pela Rússia, em 2014, de um território que pertence à Ucrânia — uma anexação conseguida pela força das armas [6], o que configuraria, portanto, uma acção ilegítima e ilegal à luz do direito internacional público. A justificação para este juízo, corroborada pelo sistema mediático dominante da comunicação social, inclui os seguintes argumentos:

― A integridade territorial da Ucrânia, garantida pelo tratado de Budapeste (1994);

― A invasão militar russa, em 2014, para se apoderar da Crimeia.

― O carácter ilegítimo do referendo organizado pelas instituições autonómicas da Crimeia em 2014.

Veremos na secção 4 o que valem estes argumentos. Porém, antes de aí chegarmos, é necessário recordar alguns factos históricos sem os quais não é possível discutir seriamente esses argumentos.

3. Crimeia

3.1. A Crimeia de 1783 a 1991

As datas-chave na história recente da península da Crimeia, são estas: 1475, 1783, 1918, 1945, 1954, 1991, 2014.

A Crimeia foi conquistada pelos Turcos Otomanos em 1475. Em 1783, a Rússia Czarista anexou a Crimeia, uma década depois de derrotar as forças do império otomano na Batalha de Kozludzha. A Crimeia fez parte da Rússia czarista desde 1783 até 1918. Nesta data, após um período de revolução social e política inciado em Fevereiro de 1917 (segundo o calendário antigo, dito Juliano), a Rússia czarista transformou-se em República Federativa Socialista Soviética da Rússia (RFSSR) [7]. Em 1922, a RFSSR passou a ser uma das 15 repúblicas autónomas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) — União Soviética (US) para abreviar.

De 1918 a 1945, a Crimeia passou a ser uma república autónoma da República Federativa Socialista Soviética da Rússia (RFSSR). Em 1945 a Crimeia perdeu o estatuto de república autónoma da RFSSR, por decisão autocrática de Estaline, secretário-geral do PCUS, e passou a ser um oblast (uma região administrativa) da RFSSR [8].

Em 1954, a presidência do Soviete Supremo da União Soviética transferiu a Crimeia da RFSSR para a República Socialista Soviética da Ucrânia (RSSU). A RSSU era outra república constituinte da União Soviética, que era então um Estado federal altamente centralizado, onde as fronteiras entre as repúblicas constituintes eram fundamentalmente uma questão técnico-administrativa, temperada por considerações de etnicidade. Isto, apesar de a Ucrânia ser um membro separado da ONU, tal como a Bielorrússia, por conveniência da US, que assim ficava com mais dois votos na Assembleia Geral da ONU. De 1954 a 1991, a Crimeia passou a ser um oblast da República Socialista Soviética da Ucrânia (RSSU).

Em 1991, o estatuto político da Crimeia muda de novo: torna-se, agora por vontade própria, devidamente manifestada, uma república autónoma e sem vínculos com a Ucrânia, como veremos mais adiante com mais pormenor.

Para já, retenhamos este dado: a Crimeia foi russa, autónoma-soviética e russo-soviética durante 171 anos consecutivos (de 1783 a 1954) e ucraniano-soviética durante 37 anos consecutivos (de 1954 a 1991).

[Aditamento: Veremos, de seguida, que estes 37 anos foram o resultado de um embuste]

3.2. Khrushchev e a Crimeia

Regressemos a 1954. A força motriz da transferência do oblast da Crimeia da RFSSR para a RSSU foi Nikita Khrushchev, que era então o primeiro-secretário do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) ‒ o partido único governante da US ‒ e, portanto, a pessoa mais poderosa da US à época.

Nikita Khrushchev (1984-1971), retratado por Giro, na capa da revista Time, em Novembro de 1953

Esta estranha transferência foi justificada oficialmente de duas maneiras:

a) como um presente da Rússia à Ucrânia para comemorar o 300º. aniversário da «reunificação da Ucrânia com a Rússia» (uma alusão ao tratado de Pereyaslav, celebrado em 1654 entre a Rada cossaca, chefiada por Hetman Bohdan Khmelnytsky, e o Czar russo Aleksei Mikhailovich) e para «demonstrar a confiança e o amor sem limites que o povo russo nutre pelo povo ucraniano;»

b) como uma consequência natural da «proximidade territorial da Crimeia à Ucrânia, da semelhança das suas economias, e dos estreitos laços agrícolas e culturais entre o oblast da Crimeia e a República Socialista Soviética da Ucrânia.»

Mas estas justificações não têm pernas para andar e foram minuciosamente refutadas pelo historiador Mark Kramer, do insuspeito Wilson Center da Universidade de Harvard (EUA) [9]. Remeto os leitores interessados para o seu artigo [10].

Na verdade, essa transferência parece ter sido motivada, como sugere o mesmo historiador, pelo interesse pessoal de Khrushchev em ganhar o apoio dos representantes da Ucrânia dentro do Secretariado Político do PCUS, o órgão máximo dirigente deste partido. Convém recordar que Khrushchev tinha sido o secretário-geral do Partido Comunista da Ucrânia (o ramo ucraniano do PCUS), de 1939 a 1949. Convém recordar também que Khrushchev, em 1954, ainda estava a lutar arduamente para consolidar o seu lugar de primeiro-secretário do PCUS, depois da morte de Estaline (1953), de quem foi um fiel servidor, mas cujos crimes irá denunciar no seu famoso relatório secreto ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em 25 de Fevereiro de 1956.

A transferência da Crimeia da República Federativa Socialista Soviética da Rússia (RFSSR) para a República Socialista Soviética da Ucrânia (RSSU) [NÃO] seguiu /.../ os trâmites previstos na Constituição da União Soviética de 1936, promulgada por Estaline. [Emenda: A palavra NÃO foi acrescentada à minha afirmação original, que era falsa, como mostrou o leitor Raulis, no seu comentário <que pode ser lido no fim deste texto>. O sinal /…/ está no lugar da palavra “todos” da afirmação original, que foi eliminada pela mesma razão que impôs acrescentar a palavra NÃO]. [Aditamento: Foi uma decisão ilegal à luz da ordem constitucional em nome da qual Khrushchev e os seus colaboradores diziam agir e de cujo primado se apresentavam como os supremos garantes e defensores... Para darem um semblante de legalidade à decisão de transferirem a tutela administrativa da Crimeia da Rússia para a Ucrânia, Khrushchev e os seus cúmplices recorreram a um estratagema que consistiu em fazê-la votar exclusivamente por órgãos de cúpula sem competência para tanto]. Recebeu, por isso, a aprovação do conselho de ministros da RFSSR, da presidência do soviete supremo da RFSSR; da presidência do soviete supremo da RSSU; da presidência do soviete supremo da União Soviética.

As credenciais autoritaristas desta “transferência” são, pois, impecáveis. Como impecável é a sua lógica burocrática bem descrita embora inadvertidamente, o que confere ainda mais acuidade ao seu testemunho ‒ por Sergey Khrushchev, o filho de Nikita Khrushchev.

Dar a Crimeia aos ucranianos foi, em termos práticos, um crime contra o Estado [entenda-se, contra República Federativa Socialista Soviética da Rússia, N.E.]. Não discordo, salvo que, por alguma razão, a culpa recaiu sobre o meu pai [noutro passo do seu testemunho, S. Khrushchev procura mostrar que a decisão do seu pai de subordinar a Crimeia à Ucrânia foi «puramente pragmática» e que decisões desse género eram perfeitamente banais no âmbito da União Soviética (US). Só se tornaram problemáticas quando a US se dissolveu, N.E.]. Eu também lamento a perda da Crimeia, mas a Crimeia não foi a única coisa que a Rússia perdeu. Há também Odessa e Ochakov e Izmail e Kinbun Foreland — todos eles são lugares que Potemkin e Suvorov conquistaram aos turcos. Mas, uma vez cortada a cabeça, não se chora por causa do cabelo. Estas coisas deveriam ter sido consideradas antecipadamente. Resmungar a respeito delas soa hoje como a velha anedota: “Era uma vez um avô que mudou uma cómoda de um quarto para outro do seu apartamento, e esqueceu-se disso. Muitos anos mais tarde, um neto do velhote, numa ocasião que estava perdido de bêbado, vendeu o quarto com a cómoda à primeira pessoa que lhe apareceu. Quando o neto voltou a ficar sóbrio, começou a implicar com o seu avô: “Seu velho tolo, se não tivesses mudado a mobília, eu teria pelo menos a cómoda neste momento”! [11]

A Crimeia foi, de facto, tratada por Khrushchev como uma cómoda que alguém muda de um lugar para o outro e aí fica esquecida, até um dia ser oferecida ou vendida ao desbarato por outrem. Só que a Crimeia não é uma cómoda. Além disso, subsiste um problema. A população da Crimeia nunca tinha estado subordinada à autoridade estatal de Kiev e nunca foi consultada sobre essa sua “transferência”. A população da Crimeia nunca encarou como legítimas essas manobras ilegais que dispuseram do seu destino da mesma maneira do que a cómoda da anedota.

No entanto, são essas mesmas manobras autoritaristas  contra a vontade da população da Crimeia manobras que eram fruto das intrigas e lutas de poder internas no ex-PCUS da ex-União Soviética [Aditamento: e que eram, como vimos, ilegais à luz da própria Constituição da União Soviética então em vigor que são hoje aceites e invocadas por Zelensky, os EUA, a OTAN, a União Europeia e o G7 como sendo a fonte suprema de legitimidade e de legalidade para reivindicarem a anexação da Crimeia pela Ucrânia e justificarem (pela parte que lhes toca), a necessidade de continuarem a guerra com a Rússia, custe o que custar, até alcançarem esse desiderato!

Com a seguinte ressalva. Abe Shinzo, o primeiro-ministro do Japão (um dos países do G7) declarou, em 26 de Maio de 2022, o seguinte:

Há muitas maneiras de analisar o carácter de Putin, mas penso que ele é alguém que acredita no poder e que é, ao mesmo tempo, um realista. Ele não é o tipo de pessoa que persegue ideais, ou que faz sacrifícios por ideias. Antes da invasão, quando [as tropas russas] tinham cercado a Ucrânia, poderia ter sido possível evitar a guerra. Isto, se [o Presidente ucraniano Volodymyr] Zelensky pudesse ter sido obrigado a prometer que o seu país não se iria juntar à OTAN, ou a conceder um elevado grau de autonomia aos dois enclaves do Leste [Shinzo refere-se aos oblasts de Donetsk e Lugansk, na Donbass, N.E.]. Compreendo que isto teria sido difícil de fazer — talvez um proeminente governante americano o pudesse ter feito. Mas é claro que teria recusado fazê-lo [12].

Salvo melhor informação, esta é a única declaração de um proeminente governante dos países membros do G7 que se afasta da cartilha belicista dos EUA, RU, OTAN, UE e G7. Desafortunadamente, sabemos que Abe Shizo nunca mais fará declarações semelhantes, porque foi assassinado em 8 de Julho de 2022. E desafortunadamente também, mas desta feita para todas as entidades que acabei de referir, a população da Crimeia já se pronunciou muitas vezes, como veremos, contra esse destino ucraniano que lhe querem impor.

3.3. O referendo de 20 de Janeiro de 1991 na Crimeia

Começo por recordar, a este propósito, um facto cuidadosamente omitido pelo sistema mediático dominante. Em 20 de Janeiro de 1991, realizou-se na Crimeia um referendo de autodeterminação — o primeiro referendo democrático realizado no âmbito da União Soviética, presidida, à época, por Mikhail Gorbatchev. Estávamos na época da glasnot [transparência] e da perestroika [reestruturação], a malograda tentativa de Gorbatchev de reformar a União Soviética. Os Crimeus foram convidados a escolher entre duas opções: permanecer integrados na Ucrânia, como um dos seus oblasts (e, por conseguinte, subordinados ao governo de Kiev) ou readquirirem o estatuto de república autónoma no âmbito da União Soviética (que seria ela própria reconfigurada).

A pergunta que lhes foi posta nos boletins de voto foi a seguinte:

― É favorável ao restabelecimento da República Socialista Soviética autónoma da Crimeia como entidade da União das Repúblicas Socialistas Soviética e membro do tratado da União? [um tratado previsto para ser referendado mais tarde, N.E.]

O referendo teve uma participação de 81,3% da população adulta. 93,6% dos votantes responderam SIM à pergunta [13].

Na sequência do referendo de 20 de Janeiro de 1991 na Crimeia, o  Congresso dos deputados do povo da União Soviética (o órgão supremo da União Soviética na era Gorbatchev) aprovou a lei “Sobre a Restauração da República Socialista Soviética Autónoma da Crimeia como parte da URSS” em 12 de Fevereiro de 1991 [14], reconhecendo à Crimeia o estatuto de república autónoma que lhe tinha sido retirado, em 1945, por Estaline. Pela mesma ocasião, a Crimeia deixou de pertencer, legal e democraticamente, à Ucrânia, à qual Khrushchev a tinha artificiosamente [aditamento: e  ilegalmente] subordinado, sem qualquer consulta, durante 37 anos.

No dia 17 de Março de 1991, o congresso dos deputados do povo da União Soviética organiza um referendo sobre a manutenção, sob uma nova forma, da União Soviética. Esta seria reestruturada num sentido confederal, que garantisse mais autonomia às Repúblicas constituintes, mais transparência nos seus procedimentos e vínculos e mais liberdade aos cidadãos. A pergunta colocada aos cidadãos é a seguinte:

Considera necessária a preservação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas como uma federação renovada de repúblicas soberanas iguais, nas quais os direitos e a liberdade de um indivíduo de qualquer etnia serão plenamente garantidos?

Os governos de 6 repúblicas boicotam o referendo, mas nas demais repúblicas da União Soviética (incluindo a Crimeia) 70% dos votantes respondem SIM.

Na Ucrânia, foi também perguntado aos eleitores:

― Concorda que a Ucrânia deveria fazer parte de uma União de Estados soberanos soviéticos com base na Declaração de soberania do Estado da Ucrânia?

83,5% dos cidadãos participam na votação. 81,7% dos votantes respondem SIM [15].

Conclusão: nesta época (Janeiro-Março de 1991) a Crimeia é, por vontade própria, democraticamente expressa em referendo, uma República autónoma da União Soviética, sem qualquer dependência relativamente à UcrâniaA Ucrânia por sua vez, continua a ser, por vontade própria, democraticamente expressa em referendo, uma república autónoma da União Soviética.  

3.4. O referendo de 1 de Dezembro de 1991 na Ucrânia

No dia 18 de Agosto de 1991, um golpe de Estado em Moscovo tenta depor Mikhail Gorbachev, mas falha. Mas esse será o sinal para a debandada e fragmentação da elite dirigente da União Soviética que acabará por levar à sua dissolução em 26 de Dezembro de 1991.

Em 24 de Agosto de 1991, o soviete supremo da República Socialista Soviética da Ucrânia (RSSU), declara a independência da Ucrânia em relação à União Soviética. No mesmo dia, o soviete supremo da RSSU decide a organização de um referendo para apoiar a declaração de independência da Ucrânia. Em 1 de Dezembro de 1991 realiza-se esse referendo. O referendo coloca a seguinte questão:

Apoia a declaração de independência da Ucrânia?

A participação foi de 84,18% dos cidadãos ucranianos e o lado do SIM venceu por 92,3% [16]. 25 dias depois, a União Soviética foi formalmente dissolvida, como já foi dito.

Destarte, fica claro que a Crimeia se tornou (por vontade própria, democraticamente expressa em referendo) independente da Ucrânia 11 meses antes da Ucrânia (por vontade própria, democraticamente expressa em referendo) se ter tornado independente da União Soviética

3.5. A Ucrânia não se conforma com a independência da Crimeia

No entanto, com a dissolução da União Soviética, a Ucrânia tentou, reiteradamente, anexar de novo a Crimeia, a despeito de todos os esforços que esta tinha feito e irá fazer para se libertar da sua tutela e preservar a sua autonomia. Eis alguns exemplos dessa tentativa reiterada.

Em 26 de Fevereiro de 1992, o parlamento da Crimeia muda o nome da República Socialista Soviética Autónoma da Crimeia para “República da Crimeia,” visto que a União Soviética já não existia.

Em 5 de Maio de 1992, o parlamento da Crimeia declara a independência total da Crimeia (decisão sujeita a ser aprovada por referendo previsto para Agosto de 1992) e introduz a primeira Constituição da Crimeia (que deveria contemplar a possibilidade do referendo previsto para Agosto de 1992).

Em 13 de Maio de 1992, o parlamento ucraniano anula a declaração de independência da Crimeia, declarando-a inconstitucional, ordena ao parlamento da Crimeia que faça o mesmo no prazo de uma semana e dá ao presidente Kravchuk (o primeiro presidente eleito da Ucrânia) poderes para usar todos os meios necessários para pôr fim à independência da Crimeia.

Em 1 Junho de 1992, os dois parlamentos chegam a um acordo. À República da Crimeia é concedida alguma autonomia administrativa, territorial e económica dentro da Ucrânia. A Crimeia será laica. Decidirá independentemente sobre os assuntos referidos pelo Conselho Constitucional da Ucrânia. As principais autoridades na Crimeia serão: o Presidente do Conselho Supremo e seus conselheiros, o Presidente do Conselho de Ministros e seus ministros, e o Parlamento da Crimeia (100 lugares). O Presidente do Conselho de Ministros (Primeiro-Ministro) será nomeado pelo Conselho Supremo da Crimeia, em consulta com o Presidente da Ucrânia.

Em 30 de Junho de 1992, o parlamento ucraniano aprova uma lei que concede à Crimeia uma maior autonomia, tal como tinha sido acordado, mas condiciona a sua promulgação à (i) emenda da Constituição da Crimeia para levar a cabo o referendo de independência da Ucrânia, e (ii) à anulação total do referendo de independência.

Em 17 de Setembro de 1993, o parlamento da Crimeia aprova uma lei que estipula a eleição de um presidente da república da Crimeia.

Em 14 de Outubro de 1993, o parlamento da Crimeia marca as eleições para a presidência da República da Ucrânia para o dia 16 de Janeiro de 1994.

Em 20 de Maio de 1994, o Governo da Crimeia adopta a “Lei sobre a Restauração dos Princípios Básicos do Estado da República da Crimeia, e do Estado da República da Crimeia”, restaurando assim a constituição de 6 de Maio de 1992. Ao abrigo desta lei, as relações entre a Crimeia e a Ucrânia serão determinadas por tratados; a Crimeia terá as suas próprias forças armadas e os seus cidadãos poderão ter dupla cidadania. O parlamento ucraniano denuncia a medida e emite um ultimato para que a lei seja revogada no prazo de dez dias. O governo da Crimeia recusa o ultimato.

Em 30 de Junho de 1994, o Governo da Crimeia adopta uma resolução sobre a observância dos fundamentos constitucionais do Estado da República da Crimeia (“Sobre a observância dos fundamentos constitucionais do Estado da República da Crimeia”) que determina os poderes a serem exercidos pelo Parlamento da Crimeia. A resolução também prevê um referendo sobre a soberania, se o governo da Ucrânia continuar a promulgar leis contrárias à constituição da Crimeia.

Em 21 de Setembro de 1994, o governo ucraniano arroga-se o poder de demitir os deputados da Crimeia e de anular leis na Crimeia que sejam contrárias à constituição da Ucrânia.

Em 22 de Setembro de 1994, o governo da Ucrânia dá um prazo até Novembro para tornar as leis da Crimeia conformes às leis da Ucrânia.  

Em 17 de Novembro de 1994, constatando que o parlamento da Crimeia se recusa a cumprir o ultimato de 22 de Setembro, o parlamento ucraniano anula as leis da Crimeia que são contrárias à lei ucraniana. Cerca de 40 leis são alegadamente afectadas.

Em 17 de Março de 1995, o presidente Kuchma da Ucrânia e o parlamento ucraniano revogam a constituição da Crimeia e abolem a presidência da Crimeia. O poder na Crimeia passa a estar nas mãos do primeiro-ministro da Crimeia. Além disso, o parlamento ucraniano arroga-se vários poderes na Crimeia, incluindo o poder de controlo das suas forças de segurança interna.

Em 24 de Março de 1995, O governo ucraniano adia as eleições locais na Crimeia para o dia 25 de Junho, e revoga uma lei da Crimeia que estabelece que os recrutas da Crimeia só podem prestar serviço militar localmente.

Em 1 de Abril de 1995, o presidente Kuchma emite um decreto que sujeita todas as nomeações feitas pelo governo da Crimeia à aprovação do Presidente ucraniano.

Em 3 de Abril de 1995, o governo da Crimeia realiza uma manifestação em Simferopol para protestar contra as recentes medidas tomadas pela Ucrânia contra a Crimeia.

Em 25 de Abril de 1995, o parlamento da Crimeia decide realizar referendos sobre a constituição da Crimeia e sobre a união política e económica com a Bielorrússia, Rússia e Ucrânia, a terem lugar no mesmo dia em que se realizam eleições locais, 25 de Junho. O Presidente Kuchma qualifica a proposta de ilegal e ameaça com represálias.

Em 21 de Agosto de 1995, o presidente Kuchma revoga o decreto de Março que colocava o governo da Crimeia sob o controlo do governo ucraniano. O parlamento da Crimeia pode agora nomear o primeiro-ministro da república da Crimeia, mas os candidatos a essa função devem ser aprovados pelo presidente ucraniano.

Em Outubro de 1995, o parlamento da Crimeia vota uma nova constituição que dá origem à República Autónoma da Crimeia — uma constituição que foi novamente contestada pelas autoridades estatais ucranianas até Abril de 1996 e que conheceu, durante esse processo, muitas emendas e cinco versões sucessivas.

Em 28 de Junho de 1996, a Ucrânia aprova a sua Constituição. O artigo 133 (que se mantém até hoje) dessa constituição considera abusivamente a República Autónoma da Crimeia como parte integrante do território da Ucrânia. O artigo 135 da constituição da Ucrânia obriga, além disso, a que constituição da Crimeia seja aprovada pelo parlamento ucraniano.

Em 23 de Dezembro de 1998 o parlamento ucraniano reconhece, finalmente, a segunda constituição da Crimeia, que entra em vigor em 12 de Janeiro de 1999. Trata-se de um compromisso balofo. O reconhecimento foi concedido em troca da ausência de qualquer alusão, na Constituição da Crimeia, ao carácter abusivo e opressor do artigo 133 da Constituição da Ucrânia [17].

Seria fastidioso prosseguir. Julgo que os exemplos aduzidos são suficientes para mostrar o zelo fanático com que o governo e o parlamento ucranianos procuraram, por todos os meios, contrariar e reverter os resultados

(i) do referendo de 20 de Janeiro de 1991, através do qual a população da Crimeia declarou inequivocamente querer ser independente da Ucrânia e o seu desejo de fazer parte integrante, como república autónoma, de uma União Soviética renovada e reformada num sentido mais autonómico, transparente e livre;

(ii) da decisão do Parlamento da Crimeia de 5 de Maio de 1992, através da qual a população da Crimeia afirmou inequivocamente o seu desejo de independência total, quando, com a dissolução da União Soviética, se desvaneceu também, pelo menos no curto prazo, a possibilidade de integração igualitária numa União política mais vasta de povos e nações.

Proponho, por isso, que dêmos um salto temporal até 2014, pois é nessa data que vão ocorrer acontecimentos que vão mudar completamente o panorama das relações de hostilidade mútua entre a Ucrânia e a Crimeia.

3.6. O golpe de Estado de 2014 na Ucrânia

Em 22 de Fevereiro de 2014 ocorreu, na Ucrânia, um golpe de Estado que derrubou o presidente Viktor Yanukovych, que tinha sido legalmente eleito em eleições consideradas livres e justas por mais de 3.000 observadores internacionais independentes [18]. Yanukovych foi forçado a fugir para a Rússia, para evitar ser sumariamente assassinado ou linchado pelos golpistas [19]. O seu partido (o “Partido das Regiões”) vai repudiá-lo no parlamento e, mais tarde, excluí-lo das suas fileiras para obter as boas graças dos golpistas e manter-se à tona de água.

Cúmulo da desfaçatez: os golpistas que passaram a dispor de uma maioria no parlamento depois da abjecta capitulação do “Partido da Regiões irão, de seguida, acusar Yanukovych, imagine-se, de ter abandonado o seu cargo presidencial. E irão alegar não terem feito mais do que (i) destituí-lo por ele «ser incapaz de continuar a desempenhar os seus deveres», em consequência desse abandono, e (ii) tomado outras “medidas de emergência” necessárias para preencher essa extraordinária vacatura do poder presidencial!

Esta é, ainda hoje, a narrativa oficial da Ucrânia sobre os acontecimentos de 22 de Fevereiro de 2014 — uma mentira que é repetida pelo sistema mediático dominante da comunicação social como se fosse uma verdade insofismável. 

Esta mentira é tanto mais notável que todos fingem ignorar que a Constituição ucraniana (artigo 108) só permite a destituição do presidente da república através de um processo de impugnação. Ora, o artigo 111 da mesma constituição que regula o processo de impugnação, é muito claro. É necessário preencher 5 requisitos para garantir a legalidade do processo de impugnação. Nenhum desses requisitos foi cumprido pelo parlamento ucraniano. O voto de destituição de Yanukovich foi inconstitucional [20].

Por outras palavras, mais terra a terra, Yanukovych foi derrubado por um golpe de Estado.

Uma das primeiras “medidas de emergência” que o parlamento ucraniano adoptou depois do golpe de Estado de 22 de Fevereiro de 2014 foi a revogação da lei Kivalov-Kolesnichenko de 2012 (ver a secção 3.3 da parte 1 deste artigo, publicado em 4 de Agosto último neste blogue). Lembro que esta lei, além de garantir os direitos de expressão de outras minorias linguísticas da Ucrânia (como as dos falantes nativos do Húngaro e do Romeno), tinha instituído o Russo como idioma oficial (juntamente com o Ucraniano) nas regiões da Ucrânia onde mais de 10% da população tivesse como língua materna a língua russa.

A revogação da lei Kivalov-Kolesnichenko vai ter o efeito de uma bomba tanto na região da Donbass (um assunto ao qual regressaremos num próximo artigo desta série) como na República da Crimeia.

3.7.  Os crimeus sublevam-se

Já escaldados com a guerrilha legislativa permanente que o governo da Ucrânia lhes move desde 1991 para destruir a sua autonomia, o derrube inconstitucional do presidente Yanukovich (por quem os crimeus tinham votado maioritariamente nas eleições presidenciais de 2010: 84,3% em Sebastopol e 78,2% no resto da Crimeia [21]) e o ataque directo e frontal aos seus direitos mais elementares (o direito de usarem a sua língua em todos os contextos do espaço público) levam a população da Crimeia, maioritariamente russófona, a sublevar-se, desencadeando um movimento popular de autodeterminação sem precedentes.

Este movimento de autodeterminação não é surpreendente se tivermos em conta que a Crimeia é, como foi dito, uma região maioritariamente russófona, onde 77% da população tem a língua russa como sua língua materna (dados de 2001, data do último recenseamento), subindo para mais de 90% em Sebastopol. Em 2001, os “russos étnicos” (pessoas que geralmente têm cidadania ucraniana, mas que se declaram de origem nacional e cultura russas no recenseamento) representavam 58% da população, à frente dos “ucranianos étnicos” (24%) e dos “tártaros da Crimeia” (12%) [22].

Uma parte importante da população da Crimeia em polvorosa com o ataque que o poder de Estado ucraniano acabar de desferir contra a sua língua nativa vem para a rua manifestar-se. É nesta altura que surge a palavra de ordem “integração da Crimeia na Federação Russa” — um sucedâneo da integração na União Soviética reestruturada, pela qual os crimeanos tinham votado em massa aquando do referendo de 20 de Janeiro de 1991, mas que nunca chegou a realizar-se. Entre as fileiras dos manifestantes estavam cerca de 4.000 caçadores ou membros de sociedades de tiro e 15.000 trânsfugas da polícia, do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) e dos guardas de fronteira. Estes crimeus vão estruturar-se em milícias de autodefesa que, entre outras acções, montam guarda aos edifícios do parlamento e do governo crimeano em Simferopol (a capital da Crimeia), onde hasteiam a bandeira da Rússia. 

Estes civis são reforçados por pessoal militar das forças armadas ucranianas. No início de 2014, o exército ucraniano era ainda composto por uma maioria de conscritos, recrutados e organizados numa base territorial: na Crimeia, a maioria dos militares falava russo [como sua língua materna, N.E.]. Assim, quando o governo ucraniano lhes ordenou que reprimissem as manifestações, 20.000 dos 22.000 militares ucranianos estacionados na Crimeia recusaram-se a intervir contra os seus compatriotas e juntaram-se aos manifestantes [23], como confirmou mais tarde Ivan Vinnik, um deputado do Rada [nome ucraniano de “parlamento”] de Kiev [24]. Eles arrancaram as suas insígnias ucranianas para evitar serem confundidos [com as tropas ucranianas fiéis ao governo de Kiev, N.E.] e tornaram-se no que o Ocidente apelidou de “homenzinhos verdes” e que o Ocidente identificou [erradamente, para não dizer mentirosamente, N.E.] como sendo forças especiais russas [25]. A estes militares, acrescentam-se cerca de 15.000 russófonos da polícia, do Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU) e dos guardas de fronteira, que ‒ também eles ‒ se recusaram a confrontar os seus “irmãos”. Isto perfaz um total de cerca de 35.000 desertores.

Quanto aos militares russos na Crimeia, o Status of Forces Agreement (SOFA) [“Acordo de Estatuto das Forças”] [26] assinado [entre a Federação Russa e a Ucrânia, N.E.] em 2010 (e válido até 2042) limitou a sua presença a 25.000 homens, sendo que apenas 20.000-22.000 estão de facto estacionados na península. Este acordo permite-lhes deslocarem-se a vários pontos estratégicos da península (como o aeroporto) em caso de crise, a fim de fornecer um cordão umbilical com a Rússia. Estes soldados não usam insígnias de unidades militares nos seus uniformes de combate, como é habitual nas forças armadas russas (por exemplo, no Afeganistão) [27].

Em suma, nunca houve “invasão da Crimeia” pelas tropas da Federação Russa. Nunca houve qualquer “agressão russa à Crimeia”.

3.8. Os crimeus organizam um referendo sobre a secessão

No dia 11 de Março de 2014, o parlamento da Crimeia e o conselho da cidade de Sebastopol divulgam uma Declaração de Independência da República da Crimeia, que reagrupa numa única entidade a República Autónoma da Crimeia e a cidade de Sebastopol. Os declarantes manifestam também o desiderato de que a República da Crimeia se junte à Rússia, caso esse desiderato venha a ser aprovado num referendo expressamente convocado para esse feito.

O governo da Crimeia, tal como o governo local da cidade Sebastopol, decidem, na mesma ocasião, organizar um referendo popular para que a população da Crimeia (e de Sebastopol) possa escolher entre permanecer vinculada e subordinada à Ucrânia ou solicitar a integração da Crimeia, como República autónoma, na Federação Russa. 

O referendo tem lugar em 16 de Março de 2014. A população foi confrontada com as seguintes perguntas:

―É a favor de que a República Autónoma da Crimeia se una novamente à Rússia como parte constituinte da Federação Russa?

―É a favor de restaurar a Constituição da República da Crimeia de 1992 e o estatuto da Crimeia como parte da Ucrânia?

Note-se que as opções disponíveis não incluíam manter o status quo da Crimeia (e de Sebastopol) que vigorava quando o referendo foi realizado. Para os crimeus, isso estava, doravante, fora de questão.

O resultado do referendo não deixou qualquer margem para dúvida. O nível de participação é muito elevado:  80% dos cerca de 1,5 milhão de pessoas com direito de voto apresentam-se nas urnas de voto [28]. Por sua vez, 96,77% dos votantes pronunciam-se pela integração da Crimeia na Federação Russa.

Foi só depois desta votação que o parlamento e o governo da Crimeia solicitaram à Federação Russa a sua integração nesta federação. Repare-se que, com este referendo, a Crimeia mais não fez do que recuperar, ainda que num contexto institucional muito diferente, a sua independência em relação à Ucrânia que tinha adquirido legalmente, trinta e três anos antes, em Janeiro de 1991, pouco antes da independência da Ucrânia (mas que esta última nunca respeitou). Os resultados do referendo de 6 de Março de 2014 (96,77%) estão, aliás, em linha com os resultados obtidos no referendo de 12 de Janeiro de 1991 (93,6%).

Depois de referendo, a Crimeia pediu para se juntar à Federação Russa. A Rússia deferiu quase imediatamente esse pedido através da assinatura de um Tratado intergovernamental em 18 de Março de 2014. Em 21 de Março, a Duma (parlamento russo) aprova a lei federal Sobre os Novos Territórios Federais, que ratifica o tratado de 18 de Março. O fim do período de transição até à adesão plena da Crimeia incluindo Sebastopol) é marcado para 1 de Janeiro de 2015. Os estatutos políticos da adesão, no entanto, foram aprovados separadamente: um para a Crimeia, como uma república, e outro para Sebastopol, como uma cidade federal, resultando na criação de duas novas subdivisões federais da Rússia.

Perante estes acontecimentos, é razoável concluir que a vontade de independência da população da Crimeia (maioritariamente russófona e de etnia russa) em relação à Ucrânia, e as suas afinidades electivas com a Rússia, longe de se terem enfraquecido, parecem ter-se reforçado ao longo dos 23 anos que separam os dois referendos: o de 1991 e o de 2014.

Vale a pena salientar também a Crimeia sublevada conseguiu expressar livremente a sua vontade autonómica e separar-se da Ucrânia sem guerra civil e com um pequeno número de baixas — 12, salvo melhor informação [29].

Em suma, nunca houve uma “invasão e agressão militar da Crimeia” pela Rússia, tal como nunca houve, como sua consequência, uma “anexação da Crimeia” pela Rússia.

Essas acusações são falsas. A sua constante repetição pelos governos dos EUA e do Reino Unido, pelo secretário-geral da OTAN, pela Comissão Europeia, pelo Conselho Europeu, pela maioria do Parlamento Europeu, pelo G7, etc., amplificada complacentemente pelo sistema mediático dominante da comunicação social, não é inocente. Trata-se de exercitar uma velha técnica de manipulação da informação mediática, cuja eficiência está condensada na máxima atribuída apocrifamente a Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha nazi: «uma mentira repetida mil vezes, torna-se verdade». 

4. Os argumentos da Ucrânia contra a secessão da Crimeia

Consideremos então os argumentos que Zelensky e o governo da Ucrânia (secundados pelos governos dos EUA e do Reino Unido, pelo secretário-geral da OTAN, pela Comissão Europeia, pelo Conselho Europeu, pela maioria do Parlamento Europeu, pelo G7, etc.) invocam para sustentarem a tese da “invasão militar da Crimeia pela Rússia” como meio utilizado para conseguir  efectivar a “anexação da Crimeia pela Rússia” —  configurando, por conseguinte, uma “agressão ilegítima e ilegal da Rússia contra a Ucrânia”, da qual a Crimeia seria uma parte constituinte.

Como assinalei na secção 2.2, esses argumentos são os seguintes:

― A integridade territorial da Ucrânia, garantida pelo tratado de Budapeste (1994);

― A invasão militar russa, em 2014, para se apoderar da Crimeia.

― O carácter ilegítimo do referendo organizado pelas instituições autonómicas da Crimeia em 2014.

4.1. O memorando de Budapeste

Depois da sua independência da União Soviética (1 de Dezembro de 1991) e antes da assinatura do Memorando de Budapeste (5 de Dezembro de 1994), a Ucrânia ficou com um grande arsenal de armas nucleares da União Soviética que estavam estacionadas no seu solo.

Esse arsenal constituía o terceiro maior acúmulo de armas nucleares do mundo, do qual a Ucrânia, no período soviético, tinha o controlo físico, mas não operacional. A União Soviética controlava os códigos necessários para operar as armas nucleares por meio de um dispositivo de segurança e de armamento (uma espécie de sistema de comando, controlo e ferrolho electrónicos que os americanos apelidam de Permissive Action Links), embora isto não pudesse ser uma garantia suficiente da sua não utilização ucraniana. Formalmente, estas armas eram controladas pela Comunidade dos Estados Independentes (CEI), uma entidade que foi formada depois da dissolução da União Soviética. A Bielorrússia só tinha lança-mísseis móveis, e o Cazaquistão, outra ex-república da União Soviética, optou por entregar rapidamente as suas ogivas nucleares e mísseis à Rússia.

A Ucrânia passou por um período de debate interno sobre o assunto porque havia muitas resistências à ideia, acarinhada tanto pela Rússia como pelos EUA, de entregar essas armas nucleares à Rússia, o Estado sucessor e herdeiro da União Soviética. Em 1993, os governos ucraniano e russo assinaram uma série de acordos bilaterais, pelos quais a Ucrânia desistia das suas reivindicações de manter armas nucleares e de exigir a retirada da frota russa do Mar Negro de Sebastopol na Ucrânia, em troca do cancelamento da dívida de gás e petróleo e de futuros fornecimentos de combustível para os reactores das suas centrais nucleares.  Esses acordos foram ulteriormente contestados pelo parlamento ucraniano, mas não pelo presidente da Ucrânia à época, Leonid Kravchuk, que estava empenhado em que a Ucrânia se visse livre de armas nucleares.

Depois de várias peripécias, que não vem agora ao caso relembrar, a Ucrânia assinou o chamado Memorando de Budapeste sobre garantias de segurança (Memorando de Budapeste, para abreviar) em 5 de Dezembro de 1994. O memorando foi originalmente assinado pela Ucrânia e por três potências nucleares: a Federação Russa, o Reino Unido e os Estados Unidos da América. A China e a França, enquanto potências nucleares, deram garantias individuais um pouco mais fracas em documentos separados. A Bielorrússia e Cazaquistão assinaram na mesma data acordos semelhantes.

Os acordos foram assinados na conferência da Organização para a Cooperação e Segurança da Europa (OSCE) em Budapeste para providenciar garantias de segurança por parte dos seus signatários em troca da adesão da Ucrânia, da Bielorrússia e do Cazaquistão ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP).

De acordo com o Memorando, a Ucrânia desistia das suas armas nucleares e entregava-as à Rússia. Em contrapartida, a Federação Russa, os EUA e o Reino Unido comprometiam-se a:

a. Respeitar a independência e a soberania da Ucrânia nas fronteiras existentes à data da assinatura.

b. Abster-se de ameaçar ou de usar a força contra a Ucrânia.

c. Abster-se de usar pressão económica contra a Ucrânia para influenciar as suas políticas.

d. Procurar acções imediatas do Conselho de Segurança das Nações Unidas para prestar assistência à Ucrânia se este país «se tornar vítima de um acto de agressão ou objecto de uma ameaça de agressão em que sejam usadas armas nucleares».

e. Abster-se do uso de armas nucleares contra a Ucrânia.

f. Consultarem-se se surgirem dúvidas sobre estes compromissos [30].

4.2. Um argumento esfarrapado

Para os governos da Ucrânia, dos EUA, do RU, da UE, do G7, etc., o referendo de 16 de Março de 2014 na Crimeia e a adesão da Crimeia à Federação Russa constituem uma anexação da Crimeia pela Federação Russa e, por conseguinte, uma violação da alínea a) do memorando de Budapeste pela Federação Russa.

Mas este argumento não colhe, por uma razão fundamental. Ele finge ignorar que a Crimeia, enquanto entidade política independente de jure da Ucrânia desde 20 de Janeiro de 1991 (cf. secção 3.3 neste artigo), nada tem que ver com o memorando de Budapeste, que lhe é posterior (Dezembro de 1994).

Sim, houve, de facto, uma anexação da Crimeia, mas foi a que foi feita pela Ucrânia de 1991 a 2014.

Na verdade, toda a narrativa da anexação da Crimeia pela Rússia se baseia, como vimos, na reescrita da história e na ocultação, entre outros, do facto central que constitui o referendo de 20 de Janeiro de 1991 na Crimeia, que foi perfeitamente legal e cujo resultado a Ucrânia nunca respeitou. Além disso, a Ucrânia, ao abolir o Russo como língua oficial, em 2014, violou o Tratado de Amizade, Cooperação e Parceria entre a Ucrânia e a Federação Russa ‒ um acordo assinado em 31 de Maio de 1997 e que entrou em vigor em 1 de Abril de 1999 ‒ que lhe impunha a protecção das minorias linguísticas. Esta decisão foi, como vimos, a faísca que levou à sublevação da população da Crimeia, decidida a não tolerar mais a opressão do Estado ucraniano.

4.3. A caraminhola da “agressão russa na Crimeia”

Esta caraminhola é indissociável de outra a que já me referi: a dos “homenzinhos verdes” (também chamados “homens verdes”) que teriam chegado clandestinamente e em massa à península da Crimeia nos últimos dias de Fevereiro de 2014 e cuja chegada teria materializado uma invasão da Rússia. Umas vezes identificados como sendo “forças especiais russas”, outras como sendo “mercenários da companhia Wagner,” os “homenzinhos verdes” tiveram honras de primeira página em todos os jornais, radiojornais e telejornais do “Ocidente” sem o merecerem.

Sem o merecerem porque, como vimos, não houve invasão nenhuma da Crimeia por soldados russos disfarçados. Essa é uma história muito mal contada — propositadamente mal contada. É um facto que, no mês de Março de 2014, antes e depois do referendo de 16 de Março de 2014, se verificou a presença conspícua, mas muito comedida, de homens armados, trajando camuflados de combate, em muitos lugares públicos de Simferopol (no exterior do aeroporto, no exterior do edifício do parlamento, etc.) e de outras localidades da Crimeia (Bakhchisaray, Baía de Balaklava, Evpatoria, Belbeck, etc.), assim como na entrada do aeroporto internacional de Sebastopol. Como veremos mais adiante com mais pormenor, a composição dessa força armada pode e deve ser atribuída parcialmente, em maior ou menor medida, a militares russos e, nessa medida, pode e deve ser interpretada como um apoio directo e concreto da Rússia à sublevação popular que os crimeanos fizeram para sacudir o jugo da Ucrânia de uma vez por todas.

Mas esses militares não foram enviados clandestinamente e à pressa da Rússia. Eram, isso sim, uma parte, relativamente pequena, do contingente de militares russos estacionados permanentemente na Crimeia ao abrigo do Tratado de Partição da Frota do Mar Negro (1997) e do Acordo de Kharkiv (2010) que foram celebrados entre a Rússia e Ucrânia. Além da partição da frota do Mar Negro entre os dois países, em troca de um contrato plurianual que proporcionava um bom desconto à Ucrânia no gás natural russo, esse tratado também permitia à Rússia manter até 25.000 soldados, 24 sistemas de artilharia, 132 veículos blindados e 22 aviões militares na península da Crimeia até 2010. Esse prazo foi prorrogado até 2045 pelo Acordo de Kharkiv. 

Afortunadamente, dispomos de um testemunho precioso que corrobora esta análise e desmonta o carácter fantasioso da caraminhola dos “homenzinhos verdes.” Refiro-me ao testemunho de Jacques Baud. Antes de lhe dar a palavra convém que o leitor saiba quem é este homem.

Jacques Baud é coronel (agora reformado) do exército suíço, ex-analista do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa suíço encarregado de vigiar as forças do Pacto de Varsóvia (quando este existia); perito em armas químicas e nucleares, formado em contraterrorismo e contraguerrilha. Concebeu o Centro Internacional para a Desminagem Humanitária de Genebra e o seu Sistema de Gestão de Informação para a Acção Antiminas. Ao serviço das Nações Unidas, em Nova Iorque, serviu como chefe da doutrina para Operações de Manutenção da Paz, e esteve envolvido em várias missões em África. Na OTAN, chefiou a luta contra a proliferação de armas ligeiras. É o autor de vários livros sobre informações estratégicas de defesa, governação através de notícia falsas, guerra assimétrica e terrorismo. Em suma, é impossível acusar o coronel Baud de ser um agente secreto da Federação Russa e um porta-voz de Putin.

Segundo o coronel Jacques Baud, quando o sistema mediático dominante da comunicação social invocava a súbita omnipresença de “homenzinhos verdes” no fim de Fevereiro e em Março de 2014, na Crimeia, estava a referir-se indiscriminadamente a quatro realidades bem distintas:

1) Milícias territoriais locais: cerca de 15.000 membros, oriundos da polícia, do SBU e dos guardas de fronteira. As organizações territoriais locais que forneceram estes trânsfugas que se juntaram à sublevação popular dos crimeus, tinham sido estabelecidas pela Ucrânia bem antes do golpe de Estado de 24 de Fevereiro de 2014 na Ucrânia.

2) Guarda nacional de autodefesa: cerca de 4.000 elementos voluntários civis, oriundos das associações de caça e de tiro, que se auto-organizaram   para proteger a sublevação crimeana.

3) Desertores ucranianos: cerca de 9.000 (?)-20.000 (?) [31]. Eram membros russófonos das forças armadas ucranianas recrutadas e sediadas na Crimeia que desertaram nos primeiros meses de 2014 e que se juntaram à sublevação popular crimeana.

4) Militares russos: cerca de 20.000-22.000, um número um pouco abaixo do limite máximo de 25.000 previsto nos acordos assinados pela Rússia e a Ucrânia em 1997, renovados em 2010 e com validade até 2045.

Daí, a opinião abalizada de Jacques Baud:

A crença de que [em 2014] a Rússia «invadiu uma parte [isto é, a Crimeia] de um Estado soberano pela força», como o perito militar Pierre Servent alegou na estação de televisão France 5, deriva da necessidade de dar legitimidade a um golpe de Estado que o Ocidente tinha acabado de apoiar em Kiev [Baud refere-se ao golpe de Estado que derrubou o presidente eleito Viktor Yanukovich, N.E.]. É uma fábula que teve origem na OTAN ‒ onde eu trabalhava nessa altura ‒ e que joga com as palavras, para transformar um compromisso que estava perfeitamente em conformidade com os acordos entre a Rússia e a Ucrânia numa operação especial. Ora, o envolvimento das tropas russas na Crimeia não corresponde nem na forma, nem na táctica, nem na estrutura à das suas forças especiais. Esta última é uma área que conheço bem e sobre a qual escrevi um livro (que foi traduzido para ucraniano) [32].

Em conclusão:

Contrariamente às afirmações ocidentais, não houve “invasão” russa [da Crimeia]. O acordo entre a Rússia e a Ucrânia autorizava os militares russos estacionados na Crimeia a deslocarem-se para fora do seu quartel para desempenharem funções de segurança em caso de incidentes graves. Quando os paramilitares nacionalistas ucranianos começaram a entrar em conflito violento com as milícias de autodefesa da Crimeia, os militares russos intervieram, invocando o princípio da “responsabilidade de proteger” [conhecido em Inglês pela sigla R2P, “responsability to protect”, N.E.] [33]

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N.B. A pequena galeria fotográfica que se encontra mais abaixo pretende ilustrar os diversos grupos de intervenientes mais activos na sublevação popular da Crimeia com base na classificação de Jacques Baud. Dadas, porém, as parcas informações de que disponho sobre o vestuário e o armamento desses grupos, as legendas que acompanham as fotos têm um inevitável elemento especulativo. Isso é especialmente patente no que se refere ao grupo 1 das milícias de autodefesa, o mais heterogéneo de todos do ponto de vista das profissões de origem. Não faço ideia se essa heterogeneidade se expressava (ou não) no uso de vestuário e armamento diferenciado no desempenho colectivo de tarefas de milícia. 

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[1] Simferpol (capital da Crimeia). 2 de Março de 2014. Membros das milícias de autodefesa, embora, aqui, sem armas ofensivas. Mesmo assim, julgo que se poderão incluir no grupo 2 da classificação de Jacques Baud. Repare-se que os escudos antimotim em que se apoiam os civis da primeira fila (que lhes terão sido fornecidos por membros da polícia simpatizantes da causa secessionista?) estão pintados com as cores da bandeira da Crimeia. Presumo que os dois primeiros homens no lado esquerdo da segunda fila, que envergam uniformes (camuflados verdes com manchas verde-escuro e pintalgados de castanho e com golas de pêlo cinzento) e usam, a proteger a cabeça, gorros de estilo ushanka com um emblema na parte frontal, sejam do grupo 1 na classificação de Jacques Baud. Foto de Elizabeth Arrott — Voice of America website.


[2] Simferopol, 10 de Março de 2014. Membros das milícias de autodefesa da Crimeia. Os uniformes que envergam (camuflados verdes com manchas verde-escuro, pintalgados de castanho, e com golas de pêlo verde), os gorros passa-montanhas que usam (em vez de capacetes de aço) e o tipo de armas que empunham, parecem indicar que estamos perante membros do grupo 2 na classificação de Jacques Baud. Estes uniformes são uma das três origens da caraminhola dos “homenzinhos verdes” que o sistema mediático dominante imaginou terem sido enviados clandestinamente e em grande número da Rússia para a Crimeia. Foto de Sergey Ponomarev.


[3] Bakhchisaray, 3 de Março de 2014. Membros das milícias de autodefesa da Crimeia são saudados por crianças crimeanas. Os uniformes que envergam (camuflados castanhos mesclados com manchas verde-escuro), os gorros (em vez de capacetes de aço) e o tipo de armas que empunham parecem indicar que se trata de elementos do grupo 3 na classificação de Jacques Baud — ou seja, desertores das forças militares ucranianas recrutadas e sediadas na Crimeia que se passaram para o lado da sublevação popular crimeana contra a Ucrânia. Foto de Sergey Ponomarev.



[4]Parte exterior do aeroporto de Simferopol. 28 de Fevereiro de 2014. Estes elementos, por causa dos seus uniformes (camuflados verdes pintalgados de castanho) sem insígnias identificadoras das suas unidades operacionais, dos seus capacetes, dos seus passa-montanhas e do tipo de armas que empunhavam parecem enquadrar-se no grupo 4 na classificação de Jacques Baud. Estes militares russos constituem uma das três origens da caraminhola dos “homenzinhos verdes” tão cara ao sistema mediático dominante da comunicação social. As outras duas origens parecem ter sido os elementos das milícias do grupo 1 (retratados na segunda fila da foto [1]) e do grupo 2 (retratados na foto [2]). Foto de Sergey Ponomarev.

  


[5] Base militar de Perevalne, Crimeia, 9 de Março de 2014. Militares russos do contingente estacionado na Crimeia — ou seja, elementos do grupo 4 na classificação de Jacques Baud. Este grupo forneceu os representantes típicos dos espectrais “homenzinhos verdes” que assombraram o sistema mediático dominante da comunicação social quando teve de noticiar o que se passou na Crimeia nos primeiros três meses de 2014. Foto de Anton Holoborodko.

4.4. Objecções finais

Examinemos agora, para terminar, o derradeiro argumento de Zelensky e dos seus apoiantes (governo e Congresso dos EUA; governo e parlamento do RU; UE; OTAN; G7, etc.) contra a secessão da Crimeia relativamente à Ucrânia e a adesão da Crimeia à Federação Russa.

Consiste em afirmar que o referendo organizado pelas instituições autonómicas da Crimeia em 16 de Março 2014 carece de legitimidade. É este o argumento principal que serve de justificação a Zelensky para afirmar, reiteradamente, que o seu governo tudo fará, custe o que custar, para reanexar a Crimeia.

Mas este argumento, que comporta vários aspectos, não vale um tostão furado, tal como os outros. Vejamos porquê, aspecto por aspecto.

1. O referendo de 16 de Março de 2014 na Crimeia foi legítimo?

 “Só o governo ucraniano tinha poder legal para organizar um referendo na Crimeia, porque a Crimeia faz parte da Ucrânia. Ora, como o referendo de 16 de Março de 2014 foi organizado pela República autónoma da Crimeia, esse referendo é ilegal e carece de legitimidade”.

Já refutei a premissa deste argumento (a primeira frase do parágrafo anterior) na secção 3.3 deste artigo, pelo que todo o argumento cai pela base.

Recapitulando: Khrushchev transferiu artificiosamente [aditamento:ilegalmente] a Crimeia  da Rússia para a Ucrânia durante 37 anos (1954-1991). Mas a Crimeia separou-se e tornou-se independente da Ucrânia em 20 de Janeiro de 1991. Fê-lo através de um referendo de autodeterminação legalmente organizado pela União Soviética, a federação a que pertenciam, à época, tanto a Crimeia como a Ucrânia. Desde essa data que a Ucrânia não tem qualquer poder legal e legítimo sobre a Crimeia.

Em 1 de Dezembro de 1991, a Ucrânia separou-se e tornou-se independente da União Soviética. Fê-lo também através de um referendo de autodeterminação legalmente organizado pela União Soviética.

Em 28 de Junho de 1996, a Ucrânia aprovou a sua Constituição. Como já tive ocasião de assinalar, no artigo 133 dessa Constituição (que se mantém até hoje) a Ucrânia considerou abusivamente a República Autónoma da Crimeia como parte integrante do seu território. Os governantes ucranianos mostraram, assim, não reconhecer um referendo na Crimeia de estatuto idêntico…ao que conferiu independência à Ucrânia. Como é habitual nestes casos, os matreiros autores destes actos de prestidigitação qualificam-nos de epítomes da “democracia”!

Coerentemente com a sua índole liberticida e antidemocrática, o regime ucraniano multiplicou esforços ‒ que se agravaram no período entre 28 de Junho de 1996 e 16 de Março de 2014  para anexar a Crimeia (cf. secção 3.4 deste artigo). Comportou-se, durante esses 18 anos, como uma potência opressora da República autónoma da Crimeia.

Em 16 de Março de 2014, os crimeus, através de um referendo massivamente participado (81,3% dos eleitores), exprimiram, uma vez mais, por expressiva maioria (93,6% dos votantes), a sua vontade de independência em relação à Ucrânia. Nesse dia, a Crimeia sacudiu o jugo que a sua anexação pela Ucrânia lhe tinha imposto durante mais de 19 anos. Se formos democratas, só podemos desejar que o tenha feito de uma vez por todas. Q.E.D.

2. O referendo de 16 de Março de 2014 na Crimeia foi válido?

Na impossibilidade de pôr em causa a legalidade e a legitimidade do referendo de 16 de Março de 2014 na Crimeia sem, ao mesmo tempo, mentir descaradamente, houve quem decidisse atacar por um outro lado, pondo em causa a sua validade.

O ataque tem sido feito em três direcções:

(a) Os resultados são bons demais (para os crimeus russófonos) para serem verdadeiros. Logo houve fraude, batota no sufrágio.

(b) É impossível organizar um referendo em tão pouco tempo. Logo, não houve referendo, mas um simulacro de referendo.

(c) O referendo não teve monitorização por parte de observadores internacionais acreditados. Logo, o seu resultado não é válido.

(a) O que nos dizem os resultados do referendo de 2014 na Crimeia 

É verdade que é sempre possível haver batota numa votação por sufrágio universal, mesmo nos países mais habituados a votar. No entanto, os 96,77% de votantes que disseram SIM à independência da Crimeia em relação à Ucrânia e SIM à adesão da Crimeia à Federação Russa, em Março de 2014, são congruentes com os 93,6% de votantes que disseram SIM à independência da Crimeia em relação à Ucrânia e SIM à integração numa Federação Soviética renovada, em Janeiro de 1991. E esses resultados são também congruentes com uma sondagem Gallup de Abril de 2014. A Gallup colocou os eleitores da Crimeia perante a seguinte questão:

― Por favor, diga-me se concorda ou discorda: «Os resultados do referendo sobre o estatuto da Crimeia reflectem verossimilmente os pontos de vista da maioria das pessoas»

82,5% dos eleitores responderam SIM, 6,2% responderam NÃO. Entre os eleitores apelidados de “ucranianos étnicos”, as percentagens foram: 68,4% (SIM) e 14,5% (NÃO). Entre os eleitores apelidados de “russos étnicos”, as percentagens foram: 93,6% (SIM) e 1,7% (NÃO) [34].

Além disso, tais resultados não são excepcionais. São semelhantes, por exemplo, aos dos referendos de autodeterminação do Kosovo, em 1991 (99,98%), ou nas Ilhas Malvinas, em 2013 (99,8%). A única diferença é que estes referendos foram organizados com o apoio directo e o beneplácito da OTAN e do Reino Unido, respectivamente. Por isso, nunca suscitaram qualquer dúvida quanto à sua legalidade, legitimidade ou validade — pelo menos qualquer dúvida que o sistema mediático dominante da comunicação social achasse digna de ser publicada.

O caso muda completamente de figura quando se trata do referendo da Crimeia de 2014. Aí, o que é considerado normal acontecer noutros lugares do mundo, passa a ser visto como sendo o produto de uma tenebrosa conspiração de Vladimir Putin, a qual o mesmo sistema mediático considera ser sua estrita obrigação dar máxima divulgação.

“Putin é o Joker do Batman” — Eltchaninoff ipsi dixit

É o caso, por exemplo, das declarações feitas à estação de televisão francesa France 5 por Michel Eltchaninoff — um filósofo francês que, depois da invasão da Ucrânia pelas tropas russas em 24 de Fevereiro de 2014, se tornou uma celebridade mediática de um dia para o outro por ter publicado, em 2015, um livro (que na altura passou relativamente despercebido) em que se gaba de saber o que vai na mente de Vladimir Putin [35], ou (como também afirmou, mais modestamente, noutras ocasiões) de ter decifrado aquilo que apelida de “putinismo”.

Para Eltchaninoff, a sublevação popular que ocorreu no fim de Fevereiro e em Março de 2014 na Crimeia e todas as suas peripécias a formação de milícias populares de autodefesa; a deserção em massa de militares, polícias, membros da SBU e guardas de fronteira das forças territoriais ucranianas na península e a sua passagem para o lado da sublevação popular; a decisão do parlamento crimeu de realizar um referendo de autodeterminação, a organização e o resultado do referendo foram «uma operação militar especial montada por Putin» para a Rússia poder anexar a Crimeia [36]. Que factos apontou Eltchaninoff para fundamentar sua tese? Nenhum. O que não surpreende, porque não existem tais factos. Em que se baseia então Eltchaninoff para fundamentar a sua “teoria” da conspiração? Na sua crença de que Putin é uma versão russa e maligna do omnipotente demiurgo de Platão. Mas deixemos Eltchaninoff expressar a sua crença nas suas próprias palavras:

[Putin] é, um pouco, o Joker de Batman. Alguém que gosta de se fazer passar pelo “mau da fita”, mas que seduz, justamente pelo seu lado anti-‘politicamente correcto’ e transgressor [37].

Para quem não saiba: o Joker de Batman é uma personagem fictícia da banda desenhada, também conhecida, como “Príncipe-Palhaço do Crime” ou “Bobo-da-Corte do Genocídio.” É um supervilão que, além de ser doido varrido, é também um génio do crime, apostado em semear o caos na sociedade e de quem se pode esperar, por conseguinte, as piores maldades. É, como não podia deixar de ser, o arqui-inimigo do Batman (o Homem-Morcego), única potência humana capaz de o derrotar. 

 Joker  na capa de  Batman, The Man Who Laughs  (Fevereiro de 2005). Desenho de Doug Mahnke e David Baron .

Não parece difícil adivinhar qual é o complemento implícito na tese de Eltchaninoff sobre os acontecimentos de 2014 na Crimeia. É algo como isto: “Se Vladimir Putin é o Joker do Batman, então Joe Biden é o Batman! É ele que nos vai livrar de Putin na Crimeia e na Ucrânia”.

Como se vê, Eltchaninoff trata-nos, sem cerimónia, como se fôssemos adolescentes embrenhados no mundo ficcional dos heróis e vilãos da banda desenhada estadunidense, talvez na esperança que, por ser doutorado em Filosofia, levemos as suas elucubrações sobre a Crimeia tão a sério quanto as leva a sua entrevistadora portuguesa. Mas há doutores e doutores, como é bem sabido, e em Portugal temos até a expressão «doutor da mula ruça, tira o chapéu e enfia a carapuça» para qualificar uma das suas espécies mais prolíferas. Aplica-se bem a todos quantos trocam os factos por ficções sempre que lhes convém e apelidam essas transacções de “análises”, com toda a desfaçatez.

(b) Como organizar um referendo

Passemos à objecção (b). A rapidez com que o referendo de 2014 na Crimeia foi organizado (em apenas 6 dias) justifica-se pela urgência da magna questão que era chamado a dirimir: a da autodeterminação da Crimeia e da sua separação, de uma vez por todas, da abusiva e opressiva tutela ucraniana.

O povo da Crimeia discutiu essa questão exaustivamente durante 23 anos, (1991-2014), como vimos em pormenor na secção 3.5. deste artigo. Não havia ninguém, na população adulta, que não tivesse uma opinião formada sobre o assunto. Isto aplicava-se, pelo menos, às três principais componentes da população da Crimeia: russos étnicos, ucranianos étnicos, tártaros da Crimeia. Por isso, não eram necessárias prolongadas campanhas de esclarecimento. Assim, os prazos para a realização do referendo foram reduzidos ao tempo estritamente necessário para a sua organização material num pequeno território (a Crimeia tem 27.000 km2, menos do que o Alentejo em Portugal: 31.551 km²) e com uma pequena população — 2,2 milhões de pessoas (adultos, adolescentes e crianças) à época, assim distribuídas: ex-República autónoma da Crimeia (1,8 milhões); Sebastopol (395.000). 

A rapidez com que o referendo crimeu foi organizado nada tem de espantoso. Um ano depois, em 2015, a Grécia realizou um referendo que foi organizado em apenas 7 dias (a sua convocação foi aprovada em 28 de Junho pelo parlamento grego e a sua realização ocorreu em 5 de Julho). No entanto, a questão submetida a referendo Deverá a Grécia aceitar a proposta de resgate financeiro feita pela Comissão Europeia, o FMI e o Banco Central Europeu em 25 de Junho de 2015?” embora fosse também, como na Crimeia, de crucial interesse nacional, era completamente inédita e nunca tinha sido discutida antes pela população. Acresce que estavam recenseados 9,8 milhões de eleitores na Grécia, um país em grande parte insular, com 131.467 km2. Apesar da oposição da Comissão Europeia e de três partidos parlamentares gregos, o referendo realizou-se e o povo grego pôde exprimir a sua posição sobre a questão referendada. Votaram 6,1 milhões de cidadãos (62,5% dos cidadãos com direito de voto), embora o NÃO maioritário (61,3%) tenha sido traído imediatamente a seguir pelo governo em funções. 

(c) Referendos? “Só os que nos convierem e quando nos convier”

Passemos agora à objecção (c), a última da lista. A objecção não colhe. A Suíça é o país do mundo que realiza mais referendos. Até à data, nenhum deles foi monitorizado por observadores internacionais acreditados. Contudo, a sua validade nunca foi posta em causa por aqueles que não reconhecem a validade do referendo de Março de 2014 na Crimeia.

No entanto, esses mesmos países (nos quais se incluem os que fazem parte da OTAN e da UE) apoiaram activamente a secessão da Lituânia, da Estónia e da Letónia relativamente à União Soviética, em 1990, e a secessão do Kosovo em relação à Sérvia, em 2008, e reconheceram imediatamente os referendos sobre a independência da Ucrânia e da Geórgia em 1991, sem necessidade de qualquer monitorização por observadores internacionais. Isto, apesar desses países (mesmo se excluirmos o Kosovo) não terem razões mais fortes do que as da Crimeia para fundamentar a secessão em relação aos países dos quais queriam separar-se… 

Obviamente, teria sido preferível que o referendo da Crimeia tivesse sido monitorizado por observadores internacionais acreditados. Isso permitiria remover qualquer semblante de verosimilhança às acusações de manipulação e fraude referendária feitas por todos os Eltchaninoffs deste mundo. Mas se isso não aconteceu, a culpa não pode ser assacada aos crimeanos.

Na verdade, em 10 de Março de 2014, o parlamento e o governo da Crimeia convidaram a Organização de Segurança e Cooperação Europeia (OSCE) que agrupa 57 países (incluindo todos os países da União Europeia, a Turquia, a Rússia, os EUA e o Canadá) a enviar os seus observadores certificados para monitorizar o referendo de 16 de Março de 2014.

Mas a OSCE recusou-se a fazê-lo, alegando que o convite teria de partir do governo da Ucrânia, já que a Crimeia era parte da Ucrânia. Deste modo, a OSCE ignorou deliberadamente o referendo na Crimeia de Janeiro de 1991 (no entanto, perfeitamente legal e legítimo) e avalizou a anexação da Crimeia pela Ucrânia, abusivamente consagrada, como vimos, pelo artigo 133 da sua Constituição, aprovada em 1996. Isto, apesar dessa Constituição, ainda por cima, ter sido totalmente corrompida e espezinhada pelo golpe de Estado que derrubou o presidente eleito Viktor Yanukovych em 2014, tendo sido esse golpe, como vimos, uma das causas contribuintes da sublevação crimeana.

Julgo não ser preciso salientar a ilimitada hipocrisia inerente a esta aplicação do princípio “dois pesos e duas medidas” em matéria de referendos de autodeterminação/ secessão (como, aliás, em tantas outras matérias) das impropriamente chamadas “democracias liberais”. Mas julgo ser necessário salientar dois aspectos que poderiam passar despercebidos ou cujo significado poderia não ser suficientemente valorizado.

1) A recusa da OSCE em monitorizar o referendo de 16 de Março de 2014 é um facto (mais um…) deliberadamente omitido por Eltchaninnoff e os seus émulos e por todo o sistema mediático da comunicação social que lhes dá guarida e lhes propaga as mensagens urbi (nos EUA e no Reino Unido) et orbi (no resto do mundo). 2) A recusa da OSCE em enviar observadores internacionais certificados para monitorizar o referendo na Crimeia, não a tem impedido, de modo nenhum, de declarar inválido esse referendo… por imagine-se não ter sido supervisionado por observadores internacionais acreditados!

Assim, no que respeita às objecções que foram feitas à legalidade, legitimidade e validade do referendo de 16 de Março de 2014 na Crimeia, nada mais há a dizer. Foram todas devidamente refutadas. Q.E.D.

5. O busílis da questão

A conclusão impõe-se: a afirmação segundo a qual a Rússia anexou a Crimeia em 2014 é falsa. Quem a faz, mente e são muitas as pessoas sem integridade que o fazem diariamente nos parlamentos, nos governos, nos partidos políticos nos jornais, nas estações de rádio e nas estações de radiotelevisão dos países onde vigoram regimes de oligarquia electiva liberal, impropriamente apelidados de “democracias liberais”.  

Por que razão mentem? Porque procuram desse modo justificar, aos olhos do mundo, uma eventual  reanexação da Crimeia pela Ucrânia, apresentando-a com um poderoso motivo adicional para o governo ucraniano recusar liminarmente qualquer tentativa de negociar com a Rússia um compromisso para pôr um fim imediato às duas guerras em curso na Ucrânia.

Mykhailo Podolyak, um conselheiro do presidente Zelensky muitas vezes descrito como a terceira figura mais poderosa da Ucrânia, disse há dias ao jornal londrino The Guardian:

A nossa estratégia consiste em destruir a logística, as linhas de abastecimento e os depósitos de munições e outros objectos de infra-estruturas militares [das tropas russas]. É a de criar o caos dentro das suas próprias forças.

Podolyac fez-nos saber que essa estratégia militar não se confina ao território da Ucrânia: inclui também todo o território da República da Crimeia e, portanto, uma parte do território da Federação Russa. E para que não houvesse dúvidas sobre o que isso implica, Podolyac acrescentou que o governo da Ucrânia considera, por exemplo, a Ponte da Crimeia, que liga a península de Kerch (na Crimeia) com a parte continental da Rússia, como um alvo militar legítimo.

É uma construção ilegal [!!!] e a principal porta de entrada para abastecer o exército russo na Crimeia. Tais objectos devem ser destruídos [disse Podolyac] [38]

Ponte da Crimeia (ou  Ponte de Kerch ou, ainda,  Ponte do Estreito de Kerch ) é um conjunto de duas pontes paralelas construídas pela Federação Russa sobre o Estreito de Kerch entre a península de Taman, no  krai  de Krasnodar (Rússia), e a península de Kerch, na Crimeia. Este complexo de pontes, inaugurado em 18 de Maio de 2018, permite o tráfego rodoviário e rodoviário. Com 18,1 km é a ponte mais longa da Rússia e da Europa, ultrapassando a Ponte Vasco da Gama (12,3 km), que liga Montijo/Alcochete a Lisboa/Sacavém em Portugal. É uma das grandes obras da engenharia civil contemporânea. Fonte:  Wikipédia . Foto:  Rosavtodor.ru.     

Estas declarações de Podylac sobre a Crimeia mostram que o governo ucraniano de Zelensky perdeu toda a lucidez política (que nunca foi muita). Está agora disposto a fazer tudo o que estiver na sua mão, não para chegar a uma solução negociada com o governo russo que ponha um fim imediato à guerra, mas para incentivar o governo russo a participar com ele numa escalada mútua de ataques-e-retaliações que ninguém sabe como terminará — incluindo a possibilidade de uma guerra nuclear que seja o epitáfio da humanidade. “Depois de nós, o dilúvio!” parece ser o seu lema. 


Mas só conseguirá realizar os seus intuitos se continuar a receber a ajuda maciça em armas, dinheiro e informações militares que os EUA, o Reino Unido, a União Europeia e a OTAN lhe têm fornecido. Os dirigentes destes Estados ou organizações interestatais não estão interessados em pôr termo, quanto antes, às guerras na Ucrânia. Estão apenas interessados em que elas prossigam até ao último soldado ucraniano e até ao último soldado russo na Ucrânia, para «enfraquecer a Rússia», como declarou Lloyd Austin, ministro da Defesa dos EUA, em 25 de Abril de 2022 [39] — nem que isso acarrete exaurir a Ucrânia. É aí que está o busílis da questão.


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P.S. (acrescentado em 24 de Agosto de 2022)

O excerto reproduzido abaixo foi extraído de uma notícia intitulada “Líderes mundiais discutem anexação da Crimeia,” com data de 23 de Agosto de 2022 publicada pela Euronews Português. Ilustra à perfeição, pela sua actualidade, a grande mentira da anexação da Crimeia pela Rússia (cuja falsidade o leitor está agora em condições de apreciar) e como ela continua bem viva e instrumental. Além disso, mostra qual é a massa de que são feitos Zelensky, Leyen, Stoltenberg. Dizer que lhes falta integridade é dizer pouco. São mentirosos consumados e inveterados, para quem a mentira é uma ferramenta indispensável ao exercício das suas funções políticas.

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O Presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenskyy, discursou na Cimeira da Plataforma da Crimeia, nesta terça-feira [23-08-2022], e prometeu fazer todo o possível para reconquistar a península da Crimeia, anexada pela Rússia há sete anos, e pediu aos aliados internacionais que o apoiem.

Começou com a Crimeia e com a Crimeia vai acabar. É verdade, e acredito 100%, que para vencer o terror, devolver garantias e segurança à nossa região, à Europa, ao mundo inteiro, é preciso para [sic] ganhar a vitória na luta contra a agressão russa. É necessário libertar a Crimeia da ocupação [disse Zelensky].

A União Europeia e a NATO [= OTAN] reafirmaram o apoio à Ucrânia, meses após o início da guerra, e informaram que a anexação da Crimeia [pela Rússia] nunca será reconhecida.

Nunca reconheceremos a anexação ilegal da Crimeia e Sebastopol pela Federação Russa, /…/ declarou a Presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen . 

Devemos manter o nosso apoio à Ucrânia a longo prazo, para que a Ucrânia prevaleça como uma nação soberana e independente. Uma Ucrânia forte, estável e independente é essencial para a segurança euro-atlântica, declarou o Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg.

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NB . Este é o 2º artigo da série Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia! [a série  continua]. 

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Notas e Referências

[1] Alexander J. Motyl, “«Russia delenda est»: The West must defeat Putin’s Russia”. The Hill, 4-07-2022.

[2] Alexander Motyl, “Eastern Europe: between hammer and anvil”. Euobserver, 26 de Abril de 2022. 

[3] Desafortunadamente, não faltam governantes ucranianos a oferecer os seus préstimos para que isso aconteça. Eis um exemplo recente: «Lutaremos até ao último russo no território ucraniano», declarou Mykhailo Podolyak, conselheiro do chefe de gabinete do presidente Volodomyr Zelensky, em entrevista ao Figaro em 8 de Agosto de 2022. Tornaremos a encontrar Podylyak no fim deste artigo.

[4] Damien McElroy, “Chomsky’s nuclear war fear: Fight to last Ukrainian or choose Macron’s dialogue path”. The National News, 8 de Abril de 2022. Em minha opinião, Chomsky nutre grandes ilusões quanto ao papel de anjo da paz que Macron quereria desempenhar nas guerras que se travam na Ucrânia. São ilusões que o tempo, creio, se encarregará de dissipar. Se eu tiver razão, esse é o maior ponto fraco da argumentação de Chomsky.

[5] Distingo, na esteira de Gottfried Leibniz, verdades racionais (Fr. “vérités de raison”) como, por exemplo, “dois mais dois é igual a quatro” [2+2 = 4], e verdades factuais (Fr.vérités de fait”), como, por exemplo, “a chuva molha.” Para além de outros aspectos que não abordarei aqui, esta distinção tem um significado lógico em Leibniz. As verdades racionais são proposições necessárias, ou seja, são aquelas cujo contrário é contraditório, como, por exemplo, “dois mais dois não é igual a 4” [2+2 ≠ 4]. Por outro lado, as verdades factuais são proposições cujo contrário não implica contradição. Se eu disser Adolf Hitler não tinha olhos azuis enuncio uma falsa proposição (porque Hitler tinha, de facto, olhos azuis), mas cujo contrário não implica contradição. Por conseguinte, a oposição entre verdades racionais e verdades factuais fundamenta-se, em primeiro lugar (mas não unicamente), na oposição entre necessário e contingente

Para além das verdades racionais e das verdades factuais podemos distinguir, na esteira de Mario Bunge, mais dois outros tipos de verdades: verdades axiológicas (morais e jurídicas) e verdades artísticas. Por exemplo, a proposição “não há guerras boas” é uma verdade moral (relativamente ao princípio basilar da ética agatonista). A proposição “A anexação da Crimeia pela Ucrânia, em 24 de Fevereiro de 2022, é uma aquisição territorial ilegal” é uma verdade jurídica (relativamente às normas do direito internacional público). A proposição “Gandalf descobriu que o anel que Bilbo guardava em segredo era o Anel Um, o Anel Soberano de Sauroné uma verdade artística (relativamente ao universo romanesco criado por J.R.R. Tolkien). Afastar-nos-ia demasiado do propósito deste artigo, dilucidar aqui as diferenças entre estes quatro tipos de proposições ‒ racionais, factuais, axiológicas (morais e jurídicas) e artísticas ‒ relativamente (i) aos seus referentes e (ii) aos meios de testar a sua verdade ou falsidade. Julgo, porém, que o que ficou dito terá sido suficiente para se entender que, no caso das guerras na Ucrânia, só temos de nos preocupar com a verdade (ou falsidade) de proposições factuais e das proposições axiológicas que são enunciadas a respeito delas.

Assim sendo, poderá ser útil acrescentar o seguinte. As proposições factuais referem-se, pelo menos em parte, a entidades putativamente reais (concretas) ― coisas inorgânicas, tanto microscópicas (como átomos, núcleos atómicos, partículas elementares) como macroscópicas (como rios, montanhas, continentes, oceanos, estrelas, planetas, etc.); organismos (como bactérias, fungos, plantas, animais, etc.); vírus; artefactos (como casas, aviões, livros, etc.); acontecimentos ou processos do mundo natural ou social. Por conseguinte, a sua verdade (ou falsidade) só pode ser testada com a ajuda de procedimentos empíricos, tais como a observação (incluindo a contagem e a medição), a experimentação ou o mero teste prático. As proposições morais e jurídicas referem-se simultaneamente a normas e princípios axiológicos e a entidades reais (concretas) — especificamente a seres humanos, os únicos agentes morais. Por conseguinte, a sua verdade (ou falsidade) pode ser testada de três formas diferentes, embora mutuamente complementares (cf. Mario Bunge, Chasing Reality: Strife over Realism [Toronto: University of Toronto Press Incorporated, 2006], p.273). O primeiro teste é o da coerência, ou seja, a compatibilidade com os princípios normativos de nível superior. O segundo é o da compatibilidade com os melhores conhecimentos relevantes disponíveis (corriqueiros, científicos ou tecnológicos). O terceiro teste é o da contribuição para o bem-estar individual ou social.

[6] Uma anexação é, por definição, uma aquisição territorial obtida pela força das armas. «A anexação significa a aquisição forçada de território por um Estado, à custa de outro Estado. É uma das principais modalidades de aquisição de território (Território, Aquisição; ver também Ocupação, Beligerante). A anexação pressupõe a ocupação efectiva de território em questão e a intenção clara de o apropriar permanentemente (corpus et animus). Tanto partes de outro Estado como todo o seu território podem ser anexadas /.../ Segundo o actual direito internacional, a anexação já não constitui um modo de aquisição de território legalmente admissível, pois viola a proibição da ameaça ou do uso da força. Por conseguinte, as anexações não devem ser reconhecidas como legais.» Rainer Hofmann, “Annexation” (Max Planck Encyclopedia of Public International Law. Oxford: Oxford University Press.2013).

[7] Convém saber que a República Federativa Socialista Soviética da Rússia (RFSSR) foi sempre a república principal da União Soviética (US), tanto política como economicamente.  Em 1975, representava três quartos do território da US, mais de metade da sua população, dois terços da sua indústria e cerca de metade da sua produção agrícola (The Great Soviet Encyclopedia [1979]). A RFSSR era composta de dezasseis repúblicas autónomas, cinco oblasts autónomos, dez okrugs autónomos, seis krais e quarenta oblasts (ibidem).

[8] Esta decisão seguiu-se à deportação dos tártaros da Crimeia ‒ uma comunidade muçulmana de língua turcomana (o Crimeu) estabelecida na Crimeia desde o século XIII ‒ que ocorreu, por ordem de Estaline, entre 17 e 20 de Maio de 1944, como punição pela alegada colaboração dos tártaros com os exércitos de Hitler, durante a ocupação nazi da Crimeia, entre 1941 e 1944. Cerca de 193.865 tártaros da Crimeia foram deportados pela NKVD (nome, à época, da polícia secreta de repressão política, espionagem e contraespionagem da União Soviética), dos quais 151.136 (a grande maioria) para a República Socialista Soviética do Usbequistão, 8.597 para a República Socialista Soviética Autónoma de Mari, 4.286 para a República Socialista Soviética do Cazaquistão, e os restantes (29.486) para vários oblasts da República Federativa Socialista Soviética da Rússia. Entre os tártaros esta deportação é conhecida como Sürgünlik (“exílio”) em Crimeu. Estima-se que tenham morrido no exílio entre 42.000 e 48.000 tártaros da Crimeia, de 1944 a 1951 (incluindo 7.900 durante a viagem de deportação) por fome, sede, doença e exaustão, devido às péssimas condições de transporte, trabalho e habitação a que estiveram sujeitos (cf. Michail Rywkin, Moscow’s lost empire [Armonk, New York: M.E. Sharp, 1994], p.67).

[9] Digo “insuspeito” (entenda-se, insuspeito de simpatias pró-russas ou pró-Putin) porque o Wilson Center ‒ um think-tank (centro de estudos especializados) sediado na Universidade de Harvard, em Cambridge, Massachussetts ‒ se autodefine do seguinte modo: «O Centro Wilson, organizado pelo Congresso [dos EUA], em 1968, como homenagem oficial ao Presidente Woodrow Wilson, é o principal fórum político não partidário da nação [estadunidense] para abordar questões globais através de investigação independente e do diálogo aberto para informar ideias exequíveis para a comunidade política» (https://www.wilsoncenter.org/about).

[10] Mark Kramer, “Why Did Russia Give Away Crimea Sixty Years Ago?” CWIHP e-Dossier Nº. 47, 22 de Março de 2014.

[11] “Sergey Khrushchev on Crimea [excerpt],” 2010, History and Public Policy Program Digital Archive. From Nikita Khrushchev: Reformator (Moscow: Vremya, 2010). Translated by Anna Melyakova for the National Security Archive. http://digital archive.wilsoncenter.org/document/119639

[12] “Abe Shinzo in his own words.” The Economist, 26 de Maio de 2022.

[13] Cf. “1991 Crimean sovereignty referendum,” Wikipedia; Minorities at Risk Project, Chronology for Crimean Russians in Ukraine, 2004, disponível em: https://www.refworld.org/docid/469f38ec2 .html

[14] “1991 Crimean sovereignty referendum,” Wikipedia; Minorities at Risk Project, Chronology for Crimean Russians in Ukraine, 2004, disponível em https://www. refworld.org/docid/469f38ec2.html

[15] “1991 Soviet Union referendum,” Wikipedia. 

[16] “1991 Ukrainian independence referendum,” Wikipedia. 

[17] Na compilação destes acontecimentos, foram-me de muita utilidade as seguintes fontes:  “Constitution of the Autonomous Republic of Crimea,” Wikipedia; Minorities at Risk Project, Chronology for Crimean Russians in Ukraine, 2004, disponível em: https://www.refworld.org/docid/ 469f38ec2.html; Research Directorate, Immigration and Refugee Board, Canada. “Chronologie des événements [na Crimeia] mars 1994 ‒ août 1995”, refworld.org, 1 de Março de 1996, disponível em: https://www.refworld.org/docid/3ae6a83310.html

[18] Interfax-Ukaine, “Over 3,000 international observers registered for Ukrainian presidential election”. Kyiv Post, 11 de janeiro de 2010.  «Observadores da Organização para a Segurança de Cooperação na Europa (OSCE) disseram que não há indicações de fraudes graves e descreveram a votação [para a eleição do presidente da república da Ucrânia em 2010, N.E.] como “uma impressionante manifestação de democracia”. “Para todos na Ucrânia esta eleição foi uma vitória”, disse João Soares, o presidente da Assembleia Parlamentar da OSCE» (“Yanukovych set to become president as observers say Ukraine election was fair”. The Guardian, 8 de Fevereiro de 2010). A OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) é a maior organização regional de segurança do mundo, abrangendo todos os Estados europeus, a Federação Russa, os países da Ásia Central, a Mongólia, os Estados Unidos da América e o Canadá, num total de 57 membros, existindo ainda 13 “parceiros para a cooperação” da Ásia e do Mediterrâneo. A OSCE tem a sua sede em Viena.

[19] Num próximo artigo desta série, regressarei, com muito mais pormenor, ao golpe de Estado de 22 de Fevereiro de 2014 na Ucrânia, com vista a examinar o efeito que teve nas relações entre o governo de Kiev e os oblasti maioritariamente russófonos de Lugansk e Donetsk, na Donbass, por um lado, e entre estes oblasti e a Rússia, por outro.

[20] Rengalskap, “Yanukovych’s removal was unconstitutional”, Geopolitical Forecasts, February 28, 2014.

[21] “Rapport d’ information sur la crise ukrainienne et l’avenir des relations entre la Russie et l’Union Européenne et la France”, p.17. Assemblée Nationale. Enregistré à la Présidence de l’Assemblée nationale le 30 juin 2016.

[22] Denis Stoumen, “Les populations russophones d’Ukraine: une minorité linguistique?”, in Gestion des minorités linguistiques dans l’Europe du XXIème siècle. Carmen Alén Garabato (éd.). Paris: Éditions Lambert Lucas. 2013.

[23] A invulgar força da sublevação popular dos crimeus pode ser avaliada por vários indicadores, entre os quais este, deveras extraordinário: o chefe da Marinha de Guerra ucraniana, Almirante Berezovsky, desertou para o lado dos sublevados da Crimeia, seguido por mais de metade dos militares ucranianos estacionados na Crimeia. Assim, a Ucrânia perdeu, de um dia para o outro, uma grande parte da sua Marinha de Guerra. 

[24] Евгений Мураев и Иван Винник, народные депутаты, в «Вечернем прайме» телеканала «112 Украина» [os deputados Yevhen Muraev e Ivan Vinnik, num programa da estação de televisão ucraniana 112] 4 août 2016 (https://112.ua/video/evgeniy-muraev-i-ivan-vinnik-narodnye-deputaty-v-vechernem-prayme-telekanala-112-ukraina-04082016-206216.html), citado por Jacques Baud. Poutine: Maître du jeu? (Paris. Max Milo.2022. Edição do Kindle), p.151. Desafortunadamente, Zelensky proibiu e obrigou a fechar esta estação de televisão em Fevereiro de 2022, pelo que o vídeo indicado por Jaques Baud, já não está acessível.

[25] A expressão “homenzinhos verdes” (ou “homens verdes”) ‒ tal como é usada pelo sistema mediático dominante da comunicação social ‒ refere-se a soldados pertencentes alegadamente à Federação Russa (mas sem insígnias identificadoras dessa pertença), os quais, envergando uniformes camuflados de cor verde e empunhando armas de guerra russa, terão aparecido, misteriosamente e em grande número, na Crimeia e em dois oblasti da Donbass (Lugansk e Donetsk), aquando dos referendos de secessão que se realizaram nesses territórios em 2014.

[26] Um Acordo de Estatuto de Forças [SOFA não acrónimo inglês] é um acordo entre dois países para um deles poder estacionar e operar forças militares no outro. O objectivo de um tal acordo é estabelecer direitos e responsabilidades entre o Estado interessado em manter e operar forças militares em território alheio e o Estado anfitrião, em matérias como a jurisdição criminal e civil, o uso do uniforme, o porte de armas, a isenção fiscal e aduaneira, a entrada e saída de pessoal e bens, e a resolução de reclamações por danos (v. John Pike, “Status of Forces Agreement”. GlobalSecurity.org, 2005).

[27] Jacques Baud, Poutine: Maître du jeu? (Paris: Max Millo. 2022. Edição do Kindle), p.151.

[28] A Mejlis ‒ assembleia tradicional representativa dos tártaros da Crimeia, composta por 33 membros ‒ decidiu boicotar o referendo de 16 de março de 2014. Essa decisão está relacionada com os agravos sofridos pelos tártaros durante o período da deportação e “exílio” que lhes foram impostos na era estalinista da União Soviética (ver nota 8, supra), — agravos que nunca foram satisfatoriamente resolvidos durante os anos em que a Crimeia esteve subordinada à Ucrânia. Acresce que os tártaros da Crimeia não acalentavam, em 2014, a esperança de que uma Crimeia maioritariamente russófona, independente da Ucrânia e ainda por cima integrada na Rússia, lhes viesse a ser mais favorável do que uma Crimeia integrada e subordinada à Ucrânia. Este antagonismo entre a grande maioria russófona da população da Crimeia e a pequena minoria tártara (hoje cerca de 15% da população da Crimeia, mas outrora, até meados do século XIX, a sua maioria) nunca foi superado até aos nossos dias. Bem pelo contrário, agravou-se desde 2014. Em 26 de Abril de 2016, o Supremo Tribunal da Crimeia baniu a Mejlis, sob a acusação de que os seus dirigentes faziam «propaganda da agressão e do ódio à Rússia.» Não tenho informação suficiente para avaliar a veracidade dessa acusação. O que, porém, se pode afirmar com segurança é que a Mejlis dos tártaros da Crimeia é uma organização abertamente pró-ucraniana e anti-russa, como se comprova por esta sua recente declaração,  feita em 18 de Março de 2022: «A Mejlis dos Tártaros da Crimeia assume que a restauração da integridade territorial da Ucrânia dentro das suas fronteiras internacionalmente reconhecidas, incluindo a República Autónoma da Crimeia e Sebastopol, deve ser uma condição obrigatória para a realização de negociações oficiais entre os representantes ucranianos e o país agressor, a Federação Russa», sublinhou no Facebook o presidente da Mejlis, Refat Tchoubarov (Lusa, 31 de Março  de 2022).

[29] Apesar das tensões sociais e dos antagonismos políticos que um processo de autodeterminação com secessão inevitavelmente suscita, há a lamentar “apenas” dois mortos (um homem que sofreu um A.V.C. e uma mulher que foi pontapeada, ambos durante uma refrega entre grupos rivais numa concentração) e 10 desaparecidos (desaparecimentos que poderão ter tido motivações políticas e, quiçá, um desfecho fatal para os desaparecidos) durante o período mais turbulento da sublevação pró-secessão na Crimeia. Accountability for killings in Ukraine from January 2014 to May 2016.” Office of the United Nations. High Commissioner for Human Rights, pp.3, 27, 50.

[30] “Budapest Memorandums on Security Assurances, 1994”.Council on Foreign Relations, disponível em Internet Archive, Way Back Machine (https://web.archive.org/web/20140317182201/http://www. cfr.org/arms-control-disarmament-and-nonproliferation/budapest-memorandums-security-assurances-1994/p32484).

[31] 20.000 desertores das forças armadas ucranianas estacionadas (à época) na Crimeia é o número indicado por Jacques Baud (op.cit., p.151). 9.000 desertores é o número indicado por Oleksandr Turchynov, secretário da Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia (cf. “Ukrainian defectors in occupied Crimea sidelined, relocated”, www.unian.info, 5 de Outubro de 2017). Estas fontes divergem também quanto ao número total das forças armadas ucranianas estacionadas (à época) na Crimeia. Jacques Baud indica o número de 22.000. Oleksandr Turchynov indica o número de 13.000. Dado o cargo político desempenhado por Turchynov, inclino-me a pensar que os seus números estão muito subavaliados. 

[32] Jacques Baud, Poutine: Maître du jeu? (Paris: Max Millo. 2022. Edição do Kindle), p.151.

[33] Jacques Baud, op.cit., p.152. Convém acrescentar que o princípio da responsabilidade de proteger” se aplica, por exemplo, no caso das relações entre pais e filhos. Porém, quando é abusivamente transportado para o domínio interestatal, transforma-se numa artimanha que tem servido de camuflagem angelical para os Estados mais fortes invadirem, ocuparem ou anexarem o território dos mais Estados mais fracos. No caso da  Crimeia, descrito por Baud, não houve qualquer artimanha. Os militares russos não invadiram a Crimeia. Estavam, isso sim, aí estacionados ao abrigo de dois acordos celebrados entre a Rússia e a Crimeia em 1997 e 2010, como vimos. A responsabilidade de proteger” invocada pela Rússia para apoiar os autonomistas crimeus que defendiam a adesão da Crimeia à Federação Russa foi tão somente um argumento suplementar para expressar a solidariedade política com a sua luta histórica pela integração como entidade autónoma na Federação Russa. 

[34] https://www.usagm.gov/wp-content/media/2014/06/Ukraine-slide-deck.pdf

[35] Michel Eltchaninoff, Na Cabeça de Putin. Lisboa: Edições Zigurate. 2022.

[36] A afirmação de Eltchninoff foi feita no programa de televisão “Poutine, maître du jeu#Cdans l’air, 17.10.2021.” France 5(/You Tube, 18 de Outubro de 2021, https://www.youtube.com/watch?v=nlRVmx zBZL0, [a partir dos 57m-e-6s].

[37] “Michel Eltchaninoff: Putin «é um pouco o Joker de Batman»”. Entrevista a Michel Eltchaninoff conduzida por Teresa de Sousa. Público, 29 de Junho de 2022.

[38] Dan Sabbagh & Luke Harding, “Ukraine aiming to create chaos within Russian forces, Zelenskiy adviser says”. The Guardian, 16 de Agosto de 2022.

[39] Missy Ryan & Annabelle Timsit, “U.S. wants Russian military ‘weakened’ from Ukraine invasion, Austin says”. The Washington Post, April 25, 2022.