Esta é 5ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus
SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de
2020, no fundo da coluna à direita deste texto). As notas finais são grafadas entre parênteses rectos e em cor-de-laranja. Por exemplo, [1].
Gostaria de conseguir escrever este diário fazendo jus ao lema que encerra
a resposta à seguinte adivinha (que me foi contada pelo meu amigo João Viegas
Fernandes): «Qual é a semelhança entre um
pára-quedas e a mente humana? É o facto de tanto um como a outra só nos serem
úteis, salvando-nos a vida, se estiverem bem abertos».
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Haverá
uma maneira de escapar ao dilema moral posto aos pais pela reabertura das
creches frequentadas pelos seus filhos antes da pandemia?
José Manuel Catarino Soares
Este texto é um complemento e um seguimento do artigo publicado em 31 de
Maio neste blogue [1]. Foi motivado por uma longa conversa com um amigo.
1.
Uma crítica em três vertentes
Esse amigo criticou o mencionado artigo por incorrer numa «excessiva simplificação». A questão da reabertura
das creches em 18 de Maio (ou em 1 de Junho) seria «muito
mais complexa» do que a descrita nesse artigo. Em particular, eu não
teria dado a devida importância aos problemas de «saúde
mental» e de «violência doméstica» que
o confinamento domiciliário veio agravar em muitas famílias. Tais factos justificariam
que, para muitas crianças da faixa etária dos 3 meses aos 3 anos (inclusive), o
regresso à creche — pese embora todos os riscos inerentes de contágio pelo novo
coronavírus — pudesse ser uma opção melhor ou menos má do que a de continuarem em
casa, onde estariam sujeitas a perigos ainda maiores ou mais imediatos.
Além disso — acrescentou o meu amigo — há muitas famílias trabalhadoras onde não há violência doméstica, nem perturbações mentais, mas que estão
com os seus salários amputados em 1/3 na sequência da suspensão ou da redução
dos seus contratos de trabalho, resultante do estatuto de «lay-off
simplificado» requerido pela entidade patronal. Algumas (ou muitas) destas
famílias sentiriam uma necessidade imperiosa de regressarem aos seus postos de
trabalho e tornarem a auferir a totalidade dos seus salários para poderem fazer
face a despesas fixas inerentes a responsabilidades contratuais que contraíram
antes da pandemia, como, por exemplo, «o pagamento
das prestações do crédito à habitação própria permanente».
Assim sendo — concluiu o meu amigo — os pais cujos filhos frequentavam
creches antes da pandemia da Covid-19 ficaram a braços com um dilema muito
complexo, suscitado pela reabertura das creches em 18 de Maio. Tiveram de ponderar
muitos factores díspares e emaranhados para decidir o que fazer nessa data, ou,
no melhor dos casos, em 1 de Junho. Com uma agravante: as alternativas (levar
os filhos de novo para a creche ou mantê-los em casa até Setembro) a que estiveram
confrontados, em 18 de Maio e/ou em 1 de Junho, eram ambas más e ambas
igualmente más. A opção dos pais por uma delas só poderia ter sido pela que se
lhes afigurasse, subjectivamente, menos má. Para uns pais a alternativa menos
má seria uma. Para outros pais, a alternativa menos má seria a outra. Deste modo,
não haveria nenhum critério susceptível de nos permitir determinar
objectivamente qual delas seria a menos má.
2.
Concordância
Agradeço ao meu amigo F.V.J. (designei-o por meio destas iniciais fictícias
para que ele possa utilizá-las se quiser escrever um comentário neste blogue
sem ter de utilizar o seu nome próprio) as suas vigorosas, inteligentes e
estimulantes críticas. Se outro mérito não tivessem (e têm muitos mais), elas teriam
(como tiveram) um que se tornará muito óbvio no seguimento deste texto: o de me
levar a aprofundar alguns aspectos desta questão que são da maior importância,
mas que não foram abordados no artigo de 31 de Maio.
Começo por dizer que estou inteiramente de acordo com os seus argumentos
sobre as situações de degradação da saúde mental dos pais e de violência
doméstica como factores que a pandemia veio agravar e que podem afectar muito
negativamente o bem-estar e o desenvolvimento das crianças, muito especialmente
as crianças que frequentam as creches, as mais jovens de todas. Concebo
perfeitamente que uma mãe ou um pai vítima de violência doméstica possa pensar que
o seu filho está mais seguro (e até mais feliz) na creche do que em casa,
apesar do risco de contágio pelo coronavírus SARS-CoV-2 ser mais elevado na
creche do que em casa. Do mesmo modo, concebo perfeitamente que uma mãe ou um
pai que coabite com um cônjuge que sofra de uma doença mental grave possa pensar
que o seu filho está mais seguro (e até mais feliz) na creche do que em casa,
apesar do risco de contágio pelo SARS-CoV-2 ser mais elevado na creche do que
em casa.
Concordo também que a necessidade de trabalhar para superar a perda de
rendimentos causada pelo «lay-off simplificado», pelo despedimento ou por qualquer outra circunstância
gravosa causada pela pandemia da Covid-19, é um factor muito ponderoso na
decisão dos pais relativamente ao regresso dos seus filhos à creche. Em 31 de
Maio terminou o apoio de 66% da remuneração de
referência que foi atribuído aos pais ou encarregados de educação que prestavam
assistência aos filhos em casa por terem sido afectados pelo encerramento dos infantários.
Para poderem regressar aos seus postos de trabalho, esses pais são
praticamente forçados a fazer regressar os seus filhos ao infantário ou a
encontrar uma solução equivalente.
Por fim, concordo que as duas alternativas do dilema moral que a reabertura
das creches colocou aos pais são ambas más. Uma das alternativas (manter as
crianças em casa) — designemo-la por alternativa A — é má porque impede
os pais que trabalham fora de casa de retomarem as suas ocupações laborais,
afectando gravemente desse modo os seus rendimentos. A outra alternativa (levar
outra vez as crianças para as creches) — designemo-la por alternativa B —
é má porque comporta um risco elevado de as tornar vítimas e vectores de
transmissão do novo coronavírus nas creches que frequentam, nas famílias a que
pertencem e nas comunidades em que as famílias estão inseridas.
3.
Discordância
Onde não estou de acordo é na ideia de que as razões que se podem invocar
para optar por uma das alternativas do dilema têm um valor (um peso valorativo)
idêntico ao das razões que se podem invocar por optar pela outra alternativa do
dilema. Procurei mostrar no meu artigo anterior que a permanência em casa das
crianças dos 3 meses aos 3 anos é, na presente conjuntura pandémica da
Covid-19, uma opção menos má do que a opção do seu regresso à creche.
Voltarei mais tarde a este assunto, aduzindo mais argumentos em prol desta
tese.
De momento, pretendo salientar o seguinte: parece-me que a ideia contrária
— a de que ambas as alternativas (A e B) são igualmente más,
pelo que seria moralmente equivalente optar por uma ou por outra na presente
conjuntura pandémica — é a ideia que constitui o fio condutor da argumentação
do meu amigo F.V.J. Vejamos porquê.
3.1.
O argumento do crédito à habitação própria permanente
Não é aceitável que se possa invocar a necessidade de trabalhar para pagar
a prestação ao banco pelo empréstimo da casa como um argumento válido para
justificar a decisão de fazer regressar um filho à creche que frequentava.
Creche «O Portugal dos Pequeninos II» (Associação de Socorros Mútuos de S. Francisco de Assis, Anta, Espinho) em 24 de Janeiro 2020 (antes da pandemia) |
Este argumento não colhe na actual situação pandémica pela seguinte razão. Está
em vigor, até ao dia 31 de Março de 2021, um regime de moratória (Decreto-Lei
n.º 10-J/2020, de 26 de Março e Plano de Estabilização Económica e Social
(PEES), de 4 de Junho), aplicável, entre outros contratos, a contratos de
crédito para habitação própria permanente celebrados com pessoas singulares:
(i) que
estejam em situação de isolamento profiláctico ou de doença,
(ii) ou que prestem assistência a filhos ou netos, conforme
estabelecido no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, na sua redacção
actual,
(iii) ou
que tenham sido colocadas em redução do período normal de trabalho ou em
suspensão do contrato de trabalho, em virtude do chamado «lay-off simplificado»,
(iv) ou que
estejam em situação de desemprego registado no Instituto do Emprego e Formação
Profissional, I.P.,
(v) ou
que sejam trabalhadores elegíveis para o apoio extraordinário à redução da
atividade económica de trabalhador independente, nos termos do artigo 26.º do
referido decreto-lei,
(vi) ou
que sejam trabalhadores de entidades cujo estabelecimento ou actividade tenha sido
objecto de encerramento determinado durante o período de estado de emergência.
Este regime prevê que a pessoa possa suspender o pagamento das prestações
do crédito à habitação, entre o momento em que a moratória é solicitada ao
banco e o dia 31 de Março de 2021. Os juros que se vençam durante o período da moratória
serão capitalizados no valor em dívida do empréstimo. Ao abrigo deste regime, a
pessoa pode solicitar apenas a suspensão do reembolso de capital (continuando a
pagar juros do empréstimo). Neste caso, o valor em dívida no empréstimo
mantém-se durante o período da moratória.
O prazo do empréstimo estende-se por um período igual ao da duração da
moratória. Esta extensão do prazo de pagamento de capital, juros, comissões e
demais encargos relativos aos contratos de crédito abrangidos pela medida não
dá origem a incumprimento contratual ou activação de cláusulas de vencimento
antecipado. Durante o período da moratória, mantêm-se válidas e eficazes as
garantias concedidas pela pessoa (ou por terceiros) ao banco que lhe fez o
empréstimo, as quais se prorrogam por igual período.
Centenas de milhares de pessoas pediram moratórias ao abrigo desta
legislação, segundo informou o Banco de Portugal em 21 de Maio. Só até 31 de Abril, já tinham sido aprovadas moratórias
relativas a 355.541 contratos. Quase metade dos contratos objecto de moratória
(162.492) dizem respeito a crédito concedido para aquisição de habitação própria
permanente a pessoas que foram afectadas directa ou indirectamente pela
Covid-19 — doença, isolamento profiláctico, assistência a filhos e netos,
quebra de rendimentos por motivo de «lay-off simplificado» ou de despedimento.
3.2.
O argumento da saúde mental e da violência doméstica
O confinamento domiciliário a que
todos fomos forçados durante um mês e meio para quebrar as principais cadeias
de transmissão comunitária do SARS-CoV-2 agravou muito todos os problemas sociais.
A pandemia e as medidas de
confinamento domiciliário destinadas a combatê-la agravaram, nomeadamente, os
problemas existentes de violência doméstica em muitas famílias, assim como os
problemas de saúde mental e os problemas de solidão, em particular de pessoas
de idade avançada que vivem sozinhas ou que residem em lares onde, para evitar
o contágio por esse vírus, se viram impedidas de receber visitas de amigos e
familiares durante mais de um mês e meio e que, mesmo agora, na fase de
desconfinamento domiciliário, continuam a não poder sair como o faziam antes,
pelas mesmas razões. Não minimizo de modo nenhum a importância destes problemas,
que são parte integral dos efeitos sociais multifacetados da pandemia da
Covid-19.
Não obstante, não é
aceitável que se possa invocar a doença mental de um cônjuge, ou a violência
doméstica exercida por um cônjuge, como um argumento válido para justificar,
neste contexto pandémico, a decisão de fazer regressar um filho do casal à
creche que frequentava antes da pandemia.
Este argumento não colhe pelas
seguintes razões. Se essa criança estiver em risco de ser maltratada, agredida
ou abusada em sua casa por um dos seus progenitores ou encarregados de educação,
não é pelo facto de passar uma parte do dia na creche que estará a salvo. Só
estará a salvo se o adulto agressor for corrido da casa onde coabita com a
criança, ou se a criança for separada dos pais biológicos (no caso de ambos constituírem
uma ameaça para a criança) e entregue a uma família de acolhimento. É para se
conseguir proteger a integridade da criança em casa (nos casos em que ela esteja em risco) que o argumento da doença mental e o argumento da violência doméstica são válidos, e não para justificar o seu
regresso à creche que frequentava antes da
pandemia.
Creche «O Portugal dos Pequeninos II» (Associação de Socorros Mútuos de S. Francisco de Assis, Anta, Espinho) em 25 de Maio de 2020 |
3.3. O argumento da necessidade de
trabalhar a tempo inteiro e fora de casa para poder sustentar a família
Não é aceitável que se possa
invocar a necessidade de trabalhar a tempo inteiro e fora de casa para poder
sustentar a família como um argumento válido para justificar o regresso de um
filho à creche que frequentava antes da pandemia. Invocar o fim, em 31 de Maio
último, do apoio de 66% da remuneração de referência que foi atribuído aos pais
ou encarregados de educação afectados pelo encerramento dos infantários não
confere validade acrescida ao argumento em causa, apenas o torna mais especioso.
Nenhum desses argumentos colhe,
pelas seguintes razões. O direito à saúde e o direito à segurança (física e
afectiva) das crianças de tenra idade — condições essenciais do seu bem-estar e
do seu desenvolvimento — não podem ser postergados ou violados em nome do
direito à saúde (física e mental) e do direito ao trabalho dos pais. A inversa
é igualmente verdadeira: o direito à saúde e o direito ao trabalho dos pais não
podem ser postergados ou violados em nome do direito à saúde e do direito à
segurança das crianças. Estes direitos não se excluem mutuamente, antes se
reforçam mutuamente.
O facto de os pais das crianças
dos 3 meses aos 3 anos terem sido colocados, pela reabertura das creches em 18
de Maio, numa situação em que foram forçados a escolher entre abdicarem dos
seus direitos mais básicos ou abdicarem dos direitos mais básicos dos seus
filhos é um indício claro de que foram apanhados numa armadilha conceptual e
socioeconómica.
Como sair dessa armadilha é o
assunto que desenvolverei mais adiante. Antes, porém, gostaria de aduzir mais
alguns factos e argumentos (para além daqueles que compilei na entrada anterior
deste Diário) que corroboram a asserção feita no fim da secção 3: a continuação
das crianças dos 3 meses aos 3 anos em suas casas, é, na actual conjuntura
pandémica, uma opção menos má do que a opção do seu regresso à creche.
4. O testemunho de uma pediatra
Graça Gonçalves é uma conhecida médica
pediatra. Trabalha há 36 anos. Todavia, em 36 anos de profissão, não se lembra
de um período com tão poucos ranhos perenes, tosses, otites e viroses.
Com o
encerramento das creches, os miúdos adoeceram menos?
Nunca passei por um
período tão perfeito em termos de doenças. As crianças praticamente não adoeceram.
Tive, em média, uma criança doente por semana, antes da Covid eram várias por
dia. Não quer dizer que não haja uma que não apanhe uma otite, ou outra coisa,
mas não transmitem como transmitiam antes. Normalmente percebemos logo quais
são os vírus que andam por aí, porque ouvimos sempre as mesmas histórias. Desde que as
creches fecharam, os miúdos quase não tiveram nada, foi uma bênção. As
bronquiolites, as otites, os ranhos perenes, tudo isso praticamente desapareceu. Quando os miúdos entram na escola o aviso que eu faço
aos pais é: atenção que ele vai começar a ficar ranhoso e, mais tosse menos
tosse, mais febre menos febre, o ranho vai estar lá sempre. Vão pensar que é
uma doença crónica, mas não é, porque na maioria das vezes estamos a falar de
crianças saudáveis.
E isto
acontece em todas as idades?
Quando vão para a
escola é em todas as idades, mas se só entrarem aos três anos as coisas passam
por eles de forma mais suave. Quando se entra com cinco, seis meses,
os problemas ganham outra proporção.
Depois, se são amamentados, no geral aguentam-se melhor, se têm problemas de
base alérgica, corre pior. O primeiro ano é sempre o mais
complicado, porque dois dias depois de terem febre ficam doentes outra vez. Isto perturba muito as noites, o bem-estar da criança e
obriga a fazer muito mais medicações do que seriam necessárias. Só costumo ter
acalmia em Julho, Agosto, mas nos últimos anos já nem Julho e Agosto eram
fantásticos.
As
crianças também passaram a estar menos medicadas com esta pandemia?
Muitos miúdos têm de
fazer medicação crónica para bronquiolites, por exemplo, usam inaladores
brônquicos diariamente e em alguns casos os pais perceberam que podiam parar. Há uns anos
havia uma teoria que defendia que estas infecções eram importantes para
diminuir as incidências de alergias, que os miúdos deviam ir para os
infantários e ter estes problemas todos para ficarem imunes, mas isso não tem
sido validado. Não faz nenhum sentido pedir-se a uma criança que fique doente. É tão desconfortável... Sempre com aqueles narizes
obstruídos, sem conseguir respirar bem de noite, de vez em quando lá vem uma
dor grande de uma otite. Como é que isso é bom?
Graça Gonçalves, médica pediatra |
As doenças virais são as mais comuns nas crianças?
Mais de 90% dos
problemas até aos 3 anos de vida são virais. Os miúdos acabam por ultrapassar isto com
a idade, mas dos três anos para a frente o rácio de crianças por educador nas
creches é ainda maior. A culpa não é das educadoras, que não podem fazer
melhor. Talvez pudessem ir mais para a rua, mas também há pais que proíbem.
Proíbem como?
Há duas correntes: os pais que acham que estar na rua,
andar ao sol, à chuva e saltar nas poças, é bom. E os pais que têm medo que os
miúdos vão para a rua e se constipem, que acham que vão apanhar constipações
por andarem descalços, por exemplo. Com a vontade que temos de os proteger, não
os deixamos usufruir do corpo. E nos infantários, à conta disso, fecham-se
janelas, põem-se ares condicionados e transformam-se estes espaços num viveiro
maravilhoso para a bicharada.
Portanto, na sua opinião, quem conseguir
deve manter os filhos em casa, em vez de os pôr já na creche ou no jardim de
infância?
Para os miúdos
que sigo estes meses foram o paraíso na terra. Num mundo ideal, se houver
hipótese, e muita gente não tem mesmo hipótese, deixava-os em casa. Sobretudo
até aos três anos, em que, com raras exceções, os miúdos não precisam de ir
desenvolver-se para um infantário. O que eles precisam é de uma relação de um para um. Só recomendo creche
antes dos três anos quando existem falhas ao nível da socialização ou da fala,
por exemplo. (“Desde que as
creches fecharam, as crianças quase não tiveram doenças”, entrevista com Graça
Gonçalves. Sábado, 19-05-2020). [os
destaques a cor-de- laranja foram acrescentados por mim, J.M.C.S]
Estes são apenas alguns excertos de uma entrevista toda ela muito
interessante. Creio ser esta a sua mensagem principal:
Desde que as creches fecharam, os miúdos quase não
tiveram nada, foi uma bênção. No início isto foi muito bem gerido, porque as
medidas aplicadas foram medidas de saúde e não políticas. Agora acho que
estamos a entrar em medidas um bocadinho economicistas. Por isso é que os pais
têm de ir trabalhar e os miúdos vão para o infantário (ibidem).
5.
Escapar à armadilha conceptual e socioeconómica
Recapitulando: a reabertura das creches em 18 de Maio colocou os pais das
crianças que frequentavam esses estabelecimentos perante um dilema que não tem
uma boa solução. As alternativas do dilema (A: retorno das crianças às
creches, permitindo que os pais — quer os que estão na situação resultante do «lay-off simplificado»,
quer os que perderam o emprego, quer os que prestaram assistência aos filhos
até 1 de Junho — possam regressar ao trabalho remunerado fora de casa, versus B: permanência das crianças
em casa, mas impedindo os pais de poderem regressar ao trabalho remunerado fora de casa a fim de sustentarem a família) são ambas más. A alternativa A enaltece o direito ao
trabalho dos pais à custa do direito à saúde dos filhos. A alternativa B
enaltece o direito à saúde dos filhos à custa do direito ao trabalho dos pais.
O facto de ambas as alternativas serem falaciosas e daninhas é uma prova concludente
de que a reabertura das creches em 18 de Maio é uma armadilha conceptual e socioeconómica.
Só é possível escapar a essa armadilha — evitando-a ou evadindo-se dela,
conforme for o caso — recusando os termos do dilema.
Sugiro que isso pode ser feito em dois tempos. Num primeiro tempo, é
necessário reconhecer que os pais que decidiram manter os seus filhos em casa
em 18 de Maio e em 1 de Junho, em vez de os fazer regressar às creches que
frequentavam antes do seu encerramento em 15 de Março, tomaram a decisão mais
acertada, ou menos má, na presente conjuntura pandémica [2].
A decisão desses pais foi a menos má porque consistiu em tomar o partido da
parte mais fraca e desprotegida — as crianças — colocando a salvaguarda dos
interesses (a saúde e o bem-estar) dos seus filhos de tenra idade acima da
salvaguarda dos interesses das “empresas” e da “actividade económica” (dois
pseudónimos correntes de “patronato”). Por isso, a decisão desses pais equivale,
na prática, a repudiar a reabertura das creches em 18 de Maio (e o dilema especioso
que ela encerra) por ser uma medida descabida e imprevidente do ponto de vista
da saúde e do bem-estar das crianças que mais carecem de protecção.
O texto que constitui a entrada anterior deste Diário ocupou-se longamente
em fundamentar este veredicto com grande cópia de factos e argumentos, aos
quais acrescentei, hoje, o testemunho da pediatra Graça Gonçalves, do qual só
tomei conhecimento depois da publicação desse texto, em 31 de Maio. Julgo, por
isso, não ser necessário voltar ao assunto.
Num segundo tempo, é necessário reconhecer que as crianças dos 3 meses aos
3 anos que frequentavam um creche antes da pandemia só poderão ficar em casa
se, pelo menos, um dos seus progenitores (se formarem um casal), ou o único progenitor
encarregado de educação (nas famílias monoparentais), ficar também em casa a
cuidar delas, em vez de ter de sair de casa para ganhar a sua vida.
Por conseguinte, os 800.000 trabalhadores colocados actualmente em redução do período normal de trabalho ou em suspensão do
contrato de trabalho, em virtude do regime de «lay-off simplificado» das empresas onde trabalham, não
poderão regressar todos ao seu posto de trabalho ou ao seu horário de trabalho
normal quando terminar esse «lay-off simplificado». O mesmo vale dizer dos que perderam
o emprego depois do começo da pandemia e que poderão, entretanto, tornar a encontrar
um emprego remunerado. Em Abril, estavam 392.323 pessoas inscritas num centro
de emprego, segundo anunciou o IEFP (Instituto do Emprego e Formação
Profissional) no dia 19 de maio. Em termos líquidos, no período em
análise, registaram-se mais 71.083 pessoas desempregadas em Portugal,
comparando com o mesmo mês de 2019.
Há uma solução para este problema. Uns e outros — trabalhadores colocados em redução do período normal de
trabalho ou em suspensão do contrato de trabalho em virtude do regime de «lay-off simplificado»
e trabalhadores desempregados — se tiverem filhos que deixaram de ir à
creche, deveriam ter um abono de família mensal extraordinário correspondente a
100% do salário médio líquido mensal. No caso dos trabalhadores que retomarem em
pleno as suas funções e o seu horário de trabalho em virtude do fim do «lay-off simplificado», esse abono de família
extraordinário deveria ser atribuído ao membro do casal [3], ou ao progenitor
único (nas famílias monoparentais), que ficar em casa a cuidar das crianças até
Setembro, pressupondo que já estarão asseguradas, nessa altura, as condições de
segurança necessárias ao seu retorno às creches.
Só uma medida deste género permitirá que os trabalhadores cujos filhos
frequentavam as creches até ao seu encerramento em 15 de Março possam escapar à
armadilha conceptual e socioeconómica que a reabertura das creches em 18 de
Maio representa.
Educadoras e crianças numa creche, depois de 18 de Maio de 2020 |
6. Uma objecção
A única objecção a esta medida que consigo antever é de carácter económico-financeiro.
Consiste em dizer que é uma medida que custaria muito dinheiro ao erário
público e que esse dinheiro (feliz ou infelizmente) não existe.
Essa objecção não colhe. Não é verdade que seja muito dinheiro nem que esse
dinheiro não exista. Vejamos porquê.
6.1.
Creches e frequência das creches
Em 31 de Dezembro de 2018, existiam, em Portugal continental, 2.570
creches, 76 % das quais propriedade de entidades não lucrativas. Destas 2.570
creches, 408 pertenciam à rede pública (Ministério da Educação e Ministério do
Trabalho, Solidariedade e Segurança Social) e 2090 pertenciam à chamada rede privada de solidariedade
social (instituições particulares de solidariedade social [IPSS]). Estas
creches ofereciam 117.300 lugares e eram frequentadas por um pouco mais de
100.000 crianças (Fonte: Carta Social-Rede de
Serviços e Equipamentos. Relatório de 2018).
Não existem estatísticas actualizadas. Por isso, vamos supor que, em 12 de Março
de 2020 (quando o governo decidiu o encerramento dos infantários, escolas e
CATLs), existiam 100.000 crianças nas creches, e vamos supor também, para
simplificar, que todas elas, meninos ou meninas, são filhos únicos.
Quanto custaria o abono de família extraordinário que propus mais acima?
Aqui, torna-se necessário fazer um aparte.
6.2.
Salário médio líquido mensal
O salário médio líquido nacional era de 909 euros em 2019 (Fonte: INE, 5 de Fevereiro de 2020). Todavia, dos
4 milhões e 100 mil de trabalhadores por conta de outrem que existem em
Portugal, mais de metade (2 milhões e 300 mil) recebe abaixo dessa média. Por
escalão de rendimento, os dados mostram que 1 milhão e 900 mil trabalhadores
por conta de outrem têm um rendimento médio mensal líquido entre 600 e 900
euros. Há ainda 100.500 trabalhadores a receber menos de 310 euros líquidos por
mês e 307.800 trabalhadores cujo salário líquido médio mensal se situa entre
310 euros e os 600 euros. Por outro lado, menos de 70.000 trabalhadores recebem
por mês mais de 2.500 euros líquidos em média, dos quais 37.900 mil recebem
três mil euros ou mais.
Seja como for, vamos supor, para simplificar, que um abono de família
extraordinário equivalente ao salário médio líquido mensal seria uma quantia
considerada equitativa mesmo pelos pais que auferem um salário líquido mensal
superior a essa quantia. Façamos então contas.
909 euros x 100.000 = 90.900.000 (90 milhões e 900 mil euros).
Este seria o custo mensal do abono de família extraordinário.
Como o abono de família extraordinário seria pago durante quatro meses
(Junho, Julho, Agosto, Setembro), temos
90.900.000 x 4 = 363.600.000 euros
6.3.
Custo do abono de família extraordinário
O custo total do abono de família extraordinário para as crianças das creches
seria, portanto, de 363 milhões e 600 mil euros.
Não é muito. Só o dinheiro transferido (1.037
milhões de euros, sendo 850 milhões de empréstimos públicos ao Fundo de Resolução), em
Maio deste ano, do Orçamento de Estado de 2020 para o Novo Banco (propriedade
em 75% do fundo de investimento Lone Star Funds,
do multimilionário de origem norte-americana John Grayken) dava para prolongar
o pagamento deste abono por mais 2 meses e meio, até ao começo das férias de
Natal, e ainda sobrava muito.
No total, desde a resolução do BES em Agosto de 2014 até à transferência de
Maio de 2020 (exclusive), o Orçamento de Estado injectou 5.180 milhões de euros no Novo Banco,
através do Fundo de Resolução. Em 2014, com a resolução do BES, foram injectados
3.900 milhões de euros. Em 2017, com a venda
do Novo Banco ao Lone Star Funds,
foi acordada a disponibilização de mais 3.890
milhões de euros no âmbito do Mecanismo de Capital Contingente. Deste
último montante, já foram utilizados, antes de Maio deste ano, 1.941 milhões de euros, dos quais 792 milhões de euros em 2018 e 1.149 milhões de euros em 2019 (Dinheiro Vivo, 17 de Dezembro 2019; Jornal de Negócios, 9 de Maio 2010).
7.
Conclusão
Não há nenhuma dificuldade financeira, técnica ou social na adopção e
aplicação de uma medida como esta, de elementar justiça e grande urgência. O
único obstáculo à sua adopção (e é um obstáculo de monta) é o facto de não encontrar
acolhimento nem no governo, nem nas centrais sindicais (CGTP, UGT), nem nos
sindicatos, nem nos partidos com assento parlamentar, pelo menos naqueles (PS,
Bloco de Esquerda, PCP, PAN, PEV) que as pessoas com a ingenuidade do jovem
Cândido, no romance homónimo de Voltaire, poderiam esperar que fôssem os seus
paladinos.
Salvo melhor informação, tanto estes partidos como os sindicatos não se
pronunciaram liminarmente contra a reabertura das creches em 18 de Maio ou, nos
raros casos em que o fizeram, não propuseram qualquer solução alternativa
viável [4].
Notas
[1] A reabertura das creches em 18 de Maio (ou em 1 de Junho) é uma medida que comporta riscos cujas consequências ninguém sabe avaliar nem evitar [v. Arquivo do Blogue, Maio 2020]
[2] A reabertura das creches em 18 de Maio parece ter sido um fiasco parcial. «Cerca de 70% das creches reabriram no dia 18 de Maio, de acordo com a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho» (Diário de Notícias, 1 de Junho 2020). «No primeiro dia, 88% das creches [entenda-se: as que estão ligadas à ACPEEP, que são uma pequena minoria] reabriram, mas tiveram em média entre quatro a seis crianças», disse à Lusa Susana Batista, presidente da Associação de Creches e de Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular (ACPEEP), com base no inquérito realizado na segunda-feira junto dos associados. Houve 12% que não receberam qualquer criança porque os pais «não quiseram arriscar já esta semana com receio [da pandemia de covid-19], mas mesmo assim houve uma abertura administrativa», explicou à Lusa (Lusa, 19 de Maio de 2020). O inquérito da ACPEEP revelou ainda que, entre os pais que enviaram as crianças para a creche, a maioria (60%) tem filhos no 1.º ciclo, ou seja, em escolas que este ano lectivo vão continuar sem aulas presenciais e, por isso, terão de permanecer em casa.
[2] A reabertura das creches em 18 de Maio parece ter sido um fiasco parcial. «Cerca de 70% das creches reabriram no dia 18 de Maio, de acordo com a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho» (Diário de Notícias, 1 de Junho 2020). «No primeiro dia, 88% das creches [entenda-se: as que estão ligadas à ACPEEP, que são uma pequena minoria] reabriram, mas tiveram em média entre quatro a seis crianças», disse à Lusa Susana Batista, presidente da Associação de Creches e de Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular (ACPEEP), com base no inquérito realizado na segunda-feira junto dos associados. Houve 12% que não receberam qualquer criança porque os pais «não quiseram arriscar já esta semana com receio [da pandemia de covid-19], mas mesmo assim houve uma abertura administrativa», explicou à Lusa (Lusa, 19 de Maio de 2020). O inquérito da ACPEEP revelou ainda que, entre os pais que enviaram as crianças para a creche, a maioria (60%) tem filhos no 1.º ciclo, ou seja, em escolas que este ano lectivo vão continuar sem aulas presenciais e, por isso, terão de permanecer em casa.
Nos planos do governo, 1 de Junho era o dia de reabertura dos jardins-de-infância e também do regresso de mais crianças às
creches, uma vez que terminava nesse dia o período de transição em que as
creches estiveram abertas, mas as famílias puderam optar por ficar com os
filhos em casa, mantendo o apoio financeiro do Orçamento de Estado. «No entanto, a perceção dos educadores dita que a
afluência de crianças nestes estabelecimentos foi muito pouco significativa»
(Diário de Notícias, 1 de Junho 2020). A reabertura dos
jardins-de-infância em 1 de Junho — apesar de não suscitar, em minha opinião,
objecções de princípio da mesma natureza do que as suscitadas pela reabertura das
creches — parece ter sido também um fiasco. «Em
grande parte dos estabelecimentos de pré-escolar, abertos a partir desta
segunda-feira, o número de crianças presentes não chega a 20%, dizem diretores.
Estatísticas que contrariam as expectativas». (Diário de Notícias,
1 de Junho 2020).
[3] Bem entendido, nada impede que a mãe e o pai compartilhem
alternadamente essa tarefa, mês sim, mês não.
[4] No comunicado de 11 de Maio do secretariado nacional da Federação
Nacional dos Professores (FENPROF), pode ler-se: «a
FENPROF já solicitou uma reunião à Ministra do Trabalho, Solidariedade e
Segurança Social para discutir as condições em que se prevê a reabertura das
creches e que, a serem as que têm sido divulgadas, não poderão merecer o acordo
da FENPROF». Porém, salvo melhor informação, o secretariado da FENPROF
não tornou a pronunciar-se sobre este assunto.
A Federação Nacional da Educação (FNE) «defende
que as normas para a reabertura das creches devem ser elaboradas em conjunto
com os educadores de infância». «Assim como
estão não são adequadas, nem exequíveis», disse ao PÚBLICO o
secretário-geral da FNE, João Dias da Silva (Público, 11 de Maio 2020).
Porém, salvo melhor informação, o secretário-geral da FNE não tornou a
pronunciar-se sobre o assunto.
A direcção do Sindicato de Todos os Professores (STOP), em parceria com o
blogue ComRegras, realizou um inquérito intitulado “Regresso às Escolas”. Este inquérito foi
respondido entre domingo,10 de Maio, e terça-feira, 12 de Maio, por 6.170
pessoas, a maioria profissionais de ensino (58%) e cerca de 2070 encarregados
de educação (33,6%). Os resultados, publicados em 13 de Maio, revelam que 85,5%
dos pais e 86,6% dos profissionais de ensino. inquiridos estão contra a
reabertura das creches (e também do pré-escolar). Porém, salvo melhor informação, a direcção do
STOP não propôs qualquer iniciativa que desse corpo a esta oposição.
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