Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

23 julho, 2015

Tema 3

O HUMILHANTE E CALAMITOSO ACORDO IMPOSTO À GRÉCIA 


Os governos do Eurogrupo impuseram à Grécia um humilhante e calamitoso acordo de rendição. O 1º ministro grego, Alexis Tsipras, acabou por capitular, depois do seu povo lhe ter dado, em Janeiro, uma maioria no parlamento por ter prometido não aceitar mais «austeridade», e, em Julho, força e legitimidade muito acrescidas no referendo para poder resistir à pressão para aceitar o inaceitável. 

Os mais benevolentes afirmam: «Tsipras não tinha outra opção diante da força bruta dos seus 18 "parceiros" da chamada zona Euro, apostados em mostrar que não há alternativa à chamada "austeridade". Fez tudo o que podia para resistir, mas acabou por ter de capitular para evitar o pior: a asfixia financeira do país e o caos que se lhe seguiria». 

Mas também se pode dizer, com igual ou maior verdade, que Tsipras não esteve a altura das circunstâncias e que foi vítima das suas ilusões, grandes e funestas ilusões: 

- nos « benefícios do euro»  (uma moeda única que favorece principalmente a Alemanha)
- nas vantagens da « soberania partilhada » (uma folha de parra destinada a encobrir a nudez forte do facto de a « Europa » ser politica e economicamente comandada pela Alemanha), 
- na « solidariedade europeia » (que existe, de facto, e é muito generosa, sempre que se trata de acudir aos interesses dos bancos e das empresas multinacionais à custa do erário público e dos direitos e proventos da maioria da população).   

Estas ilusões explicam provavelmente por que razão Tsipras não preparou qualquer plano (como o seu ex-ministro das finanças lhe sugeriu) para a eventualidade de não conseguir a anuência da « zona euro » para uma reestruturação da dívida da Grécia que lhe permitisse sair da espiral do empobrecimento progressivo e infindável. Confiou, até ao fim, na boa vontade e na racionalidade dos seus "parceiros" europeus, cuja vontade única e único racional de actuação eram o de o fazer capitular, custasse o que custasse. As únicas divergências entre os 18 « parceiros » diziam respeito à dose de « austeridade » a aplicar, uma vez descartada a alternativa defendida pelo ministro alemão das finanças, o « democrata-cristão » Schäuble, de expulsar a Grécia da zona Euro (uma alternativa vetada  por Merkel, Hollande e Renzi, que a consideraram como demasiado arriscada e mesmo aventureira) e só depois negociar o pacote de « austeridade ». 


Tsipras meteu-se, assim, numa situação impossível. Trocou o seu moderado programa eleitoral (acabar com a « austeridade ») por mais austeridade, em nome da permanência no Euro e da promessa que terá, um dia, um alívio na dívida odiosa e ilegal que os políticos corruptos que o antecederam contraíram para salvar os bancos estrangeiros (alemães, franceses, etc.) e gregos e encher os bolsos da oligarquia grega e internacional. Sim, esse alívio na dívida acabará por chegar, um dia, quando o acordo tiver produzido os seus efeitos devastadores.

A maioria do povo grego, a acreditar nas sondagens, parece ter-lhe perdoado o facto de ter capitulado, atendendo às circunstâncias e ao modo como o fez. Mas não é plausível que essa magnanimidade possa durar. 

Para já terá de governar contra uma parte importante dos deputados da sua coligação, que acabará por se esfrangalhar, e de se apoiar nos deputados dos partidos pró-austeridade que o povo grego derrotou nas eleições e no referendo para poder aprovar as medidas que se comprometeu a aplicar.

E terá de se haver sobretudo com o seu povo, agora que aceitou tudo: vender os portos e os aeroportos, privatizar a companhia pública da electricidade, acabar com o complemento solidário para os idosos com pensões muito baixas, cortar ainda mais nas pensões de aposentação, modificar ainda mais as leis laborais a favor do patronato, cortar ainda mais nos salários dos trabalhadores da função pública, reverter as medidas que tomou desde que foi eleito para fazer frente os efeitos da crise humanitária, adoptar legislação que contorne os acordãos do tribunal constitucional do seu país, subir o IVA de quase tudo, eliminar o factor de insularidade (as ajudas fiscais às ilhas para compensar o preço acrescido dos fretes) e vender ou hipotecar 50 mil milhões de euros em propriedades e bens do Estado grego (que parece não ter sequer património que valha metade desse valor) para pagar aos generosos prestamistas.

A cara sempre sorridente de Tsipras agora é esta.

Não é caso para menos. Traíu o mandato que o povo lhe deu. 

Segue o documento que o Eurogrupo o fez assinar, com as anotações de Yanis Varoufakis que descodificam a língua de pau em que está escrito. A tradução do documento é do Infogrécia. A tradução das anotações de Varoufakis é do autor deste blogue a partir do original. As notas foram também acrescentadas ao texto original pelo autor deste blogue.

23-07-2015



O “acordo” de Bruxelas sobre a Grécia  (anotado por Yanis Varoufakis)


15 Julho, 2015

O ex-ministro das Finanças grego decidiu dar a conhecer as suas notas pessoais [a vermelho] sobre o texto que serviu de « acordo » do Eurogrupo com a Grécia e no qual, poucos dias depois, já quase ninguém diz acreditar.

A Cimeira do Eurogrupo sublinha a necessidade crucial de restabelecer a confiança com as autoridades gregas [i.e. o governo grego deve introduzir novas medidas de austeridade severa dirigida contra os mais fracos, que já sofreram gravemente], como pré-requisito para um eventual acordo futuro sobre um novo programa do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) [i.e. para um novo empréstimo-para-adiar-e-fazer-de-conta].

Neste contexto, é fundamental que as autoridades gregas assumam as suas responsabilidades [i.e. o governo do Syriza deve assinar uma declaração a dizer que passou a adoptar a “lógica” da troika] e que os compromissos políticos sejam seguidos de uma aplicação bem sucedida.

Um Estado-Membro da área do euro que solicite assistência financeira do MEE deverá apresentar, sempre que possível, um pedido semelhante ao FMI. Esta é uma condição prévia para o Eurogrupo chegar a acordo sobre um novo programa do MEE. Consequentemente, a Grécia solicitará a assistência continuada do FMI (acompanhamento e financiamento) a partir de março de 2016 [i.e. Berlim continua a acreditar que a Comissão não é de confiança para fazer de “polícia” dos próprios programas de “resgate” europeus].

Dada a necessidade de restabelecer a confiança com a Grécia, a Cimeira do Euro saúda os compromissos assumidos pelas autoridades gregas no sentido de legislarem sem demora sobre um primeiro conjunto de medidas [i.e. a Grécia deve sujeitar-se ao sufoco orçamental, mesmo antes de ser garantido algum financiamento]. As referidas medidas basear-se-ão integralmente num acordo prévio com as Instituições e incluirão:

até 15 de julho

– a racionalização do sistema do IVA [i.e. torná-lo mais recessivo através de aumentos de taxas que encorajam uma maior evasão a este imposto] e o alargamento da base de tributação para aumentar as receitas [i.e. desferir um golpe profundo à única indústria em crescimento da Grécia – o turismo];

– a adopção de medidas imediatas para melhorar a sustentabilidade a longo prazo do sistema das pensões, no âmbito de um vasto programa de reforma das pensões [i.e. reduzir as pensões mais baixas, ignorando que a razia no capital dos fundos de pensões se deveu ao PSI * da troika em 2012 e aos efeitos nefastos da queda no emprego e do trabalho não declarado];

– a garantia da total independência jurídica do ELSTAT (autoridade estatística grega)[i.e. a troika exige controlo absoluto sobre a forma como o equilíbrio orçamental é calculado, para assim controlar por inteiro a magnitude da austeridade que impõe ao governo];

– a plena aplicação das disposições pertinentes do Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, em particular, tornando o Conselho Orçamental plenamente operacional antes da finalização do Memorando de Entendimento e introduzindo cortes quase automáticos nas despesas no caso de desvios em relação aos objectivos ambiciosos para o saldo primário, depois de consultado o Conselho Orçamental e sob reserva de aprovação prévia pelas Instituições [i.e. o governo grego, que sabe que as metas orçamentais impostas nunca serão atingidas com a austeridade imposta, deve comprometer-se a aplicar novas e automáticas medidas de austeridade que resultem de novos falhanços da troika];

até 22 de julho

– a adopção do Código de Processo Civil, que representa uma importante reformulação dos procedimentos e disposições do sistema de justiça civil e pode acelerar significativamente o processo judicial, bem como reduzir os custos [i.e. execuções de hipotecas, despejos e liquidação de milhares de lares e de empresas que não estejam em condições de continuar a pagar as suas hipotecas/ empréstimos];

– a transposição da Directiva Recuperação e Resolução Bancárias, contando com o apoio da Comissão Europeia.

Somente após a aplicação jurídica das primeiras quatro medidas supramencionadas e a aprovação pelo Parlamento grego, bem como a verificação pelas Instituições e o Eurogrupo, de todos os compromissos incluídos no presente documento se poderá tomar, de forma imediata, a decisão de mandatar as Instituições para negociar um Memorando de Entendimento [i.e. o governo do Syriza deve ser humilhado tanto quanto lhe for pedido que o faça para impor uma dura austeridade como primeiro passo para pedir outro empréstimo tóxico, do mesmo tipo dos que o Syriza ficou internacionalmente famoso por combater].

A tomada dessa decisão ficará sujeita à conclusão dos procedimentos nacionais e ao cumprimento das condições prévias estabelecidas no artigo 13.º do Tratado MEE, com base na avaliação a que se refere o n.º 1 desse artigo. Para que haja uma base para a celebração bem-sucedida do Memorando de Entendimento, as medidas de reforma propostas pela Grécia precisam de ser seriamente reforçadas para terem em conta a situação económica e orçamental do país, que se deteriorou gravemente durante o último ano [i.e. o governo do Syriza deve aceitar a mentira de que foi ele, e não as tácticas de estrangulamento dos credores, que causou a deterioração aguda da economia nos últimos seis meses – ou seja, pede-se à vítima que assuma a culpa em lugar do agressor].

O Governo grego precisa de se comprometer formalmente a reforçar as suas propostas [i.e. a torná-las mais recessivas e desumanas] numa série de domínios identificados pelas Instituições, com um calendário claro e satisfatório para a adopção de legislação e a sua aplicação, incluindo marcos de referência estruturais, etapas e marcos de referência quantitativos, a fim de haver clareza quanto à orientação das políticas a médio prazo.

Em acordo com as Instituições, necessita nomeadamente de:

– levar a cabo ambiciosas reformas [i.e. cortes] das pensões e especificar políticas para compensar integralmente o impacto orçamental da decisão do Tribunal Constitucional sobre a reforma das pensões de 2012 [i.e. cancelar a decisão do Tribunal a favor dos pensionistas] e implementar a cláusula de “défice zero” [i.e. cortar em 85% o complemento solidário para idosos que o governo do Syriza defendeu com unhas e dentes nos últimos cinco meses] ou medidas alternativas mutuamente aceitáveis [i.e. encontrar vítimas “equivalentes"] até outubro de 2015;

– adoptar reformas mais ambiciosas para o mercado de produtos, com um calendário preciso para a aplicação de todas as recomendações do Guia de Avaliação de Concorrência da OCDE (volume 1) [i.e. as recomendações que a OCDE afastou após ter redesenhado estas reformas em colaboração com o governo do Syriza], incluindo o comércio ao domingo, as épocas de saldos, a propriedade das farmácias, o leite e as padarias, com excepção dos produtos farmacêuticos não sujeitos a receita médica, que serão incluídos numa próxima fase, bem como para a abertura de profissões fechadas que são cruciais no plano macroeconómico (por exemplo, o transporte por ferry). No seguimento do Guia de Avaliação da Concorrência da OCDE (volume 2), a indústria transformadora terá de ser incluída nas ações prévias;

– no que respeita aos mercados da energia, prosseguir a privatização do operador da rede de transporte de eletricidade (ADMIE) exceto se forem encontradas medidas de substituição que tenham efeitos equivalentes na competitividade, conforme acordado pelas Instituições [i.e. a ADMIE será vendida a interesses instalados estrangeiros a mando das Instituições];

– no que respeita aos mercados de trabalho, levar a cabo um reexame e uma modernização rigorosos da negociação coletiva [i.e. assegurar que nenhuma negociação colectiva será permitida], do direito à greve [i.e. que deve ser proíbida] e, em conformidade com a directiva e as melhores práticas da UE nesta matéria, dos despedimentos colectivos [i.e. devem ser permitidos por capricho do patronato], em sintonia com o calendário e a abordagem acordados com as Instituições [i.e. a troika decide].

Com base nestas avaliações, as políticas do mercado de trabalho deverão ser alinhadas pelas boas práticas internacionais e europeias, e não deverão passar pelo regresso a políticas do passado que não são compatíveis com os objetivos da promoção do crescimento sustentável e inclusivo [i.e. não pode haver mecanismos que o trabalho assalariado possa usar para obter melhores condições por parte dos empregadores];

– adoptar as medidas necessárias para reforçar o sector financeiro, nomeadamente medidas decisivas quanto aos empréstimos improdutivos [i.e. um tsunami de execuções fiscais está iminente] e medidas para reforçar a governação do Fundo Helénico de Estabilidade Financeira (HFSF na sigla inglesa) e dos bancos [i.e. o povo grego que sustenta o HFSF e os bancos não terá qualquer controlo sobre o HFSF e os bancos], eliminando, em particular, qualquer possibilidade de ingerência política, sobretudo nos processos de nomeação [i.e. à excepção da interferência política da troika]. Além disso, as autoridades gregas devem tomar as seguintes medidas:

– desenvolver um programa de privatizações significativamente reforçado e com uma melhor governação. Serão transferidos ativos gregos de valor para um fundo independente que monetizará os ativos através de privatizações e de outros meios [i.e. um Treuhand à moda da Alemanha de leste deverá vender toda a propriedade pública mas sem os investimentos equivalentes que a Alemanha Ocidental fez na Alemanha Oriental em compensação pelo desastre do Treuhand **]. A monetização dos activos será uma das fontes para proceder ao reembolso agendado do novo empréstimo do MEE, e gerar, em todo o ciclo de vida do novo empréstimo, um total que se pretende que atinja os 50 mil milhões de EUROS, dos quais 25 mil milhões serão usados para o reembolso da recapitalização dos bancos e outros ativos e 50% de cada euro remanescente (ou seja, 50% de 25 mil milhões de EUROS) serão usados para reduzir o rácio dívida/PIB e os restantes 50% serão usados para investimentos [i.e. a propriedade pública será vendida e as magras receitas vão para o serviço de uma dívida impagável – nada sobrando para o investimento público ou privado]. Este fundo será estabelecido na Grécia e gerido pelas autoridades gregas sob a supervisão das Instituições europeias pertinentes [i.e. ficará em nome da Grécia, mas, tal como o HFSF e o Banco da Grécia, será controlado em absoluto pelos credores]. Mediante acordo com as Instituições e com base nas melhores práticas internacionais, deverá ser adoptado um quadro legislativo para garantir a transparência dos procedimentos e a adequada fixação do preço de venda dos ativos, de acordo com os princípios e normas da OCDE em matéria de gestão das empresas públicas [i.e. a Troika fará como bem lhe aprouver];

– em consonância com as ambições do Governo grego, modernizar e reforçar significativamente a administração grega, e implementar um programa, sob os auspícios da Comissão Europeia, para o reforço das capacidades e a despolitização da administração grega [i.e. tornar a Grécia numa zona onde a  democracia deixou de existir e passou a ser moldada em Bruxelas, uma forma de governo alegadamente tecnocrático, que é politicamente tóxico e inepto do ponto de vista macroeconómico]. Deverá ser apresentada uma primeira proposta até 20 de julho, após os debates com as Instituições. O Governo grego compromete-se a reduzir ainda mais os custos da administração grega [i.e. reduzir os salários mais baixos enquanto aumenta um pouco os salários de alguns apparatchiks simpatizantes da troika], em conformidade com o calendário acordado com as Instituições;

– normalizar plenamente os métodos de trabalho com as Instituições, incluindo as necessárias acções no terreno, em Atenas, a fim de melhorar a execução e o acompanhamento do programa [i.e. a troika contra-ataca e exige que o governo grego a convide a regressar a Atenas como Conquistador – a “paz cartaginesa” em todo o seu esplendor]. O Governo precisa de consultar as Instituições e acordar com estas em tempo útil todos os projectos legislativos nos domínios relevantes antes de os submeter a consulta pública ou de os apresentar ao Parlamento [i.e. o parlamento grego deve, uma vez mais, após breves cinco meses de independência, ser um apêndice da troika – aprovando leis traduzidas mecanicamente]. A Cimeira do Euro volta a realçar que a execução é fundamental; nesse contexto, saúda a intenção das autoridades gregas de lançar às Instituições e aos Estados-Membros, até 20 de julho, um pedido de assistência técnica, e pede à Comissão Europeia que coordene este apoio da Europa;

– com excepção da lei da crise humanitária, o Governo grego reexaminará, tendo em vista a sua alteração, a legislação introduzida que é contrária ao acordo de 20 de fevereiro, voltando a alinhá-la pelos anteriores compromissos do programa, ou identificará equivalentes compensatórios claros para os direitos adquiridos que foram subsequentemente criados [i.e. para além de prometer que não voltará a legislar de forma autónoma, o governo grego irá anular retroactivamente as leis que aprovou nos últimos cinco meses].

Os compromissos acima enumerados constituem os requisitos mínimos para encetar as negociações com as autoridades gregas. No entanto, a Cimeira do Euro deixou bem claro que o início das negociações não exclui um eventual acordo final sobre um novo programa do MEE, que terá de basear-se numa decisão sobre a totalidade do pacote (incluindo as necessidades de financiamento, a sustentabilidade da dívida e um eventual financiamento intercalar) [i.e. autoflagelar-se, impor mais austeridade a uma economia esmagada pela austeridade, e depois logo se vê se o Eurogrupo nos enterrará com novos empréstimos tóxicos e insustentáveis].

A Cimeira do Euro toma nota das possíveis necessidades de financiamento do programa, que oscilam entre 82 e 86 mil milhões de EUROS de acordo com a avaliação das Instituições [i.e. o Eurogrupo fez aparecer um número gigantesco, bem maior que o necessário, para assinalar que a reestruturação da dívida está afastada e que a escravidão da dívida ad infinitum é a regra do jogo]. A Cimeira do Euro convida as Instituições a explorar as possibilidades de reduzir o pacote de financiamento através de uma via orçamental alternativa ou de um aumento das receitas das privatizações [i.e. pois sim, e até pode ser possível que os porcos consigam voar]. O restabelecimento do acesso aos mercados, que constitui um objectivo de qualquer programa de assistência financeira, reduz a necessidade de utilizar à totalidade do envelope de financiamento [i.e. o que é algo que os credores farão tudo para evitar, por exemplo assegurando que a Grécia só entrará no programa de ‘quantitative easing’ do BCE em 2018, quando o ‘quantitative easing’*** chegar… ao fim].

A Cimeira do Euro toma nota das prementes necessidades de financiamento da Grécia, que realçam a necessidade de progredir muito rapidamente na obtenção de uma decisão sobre um novo Memorando de Entendimento: de acordo com as estimativas, são necessários 7 mil milhões de EUROS até 20 de julho e mais 5 mil milhões de EUROS até meados de agosto [i.e. “adiar-e-fazer-de-conta”, aqui em nova versão]. A Cimeira do Euro reconhece a importância de assegurar que o Estado soberano grego possa pagar ao FMI e ao Banco da Grécia os montantes em atraso e honrar as suas obrigações de dívida nas próximas semanas, a fim de criar condições que permitam uma conclusão ordenada das negociações. Se as negociações não forem concluídas rapidamente, será a Grécia a suportar todos os riscos [i.e. uma vez mais, pedem que a vítima assuma a culpa em lugar do agressor]. A Cimeira do Euro convida o Eurogrupo a debater urgentemente estas questões.

Atendendo aos graves desafios com que se depara o sector financeiro grego, o pacote total de um possível novo programa do MEE teria de incluir o estabelecimento de uma reserva de 10 a 25 mil milhões de EUROS para o sector bancário a fim de responder às potenciais necessidades de recapitalização bancária e aos custos de resolução, sendo que 10 mil milhões desse montante seriam disponibilizados imediatamente numa conta separada no MEE [i.e. a troika admite que a recapitalização dos bancos em 2013-2014, que, segundo ela, só necessitaria no máximo de uns 10 mil milhões, foi insuficiente – mas, como é óbvio, deita as culpas… ao governo do Syriza].

A Cimeira do Euro está ciente de que uma rápida decisão sobre o novo programa é uma condição para permitir a reabertura dos bancos, evitando assim um aumento do pacote de financiamento total [i.e. A troika fechou os bancos da Grécia para obrigar o governo do Syriza a capitular e agora clama pela sua reabertura]. O BCE/MUS procederá a uma avaliação completa depois do verão. A reserva global permitirá suprir os eventuais défices de capital na sequência da avaliação completa efetuada depois de o quadro legal ter sido aplicado.

Existem graves preocupações quanto à sustentabilidade da dívida grega [N.B. A sério? Ena!]. Isso deve-se ao afrouxamento das políticas durante os últimos doze meses, o que resultou na recente deterioração do enquadramento macroeconómico e financeiro a nível interno [i.e. não foram os “resgates” de adiar-e-fazer-de-conta de 2010 e 2012 que, juntamente com a austeridade sabotadora do PIB, que levaram a dívida a escalar para picos inimagináveis – foi a perspectiva, e a realidade, de um governo que criticou os empréstimos dos “resgates” de adiar-e-fazer-de-conta que… levaram à Insustentabilidade da Dívida!].

A Cimeira do Euro recorda que os Estados-Membros da área do euro têm adoptado, ao longo dos últimos anos, um considerável conjunto de medidas para apoiar a sustentabilidade da dívida da Grécia, o que facilitou o serviço da dívida grega e reduziu significativamente os custos [i.e. o 1º e 2º programas de “resgate” fracassaram, a dívida disparou como não podia deixar de disparar, já que o verdadeiro objectivo dos programas de “resgate” era transferir as perdas dos bancos para os contribuintes europeus]. Sendo este o pano de fundo, no contexto de um eventual programa futuro do MEE, e em consonância com o espírito da declaração do Eurogrupo de novembro de 2012 [i.e. uma promessa de reestruturação da dívida aos anteriores governos gregos que nunca foi cumprida pelos credores], o Eurogrupo mantém-se disposto a ponderar, se necessário, possíveis medidas adicionais (eventual alargamento dos períodos de carência e dos prazos de pagamento) a fim de assegurar que as necessidades de financiamento brutas se mantenham a um nível sustentável. Estas medidas ficarão dependentes da aplicação integral das medidas a acordar num eventual novo programa, e serão ponderadas após a primeira conclusão positiva da avaliação [i.e. Uma vez mais, a troika deixará o governo grego trabalhar sob uma dívida impagável e quando, em consequência disso, o programa falhar, a pobreza aumentar ainda mais e os rendimentos caírem muito mais, então podemos cortar parte da dívida – como fez a troika em 2012].

A Cimeira do Euro salienta que não podem ser efectuados cortes nominais da dívida [N.B. O governo do Syriza tem vindo a propor, desde janeiro, uma reestruturação moderada da dívida, sem nenhum corte, tirando o máximo partido das previsões do lucro actual líquido gerado pelos reembolsos da Grécia aos credores – o que foi sempre recusado pela troika porque o seu objectivo era, simplesmente, humilhar o Syriza]. As autoridades gregas reiteram o seu inequívoco compromisso de honrar de forma integral e atempada as obrigações financeiras que assumiram para com todos os seus credores [N.B. o que só poderá acontecer após uma reestruturação substancial da dívida]. Desde que estejam reunidas todas as condições necessárias contidas no presente documento, o Eurogrupo e o Conselho de Governadores do MEE podem, em conformidade com o artigo 13.º, n.º 2, do Tratado MEE, conferir mandato às Instituições para negociar um novo programa do MEE, se estiverem reunidas as condições prévias do artigo 13.º do Tratado MEE com base na avaliação referida no artigo 13.º, n.º 1. Para apoiar o crescimento e a criação de emprego na Grécia (nos próximos 3 a 5 anos) [N.B. Após destruírem o emprego e o crescimento nos últimos cinco anos…], a Comissão trabalhará em estreita colaboração com as autoridades gregas para mobilizar um montante que poderá ascender a 35 mil milhões de euros (ao abrigo de vários programas da UE) para financiar o investimento e a actividade económica, incluindo o investimento nas PME [i.e. usará a mesma ordem de grandeza dos fundos estruturais, mais algum dinheiro a fingir, como o que esteve disponível em 2010-2014]. Como medida excepcional e atendendo à situação única da Grécia, a Comissão irá propor um aumento de mil milhões de euros do nível de pré-financiamento para dar um impulso imediato ao investimento, a analisar pelos colegisladores da UE [i.e. dos tais 35 mil milhões anunciados, considerem-se estes mil milhões como dinheiro a sério]. O Plano de Investimento para a Europa**** também proporcionará oportunidades de financiamento para a Grécia [i.e. o mesmo plano a que a maioria dos ministros da zona euro chama um programa fantasma].


NOTAS

* PSI: acrónimo em inglês de « private sector involvement » (“envolvimento do sector privado”). Refere-se à intromissão dos mercados financeiros e outros interesses privados em assuntos de governo, como, por exemplo, as chamadas dívidas soberanas.

** A Treuhand (ou Treuhandanstalt) foi uma instituição pública fiduciária criada na Alemanha de leste em 1990, encarregada de admnistrar e privatizar as empresas e demais património (imóveis, herdades, florestas e farmácias públicas) da Alemanha de leste (ex- RDA). Encerrou as suas actividades em 1994, deixando uma dívida de 275 mil milhões de marcos que só foi amortizada em 2009. 

*** Quantitative easing (flexibilização quantitativa) é um eufemismo escolhido para designar a política monetária que os bancos centrais (como o Banco Central Europeu ou a Reserva Federal Americana) adoptam quando decidem aumentar a oferta de dinheiro em circulação com dinheiro “criado a partir do nada” – “creatio ex nihilo”−, usando-o para comprar activos financeiros, nomeadamente dívida pública, aos bancos comerciais e outras instituições financeiras (p.ex. seguradoras). Funciona desta forma:

Os bancos comerciais e outras instituições financeiras detêm vários biliões de euros, dólares, etc., em obrigações do Tesouro, bilhetes do Tesouro, etc., que seriam difíceis de vender na quantidade que o banco central está disponível para comprar sem provocar uma queda acentuada no seu preço (desvalorização desses activos), pelo que os bancos vão mantendo essas obrigações em carteira.

Então, a dado momento, o banco central, com dinheiro criado a partir do nada, compra essas obrigações e esses títulos do Tesouro e esse dinheiro entra directamente nas contas dos bancos comerciais e outras instituições financeiras em contrapartida pelas obrigações vendidas.

Os bancos comerciais e outras instituições financeiras, passam assim a dispor dessa liquidez, que se espera que decidam usar para financiar as empresas e as famílias, de forma a que possam investir ou a consumir mais, estimulando a economia como um todo.


****Plano de Investimento para a Europa, também conhecido por plano Juncker, 













05 julho, 2015

TEMA 3. A Grécia não existe (dizem alguns), e no entanto move-se...

A Grécia não existe (dizem alguns), 
e no entanto move-se…


Actualmente o assunto mais importante da situação económico-política portuguesa e europeia é o referendo grego e as suas consequências (sejam quais forem os resultados). Tudo o resto são distrações.

1. Era de esperar uma imensa pressão (leia-se, chantagem) para levar o povo grego a votar em maioria pelo “sim” à «proposta generosa» (Merkel dixit)  das instituições-que-antes-se-chamavam-troika: «sim» à continuação infindável da « austeridade », em alternativa à bancarrota (significado do “não”). 

Traduzindo em linguagem mais chã:  «mais vale ser escravo de dívidas que os nossos governantes contraíram em nosso nome, ter de trabalhar a vida inteira para as pagar e deixá-las em herança aos netos (porque duas gerações não vão ser suficientes para as pagar), mas ter um pratinho de sopa todos os dias fornecido pelos credores (que não querem obviamente que o devedor morra), do que ser livre, mas andar andrajoso e passar fome». Foi assim que a alternativa sim/não à pergunta do referendo convocado pelo governo grego foi posta pelas ditas instituições para amedrontar o povo grego. 

Mas a chantagem excedeu as expectativas mais sombrias. Foi um festival de ameaças, fanfarronadas, mentiras descaradas, meias verdades e decisões hostis muito concretas  como não me lembro de ter alguma vez assistido a outro igual desde que adquiri consciência de como está organizado o mundo em que vivemos.

2O sr. Junker, « democrata-cristão », presidente da Comissão Europeia, declarou que « um “não” quer dizer que a Grécia diz “não” à Europa. Peço aos gregos que votem “sim”. porque «se votarem “não” a sua posição negocial fica dramaticamente enfraquecida» (Expresso. 3-07-2015). O sr. Jeroen Dijsselbloem, «social-democrata», ministro das finanças de holandês e presidente do Eurogrupo, veio dizer, na quinta-feira,  que, caso vença o não, o mais provável é que a Grécia « não tenha lugar na zona euro» (Expresso. 4-07-2015). O sr. Klaus Regling, «economista»,  presidente do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), disse hoje (4-07-2015) esperar «um resultado positivo « no referendo de amanhã, domingo, na Grécia porque o país deve continuar a aplicar as «reformas necessárias». Para Regling, se o “não” vencer, « há dúvidas sobre a aplicação das reformas necessárias », porque elas exigem um governo que esteja «convencido» delas, e, como tal, «não haverá resultados positivos para a Grécia» (Diário de Notícias. 4-07-2015). O sr. Martin Schulz, « social-democrata » alemão, presidente do parlamento europeu, mais despachado, preconizou a queda do governo de Tsipras, « que lhe dá cabo dos nervos », e a sua substituição por um governo tecnocrático com o qual as instituições possam chegar a um acordo (AFP. 2-07-2015). O saudoso Vítor Constâncio, «socialista» e também «economista», vice-presidente do Banco Central Europeu, fez saber que «se o resultado for um ''não", será mais difícil chegar a um acordo. Se for um "sim", então acontece o oposto». Ja,  natürlich!

3. Todos os países estão em pé de igualdade no seio da União Europeia e do Eurogrupo, mas alguns (Alemanha, França, Itália), já se sabe, têm um pé maior do que o dos outros. A senhora Merkel, «democrata-cristã», chanceler da Alemanha, seguramente muito ocupada com outros assuntos mais urgentes, deixou ao sr. Sigmar Gabriel, «social-democrata », vice-chanceler da Alemanha, a tarefa de explicitar a posição do seu governo. O sr. Gabriel afirmou que « a Grécia está a votar se fica ou se sai do euro : um voto no “não” é uma decisão clara contra a permanência no euro» (Público, 30-06-2015).  O sr. Hollande, «socialista», presidente da França, declarou que « o que está em jogo é saber se os gregos querem ficar no euro ou se arriscam sair». O sr. Renzi, « social-democrata », 1º ministro de Itália, afirmou que a escolha no referendo grego é entre o dracma (a antiga moeda da Grécia) e o euro, não entre a proposta das « instituições » e a do governo grego (Twitter. 29-06-2015). E até o sr. Osborne, « conservador », ministro das finanças do Reino Unido, um país que tem moeda própria e que mesmo assim se prepara para referendar a sua pertença à União Europeia sem pedir licença (e muito bem) aos outros países desta « união », veio deitar a sua acha na fogueira, avisando que « uma saída da Grécia do euro será traumática. Esperamos o melhor, mas estamos preparados para o pior». O ministro austríaco das finanças, Hans Jörg Schelling, «democrata-cristão», confia numa “solução negociada” para a crise grega, embora acredite que uma saída do país do euro (‘Grexit’) seria «facilmente administrável pela Europa do ponto de vista económico». E esclarece, com candura, o que está verdadeiramente em jogo: « O nosso maior problema não é o conteúdo (das propostas gregas), mas sim a destruição da relação de confiança entre a Grécia e os outros países da zona euro », salienta. « Há muitos países, sobretudo aqueles com menos dinheiro, que dizem “já não queremos mais”, mas eu acredito que vamos chegar a um acordo negociado», assegura Hans Jörg Schelling. O sr. Schäuble, «democrata-cristão», ministro das finanças alemão, também está confiante. Admite que a « Grécia possa sair temporariamente da moeda única »  (Jornal «i», 4-07-2015), para depois voltar, quando houver na Grécia um governo mais cordato, como aquele com que o seu compatriota Schulz sonha. « Mesmo que alguns bancos colapsem [por causa da intensificação da crise grega], o risco de contágio é relativamente pequeno », disse ao jornal Bild. « Os mercados têm reagido com alguma contenção nos últimos dias, o que mostra que o problema ainda é gerível ».





4. Este optimismo não parece ser partilhado do outro lado do Atlântico. O sr. Obama, «democrata», presidente dos EUA, telefonou à sra. Merkel, ao sr. Hollande e ao sr. Renzi para lhes dizer em substância: « Apertem com a Grécia, mas tenham cuidado: não apertem demasiado porque pode sair-vos/sair-nos o tiro pela culatra». E há quem veja a sua mão por detrás da divulgação, na quinta feira passada, do relatório do FMI sobre a Grécia.  O caso não é para menos, se tivermos em conta que o FMI é uma criação dos EUA, que nele detêm a maior quota, conjugado com o que a imprensa publicou sobre o referido relatório.

Os líderes dos países da zona euro tentaram impedir que o FMI publicasse o relatório desta quinta-feira sobre a dívida grega, onde conclui que o país precisa  de um corte da dívida de pelo menos 30% do PIB

Segundo avança a Reuters, citando fontes das negociações, os países da zona euro tentaram travar a publicação do relatório de quinta-feira do FMI sobre a (in)sustentabilidade da dívida grega.

No documento do FMI publicado esta quinta-feira, o fundo conclui que as contas públicas gregas não serão sustentáveis enquanto o país não for alvo de um “alívio substancial da sua dívida”. O FMI calculou também as necessidades de financiamento da Grécia em 50 mil milhões de euros para os próximos três anos.

A publicação do relatório do FMI veio reforçar a posição do governo de Alexis Tsipras, que tem insistido na urgência de se avançar com uma reestruturação da dívida grega, caso contrário nenhum pacote da austeridade será viável − visão cada vez mais consensual, desde prémios Nobel da Economia, ao governo norte-americano e a várias instituições internacionais, como o FMI, agora.

Ainda segundo a Reuters, a divulgação deste documento tem sido alvo de uma intensa disputa de bastidores entre Bruxelas e o FMI. Alexis Tsipras esta quinta-feira, na reacção aos números do FMI, criticou o facto deste relatório ter demorado tanto tempo a ser divulgado (Jornal «i» on line. 3-07-2007).

5. Mas não foi só esta intensíssima campanha contra o espectro de um «não» do povo grego que as instituições-que-antes-se-chamavam-troika e os governos europeus, de «esquerda» como de «direita», desencadearam. Tomaram também a medida mais gravosa possível para influenciar aquela parte dos eleitores gregos que está indecisa (11,7% segundo as últimas sondagens): recusar o pedido do governo grego para uma extensão da ajuda financeira pelo menos até à realização do referendo, para evitar uma corrida aos bancos e uma fuga ainda mais maciça de capitais como a que tem ocorrido desde que o Syriza chegou ao poder. Com esta recusa, obrigaram o governo grego a instaurar um controlo de capitais durante a semana anterior ao referendo, a fechar os bancos (salvo para os pensionistas) e a decretar um tecto de 60 euros por dia  aos levantamentos individuais durante uma semana. As sondagens mostram a eficácia dessa medida punitiva dos "parceiros" europeus. O “não” que estava muito à frente do “sim” no início da semana, está agora virtualmente empatado com ele.

6. Voltemo-nos então para o povo grego, o protagonista principal desta luta. É importante fazê-lo, porque o jornalista José Manuel Fernandes entende que (i) a maioria dos filósofos gregos da antiguidade não eram gregos, (ii) que a Grécia actual não é a herdeira da Grécia da Antiguidade e que (iii) a Grécia moderna tem menos de dois séculos, pois antes o seu território estava sob domínio otomano (leia-se a sua peça antológica  « Estou farto do choradinho dos desgraçadinhos dos gregos ». Observador. 14-02-2015) . 

O historiador Vasco Pulido Valente está de acordo: 

Sucede que na Grécia não existiu um “berço” da civilização moderna; e que a Europa sempre mostrou o seu carinho pela Grécia (como antes, de resto, os romanos) deitando a mão a tudo o que conseguiu apanhar.

E afirma, peremptório, que  a Grécia «é um país falhado», que a Inglaterra inventou «para consolidar o seu domínio no Mediterrâneo Oriental (e, de caminho, defender a rota para a Índia)» («A Grécia ?». Público. 26-06-2015).

Em suma, não há razão para acusar as instituições-que-antes-se-chamavam-troika, o Eurogrupo e a sua chefe suprema, a senhora Merkel, de tratarem desrespeitosamente a Grécia, de lhe imporem os seus ditames e de quererem quebrar a espinha ao governo que os gregos elegeram democraticamente, porque a Grécia não existe, ou existirá  (se quisermos ser caridosos) mas apenas como um país falhado.

E não existindo, é perfeitamente normal que os países que existem o admnistrem. José Manuel Fernandes dá um exemplo insofismável das vantagens que daí advêm para os pseudo-herdeiros de Sócrates, Platão, Aristóteles. Passo a citá-lo:   

Um bom exemplo daquilo de que falamos é o que se passa no Porto do Pireu. Um terço foi privatizado e é hoje gerido por uma companhia chinesa. É eficiente, é um modelo de organização, tem cada vez mais movimento e faz cada vez mais negócio. Os outros dois terços continuam nas mãos do Estado – e dos sindicatos – e continuam a perder clientes e movimento, sendo um espaço sujo e por vezes degradado.

J. M. Fernandes esqueceu-se apenas de precisar que (i) a dita companhia chinesa (a Cosco) não pertence a capitalistas privados, mas ao Estado chinês, (ii) que o Estado chinês é uma ditadura gerida com mão de ferro por uma oligarquia denominada « Partido Comunista Chinês », (iii), que não houve, por isso, qualquer privatização, mas a passagem de um terço do porto do Pireu do controlo directo do Estado grego, que é admnistrado por governos democraticamente eleitos, para o controlo directo do Estado chinês.  Esqueceu-se também de informar que os ganhos de «eficiência» conseguidos pelos gestores e capatazes chineses nomeados pelo governo chinês foram obtidos mediante uma redução substancial dos salários e dos direitos laborais dos trabalhadores portuários ao seu serviço (cf. Liz Alderman. «Privatizing the port of Piraeus». International Herald Tribune. 10-10-2012). Mas não se tratará verdadeiramente de um esquecimento de J.M. Fernandes. O mais plausível é que, para ele, as informações que reportámos nos parágrafos anteriores são bagatelas, pequenos pormenores às quais não se deve dar importância. 

Vasco Pulido Valente (VPC) partilha a mesma tese, embora prefira que seja a oligarquia de Bruxelas a ocupar-se do assunto em vez da oligarquia de Pequim. Esta não tem os pergaminhos capitalistas daquela. Nada melhor que o produto genuíno. Passo a citá-lo:

Se Bruxelas quisesse fazer alguma coisa por aquela triste terra, em vez de exibir os seus sentimentos democráticos, devia ajudar a construir um Estado capaz de reger e ordenar o caos reinante – uma espécie de colonização sem o nome e com dinheiro. 

Em ambos os casos, curiosamente, um dos argumentos centrais utilizados por ambas as luminárias é que a Grécia é (e sempre foi) um país de ilhas e ilhéus (6000), das quais só 280 são «meio-habitadas» (VPC). * Um território assim não poderia produzir um povo e um país, muito menos um país e um povo notáveis. 

7. Vejamos então algumas das coisas que fez esse «povo inexistente» e esse «país falhado» nos últimos dois séculos.

 a. travou e venceu uma guerra (1821-1829) contra a ocupação do império otomano, tornando-se o primeiro país da era moderna a conquistar a sua independência contra esse poderoso império.

 b. derrotou duas invasões das tropas do ditador fascista Mussolini (Outubro de 1940 e Março de 1941).

c. fez frente, logo de seguida, à  ocupação das tropas da Alemanha nazi e aos seus serventuários domésticos - há sempre gente disposta a servir ocupantes estrangeiros desde que estes sejam poderosos e endinheirados -  através de um movimento heróico de resistência armada (Manolis Glezos é talvez a pessoa viva que melhor incarna esse período de provações. Ver Anexo no fim deste texto).

d. sobreviveu, ainda que pagando o preço de uma terrível guerra civil, à tentativa de divisão do seu território combinada em Moscovo entre Churchill e Estaline (Outubro de 1944):  90% para o Reino Unido, 10% para a Rússia

e. derrubou a ditadura militar dos coronéis gregos (1969-1974)

f. elegeu (Janeiro de 2015) um governo apostado em acabar com a corrupção, com os desmandos financeiros dos partidos governantes tradicionais (Nova Democracia e Pasok) e com a política de «austeridade» imposta pela troika para salvar os interesses da oligarquia financeira que sempre colaborou  com aqueles partidos, como lembrava há dias Joseph Stiglitz.  

Devemos ser claros: quase nada da enorme quantidade de dinheiro emprestado à Grécia acabou por lá chegar. Desapareceu para pagar aos credores do sector privado, incluindo bancos alemães e franceses. A Grécia só conseguiu uma ninharia, mas pagou um elevado preço  para preservar os sistemas bancários desses países (J. S. Stiglitz. «O Ataque da Europa à Democracia Grega». Expresso, 30-6-2015).

8. Que concluir então de todos estes factos ?  A mim parece-me que seja o seguinte: o povo grego e a democracia teimam em existir, mesmo quando todos os grandes deste mundo insistem em votar aquele à inexistência e aquela à irrelevância. Assim sendo, os resultados do referendo poderão trazer surpresas desagradáveis a muita gente, incluindo no rol o jornalista e o historiador que citámos.  

J. M. Catarino Soares, 04-07-2015

* O portal http://www.visitgreece.gr/portal/site, indica 227 ilhas habitadas. 

--------------------------------------------------------------------------


ANEXO 


Manolis Glezos (na foto) é um deputado europeu eleito pelo Syriza. Tem 93 anos. É um herói grego e  europeu.  Em 31 de Maio de 1941, com 18 anos, subiu à Acrópole de Atenas, arriou e levou consigo a bandeira da Alemanha nazi que aí estava hasteada. Os historiadores assinalam o seu gesto como o primeiro acto de resistência contra a ocupação nazi da Europa do Sul. Por ter roubado essa bandeira, Manolis Glezos foi preso, torturado e condenado à morte, mas acabou por ser salvo pela resistência


Depois lutou na Guerra Civil contra a monarquia e foi condenado à morte novamente em 1948, mas pelo próprio governo grego. Por causa da sua popularidade e com medo de uma rebelião, o governo trocou o seu fuzilamento por prisão perpétua em 1950 e mesmo assim foi eleito deputado no ano seguinte. Foi libertado por pressão popular em 1954. 


Foi novamente preso em 1958 acusado de ser espião soviético e condenado novamente à prisão perpétua. Libertado em 1962, foi preso de novo no golpe militar de 1967, sendo libertado apenas em 1971.


Durante a implantação das políticas de austeridade a mando da troika, Manolis Glezos continuou a ir a manifestações, sendo agredido e preso aos 88 anos de idade. 


Hoje, Manolis Glezos, após 11 anos e 4 meses de prisão, 4 anos e seis meses de exílio, duas penas de morte, duas prisões perpétuas, uma invasão nazi, uma resistência contra a monarquia, uma guerra civil, uma ditadura militar e das políticas de austeridade impostas pela troika, foi eleito deputado europeu pelo Syriza. Nada parece deter este homem enérgico que atravessou o século XX em rebeldia constante. Detido, liberto, preso, condenado, foragido, torturado e sempre livre.

- Quando subiu na Acrópole para tirar a bandeira nazista e colocar a grega em seu lugar, você era muito jovem, tinha apenas 18 anos. Por que escolheu fazer esse acto?

- Baixei a bandeira na madrugada de 30 a 31 de maio de 1941. Escolhemos esse dia porque havíamos escutado na rádio que Adolf Hitler, em um discurso que pronunciou no Reichstag, disse que com a ocupação da ilha de Creta toda a Europa estava liberada. O que quis dizer é que a Europa estava completamente sob o poder do fascismo. Então, nós decidimos mostrar-lhes que a luta começava recém agora, que a Europa não estava liberada como ele dizia. É dado a esse gesto um valor histórico. Eu não concebo assim. Este foi só um dos muitos actos que fizemos durante esta luta. Desse momento até agora nunca deixei de lutar. Nunca baixarei os braços. 


- Se fizermos uma comparação histórica, que bandeira teria que ser baixada hoje do mastro que ocupa?


- Teria que baixar a bandeira dos súbditos e içar a bandeira da independência e da soberania nacional. Agora me lembro de uma coisa que Goebbels, o ministro de Informação do Hitler, escreveu em um artigo que apareceu durante a Segunda Guerra Mundial. Goebbels disse que no ano 2000 veríamos uma Europa dominada pela cultura alemã. Só errou em 10 anos. Hoje a Alemanha domina política e economicamente toda a Europa. 

fonte: cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional

   

O ministro da propaganda nazi Joseph Goebbels (o 3º a contar da direita) visita a Acrópole em Atenas, em 1939. Fonte: Keystone-France/Gamma-Keystone via Getty Images.