Tema 3
7 de Novembro de 2016
Schäuble volta a atacar
A notícia
reproduzida em anexo (no fim deste artigo) merece alguns comentários porque tem
como protagonista um senhor alemão que
anda de cadeira de rodas, mas que é muito, mas muito perigoso para a grande
maioria de nós, cidadãos portugueses — e não apenas portugueses, como se verá.
É que o referido senhor está convencido que merecemos ser duramente castigados
se não cumprirmos as suas ordens.
Falo do sr.
Schäuble, do partido União Democrata-Cristã, oficialmente ministro das Finanças
de Alemanha desde 2005 e, não oficialmente, o patrão do Euro, razão pela qual a
imprensa financeira o chama carinhosamente “tesoureiro da Europa”.
Foi ele que gizou o
plano de fazer da Grécia um exemplo inesquecível para todos os povos ‘mal comportados’.
Primeiro, propôs a sua expulsão da zona Euro, logo após a eleição do Syriza,
exactamente com o mesmo argumento que agora utilizou contra o governo PS (v.
notícia no fim deste artigo). A ideia não foi avante porque a França (Hollande)
se opôs — os seus bancos eram os mais expostos à dívida grega e temiam ficar a
ver navios se a Grécia fosse expulsa do euro e se o seu governo recém-eleito,
para sobreviver, repudiasse (= considerasse impagável) a dívida contraída
pelos governos anteriores do Pasok e da Nova Democracia. Em seguida, gizou um segundo
plano, em que a França (Hollande) alinhou.
A encenação do plano coube ao chamado Eurogrupo, uma instituição
fantasmagórica, porque não tem existência legal à luz dos tratados vigentes,
que é fundamentalmente o instrumento que permite a Schäuble impor a sua vontade
aos ministros das finanças dos países do euro.
Não tem precisado de se esforçar muito, porque os ditos ministros são
quase todos membros de partidos nacionais, como o de Schäuble, filiados no PPE
(Partido popular Europeu) — a força política maioritária do Parlamento Europeu e
na Comissão Europeia — e os que o não são, como, por exemplo, o sr. Jeroen Dijsselbloem, ministro das finanças da Holanda, membro do Partido do
Trabalho desse país e presidente do Eurogrupo, têm basicamente a mesma ideia da
economia e do mundo.
O plano de Schäuble
consistia em (i) recusar a dilatação até Junho do prazo de pagamento do empréstimo (que expirava em Fevereiro, mês em
que o novo governo grego tomou posse) feito ao governo anterior da Nova Democracia,
um partido filiado, como o de Schäuble, no PPE; dilatação necessária para o
governo não ficar imediatamente sufocado antes mesmo de poder começar a actuar;
(ii) recusar qualquer medida proposta pelo governo grego ao Eurogrupo e à troika (Varoufakis
apresentou-lhes dois planos pormenorizados, por sinal muito moderados) para
regenerar a economia grega e as finanças públicas gregas; (iii) recusar
qualquer acordo de renegociação da monstruosa dívida grega (315 mil milhões de
euros em Fevereiro de 2015), que uma comissão internacional independente de
peritos, formada por iniciativa do parlamento grego, tinha concluído ser, na
sua maioria, ilegal e ilegítima; (iv) recusar o pagamento de 162 mil milhões de euros da
Alemanha à Grécia a título de reparação pelo empréstimo (476 milhões de marcos
à data, 54 mil milhões de euros, em paridades de poder de compra de 2010) que esta foi forçada a
conceder-lhe no tempo de Hitler e pelos crimes de guerra — destruições,
pilhagens e atrocidades (40 mil civis mortos só em Atenas) — cometidos pelos
seus exércitos durante a sua ocupação da Grécia. Recorde-se que a Itália pagou
integralmente as reparações de guerra exigidas pela Grécia pela ocupação dos
exércitos de Mussolini, mas a Alemanha só pagou uma pequena parte (115 milhões
de marcos) dessas reparações, em 1960, no tempo de Adenauer, acrescidos de 20 milhões de euros em 2003, ou seja, 1,67% do total devido; (v) declarar o
ministro das finanças grego (Varoufakis) persona
non grata, nomeadamente por este
divulgar publicamente as suas intervenções no Eurogrupo e ter proposto que este grupo passasse a ter actas
pormenorizadas das suas reuniões e que estas fossem acessíveis ao público; (vi)
cortar toda a liquidez do BCE aos bancos gregos, de modo a (vii) a suscitar uma
corrida aos bancos (o que veio a acontecer: 45 mil milhões de euros de
depósitos foram levantados entre Março e Junho de 2015) e uma gigantesca fuga
de capitais (o que também veio a acontecer, em montantes ainda mais elevados) que
levasse o governo grego a fechar temporariamente os bancos (o que veio a acontecer
na semana do referendo convocado pelo governo grego) e (viii) que obrigasse
Tsipras a retirar todos os poderes negociais a Varoufakis e a capitular perante
as exigências da troika de um novo e mais duro plano de ‘austeridade’, traindo
o mandato que o povo grego lhe deu por duas vezes (o que também acabou por
acontecer).
A
Grécia foi invadida pela Alemanha nazi em 1941. Na foto, soldados alemães hasteiam
a bandeira nazi na Acrópole. A Grécia perdeu 14% da sua população durante a
ocupação nazi — homens, mulheres e crianças baleados ou vítimas da fome organizada
pelas pilhagens e destruições feitas pelo exército nazi. 1600 aldeias foram
incendiadas e muitos habitantes civis assassinados em 87 cidades, vilas e
aldeias, com particular destaque para Atenas.
Foi magistral. A sua execução primorosa excedeu as expectativas dos mais
cépticos. Por exemplo, cá no burgo, o
sr. José Manuel Fernandes, do Observador,
escreveu um artigo intitulado Estou farto
do choradinho dos desgraçadinhos dos gregos (14/2/2015) onde expressava os
seus receios do seguinte modo:
Não há dúvida que quando a troika chegou a Atenas [em 2010]
cometeu muitos erros de abordagem, alguns dos quais até corrigiria depois na
Irlanda e em Portugal. Houve medidas de uma imensa brutalidade — basta recordar
que enquanto em Portugal se preservou e até se actualizaram as pensões mais
baixas, na Grécia nem prestações na casa dos 300 euros escaparam. (…)
[JMF esqueceu-se de dizer que, para fazer
essa actualização, o governo tirou a uns (que pouco tinham) para dar a outros
(que também pouco tinham). O cúmulo da demagogia. Concretamente, o governo PSD-CDS alterou, em Janeiro
de 2013, a legislação sobre o complemento solidário para idosos, diminuindo o
valor de referência desta prestação — ou seja, o “valor limite” fixado como
rendimento mínimo do idoso para ter direito a este complemento, que passou de
5022 euros anuais (418 euros mensais) para 4909 (409 euros mensais) — o que
implicou que idosos que a tinham perderem-na, e outros que se candidataram, e
que com as anteriores regras poderiam recebê-la, não a conseguirem obter. Entre
Dezembro de 2011 e final de 2015, o número de pessoas a receber o complemento solidário para idosos passou de 235.726 a 160.982, sofrendo portanto uma redução de um terço dos seus beneficiários (75 mil ), enquanto a pobreza nessa
população aumentava de 14,7% para 17%. Se isto não é brutalidade, o que é então brutalidade?]
Não surpreende assim que a espiral recessiva que tantos previram para o
nosso país e que não se materializou, tenha na Grécia provocado uma queda de
25% do PIB. (…) [De facto, a queda foi de 27%]
A vitória do Syriza pode ter a virtude de quebrar, pelo menos em parte,
estas lógicas ancestrais, lógicas que se entrelaçam com a corrupção e a fuga
aos impostos. Mas, em contrapartida, pode fazer regredir o pouco que, apesar de
tudo, tinha evoluído na abertura da economia. Basta recordar que, antes do resgate, a Grécia mantinha
centenas de empresas nacionalizadas na década de 1980, quando na Europa já se
privatizava, o que fazia com que o Estado empregasse directamente 45% da
população activa.
Pelo seu lado, o doutor Vasco Pulido Valente, num
artigo entitulado A Grécia ?
(«Público». 26-06-2015), aconselhava:
Se Bruxelas quisesse fazer alguma coisa por aquela triste terra, em vez de
exibir os seus sentimentos democráticos, devia ajudar a construir um Estado
capaz de reger e ordenar o caos reinante — uma espécie de colonização sem o
nome e com dinheiro.
O sr. Schäuble teria gostado de os ler, se soubesse português, pois estaria
habilitado a dizer-lhes:
“Não,
meus caros, não há razão para os vossos receios. A abertura da economia grega
continua. As taxas de juro da dívida pública alemã a dez anos arrancaram, no ano de 2010, acima dos 3,3% e agora estão em 0,7%, ainda que já tenham
chegado a mínimos históricos de 0,049%. À Grécia aconteceu-lhe exactamente o
contrário: enquanto a taxa de juro da sua dívida a dez anos andava à volta dos 5,7% no início
de 2010, agora move-se acima de 9%. E a poupança no custo de financiamento das
nossas empresas não foi o único ganho para a Alemanha com a crise grega. O meu
país aproveitou o terceiro resgate para impor aos gregos a necessidade de
venderem os seus activos mais valiosos
para o pagarem. E tratámos de arranjar uma maneira para os obrigar mesmo a
fazê-lo, em vez de arrastarem os pés. A privatização das empresas públicas gregas
(portos, marinas, aeroportos, refinarias de petróleo, OTE [a equivalente à
vossa ex-Portugal Telecom], ELTA [o equivalente aos vossos CTT antes de Passos
Coelho e Portas os terem privatizado], rede de caminhos de ferro, rede
eléctrica, rede de distribuição de água, rede de distribuição de gás, EAV
[indústria aeronáutica], ELVO [indústria automóvel], estradas portajadas, transportes públicos de
Atenas [metropolitano e autocarros], Centro Olímpico de Atenas, etc.) está agora sob a supervisão de um novo
organismo criado por nós, “Mecanismo de Estabilidade Europeia”, a que chamámos
Privatization Fund [Fundo de
Privatização] ou simplesmente The Fund,
sobre o qual o governo grego não tem qualquer poder de decisão. O valor
estimado dos activos deste fundo é de 70 mil milhões de euros. Mas, claro, o seu
valor real é muito maior, porque a estimativa é feita tendo em conta a grande
depreciação que estes bens públicos sofrerem com a nossa intervenção. Tudo o
que valer a pena vai ser privatizado, e, sempre que possível, leiloado. Só
deixámos de fora os monumentos nacionais, as estações arqueológicas, os
espaços públicos de recreio (como praias e parques) e as instalações militares
e policiais *. O dinheiro
apurado pelas privatizações e pelas concessões de gestão será utilizado pelo
governo grego para nos pagar os empréstimos que lhe fizemos. E esperamos ser
nós, alemães, os principais beneficiários dos leilões, porque somos nós (com os
chineses) quem tem mais dinheiro e somos nós, portanto, a ditar o preço de
venda. Por exemplo, um terço do porto do Pireu já está há vários anos nas mãos
de uma empresa estatal chinesa, a China Cosco, mas, em Agosto de 2015, a
empresa alemã Fraport ficou com a gestão dos 17 aeroportos regionais helénicos.
Assim, ganhamos nos dois tabuleiros. Emprestamos à Grécia o dinheiro que ela
precisa para nos pagar as dívidas que os seus governos contraíram para
financiar a fundo perdido a sua oligarquia doméstica (como vocês fizeram com os vossos BES, BPN, BPP, BANIF, CGD e com as vossas Parcerias Público-Privadas) e o governo actual, tal como os
anteriores, paga-nos o que nos deve vendendo-nos e alugando-nos por tuta-e-meia
os activos mais valiosos do seu povo. E de caminho desacreditamos o governo actual que
proclamava que nos faria frente com unhas e dentes. Em resumo, a colonização (sem
o nome) dessa triste terra está a ser feita e com dinheiro, muito dinheiro, a
fluir da Grécia para a Alemanha”.
Em suma, o doutor Schäuble tem todas as razões para se sentir orgulhoso.
Conseguiu, apenas com um livro de cheques, fazer à Grécia o que Hitler não
conseguiu com um exército.
Há, no entanto, uma pergunta com interesse político que se pode (e se deve)
fazer a este propósito. O partido de Schäuble tem por ideário a doutrina social
e económica da Igreja Católica. Por isso se auto-apelida de democrata-cristão.
A pergunta é: a actuação de Schäuble relativamente à Grécia está em
conformidade com os preceitos dessa doutrina? Ou, posta de outra maneira: a
actuação de Schäuble terá a aprovação do papa Francisco, o representante máximo
e o intérprete mais abalizado dessa doutrina? Há boas razões para crer que a
resposta seja negativa.
A mim, que não tenho crenças religiosas, mas que respeito quem as tem e que
(também por isso) li a Bíblia, parece-me que a conduta de Schäuble é um exemplo
acabado de conduta farisaica. Para quem nunca leu a Bíblia, convém informar que
os fariseus eram um grupo de judeus ultraconservadores que acusavam Cristo de
apostasia, de violar as leis de Deus e as tradições dos antepassados. O Novo
Testamento narra muitos episódios da perseguição que moveram a Cristo e que
levou à sua crucificação. Os seus encontros com os discípulos de Cristo nunca
eram pacíficos. Eis um exemplo:
Encontrando-se Jesus à
mesa na Sua casa, numerosos publicanos e pecadores vieram e sentaram-se com Ele
e Seus discípulos. Os fariseus, vendo isto, diziam aos discípulos: «Como é que
o vosso Mestre come com os publicanos e os pecadores?» Jesus ouviu-os e
respondeu-lhes: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os
doentes. Ide aprender o que significa: ‘Prefiro a misericórdia ao sacrifício’.
Porque não vim chamar os justos, mas os pecadores (Mateus 9: 11‒13. Bíblia Sagrada.
Versão portuguesa preparada a partir dos textos originais pelos Rev.os
Padres Capuchinhos com o imprimatur do Cardeal-Patriarca. Verbo.
1982).
Cristo acusou-os com palavras severas de serem hipócritas e de viverem uma
religiosidade de fachada.
Ai de vós, escribas e
fariseus hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, formosos
por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos e de toda a espécie de imundície. Assim também
vós, por fora, pareceis justos aos homens, mas, por dentro, estais cheios de
hipocrisia e de iniquidade (Mateus 23: 27-28, o.cit.)
A Bíblia cristã, cujos ensinamentos Schäuble diz professar, relata também numerosas
parábolas de Cristo, entre as quais a seguinte:
O reino dos céus é semelhante a uma
rede que, lançada ao mar, apanha toda a
espécie de peixes. Logo que ela se enche, os pescadores puxam-na para a praia,
sentam-se e escolhem os bons para as canastras e os ruins deitam-nos fora.
Assim será no fim do mundo. Saiarão os anjos e separarão os maus do meio dos
justos e lançá-los-ão na fornalha ardente: Ali haverá choro e ranger de dentes (Mateus
13:47‒50, o.cit.).
A esta luz, presumo que Schäuble terá razões de sobra para se apoquentar
quanto a saber a que espécie de peixe pertence.
Junho
de 2015. A Alemanha volta a subjugar a Grécia, desta vez com um livro de
cheques
Seja como for, as preocupações mundanas do sr. Schäuble são, agora, com Portugal, onde ele vê um perigo semelhante ao da Grécia, embora, como toda a gente sabe, o governo PS e o seu primeiro-ministro nunca tenham tido sequer as veleidades do Syriza e de Tsipras e se declarem cumpridores das metas do tratado orçamental que ele inventou.
Seja como for, as preocupações mundanas do sr. Schäuble são, agora, com Portugal, onde ele vê um perigo semelhante ao da Grécia, embora, como toda a gente sabe, o governo PS e o seu primeiro-ministro nunca tenham tido sequer as veleidades do Syriza e de Tsipras e se declarem cumpridores das metas do tratado orçamental que ele inventou.
26 de Outubro de 2016. O ministro das finanças
alemão declara: “alertei o nosso colega português”, “disse-lhe que se for por
esse caminho [não fazer o que ficou combinado com o governo do PSD-CDS] iria
assumir um grande risco, e eu não assumiria tal risco”.
Porém, a situação, hoje,
já não é a mesma de há um ano. Muita coisa mudou. Por exemplo, (1) o sr. Draghi
e a actual Comissão Europeia têm, cada qual considerado de per si, agendas próprias que nem sempre coincidem uma com a outra,
nem com a de Schäuble; (2) Durão Barroso, outro proeminente membro do PPE, saíu
da presidência da Comissão Europeia para ir direitinho trabalhar, agora às claras, para a Goldman
Sachs, o seu verdadeiro patrão, provocando a revolta dos próprios funcionários
da UE que fizeram uma petição com mais de 150 mil assinaturas pedindo que lhe
fosse, pelo menos, suspensa a pensão de aposentação; (3) houve o terramoto político
do Brexit, e, agora, (4) o sr. Hollande
não resistiu a contar a dois jornalistas que o entrevistaram longamente,
durante meses, com vista a escreverem um livro laudatório dos seus grandes
dotes de estadista, que a França aldrabou sempre os seus orçamentos, que nunca
cumpriu o chamado Tratado Orçamental, tudo com o conhecimento e o consentimento
de Barroso e de Schäuble, entre outros. Milhões de europeus podem hoje
constatar como é o verdadeiro funcionamento da UE, a quem beneficia e a quem
prejudica.
Por estas e outras
razões, a margem de manobra de Schäuble diminuiu muito em apenas um ano (o que
é bom para nós, portugueses). Mas o homem é perigoso e obstinado. Não podendo
agir directamente contra nós, como o fez contra a Grécia (Centeno não é
Varoufakis, o PS não é, nem nunca foi, o que foi o Syriza), dirige-se aos
famosos mercados financeiros para que nos apertem o garrote. Sucede, porém, que
os mercados financeiros são agregados instáveis de milhares de grandes
especuladores que perseguem objectivos de lucro que muitas vezes se entrechocam.
Mais, os mercados financeiros acreditam numa versão particular do Vodu, que,
para eles, tem a forma de algoritmos matemáticos, elaborados por economistas
semi-letrados, que lhes sussurram ao ouvido quais são os activos que devem
comprar e os que devem vender, onde e quando. Não é certo, pois, que reajam
como carneiros bem alinhados à voz de comando de Schäuble. Uma prova disso foi
a agência de notação financeira canadiana DBRS (que se diz à boca cheia agir em
concerto com o sr. Draghi) que manteve a cotação de Portugal acima do lixo. Veremos,
pois, quais são os próximos lances do sr. Schäuble, se os mercados financeiros não
se assustarem com os seus vaticínios.
Costuma dizer-se
que a frase «Que possas viver tempos interessantes!» é uma maldição chinesa, em
que “interessantes” significaria “atribulados” ou “conturbados”. Mas a frase
não é chinesa (ninguém sabe a sua origem exacta), como explicou o historiador
Pacheco Pereira numa crónica sua há uns 5 anos, onde nos lembrava que não há
razão para lamentarmos o que nunca tivemos. A normalidade (seja lá o que isso
for) não existia antes da grande crise financeira e económica que estalou em
2008, não existe e não existirá no horizonte temporal que podemos vislumbrar.
Todo o século 20 foi atribulado (nunca morreu tanta gente em guerras, nem nunca
emigrou tanta gente como no século passado). Em Portugal, tivemos uma ditadura
que durou 48 anos, uma guerra em África que durou 13 anos, e uma revolução. E
agora, além da desintegração em curso da UE e dos efeitos e choques múltiplos
da chamada globalização, temos as
consequências previsíveis (e imprevisíveis) das alterações climáticas.
A única conclusão
que se pode tirar é que vivemos mesmo tempos conturbados. Só se tornam
interessantes se estivermos alerta para não sermos apanhados desprevenidos com
as suas mudanças repentinas e se soubermos compreender as suas fontes de
conturbação para podermos agir sobre elas do modo que considerarmos mais
apropriado em cada momento. Caso contrário, somos como palhinhas arrastadas na
torrente.
José Manuel Catarino Soares
Notas
* Não se julgue que há qualquer exagero neste relato. É o
que está escrito preto no branco no memorando de entendimento entre o “Mecanismo
de Estabilidade Europeia” e o governo
grego (MEMORANDUM OF UNDERSTANDING BETWEEN THE EUROPEAN COMMISSION ACTING ON
BEHALF OF THE EUROPEAN STABILITY MECHANISM AND THE HELLENIC REPUBLIC AND THE
BANK OF GREECE, 8 September 2015). No seu ponto 4.4 (Privatisation)
pode ler-se:
Privatisation can help to make the
economy more efficient and to reduce public debt. While the privatisation
process has come to a standstill since the beginning of the year, the
Government has now committed to proceed with an ambitious privatisation program
and to explore all possibilities to reduce the financing envelope, through an
alternative fiscal path or higher privatisation proceeds. To preserve the on-going
privatisation process and maintain investor
interest in key tenders, the Hellenic Republic commits to proceed with the
on-going privatisation programme. (…) In line with the statement of the Euro
Summit of 12 July 2015, a new independent fund (the “Fund”) will be established
and have in its possession valuable Greek assets. The overarching objective of
the Fund is to manage valuable Greek assets; and to protect, create and
ultimately maximize their value which it will monetize through privatisations
and other means.
Os anexos 1 e 2 deste memorando, assim como o documento intitulado Greece:
technical memorandum of understanding (16 de Junho de 2016), pormenorizam
todos os activos cuja privatização já estava em curso à data da assinatura do
primeiro memorando (isto é, aqueles que vinham do governo anterior) e os que
estão previstos no curto-médio prazo após a sua assinatura. Num dos pontos (How
public assets ought to be utilised) de um projecto de memorando de Maio de
2015, pode ler-se ainda:
Bundling of assets that can be
potentially envisaged as non-public into a central holding company to be
separated from the government administration and to be managed as a private
enterprise entity with the goal of maximising the value of its underlying
assets. The Greek state will be the sole shareholder, but will not guarantee
its liabilities or debt.
• Assets will include: ports,
airports, land, real estate, energy assets, utilities assets e.g. water, gas, electricity grid,
traffic infrastructure, licenses, offshore and onshore mining rights (gas, oil,
and metals etc.), state owned companies and all other assets which can
potentially be put to private management. Exceptions from this list would be
only those assets relevant for the country’s security, public amenities, and its
cultural heritage sites.
• The total value of these assets is
currently estimated to be in excess of 70 billion euros – taking into account
the depressed nature of all asset prices in Greece due to the ongoing
crisis/negotiation.
...................................................................................................................................................................................................
...................................................................................................................................................................................................
ANEXO:Notícia publicada pelo Diário de Notícias
OE 2017
OE 2017
Schäuble. Portugal estava a ir bem até vir o Governo PS
Diário de Notícias. Luís Reis Ribeiro 26.10.2016 / 18:08
Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças da
Alemanha.Fotografia: EPA/UWE ANSPACH
Ministro das Finanças alemão repete ataque ao governo. Já o tinha feito, em
fevereiro, quando a crise do Deutsche Bank se agudizou.
“Portugal foi muito bem-sucedido até ao novo
Governo. Depois das eleições (…), [o novo Governo] declarou que não iria
respeitar aquilo que tinha sido acordado pelo anterior”, declarou o ministro da
Finanças da Alemanha, Wolfgang
Schäuble, nesta quarta-feira, durante uma visita à Roménia. De acordo
com o jornal online Eco, que cita a Bloomberg, o ministro alemão (da CDU,
partido da direita cristã conservadora alemã) volta a atacar Portugal e o atual
governo de forma contundente.
Já o
anda a fazer, aliás, há algum tempo. A 12 de fevereiro, a margem de uma reunião do Ecofin
(ministros das Finanças da UE), no mesmo dia em que os graves problemas
financeiros do Deutsche Bank começaram a deitar por fora, fazendo afundar de
forma aguda as ações da banca europeia. Nessa altura, desviou as atenções do caso Deutsche Bank, e disse
que estava era preocupado com Portugal e que o país tinha “de fazer tudo para
contrariar a incerteza nos mercados financeiros”. O governo do PS
apoiado pelos partidos à esquerda (CDU e BE) apresentara há poucos dias (5 de
fevereiro) o seu primeiro orçamento (OE2016).
Esta
semana Portugal foi visado duas vezes por autoridades alemãs. Depois de
Schäuble foi a vez do diretor do fundo de resgate da União Europeia, o alemão
Klaus Regling, a
dizer que “o único país com que estou preocupado é Portugal”.
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