Temas 1, 2, 3
Uma breve panorâmica sobre a obra
de Emmanuel Todd,
seguida de um comentário crítico sobre
um dos seus pontos cegos
José
Catarino Soares
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N.B. Este ensaio foi suscitado pela palestra que Emmanuel Todd fez na Academia das Ciências Russa, em 23 de Abril de 2025, sob o título “Antropologia e Realismo Estratégico nas Relações Internacionais”, divulgada ao público fora da Rússia com a menção “Da Rússia, com amor”, e que foi traduzida e publicada neste blogue, aqui:
https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/06/da-russia-com-amor-emmanuel-todd-in.html
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PARTE
I
Emmanuel Todd (nascido em 1951) é um historiador,
antropólogo, sociólogo e politólogo francês.
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Emmanuel Todd em 26 de Janeiro de 2023. Foto: Weltwoche. |
Tem uma obra vasta, multifacetada e muito original,
embora mal conhecida em Portugal e praticamente desconhecida no mundo de língua
inglesa — a língua em que, de há uns 40 anos a esta parte, se fazem e desfazem
as reputações mediáticas, incluindo as do meio universitário e científico.
1.Três níveis societais
A originalidade epistémica e fecundidade heurística da
obra de Emmanuel Todd residem, em minha opinião, no modelo teórico que construiu
da sociedade humana e da história humana em três níveis ou camadas: (x) consciente, (y) subconsciente, (z) inconsciente.
Esta tripla distinção tem como referente a sociedade,
não o indivíduo. Trata-se de um consciente social, de um subconsciente social
e de um inconsciente social. Não deve, por isso, ser confundida com a
distinção homónima introduzida na psicologia e na psiquiatria por Sigmund Freud
(com início nos seus Estudos sobre a Histeria [1893-1895) e
culminando em Uma nota sobre o inconsciente na psicanálise [1912] e O inconsciente [1915]), de um consciente pessoal, de um pré-consciente
pessoal (Freud usava o termo pré-consciente e não o de subconsciente)
e de um inconsciente pessoal.
O inconsciente social de Todd também não deve
ser confundido com a noção de inconsciente colectivo que Carl Gustav Yung
introduziu no seu livro Metamorfose e Símbolos da Libido (1912) — um
espaço psíquico comum a todos os seres humanos, com conteúdos universais e
arquetípicos que influenciam o nosso inconsciente pessoal, mas que não é adquirido
individualmente ou socialmente, mas herdado biologicamente.
A grande fraqueza da argumentação de Freud e dos seus
continuadores (cultores da psicanálise), assim como de Yung e dos seus continuadores
(cultores da psicologia analítica), era a sua crença comum na existência de uma
estrutura familiar única e universal como campo de floração de sentimentos,
atitudes e comportamentos inconscientes e subconscientes. E que estrutura
familiar seria essa? Pois, aquela que predominava no meio social onde trabalharam:
a da família autoritária (na Áustria) e da família nuclear absoluta (na Inglaterra), no caso de Freud,
e a da família autoritária (numa parte da Suíça) e da família nuclear absoluta (noutra parte da Suíça), no caso de
Yung. Neste aspecto, a psicanálise e a psicologia analítica pedem meças à politologia de inspiração liberal e à economia (impropriamente chamada) neoclássica pelo seu arreigado e estreito eurocentrismo.
Emmanuel Todd introduziu a tripla distinção societal dos
níveis (x)/(y)/(z)-ciente na antropologia social e na
sociologia, mas desvinculada dos seus referentes freudianos e yunguianos, salvo
no que respeita ao reconhecimento da autonomia e do carácter primordial (entenda-se:
de infra-estrutura social) da família, bem evidenciados por Freud, embora dentro
dos estreitos limites eurocêntricos supramencionados.
Exemplificando: no nível consciente das
sociedades encontramos a economia em todas as épocas históricas e a política
desde, pelo menos, o desenvolvimento da sedentarização decorrente da invenção
da agricultura, da criação de gado e da metalurgia. Por exemplo, na Europa, na
chamada Idade Média, na época da Reforma e da Contra-Reforma ou actualmente, em
países como, por exemplo, o Irão e a Arábia Saudita, encontramos também a religião
no nível consciente.
Actualmente, em países como, por exemplo, a Suécia, a
França e o Reino Unido, a religião encontra-se na interface entre o nível subconsciente e o nível inconsciente, enquanto
noutros, como, por exemplo, Portugal, Espanha, Itália, a religião se encontra
na interface entre o nível
subconsciente e o nível consciente.
Nas sociedades modernas (i.e., pós-revolução
industrial capitalista [1780-1830] e pós-revolução francesa [1789-1793])
encontramos a educação no nível subconsciente, ou oscilando entre o nível subconsciente e o nível
consciente. No nível inconsciente, encontramos, em todas as épocas,
os sistemas familiares ou, equivalentemente, as estruturas familiares
(o termo preferido de Todd) — isto é, as relações entre esposo e esposa, entre
pais e filhos, entre pai e filhos, entre pai e filhas, entre mãe e filhas,
entre mãe e filhos, entre irmãos e irmãs, entre irmãos, entre irmãs, entre avós
e netos.
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É neste livro, originalmente publicado em 2017, que Todd sistematiza mais clara e sucintamente a tripla distinção dos níveis societais. |
Os parâmetros configuracionais dos sistemas familiares
[bilaterais, patrilineares ou matrilineares; bilocais, matrilocais ou patrilocais; autoritários ou libertários; igualitários ou inigualitários; endogâmicos ou exogâmicos; segundo os
países e as épocas] condicionam, sem o conhecimento dos indivíduos-agentes, escolhas
e condutas políticas, valores e crenças religiosas, desempenhos e
comportamentos educativos.
Para grande surpresa de Emannuel Todd, «esta identificação de um
inconsciente familiar da vida ideológica, à qual eu tinha chegado de uma
maneira puramente empírica, suscitou uma resistência, e mesmo uma rejeição, da
parte dos investigadores em ciências humanas, em particular nas sociedades mais
livres em temperamento e costumes» [1].
Ironicamente, essa resistência e essa rejeição são
facilmente explicáveis pelos sistemas familiares dominantes nos países onde
elas se manifestam mais fortemente (!) — um ponto que não podemos aprofundar
aqui.
2. Temporalidade societal a três
velocidades
Seja como for, uma coisa é certa: compreender
teoricamente as sociedades humanas como sistemas complexos estratificados (sistemas
compostos de sistemas mais restritos, seus subsistemas) que incluem níveis ou
camadas conscientes, subconscientes e inconscientes, conduz-nos a uma nova
concepção da história humana. Trata-se de uma concepção necessariamente
esquemática (como são todas as concepções científicas), mas que nos permite
entender duas coisas importantes, que equivalem a uma revolução coperniciana no
domínio das ciências sociais.
1.ª O tempo está em permanente e incessante
fluxo e com o tempo tudo muda, inclusive no domínio societal.“Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades. Muda-se o ser, muda-se a confiança.
Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades” (como tão
bem disse o nosso grande poeta, Luís Vaz de Camões).
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Retrato de Luís Vaz de Camões por Fernão Gomes, provavelmente pintado entre 1573 e 1575. |
2.ª Mas os ritmos de mudança não são
os mesmos em cada um dos subsistemas e em cada um dos níveis do macrossistema
societal. Em primeira aproximação, pode dizer-se que quanto mais nos embrenhamos
nas profundezas subconsciente e inconsciente da vida social, mais o tempo transcorre
lentamente, e mais as relações e instituições sociais perduram sem alteração
sensível.
Por exemplo, o processo de globalização (ou
mundialização) industrial, comercial, financeira, comunicacional, política e
cultural que se iniciou no pós-Segunda Guerra Mundial, levou pouco mais de 60
anos para se impor (1945-2007/2008): arranque, aceleração, consolidação,
implosão parcial. É um processo económico e político maximamente consciente
porque foi pilotado à vista de todos pela potência imperial então hegemónica (EUA)
e porque inclui acontecimentos e processos também eles conscientes (tratados,
guerras, trocas comerciais, deslocalização de indústrias, migrações em massa intra- e intercontinentais, instalação de paraísos
fiscais, etc.).
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Globalização comunicacional. Fonte da foto: Peterson Institute for Internacional Economics. |
Ao nível subconsciente, o tempo (da mudança de um
estado de estrutura de um sistema para outro estado) transcorre mais
lentamente. Por exemplo, o movimento das sociedades para a alfabetização
universal começou na Alemanha, no século XVI, com a Reforma Protestante que
exigia que todos os crentes soubessem ler a Bíblia para poderem meditar directamente
sobre os Evangelhos e dialogar directamente com “a palavra de Deus”. Por volta de 2030, prevê-se (previsão
optimista) que todas as crianças em todo o mundo, incluindo a África, aprendam
a ler, a escrever e a dominar as regras básicas da aritmética. Foram precisos 5
séculos para alcançar este resultado, ou seja, simplificando, 10 vezes mais
tempo do que necessitou a globalização mais recente, filo-americana e
neoliberal.
Ao nível inconsciente, o movimento das sociedades é ainda
mais lento. Se escolhermos, como fez Emmanuel Todd, a Suméria na Mesopotâmia (3.000
anos a.C.) e a China do Norte (1.500 anos a.C.) ‒ as duas épocas, as duas
regiões e as duas vezes em que a escrita foi inventada de maneira independente
‒ como ponto de partida formal da diferenciação dos sistemas familiares do Homo
Sapiens, temos de contar com 5.000 a 3.500 anos de evolução. Dito de outro
modo, para dar conta do processo de diferenciação universal dos sistemas
familiares, temos de multiplicar a escala temporal do processo de alfabetização
universal por 10 e multiplicar por 100 a escala temporal da globalização [industrial, agro-industrial, comercial, financeira, comunicacional ‒ e, em menor medida ‒ política e cultural] conduzida pelos EUA no pós-Segunda Guerra Mundial.
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Exemplares de escrita cuneiforme (assim chamada por ser executada em tabuinhas de barro com estiletes em forma de cunha) inventada, cerca de 3.500 anos a.C., pelos mesopotâmicos da Suméria. Foto: BBC Ideas |
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Exemplar da escrita em ossos oraculares. Trata-se de textos curtos escritos em escápulas de bovinos e em plastrões de tartarugas. São a mais antiga forma de escrita chinesa, desenvolvida durante a dinastia Shang, também conhecida como dinastia Yin. De acordo com a historiografia chinesa, a dinastia Shang foi a segunda dinastia real que dominou a China, de cerca de 1570 a 1045 a.C. Foto da gravura: Wikipédia. |
Simplificando e arredondando,
«dizemos
que o consciente económico funciona numa escala [temporal] de 50 anos, o subconsciente educativo
numa [escala
temporal] de 500 anos,
o inconsciente familiar numa de 5.000 anos» (Todd, op. cit., p.27).
Por tudo isto, não é de estranhar que Emmanuel Todd
seja, ainda hoje, um autor deveras inquietante e até maldito, quer para muitos
dos seus colegas de profissão, quer para o sistema mediático oligopolista de
comunicação social do “Ocidente
alargado” e que sejam
muitos os seus ostracizadores e detractores nesses dois meios profissionais. Mas
não precisamos de estar de acordo com Todd em tudo o que diz, ou em muito do
que diz, para reconhecermos tudo (e é muito) o que com ele podemos aprender.
O que acabei de dizer no parágrafo precedente resume a
motivação que me levou a escrever esta nota biográfico-científica sobre
Emmanuel Todd. Julgo que ela ajudará a entender melhor o seu artigo-palestra, Da Rússia, com amor, aqui publicado — o mais recente texto da sua
lavra.
Parte
II
3. Um ponto cego
Posto isto, passo agora a fazer um comentário crítico
de um ponto cego da sua obra. Refiro-me ao seu emprego abundante de uma palavra
que suscita as paixões mais desencontradas e que alimenta enormes confusões
conceptuais que perduram há mais de um século e meio: “comunismo”. E esta confusão
perdura, vale a pena salientá-lo, apesar dos esforços bem-sucedidos que o mais
arguto, competente e rigoroso investigador do comunismo ⎼ o filósofo, economista político, sociólogo,
politólogo e historiador Karl Marx (1818-1883) ⎼ fez para a dissipar.
Um bom exemplo desse ponto cego da obra de Emmanuel Todd
é a expressão communisme
achevé que ocorre na
palestra Antropologia e Realismo Estratégico nas Relações Internacionais”, a qual sobretitulou (com um sorriso irónico para os fãs actuais do agente 007) Da Rússia, com amor. Eu traduzi-a por comunismo realizado (também poderia
traduzir-se por comunismo
consumado).
Esta expressão remete-nos directamente para um dos elos fracos da
argumentação de Emmanuel Todd: a sua deficiente teorização da esfera política (onde
as facetas ideologia, doutrina, instituição e conduta não são adequadamente
destrinçadas), acompanhada por uma frequente confusão e deslize entre categorias económicas
e categorias políticas. Eis dois exemplos tirados de um dos seus livros:
«Ideologia vedeta do século vinte, o
comunismo foi abundantemente analisado. A politologia clássica, incapaz de
explicar o surgimento do fenómeno em tal ou tal país, conseguiu, mesmo assim,
dar dele uma boa descrição, que define, aliás, pela negativa, mas com igual
precisão, a sua antítese económico-política e o seu adversário mundial, o
liberalismo anglo-saxónico.
Lado
comunismo: ausência de liberdades políticas, religiosas e económicas
elementares. Submissão igualitária dos indivíduos ao Estado. Partido único e
inamovível.
Lado
liberalismo: exercício livre pelos indivíduos de direitos políticos, religiosos
e económicos. Horror do Estado encarado como uma necessidade técnica mas também
como uma ameaça. Alternância rápida de partidos diferentes no poder graças au
sistema electivo» [2].
Na página 69 do mesmo livro, pode ler-se:
«O
que é o comunismo? A ditadura do proletariado, respondiam os pequenos
manuais da 3.ª Internacional. Proponho aqui uma outra definição que parece
coincidir melhor com a realidade sociológica e geográfica do fenómeno: o
comunismo é a transferência para o partido-Estado das características morais e
dos mecanismos de regulação da família comunitária exogâmica». [destaques
a traço grosso acrescentados ao original, n.e.] [n.e.=
nota editorial]
4. Ditadura do proletariado
Tudo está errado nestas duas citações. “Ditadura do proletariado” é um oxímoro,
uma expressão abstrusa que enlaça dois conceitos de níveis categorialmente
diferentes (político-institucional vs socio-económico) e mutuamente incongruentes
para os efeitos discursivos pretendidos pelos seus defensores.
1) “Ditadura” era um
dispositivo constitucional inventado pela República Romana Antiga que atribuía,
transitoriamente, plenos poderes a um magistrado de confiança, denominado “ditador” (porque
passava a ser ele a ditar as leis e a tomar todas as decisões importantes), para
enfrentar com êxito uma situação de emergência interna ou externa considerada
de grande perigosidade para a segurança e estabilidade da República.
2) “Proletariado” era também
um termo da Roma antiga. Segundo Cícero, a palavra latina proletarius/proletarii (proletário/proletários),
que deriva de proles (prole,
linhagem, os filhos), teria sido inventada pelo sexto rei de Roma, Sérvio Túlio
(Servius Tulius, 579-535 a.C.), para designar, no quadro da sua reforma militar
e censitária do reino, os membros da sexta e última classe do censo, a mais
pobre de todas, que estavam isentos de imposto por não possuírem terras nem
fortuna pecuniária e que não tinham direitos políticos pela mesma razão. Sérvio
Túlio apelidou de ‘proletários’ os cidadãos
romanos desta classe censitária, «para fazer ver que só lhes era pedido que dessem
filhos e uma posteridade ao Estado». Na primeira metade do século
XIX, são criados os termos classe
proletária e proletariado em França e na
Prússia (hoje Alemanha). Com eles
pretendia-se designar os trabalhadores assalariados, sem terra e sem outros
meios de produção individual, a classe mais numerosa, ou em vias de se tornar a
mais numerosa, nos países europeus onde o modo capitalista de produção (ou “o capitalismo”, para
abreviar) estava mais desenvolvido e também, porventura, a classe mais pobre.
Hal Draper (1914-1990) fez dois estudos minuciosos das
poucas ocorrências da expressão “ditadura do proletariado” na obra de Karl Marx e do seu fiel amigo e colaborador, Friedrich Engels [3], e eu próprio abordei, a traços largos, essa questão noutra
ocasião [4]. Remeto os
leitores interessados para esses artigos.
Aqui, limitar-me-ei a salientar duas coisas.
1.ª) Se “A emancipação dos trabalhadores é obra dos próprios
trabalhadores” (o lema que Marx propôs para a Associação Internacional dos Trabalhadores
[AIT] e que foi aceite), então, a designação de um ditador, ou de um colectivo
de ditadores (com o nome de “Partido Comunista” ou outro qualquer), investido(s)
de plenos poderes ‒ ainda que com a alegação de se tratar de uma situação
transitória ‒ para agir em nome dos “superiores interesses do proletariado”,
conduzirá a tudo menos à sua auto-emancipação.
2.ª) Só
por ignorância crassa ou má-fé se poderá aceitar como boa a resposta “a ditadura do proletariado” à pergunta,
“o que é o comunismo?”. Nem sequer
os partidários mais fervorosos da “ditadura do proletariado”, incluindo Nikolai Boukharine e
Eugenii Preobajensky ⎼ os autores do ABC do Comunismo, o grande manual enciclopédico (e não “um pequeno
manual” como sugere Todd) publicado, em 1920, pela 3.ª Internacional, que foi distribuído
em centenas de milhares de exemplares tanto dentro da União Soviética (18
edições) como fora dela (traduzido em 20 línguas estrangeiras) ‒, sustentaram
alguma vez tamanho disparate.
5. Liberalismo e Comunismo
Passemos, agora, a examinar as noções de “liberalismo” e “comunismo” que Emmanuel Todd situa, erradamente, no mesmo plano
conceptual.
“Liberalismo” é o nome de
uma doutrina que faz a apologia da oligocracia electiva liberal, no
plano político, e do modo capitalista de produção e apropriação de bens e
serviços, no plano económico.
“Comunismo” é o nome (melhor
dizendo, um dos nomes possíveis, entre outros, [e.g., “socialismo,” “colectivismo,” “anarquismo,” “associativismo,” “cooperativismo”] e não necessariamente o melhor nome) de um modo de produção e
apropriação de bens e serviços cujas condições materiais (tecnológicas e
sociais) se formaram naturalmente no decurso do desenvolvimento do modo capitalista
de produção e apropriação.
Essas condições materiais são, fundamentalmente, três:
(i) a maquinofactura (vulgo, indústria),
filha do desenvolvimento da ciência e da tecnologia
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Sinergia entre trabalhadores e maquinaria na produção de automóveis na fábrica AutoEuropa da Volkswagen, em Palmela, Portugal. Fonte da foto: Portugal Global. |
(ii) o desenvolvimento tecnológico trifacetado
da maquinofactura (indústrias de base, indústrias intermediárias, indústrias de
bens de consumo), alimentada por formas variadas de energia ⎼ cinética, térmica, química, eléctrica, nuclear ⎼ e capaz, por isso, de produzir em larga escala massas
enormes de bens duráveis e não duráveis, além de uma vastíssima gama de serviços, destinados a satisfazer as necessidades
da população humana;
(iii) a enorme expansão concomitante de
uma classe de trabalhadores “sem
eira nem beira”, exclusivamente dependentes, para a sua sobrevivência e reprodução, do
aluguer da sua força de trabalho aos proprietários dos meios de produção
industrial.
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Raoul Julien, um menino trabalhador assalariado fotografado em 1909, numa maquinofactura têxtil de Burlington, Vermont, EUA. Repare-se que está descalço porque os sapatos ainda eram, nesta época ⎼ 38 anos depois da data de feitura do quadro que se pode ver abaixo ⎼ um luxo para estas crianças proletárias. A foto é do incansável sociólogo e fotógrafo amador Lewis Wickes Hine (1874-1940) |
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No último terço do século XIX, nas zonas rurais dos EUA (como também até ao final dos anos 1950 em Portugal), ainda eram muitas as crianças das classes trabalhadoras que iam à escola primária descalças, como nos mostra este magnífico quadro a óleo do pintor americano Winslow Homer (1836-1910), intitulado The Country School [A Escola Rural] de 1871. |
Mais: o modo capitalista de produção e apropriação não
criou apenas (embora sem querer) as condições materiais da sua superação pelo
modo comunista de produção (ou «modo associativo de produção» ou «modo cooperativo de produção», como lhe
chamou Karl Marx), baseado na «associação de produtores livres e iguais» (APLI,
para abreviar).
O modo capitalista de produção criou também (e também
sem querer) as condições mínimas necessárias para que a sua componente humana
mais importante (a classe dos trabalhadores assalariados, mencionada mais acima
em [iii]) fizesse a demonstração prática, embora em pequena escala, da
viabilidade económica (em termos de produtividade do trabalho) e da
superioridade política (em termos da liberdade e igualdade dos produtores) do
modo associativo de produção que lhe poderá suceder.
Na verdade, durante os primeiros anos da Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT), que desenvolveu a sua actividade
de 1864 a 1876, Marx descobriu o protótipo do modo cooperativo de produção baseado
na APLI nas cooperativas de produção de trabalhadores. Na Alocução
Inaugural da AIT, Marx salienta de forma extremamente elogiosa as «fábricas cooperativas» como sendo «grandes experiências sociais
premeditadas» [“great social experiments” no original]. No volume 3 de O Capital,
escrito no mesmo período em que foram escritos os documentos fundadores da AIT,
Marx considerou as cooperativas de produção como sendo uma forma transitória
para o modo associativo de produção.
«As
sociedades anónimas capitalistas [firmas onde o capital é dividido
em acções que podem ser negociadas livremente (sociedades anónimas de capital
aberto) ou que são detidas por um grupo limitado de accionistas (sociedades
anónimas de capital fechado), n.e.], assim como as fábricas cooperativas, devem ser
vistas como formas transitórias do modo capitalista de produção para um modo
associativo de produção; simplesmente num caso, a oposição [entre o capital e o trabalho, n.e.] é abolida de uma
forma negativa, e no outro, de uma forma positiva». [5]
Em especial, as fábricas cooperativas, sublinhou,
«mostram
como, numa determinada fase do desenvolvimento das forças materiais de produção
– e das formas sociais de produção que lhes correspondem – se desenvolve um
novo modo de produção que foi formado naturalmente a partir do velho», onde «a oposição entre o capital e o
trabalho foi abolida». Na alocução inaugural da AIT, Marx deixou claro que
as cooperativas de produção «mostram
praticamente» a superação do capitalismo por «uma associação de produtores livres e iguais» e que «a produção cooperativa» «ataca os
alicerces [do capitalismo]».
Daqui se segue que o comunismo ⎼ ou seja, o modo cooperativo de produção e apropriação de bens e
serviços por associações de produtores livres e iguais que trabalham com meios de
produção industrial (e também terra [na actividade agrícola, florestal, ganadeira e mineira]) que possuem em comum e com base num plano racional discutido
e aprovado democraticamente ‒ é antitético do capitalismo,
no seio do qual, porém, nasceu e se desenvolve embrionariamente.
Consideremos as cooperativas de produção actualmente existentes,
em especial as fábricas cooperativas que são o seu tipo mais complexo — por
exemplo, a fábrica cooperativa SCOP-TI, em Gémenos, nas Bouches-du-Rhône, ou a fábrica
cooperativa ACOME, em Mortain-Bocage, Manche, ambas em França.
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ACOME é uma fábrica cooperativa especializada na produção de cabos de alta tecnicidade e de fibra óptica para o sector automóvel e das telecomunicações. Tem a particularidade de ser a maior sociedade cooperativa de França e de pertencer a 100% aos seus mais de 2.000 sócios-trabalhadores. Foto: Acome.2019 |
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SCOP-TI é uma fábrica cooperativa especializada na produção de chá e infusões naturais. Tem a particularidade de ter resultado de uma luta de 1336 dias dos seus trabalhadores para a salvarem do fecho pelos seus anteriores proprietários: o grupo Unilever. 1336 é agora o nome da marca dos chás e infusões produzidos na fábrica que, desde 2014, pertence a 100% aos seus 47 sócios-trabalhadores. Foto: Scop-Ti. |
Julgo que não é difícil imaginarmos, com base na observação destas e de outras fábricas cooperativas (e apesar de todas as limitações decorrentes de operarem num
ambiente industrial, comercial e
comunicacional que lhes é profundamente hostil), que a forma capitalista da
sociedade pode ser abolida para dar lugar
― ao «sistema
republicano e beneficente da associação de produtores livres e iguais» [6];
― a «uma sociedade composta por
associações de produtores livres e iguais que levam a cabo a sua actividade
socio-económica com base num plano comum e racional» [7].
Por conseguinte, o agente do comunismo, tal como Marx
o entendeu, não é uma abstracta “sociedade” ou um “Estado” que detém a
propriedade dos meios industriais de produção e da terra. Também não é um “partido de vanguarda” que dirige
sozinho, instalado na cúpula desse Estado, os organismos de planificação estatal
da produção de acordo com a sua interpretação dos “superiores interesses do proletariado”.
É, como vimos, a associação dos produtores livres e
iguais, as associações cooperativas unidas que levam a cabo a sua actividade socioeconómica
com meios industriais de produção (e terra agricultável e minerável) que
possuem em comum e com base num plano comum e racional discutido e aprovado
democraticamente.
Assim sendo, é fácil de ver que regimes que Emmanuel
Todd considera como sendo exemplos de “comunismo realizado” (como, por
exemplo, [1] a ex-URSS, [2] a ex-República Socialista Federativa da Jugoslávia,
[3] a ex- República Popular da Albânia,
[4] a República Popular da China, [5] a República Socialista do Vietnam ou [6] a
República de Cuba) não têm nada em comum (casos [1], [3],[4], [5], [6]) ou têm muito
pouco em comum (caso [2]) com o comunismo
— aliás, o modo cooperativo de produção
baseado na APLI que foi identificado por Marx no útero do modo capitalista de
produção cujo funcionamento explicou e descreveu meticulosamente em milhares de
páginas.
Isto conduz-nos a uma última consideração sobre a
relação entre comunismo e capitalismo. Embora o comunismo (na acepção marxiana
do termo, a única que considero válida pelas razões apontadas) seja antitético
do capitalismo, não se opõe à ideia de liberdade sustentada pelo liberalismo.
Pelo contrário, para Marx o comunismo expande a ideia liberal-burguesa da
liberdade, levando-a até aos seus limites lógicos, que nunca podem ser
atingidos no âmbito do capitalismo.
Isso acontece porque, dentro do
capitalismo, as liberdades mais exaltadas pelo liberalismo ⎼ a liberdade
económica de criar, comprar e vender bens e serviços e a liberdade política de escolher
quem governa ⎼ são liberdades parciais, instáveis
e provisórias, por duas ordens de razão.
São liberdades parciais porque pressupõem que seja
mantida a separação dos produtores (que são, na sua grande maioria, trabalhadores
assalariados) relativamente aos meios industriais de produção de bens e
serviços que eles operam e que asseguram as suas condições materiais de
existência, mas que não lhes pertencem.
São liberdades instáveis e provisórias porque, caso
essa separação seja posta em causa pelos produtores em busca da condição
fundamental das suas liberdades (a de constituírem
«uma associação de homens livres que
trabalham com meios de produção que possuem em comum, e que dispendem as suas
diferentes formas de força de trabalho com plena auto-consciência e como uma
única força de trabalho social») [8] todas essas liberdades parciais são imediatamente restringidas, suspensas
ou violentamente suprimidas pelos chamados “poderes fácticos”.
6. Resumindo e concluindo
Em resumo, o “mapa do comunismo realizado” que Todd construiu e a “derrocada do comunismo” que ele diz
ter previsto são construtos fictícios, sem correspondência com a realidade. Só podem ser recuperados do cesto de papéis amachucados
para onde devem ser atirados, se começarmos por admitir duas coisas:
a) que o “mapa do comunismo realizado” de Todd não cobre
o comunismo, como ele afirma erradamente, porque o comunismo ⎼ ou seja, uma vez mais, o modo cooperativo de produção de bens e serviços por associações
de produtores livres e iguais, que trabalham com meios industriais de produção (e
terra) que possuem em comum e com base num plano racional e comum, discutido e
aprovado democraticamente ⎼ nunca foi
realizado, até à data, em parte nenhuma, à escala de um país inteiro, ou, por maioria de razão, à escala de vários países.
b) que a “derrocada da União Soviética” que Todd previu, de
certa maneira, em 1976 [9], não é equivalente, como ele afirma
erradamente, à “derrocada do comunismo”, mas à derrocada
de outra coisa bem distinta do comunismo e que merece, como tal, ter um nome adequado
que lhe seja próprio e, sobretudo, ser estudada no que tem (/teve) de original
e específico.
Que coisa? A questão não pode ser respondida aqui.
Exigiria um livro inteiro. Contentar-me-ei, por conseguinte, em dar-lhe um nome
provisório tão-somente para fixarmos as ideias, separarmos o trigo do joio e facilitarmos
a conversação. O nome que sugiro foi proposto por George Orwell, o númen
inspirador deste blogue: colectivismo oligárquico,
ou, como prefiro dizer (mas que vem a ser o mesmo) colectivismo
oligocrático, para que possa rimar (e contrastar) com um futuro colectivismo democrático — «um grande e harmonioso sistema de trabalho livre e cooperativo» [10].
Assim sendo, «la décomposition de la sphère soviétique» [a
desagregação da esfera soviética] a que Emmanuel Todd dedicou um livro 15 anos
antes da sua ocorrência, foi, na verdade, a desagregação de todas as formas de
colectivismo oligocrático que vigoraram durante muitas décadas nos 15 países
que formavam a ex-União Soviética (1917-1991) e nos 7 países que formavam com
ela o ex-Pacto de Varsóvia (1955-1991).
Regressemos, então, ao “mapa do comunismo realizado” de Todd, sabendo agora que tem um
título errado e enganoso. Deveremos atirá-lo
para o cesto de papéis que deixaram de ter préstimo? Ou existem razões para
salvá-lo desse triste destino, uma vez separado desse título?
Julgo que devemos responder “não” à primeira pergunta
e “sim” à segunda. Isto porque o que o mapa de Todd sugere ou indica, de facto,
uma vez liberto do seu erro de julgamento, é que existe uma forte correlação
estatística
(i) entre, por um lado, a implantação
eleitoral, em certas regiões, de partidos que se autodenominam comunistas e,
por outro, um certo tipo de família (a família comunitária exogâmica) predominante
nas regiões de maior implantação eleitoral desses partidos;
e que existe uma
(ii) prevalência numérica desse mesmo
tipo de família na população de Estados onde vigoraram ou vigoram formas de
organização económica social e política típicas do colectivismo oligocrático.
Se se vier a concluir que as proposições (i) e (ii)
são verdadeiras ⎼ o que exigirá,
certamente, uma aturada investigação empírica para além daquela que Todd
efectuou ⎼ a conclusão constituirá uma
descoberta interessante e valiosa, até pelo seu carácter inusitado e deveras intrigante
para quem não está familiarizado com os trabalhos de Emmanuel Todd. É que,
embora refutando e corrigindo as conclusões originais de Todd sobre o assunto, esse
veredicto não deixa de ser um êxito a creditar na conta da sua teoria dos três níveis
societais e, em particular, da relação, por ele descoberta, entre os sistemas
familiares e os sistemas ideológicos.
É como se Emmanuel Todd tivesse descoberto uma coisa verdadeiramente
nova, mas que não é, ou não é no essencial, o que ele julga que é. Neste
sentido, o caso de Todd é, neste particular, reminiscente do caso de Cristovão Colombo.
É sabido que Colombo, quando chegou às Bahamas, na América do Norte, julgou ter
chegado à Índia, por uma rota diferente da que tinha sido descoberta por Vasco da Gama. Colombo manteve essa crença até ao fim
da sua vida. Espero que não aconteça o mesmo com Todd no que respeita à sua
equivocada caracterização do comunismo.
…………………………………………………………………………………………….
Notas e Referências
[1] Emmanuel
Todd, Où en
sommes-nous? Une esquisse de l’histoire humaine. Paris, Éditions du
Seuil, 2017, p.21(traduzido em português como Onde Estamos?
Uma outra visão da história humana. Editor: Temas e Debates, 2018).
[2] Emmanuel Todd,
La Diversité du Monde. Structures familiales et modernité. Éditions
Seuil. 2017, p.32.
[3] Hal Draper, “Marx and the Dictatorship of the Proletariat”. New Politics,
Vol. 1, N. º 4, Summer 1962, pp. 93 ff); Hal Draper, “The ‘Dictatorship of the
Proletariat’ in Marx and Engels”. Chapter 1 of “The ‘Dictatorship of the
Proletariat’ from Marx to Lenin”, by Hal Draper, Monthly Review Press,
1987.
[4] José Catarino
Soares, “O que fazer com a obra de Karl Marx nos tempos que correm, 200 anos
depois do seu nascimento? -Parte I-”. Tertúlia Orwelliana, 21 Junho,
2018
https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2018/06/tema-4-o-que-fazer-com-obra-de-karl_20.html
[5] Karl Marx, Capital.
Vol. 3 (Fn. 7), p. 572 (MEGA➁ II/4.2, p.
504)
[6] Karl Marx,
“Instructions for the Delegates of the Provisional General Council. The
Different Questions”. In: MEGA➁ I/20, p. 232.
[7] Karl Marx,
“The Nationalization of the Land”. In: MECW. Vol. 23, p. 136).
[8] Karl Marx. Capital. Vol. 1 (Fn. 6), p. 171 (MEGA➁ II/6, p. 109)
[9] Emmanuel
Todd, La chute
finale. Essai sur la décompositionde la sphère soviétique. Robert Laffont, 1976. Reedição
em 2004.
[10] Karl Marx, “Instructions for
the Delegates of the Provisional General Council. The Different Questions”. In:
MEGA➁ I/20, p. 232.