Temas 1, 2 e 3
verdade e embuste
Fernando Oliveira [*]
“A verdade vive dispersa no meio de toda a espécie de poeiras.”
(Éric Vuilard [1])
1. Introdução
E
de repente, um raio de luz brilhou e revelou mais uma razão justificativa da
invasão da Ucrânia pela Rússia: há “terras raras”!
Também lhes chamam “minerais/metais/minérios raros/preciosos/essenciais/críticos”,
há expressões para todos os gostos.
Se
a esta variada nomenclatura juntarmos alguns outros ingredientes lançados para
o ar como sejam possíveis existências (ouvi referir 15 mil toneladas, 100 mil
toneladas), os valores económicos em jogo (quando Trump atirou 500 mil milhões
como o valor da ajuda americana à Ucrânia e depois foi avançando outros
valores, estes números passaram a ser a medida do que poderia existir/valer na
Ucrânia como “terras raras”) e a suposição de que
boa parte desses eventuais recursos poderá estar nas regiões ocupadas pela
Rússia, então as “terras raras” passaram a ser,
para alguns comentadores, “a” razão. Os russos já sabiam do manancial e vá de
avançar! A propalada “reconstituição do império
soviético” (o que quer que isso possa significar), passou para segundo plano.
Por
outro lado, a palavra “terras” causa alguma
confusão porque estamos mais habituados a associá-la à “terrinha” onde plantamos as batatas, as couves, os cereais, etc.,
o que não corresponde à verdade. A Ucrânia tem, de facto, terras agrícolas riquíssimas,
a “Terra negra”, extremamente fértil, que não
conhece fronteiras e se prolonga para a Rússia. Ao que parece já têm donos, mas
isso são outros “quinhentos”, que talvez justifiquem um artigo específico.
Vamos então procurar dar uma vista de olhos sobre o que são as “terras raras”, tentando ser rigoroso, mas não fastidioso.
Os 17 elementos terras raras com os respectivos símbolos |
2. Terras raras: o que
são
Sigamos
o professor Galopim de Carvalho aqui sobre
“terras raras”.
«Em finais do século XVIII, quer para os químicos como para
os mineralogistas, os óxidos da maioria dos metais constituíam um grupo então
designado por “terras”, “jorden”, para os suecos, “Erde”, para os
alemães, “earth”, para os ingleses, e “terre”, para os franceses.
Nós, os portugueses, continuávamos distraídos e já, nessa altura, éramos um
povo atrasado, na cauda da Europa. Face ao qualificativo “raras”, toda a gente
será levada a pensar que se trata de substâncias que ocorrem em quantidades
ínfimas, mas não é o caso. Por serem de difícil separação e por serem apenas
conhecidas em minerais oriundos da Escandinávia, foram então (estamos a falar
de finais do século XVIII, nos alvores da Química e da Mineralogia)
considerados “raros”, qualificação ainda hoje utilizada, apesar de
alguns deles serem relativamente abundantes na crosta terreste. Todos eles são
mais abundantes do que metais como a prata e o mercúrio, por exemplo.»
Socorrendo-nos
agora da Tabela Periódica, uma classificação dos elementos químicos
divulgada pelo cientista russo Dmitri Mendeleev (27 de Janeiro de 1834 – 2 de
Fevereiro de 1907) na sua obra Princípios da Química, publicada em 1869 [2] e na qual desenvolveu essa
classificação seguindo uma ordem lógica baseada nas propriedades dos elementos,
encontramos as terras raras nas posições 57 a 71 (elementos também denominados
“lantanídeos”), a que se juntam os elementos
21, escândio, e 39, ítrio. São elementos que ocorrem nos mesmos minérios e que
possuem propriedades físico-químicas semelhantes.
A Tabela Periódica de Mendeleev, versão actual |
O
grupo dos elementos terras raras (ETR) é constituído pelos
seguintes elementos químicos: Lantânio, Cério, Praseodímio, Neodímio, Promécio, Samário,
Európio, Gadolínio, Térbio, Disprósio, Hólmio, Érbio, Túlio, Itérbio, Lutécio (os
15 lantanídeos), mais Escândio e Ítrio.
O
que dá origem à raridade destes elementos é a dificuldade de os extrair dos
minerais em que ocorrem na Natureza, não propriamente a quantidade em que
ocorrem. Na realidade, alguns são até mais abundantes do que outros mais
conhecidos, como vimos acima.
Mina a céu aberto de Mountain Pass, Califórnia, onde, entre 1952 e a década de 1980, se extraía a maior parte das terras raras do mundo, com um elevado custo ambiental que veio a ser assumido pela China (National Geographic). |
A
mineração dos ETR é muito complexa e prejudicial para o ambiente e as
populações vizinhas. Os principais problemas são a libertação de elementos
radioactivos, que contaminam solo, atmosfera e cursos de água em redor, a
acidificação dos solos e dos cursos de água, a eutrofização e a contaminação do
ar com partículas e gases tóxicos lançados durante a extracção.
As
terras raras utilizam-se numa grande variedade de aplicações importantes para a
economia, como ecrãs de computadores e televisores, baterias, catalisadores,
cerâmica, vidro, ímanes, materiais luminescentes e compostos de polimento, e
até numa vertente que poderíamos denominar mais futurista de supercondutividade
de alta temperatura ou armazenamento e transporte de hidrogénio em segurança
para uma economia pós-hidrocarbonetos.
Dado
que muitos dos campos de aplicação das terras raras se encontram em fases
embrionárias, é muito provável que a procura dos vários elementos não registe
aumentos a muito curto prazo. As movimentações a que temos assistido serão,
pois, no sentido de acautelar o futuro.
Já
agora, algumas curiosidades:
—
quando o nosso telemóvel vibra, o rápido movimento é causado por um íman
miniaturizado de neodímio no interior do aparelho;
—
o Toyota Prius tem cerca de 1 kg de neodímio e 10-15 kg de lantânio;
—
o sulfato de disprósio é utilizado em tintas e vernizes para aumentar a
resistência ao calor e à corrosão;
—
para combater os falsificadores, as notas de euro utilizam a química das terras
raras. A incidência de luz UV numa nota provoca a fluorescência verde do
térbio, vermelha do európio e azul do túlio.
|
|
3. Terras raras: onde
há e o que podem valer
A exemplo do que sucede com muitos assuntos, os números são importantes e não há nada como procurar conhecer alguns. E, no caso em apreço, também as geografias. Números que nos permitem quantificar as ocorrências e os valores em causa (embora aqui a oferta, a procura, os mercados, etc., tenham uma palavra a dizer), e geografias que nos permitem situar a ocorrência dos elementos, dos minerais, etc.
Comecemos pelos preços. É claro que estes são fortemente influenciados por uma série de factores como sejam a ocorrência de cada elemento, a quantidade em que ocorre e a geografia, os métodos de extracção, a procura, que é variada e depende de sector para sector e da evolução que cada sector vai registando.
Importa
ter presente que os ETR ocorrem em minerais, que é preciso separá-los na forma
de óxidos e depois retirar as terras raras, em processos muito complexos.
Fiquemo-nos pelo que foi possível obter aqui
em relação à maior parte dos elementos, sob a forma de óxidos:
Produto |
Intervalo de preço (USD) |
Média (USD) |
Óxido de lantânio (USD/tm) |
507,29-555,60 |
531,45 |
Óxido de lantânio de alta pureza (USD/tm) |
2174,1-2355,28 |
2264,69 |
Óxido de cério (USD/tm) |
1401,09-1570,18 |
1485,64 |
Óxido de cério de alta pureza (USD/tm) |
3502,72-3865,07 |
3683,89 |
Óxido de praseodímio (USD/tm) |
52 178,43-52 661,56 |
52 419,99 |
Óxido de neodímio (USD/tm) |
51 332,94-51 936,86 |
51 634,90 |
Óxido de samário (USD/tm) |
1811,75-2053,32 |
1932,53 |
Óxido de európio (USD/kg) |
22,95-24,16 |
23,55 |
Óxido de gadolínio (USD/tm) |
19 566,91-19 808,48 |
19 687,69 |
Óxido de gadolínio de alta pureza (USD/tm) |
22 224,14-22 707,28 |
22 465,718 |
Óxido de térbio (USD/kg) |
799,59-809,25 |
804,42 |
Óxido de disprósio (USD/kg) |
194,46-195,67 |
195,07 |
Óxido de érbio (USD/tm) |
35 993,45-36 597,37 |
36 295,41 |
Óxido de ítrio (USD/tm) |
6401,52-6643,09 |
6522,30 |
Óxido de praseodímio-neodímio (USD/tm) |
49 521,19-49 762,76 |
49 641,97 |
Óxido de hólmio (USD/tm) |
59 183,86-59 787,78 |
59 485,82 |
Óxido de itérbio (USD/tm) |
11 474,42-12 682,26 |
12 078,34 |
Óxido de lutécio (USD/kg) |
616,00-628,07 |
622,03 |
Óxido de escândio (USD/kg) |
736,78-748,86 |
742,82 |
A
data das cotações indicadas é 23 de Abril de 2025.
As
unidades são dólares norte-americanos (USD) e tonelada métrica (tm) ou
quilograma (kg).
Estamos,
portanto, perante valores elevados, em alguns casos bastante elevados.
Amostras que contêm terras raras e concentrados minerais de onde se podem extrair, rendivelmente, as terras raras e produtos derivados, nas instalações da empresa Molycorp Minerals, responsável pela exploração da mina de Mountain Pass (EUA). Devido à concorrência chinesa, a princípio alimentada pela própria empresa norte-americana, a actividade cessou em 2002, mas foi retomada em 2010. (National Geographic) |
Relativamente
à produção, podemos ver na tabela abaixo, retirada daqui,
a produção mineira mundial de terras raras, por país ou região, em toneladas
métricas, equivalente de óxidos de terras raras:
País ou região1,
2 |
2015 |
2016 |
2017 |
2018 |
2019 |
Austráliae
|
12 000 |
15 000 |
19 000 |
21 000 |
20 000 |
Birmâniae |
370 |
3500 |
15 000 |
23 000 |
25 000 |
Brasile |
⎼ |
2700 |
1700 |
1200 |
710 |
Burundie |
⎼ |
⎼ |
40 |
620 |
200 |
China3 |
105 000 |
105 000 |
105 000 |
120 000 |
132 000 |
Estados
Unidose |
5900 |
⎼ |
⎼ |
14 000 |
28 000 |
Índia4
|
1700 |
1500 |
1800 |
2900 |
2900 |
Madagáscare |
⎼ |
⎼ |
⎼ |
2000 |
4000 |
Malásiae
|
310 |
1100 |
180 |
990 |
66 |
Rússia
|
2500e |
2700 |
2700 |
2700 |
2700e |
Tailândiae,5
|
760 |
1600 |
1300 |
1000 |
1900 |
Vietname,5 |
270 |
240 |
220 |
920 |
1300 |
Total
(arredondado) |
129 000 |
133 000 |
147 000 |
190 000 |
219 000 |
Esta
Tabela possui, no original, diversas Notas, sendo as mais relevantes as
seguintes:
e Estimativa; ⎼ Zero.
1 Dados disponíveis até 26 de
Janeiro de 2021. Dados arredondados para não mais do que três algarismos
significativos; o total pode não corresponder exactamente à soma das parcelas.
2 Para além dos países e/ou das
regiões que se indicam, é possível que outros países tenham produzido minerais
de terras raras, mas a informação disponível não permitiu apresentar
estimativas fiáveis.
3 Quota oficial de produção. Não
foi possível quantificar a produção ilegal.
4 O Departamento de Energia
Atómica da Índia não divulgou os dados de produção de monazite.
5 Dados referentes a exportações.
Dados
um pouco mais recentes obtidos aqui
permitem-nos conhecer não só valores de produção mineira, mas também de
reservas, embora neste último ponto se deva realçar o facto de os dados serem
dinâmicos, como se refere na Nota:
|
Produção mineirae (toneladas métricas) |
Reservas11 |
|
|
2023 |
2024 |
|
África
do Sul |
— |
— |
860 000 |
Austrália |
12 16 000 |
12 13 000 |
13 5 700 000 |
Birmânia |
12 43 000 |
12 31 000 |
ND |
Brasil |
140 |
20 |
21 000 000 |
Canadá |
— |
— |
830 000 |
China |
14 255 000 |
14 270 000 |
44 000 000 |
Estados
Unidos |
41 600 |
45 000 |
1 900 000 |
Gronelândia |
— |
— |
1 500 000 |
Índia |
2900 |
2900 |
6 900 000 |
Madagáscar |
12 2100
|
12 2000
|
ND |
Malásia |
12 310 |
12 130 |
ND |
Nigéria |
12 7200 |
12
13 000 |
ND |
Rússia |
2500 |
2500 |
3 800 000 |
Tailândia |
12
3600 |
12
13 000 |
4500 |
Tanzânia |
— |
— |
890 000 |
Vietname |
12 300 |
12 300 |
3 500 000 |
Outros
|
1440 |
1100 |
ND |
Total
mundial (arredondado) |
376 000 |
390 000 |
>90 000 000 |
Esta
Tabela possui diversas Notas, sendo as mais relevantes as seguintes:
e Estimativa; ND Não
disponível; ⎼ Zero.
11 Refere-se no documento
original que os “dados das reservas são dinâmicos”.
12 Estimativa baseada em dados de
importações comunicadas para a China.
13 Para a Austrália, as reservas
compatíveis ou equivalentes com o Joint Ore Reserves Committee seriam de 3,3
milhões de toneladas.
14 Quota de produção; não está
incluída a produção ilegal.
Olhando
para as Tabelas acima podemos perguntar: e qual é a
situação na Europa?
Gráfico com os países que possuem as maiores reservas conhecidas de terras raras (National Geographic) |
Em
2010, descobriu-se uma grande jazida de minerais de “terras
raras” em Kvanefjeld,
no sul da Gronelândia. As perfurações de pré-viabilidade no local confirmaram a
existência de quantidades significativas de lujavrite preta, que contém cerca
de 1% de óxidos de terras raras [doravante grafado geralmente sem aspas, para simplificar].
A União Europeia instou a Gronelândia a restringir o desenvolvimento de
projectos chineses para a exploração de terras raras, mas em 2013 o governo da
Gronelândia esclareceu que não tinha qualquer plano para impor tais restrições.
Em
Espanha, segundo uma notícia do El
Mundo de 24 de Maio de 2019, estava em preparação na
província de Ciudad Real um projecto de mineração de terras raras denominado
“Matamulas” que poderia, segundo os promotores, produzir 2100 ton/ano (33% da
procura anual da UE), mas foi suspenso pelas autoridades regionais devido a
preocupações sociais e ambientais.
Na
Suécia, segundo notícia da Reuters
de 13 de Janeiro de 2023, a empresa sueca LKAB anunciou ter descoberto um
depósito de mais de 1 milhão de toneladas métricas de terras raras em Kiruna,
na Lapónia, que seria o maior da Europa. Ainda segundo a mesma notícia,
«a LKAB informou que planeava apresentar um pedido de
concessão de exploração ainda em 2023, mas acrescentou que seriam necessários
pelo menos 10 a 15 anos antes de poder começar a explorar a jazida e a
comercializar a produção.»
Em
Junho de 2024, segundo notícia da CNBC,
a Rare Earths Norway descobriu um depósito de terras raras de 8,8 milhões de
toneladas métricas em Telemark, na Noruega, que passaria a ser o maior da
Europa, conhecido. A empresa de mineração previa que poderia concluir a
primeira fase de desenvolvimento em 2030.
Há
ainda o aproveitamento de resíduos de explorações mineiras, nomeadamente na
Estónia, onde estarão a recuperar terras raras devido ao aumento do respectivo
valor. Mas a coisa não parece cheirar muito bem quando se vai ler o artigo
em causa. Fala-se abundantemente de “terras raras”,
da sua escassez e importância para a indústria, mas quando se procura uma
referência a casos concretos encontra-se 1-uma-1, ao tântalo que, surpresa, não
é terra rara!
E
temos ainda a reciclagem. Em França, em 2011 o Grupo
Rhodia estava a montar duas fábricas, em La Rochelle e
Saint-Fons, que deveriam produzir 200 toneladas de terras raras por ano a
partir de lâmpadas fluorescentes, ímanes e baterias. E, neste caso, os
elementos citados são efectivamente terras raras: neodímio, praseodímio,
disprósio e térbio.
Finalmente,
na Ucrânia há referência
a um histórico de produção de escândio como subproduto da mineração do urânio,
embora sem dados concretos. Diz-se que o país parece possuir depósitos
significativos de terras raras, o que, segundo se conclui agora, “esteve
no centro da invasão do país pela Rússia e estará também no centro das
negociações de paz”, mas, de uma forma geral, as coisas
começam a não bater certo.
4. Terras raras na
Ucrânia: há ou não há?
Prosseguindo
a secção anterior, a afirmação de que as coisas começam a não bater certo
resulta daqui
e daqui.
O primeiro é um documento do Fórum Económico Mundial de 9 de Julho de 2024 e o
segundo é uma publicação do Ministério da Protecção Ambiental e dos Recursos
Naturais da Ucrânia, aparentemente de final de 2024 ou início de 2025 já que
cita dados de 2024, dando ainda como fonte o US Geological Survey, anunciado
como um dos parceiros.
Pesquisando
os dois documentos à procura de referências a cada um dos 17 elementos químicos
denominados “terras raras”, o resultado é 0
(zero)! E o caso afigura-se mesmo como publicidade enganosa em algumas partes.
Há passagens que titulam “Fontes críticas de metais de
terras raras” no primeiro e “Elementos raros e
de terras raras” no segundo, elencam-se elementos químicos, nomes
pomposos sem qualquer relação com as terras raras como definidas no ponto 2.
Ainda
no final de 2024, saiu uma publicação intitulada “Ukraine’s
resources: Critical raw materials” [“Recursos da Ucrânia:
Matérias-primas Críticas”]. O folheto tem o “alto
patrocínio” de um tal ‘NATO Energy Security Centre of Excellence’ [ENSEC
COE] (Centro de Excelência de Segurança Energética). Trata-se de um grupo de
reflexão que, apesar do logótipo e da sigla NATO [/OTAN] que exibe, não
pertence à Organização.
Existem
vários Centros de Excelência que funcionam sob a égide da OTAN [/NATO],
espalhados um pouco por toda a Europa, mas que não pertencem à OTAN. E também
neste documento aparecem referências a terras raras,
a metais de terras raras, mas nenhum dos elementos citados, e são alguns, é uma
terra rara.
Reprodução da capa do folheto indicado acima, exibindo no topo as referências à NATO/OTAN. |
Em
20 de Fevereiro de 2025, o Centro de Informação Regional para a Europa
Ocidental, das Nações Unidas, publicou um documento intitulado “Rare
earths and strategic minerals in Ukraine” [Terras raras e
minerais estratégicos na Ucrânia], que vai buscar o documento do Ministério da
Protecção Ambiental e dos Recursos Naturais mencionado supra e cita a Ministra
Adjunta do mesmo Ministério, Svetlana
Grinchuk:
«Cerca de 5% de todas as ‘matérias-primas críticas’ do mundo
encontram-se na Ucrânia, cujo território ocupa apenas 0,4% da superfície do
planeta.
A
ministra falava numa reunião da Comissão Económica das Nações Unidas para a
Europa (UNECE) em 2022, antes da invasão do país pela Rússia. Resta saber o que
a senhora entende por ‘matérias-primas críticas’,
mas presunção e água benta, cada qual toma a que quer.
Vimos,
pois, a partir de meados de 2024, assistindo à publicação de uma série de
notícias mais ou menos bombásticas, com títulos sugestivos, mas enganosos, e
com citações de instituições cuja reputação é à prova de bala. Dou só dois
exemplos. Um artigo
da Agência France Press, de 25 de Fevereiro de 2025, no qual se afirma a dado
passo:
«Só a Ucrânia concentra cerca de 5 % dos recursos minerais
mundiais, mas nem todos são explorados. O país ocupa o 40º lugar entre os
países produtores de minerais, no conjunto de todas as categorias (incluindo
carvão), segundo a edição de 2024 da publicação de referência World Mining
Data.
Numa obra publicada em 2023 pelo Gabinete Francês de Pesquisas
Geológicas e Mineiras (BRGM), os geólogos inventariaram mais de uma centena de
recursos, entre os quais ferro, manganês ou ainda urânio. Em 2022, o país era o
10º produtor mundial de ferro, segundo o World Mining Data.»
Isto
é verdade, consulta-se o WMD
e o país ocupava, em 2022, o 40.º lugar na produção total de minerais e o 10.º
lugar na produção de ferro, mas de terras raras nada!
O
segundo exemplo é outro artigo,
também da France Press, de 13 de Fevereiro do mesmo ano, referindo que Zelensky
dispõe de um trunfo de grande valor, cobiçado por Trump: terras raras, recurso
que seria abundante na Ucrânia. Quais terras raras? Pois, lítio, grafite,
cério, titânio, urânio, etc. Só o cério é terra rara! E nunca se fala em
quantidades, que serão desconhecidas. A oferta de Zelenskyy das terras raras
terá por base actividades exploratórias que decorreram sobretudo entre as
décadas de 1960 e 1980, quando a União Soviética desenvolveu actividades de
mapeamento da região, segundo afirmam
especialistas do sector.
Perante
esta aparente campanha concertada de “vender a pele do
lobo antes de o matar”, encontramos notícias que lançam algum bom-senso
no assunto, embora tal pareça ser de pouco proveito para os nossos sempre
diligentes e activos “jornalistas e comentadores”.
Em
19 de Fevereiro de 2025, a Bloomberg, pela pena de Javier Blas, publicou um texto
(só acessível para assinantes, o que se fez foi consultar referências ao mesmo aqui)
no qual se afirma que, tirando pequenas minas para extracção de escândio, o
país não dispõe de terras raras. E neste curto vídeo,
também da Bloomberg com Javier Blas, podemos comprová-lo.
O
valor total de terras raras produzidas em todo o mundo, anualmente, é da ordem
dos 15 mil milhões de dólares norte-americanos (USD), segundo Blas. Mesmo que a
Ucrânia conseguisse produzir aí uns 10% deste valor (1,5 mil milhões) e mesmo
que aquilo que Trump estima como sendo a dívida da Ucrânia aos EUA não seja 500
mil milhões, mas, vá lá, 150 mil milhões, a Ucrânia precisaria de 100 anos para
saldar as contas. E teria de começar já!
Mas
se acrescentarmos que a proposta de Acordo
EUA-Ucrânia prevê a constituição de um Fundo, e que a
Ucrânia «contribuirá para o Fundo com 50% de todas as
receitas obtidas com a futura comercialização de todos os activos de recursos
naturais pertencentes ao Governo ucraniano (estejam estes na posse directa ou
indirecta do Governo ucraniano), definidos como depósitos de minerais,
hidrocarbonetos, petróleo, gás natural e outros materiais extraíveis, bem como
outras infra-estruturas relevantes para os activos de recursos naturais (como
terminais de gás natural liquefeito e infra-estruturas portuárias), nos termos
acordados pelas duas Partes», aquele prazo temporal duplica!
Termino
esta análise com uma entrevista
publicada pela Northeastern Global News em 27 de Fevereiro de 2025, na qual a
engenheira química Laura Lewis afirma claramente que «Não
há qualquer evidência credível de que a Ucrânia possua terras raras».
A
entrevistada indica como fonte o reputado U.S. Geological Survey, falando especificamente
de titânio, lítio, cobalto e grafite, que afirma poderem estar a ser
explorados na Ucrânia, embora com um potencial não muito bem conhecido, mas que
terão de concorrer com parceiros muito mais sólidos e fiáveis já estabelecidos
no mercado. Quanto às terras raras, refere que as informações são de há pelo
menos 50 anos, do tempo da União Soviética, que teriam de ser verificadas e que
depois seria necessário abrir uma mina, o que poderá demorar 15 a 20 anos!
Laura Lewis, eminente professora de Engenharia Química, fala sobre o acordo de minerais críticos da Ucrânia. Fotografia de Matthew Modoono/Northeastern University |
5. Terras raras: para
concluir
E
então, o que podemos tirar daqui?
Em
A Guerra
nos Balcãs (Edições Colibri, 3ª edição; Lisboa, Outubro de 2023), o major-general
Carlos Branco apresenta trechos de uma entrevista feita em 1993 por Jacques
Merlino, da cadeia de televisão francesa TV2, a James Harff, director da Secção
de Assuntos Públicos Globais da empresa de Relações Públicas (RP)
norte-americana Ruder Finn, a propósito da intervenção desta empresa na
divulgação de notícias na região da ex-Jugoslávia. Em 1991-92-93, dispondo
apenas de um computador e um fax, a empresa definia determinados critérios e
seleccionava os alvos de interesse através de pesquisas em bases de dados. Com
o fax, disseminava em poucos minutos a informação que pretendiam junto de todos
os que poderiam reagir positivamente.
«O nosso trabalho é garantir que os nossos argumentos sejam
os primeiros a serem tornados públicos», refere Harff. E a seguir: «O nosso trabalho não é verificar a informação. (…) O nosso
trabalho é acelerar a circulação da informação que nos é favorável para atingir
judiciosamente alvos escolhidos. Nós não confirmámos a existência de campos de
morte na Bósnia, apenas divulgámos o que o ‘Newsday’ tinha afirmado.» E
conclui: «Nós somos profissionais. Temos um trabalho
para fazer e fazemo-lo. Não somos pagos para ter em conta aspectos morais.»
Que
uma empresa de Relações Públicas raciocine desta forma, estará no seu direito.
Que os comentadores sigam a mesma linha, eles lá sabem. Agora, jornalistas?
Mas
é assim que vem sucedendo nesta guerra que vivemos na Europa. Os “factos” aparecem do nada, embrulhados num pacote com
alguns elementos atractivos, muitas vezes nas páginas das redes sociais de
dirigentes políticos, e pimba! É certo e sabido que passam a notícias pela voz
de jornalistas, e que a seguir são comentadas e dissecadas à saciedade pelos
nossos “estimados comentadores e paineleiros”,
muitas vezes acompanhadas de imagens falsas.
Em
minha opinião, estamos perante uma campanha que foi ganhando ímpeto desde
meados de 2024, destinada, numa primeira fase, a fazer-nos crer que a Ucrânia
dispõe de um verdadeiro maná que vai salvar o país e a Humanidade nos próximos
séculos, que Putin já sabia deste tesouro e foi por isso que fez o que fez, e,
numa segunda fase, que o comerciante Trump chegou para espoliar os ucranianos
desse tesouro, dividindo-o com o “amigalhaço” Putin e deixando umas migalhas
para o resto dos mortais.
O então candidato presidencial Republicano e antigo Presidente dos EUA Donald Trump e o Presidente da Ucrânia num encontro na Torre Trump, em Nova Iorque, 27 de Setembro de 2024. REUTERS/Shannon Stapleton/File Photo Purchase Licensing Rights |
Numa
visita que fez aos EUA em 2024, de 22
a 27 de Setembro, Zelensky apresentou o seu “Plano para a
Vitória” em encontros que teve com Biden, Harris e Trump. A propósito, este
último deve ter ficado com uma pedrinha no sapato depois de se saber que
Zelensky participou
em acções de campanha com Harris. Voltando ao “Plano”, a página
oficial do Presidente da Ucrânia refere que seria
constituído por cinco pontos e três Anexos secretos. Cito o quarto ponto:
«O quarto ponto tem a ver com o potencial económico
estratégico. A Ucrânia oferece aos seus parceiros estratégicos um acordo
especial para a protecção conjunta dos recursos críticos do país, bem como para
o investimento conjunto e a utilização deste potencial económico.
Esta proposta envolve recursos naturais e metais críticos no valor
de biliões [3] de dólares norte-americanos, incluindo urânio, titânio, lítio,
grafite e outros recursos estrategicamente valiosos, que constituem uma
vantagem significativa na concorrência global.
Os depósitos de recursos críticos na Ucrânia, juntamente com o
potencial de produção de energia e alimentos do país, de importância mundial,
estão entre os principais objectivos predatórios da Federação Russa nesta
guerra. E esta é a nossa oportunidade de crescimento,” afirmou o Presidente.»
É
possível que Zelensky se tenha apercebido, na altura, da remota possibilidade
de o vento mudar com a mudança de Presidente, ou então terá pensado que, na
dúvida, valeria a pena apostar alguma coisa em Trump, continuando a jogar forte
na carta do Partido Democrata. O que é facto é que as informações sobre “terras raras” e todos as restantes designações afins
que refiro na Introdução começaram a jorrar, e de forma totalmente acrítica,
acéfala mesmo. O que era preciso era que “os nossos
argumentos sejam os primeiros a serem tornados públicos”.
Em
16 de Janeiro de 2025, quatro dias antes da tomada de posse de Trump, Zelensky
e Starmer, primeiro-ministro inglês, assinaram em Kiev uma “Parceria
para 100 Anos entre o Reino Unido e a Ucrânia”, submetida ao
Parlamento inglês, documento que em 25 de Março obteve
um parecer positivo da Câmara dos Lordes, embora sujeito a várias
recomendações. Espera-se que venham a ser estabelecidos diversos tratados no
âmbito desta Parceria para 100 Anos, os quais darão entrada no Parlamento do
Reino Unido nas próximas semanas.
O Presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy e o primeiro-ministro do Reino Unido Keir Starmer trocam cumprimentos na conferência de imprensa conjunta após a reunião em Quieve, 16 de Janeiro de 2025. [Arquivo: Roman Pilipey/AFP] |
Em 26 de Fevereiro de 2025, a Reuters dá a conhecer o (passo a citar)
«texto
integral do Acordo-quadro a celebrar entre a Ucrânia e os Estados Unidos sobre
o desenvolvimento conjunto de terras raras, minerais críticos, petróleo, gás e
outros recursos naturais. O texto, a que a Reuters teve acesso, é datado de 25
de Fevereiro. Uma fonte ucraniana referiu que o documento era a versão que se
esperava que o governo de Kiev aprovasse na quarta-feira.»
(Relembro muito
rapidamente o calendário: 25 é terça, quarta é 26 e o badalado encontro
Trump-Zelensky na Casa Branca que deveria culminar na assinatura do
Acordo-quadro foi na sexta, 28).
Como se sabe, este
Acordo-quadro não chegou a ser assinado.
O que, no essencial,
estes dois documentos visam são as célebres “garantias
de segurança” que Zelensky desesperadamente procura em tudo quanto é
sítio. No meio do florido palavreado comum a documentos deste tipo, o que temos
no caso do Acordo-quadro dos
EUA é (cito) «O Governo dos Estados Unidos da América
apoia os esforços da Ucrânia para obter as garantias de segurança necessárias
para estabelecer uma paz duradoura»; no caso da Parceria para 100 Anos a
expressão “garantia de segurança” aparece 16
vezes em 20 páginas.
De
tudo o que fica dito não se pode retirar a conclusão de que não há terras raras
na Ucrânia! É possível que haja. O que se pode concluir do estado-da-arte das terras
raras na Ucrânia, hoje, é que nada se sabe que permita assinar acordos, pactos,
convénios ou parcerias de modo a, dentro de 1 mês, 6 meses ou 1 ano, abrir a
torneira e começar a tirar benefícios. Isto se olharmos para o conceito de “terras
raras” tal como ele é definido na Secção 2 acima. Se falarmos da “terrinha do meu quintal”, aí podemos dizer o que nos
apetecer!
Só
mesmo para concluir, vale a pena citar passagens de um artigo
publicado no U.S. Geological Survey, com data de 20 de Novembro de 2002 e modificado
em 17 de Maio de 2005:
«Em 1999 e 2000, mais de 90% das necessidades da indústria
norte-americana em terras raras vieram de depósitos na China, ou de países que
as tinham importado da China /…/
(1) Os Estados Unidos correm o risco de perder a sua posição de
cabecilha de longa data em muitos domínios da tecnologia dos elementos terras
raras (ETR). A transferência de conhecimentos especializados em tecnologia de
processamento de ETR e aplicações de ETR dos Estados Unidos e da Europa para a
Ásia permitiu à China desenvolver uma importante indústria de ETR, eclipsando
todos os outros países na produção de minério e de produtos refinados. /…/
(2) A dependência dos Estados Unidos em relação às importações da
China ocorre numa altura em que os ETR se tornaram cada vez mais importantes em
aplicações de defesa, incluindo motores de caças a jacto e outros componentes
de aeronaves, sistemas de orientação de mísseis, contramedidas electrónicas,
detecção de minas submarinas, defesa anti-míssil, análise por telemetria e
sistemas espaciais de energia e comunicação por satélite.
/…/
(3) A disponibilidade de ETR chineses nos mercados dos EUA depende
da contínua estabilidade da política interna e da economia da China, bem como
das suas relações com outros países.»
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Notas e Referências
[*] Fernando Oliveira é um cidadão português, engenheiro químico e tradutor-intérprete de conferência. Neste seu artigo -- que aqui publico com a devida vénia e um forte abraço -- Fernando Oliveira seguiu a ortografia anterior ao [Des]Acordo Ortográfico de 1990 — uma opção que é também a deste blogue. Editei ligeiramente o texto para o adequar às normas tipográficas e estilísticas da Tertúlia Orwelliana. [n.e.= Nota do Editor da Tertúlia Orwelliana, J.C.S.]
[1] in A Ordem do Dia, tradução de João Carlos Alvim; Publicações Dom Quixote, 1.ª edição; Lisboa, Abril de 2018.
[2] Importa referir que quando Mendeleev idealizou a sua Tabela Periódica apenas se conheciam 60 ou 70 elementos, não os 118 reconhecidos nos dias de hoje (94 naturais e 24 artificiais). Mendeleev não elaborou a Tabela Periódica exactamente como a conhecemos hoje; o que ele descobriu foi uma forma objectiva de ordenar os elementos, que se revelou acertada ao prever e deixar espaço para os elementos que ainda não tinham sido descobertos à época. Além disso, sugeriu que os pesos atómicos de alguns elementos já conhecidos não tinham sido calculados correctamente.
[3] “trillion” no original, “bilião” na nomenclatura seguida em Portugal [a da escala longa], ou “milhão de milhão” (um algarismo seguido de 12 zeros, 1 000 000 000 000).