Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

19 dezembro, 2020

 Temas 2 e 3

Julian Assange no Parlamento Europeu 

José Catarino Soares

1. Introdução

A relatora do relatório anual do Parlamento Europeu sobre A Situação dos Direitos Fundamentais na União Europeu para os anos 2018-2019, a eurodeputada socialista independente Clare Daly (irlandesa), propôs um aditamento relativo a Julian Assange – o aditamento 44 ao considerando W – a esse relatório.

Na fase em que esse relatório foi discutido na Comissão das Liberdades Cívicas desse parlamento, a maioria dos eurodeputados  da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (grupo ao qual pertence o PS português) e do Partido Popular Europeu (grupo ao qual pertencem o PSD e o CDS) votou contra a inserção desse aditamento. Como estes dois grupos são os mais numerosos no Parlamento Europeu, este voto preliminar fazia temer o pior. Por isso, muitas pessoas por essa Europa fora, entre as quais me incluo, enviaram cartas aos eurodeputados destes dois grupos do Parlamento Europeu (incluindo os seus membros portugueses), instando-os a votar a favor do aditamento 44 aquando da votação final do relatório, no passado dia 24 de Novembro.

Fui saber o resultado desse voto: o aditamento passou? Não passou? Quem votou a seu favor? Quem votou contra? Isto porque os iniciadores da campanha a favor da aprovação do aditamento não tiveram o cuidado de informar os seus apoiantes do que se passou no Parlamento Europeu  aquando dessa votação, nem mostraram vontade de o fazer, uma atitude que considero lamentável.

Consegui obter todas as informações que pretendia pelos meus próprios meios. Não foi difícil consegui-lo, nem levou muito tempo. São as que constam das secções 2, 3 e 4 seguintes.

2. Quem votou e como votou

Resultado da votação respeitante ao aditamento 44 ao considerando W do relatório Situation of Fundamental Rights in the European Union – Annual Report for the years 2018-2019:

 

A favor 191 (28%)

Contra 408 (59%)

Abstenções 93 (13%)

Votos necessários à aprovação  300


Quem quiser saber quem foram os deputados que votaram deste modo (de todos os partidos e todos os países membros da UE) o aditamento 44 pode fazê-lo facilmente clicando na seguinte hiperligação: 

https://www.votewatch.eu/en/term9-situation-of-fundamental-rights-in-the-european-union-annual-report-for-the-years-2018-2019-motion-f-95.html.

Os eurodeputados portugueses que votaram CONTRA o aditamento 44 foram todos os eurodeputados do PS (Isabel Carvalhais, Sara Cerdas, Maria Manuel Leitão Marques, Margarida Marques, Pedro Marques, Manuel Pizarro, Isabel Santos, Pedro Silva Pereira, Carlos Zorrinho), todos os eurodeputados do PSD (Álvaro Amaro, Maria da Graça Carvalho, José Manuel Fernandes, Cláudia Monteiro de Aguiar, Lídia Pereira, Paulo Rangel) e o único eurodeputado do CDS (Nuno Melo).

Votaram A FAVOR do aditamento 44 os dois eurodeputados do Bloco de Esquerda (Marisa Matias, José Gusmão), os dois eurodeputados do PCP (João Ferreira, Sandra Pereira) e o deputado não-inscrito, ex-PAN (Francisco Guerreiro).

3. O aditamento 44

Recordo que o aditamento 44 de Clare Daly, que foi chumbado, tinha o seguinte teor (ver coluna do lado direito):                                                     


Proposta de resolução W

Alteração e aditamento 44


Considerando que os alertadores [Ingl. “whistleblowers”] desempenham um papel essencial em qualquer democracia aberta e transparente;  que os alertadores são fundamentais para promover a transparência, a democracia e o Estado de direito, ao revelarem comportamentos ilícitos ou repreensíveis que põem em causa o interesse público, como actos de corrupção, infracções penais ou conflitos de interesses, que constituem ameaças aos direitos e liberdades dos cidadãos;


Considerando que as revelações dos alertadores [Ingl. “whistleblowing”] constituem um aspeto fundamental da liberdade de expressão e desempenham um papel essencial na detecção e comunicação de irregularidades, bem como no reforço da responsabilidade e transparência democráticas; que as revelações dos alertadores representam uma fonte essencial de informação no combate à criminalidade organizada, assim como na investigação, identificação e divulgação de casos de corrupção nos sectores público e privado; que os jornalistas e outros profissionais da comunicação social na UE são alvo de inúmeros ataques, ameaças e pressões por parte de intervenientes estatais e não estatais; que a detenção e o processo penal contra Julian Assange estabelecem um precedente perigoso para os jornalistas, conforme foi afirmado pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa1‑a; que a protecção adequada dos alertadores [Ingl. “whistleblowers”], tanto a nível da UE como a nível nacional e internacional, bem como o reconhecimento do papel importante desempenhado pelos alertadores na sociedade, são condições prévias necessárias para garantir a eficácia desse papel; [1]

………………………

 1-a Resolution 2317 (2020) of the Parliamentary Assembly of the Council of Europe on threats to media freedom and journalists’ security in Europe

          ………………………

4. A declaração de Clare Daly

A própria Clare Daly votou contra o relatório final do qual foi relatora pelo facto de este não ter incorporado o aditamento 44 e outros aditamentos, alguns dos quais também da sua lavra. Esta foi a declaração que fez justificando a sua posição (o destaque a amarelo foi acrescentado por mim):


Sr. Presidente, ao apresentar este relatório, gostaria de reconhecer o enorme interesse que ele encerra. Tivemos mais de 600 alterações e aditamentos complexos e muitas vezes contraditórios, por isso não tem sido um processo fácil. Gostaria de agradecer especialmente à minha magnífica equipa, Megan, Lide e Eadaoin. Gostaria de agradecer ao Secretariado da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos, e ao pessoal de todos os grupos políticos pela sua paciência e profissionalismo. Não há dúvida. A Carta [dos Direitos Fundamentais da União Europeia] é um documento importante que contém direitos que, se fossem postos em prática, permitiriam que todos os cidadãos alcançassem todo o seu potencial e levassem uma vida digna.
Clare Daly

Mas temos de ser honestos: estamos a milhões de quilómetros dessa situação. A consciência dos direitos consignados na Carta é baixa, há uma total falta de integração nas prioridades económicas e políticas, e pior ainda, em vários Estados-Membros, os direitos fundamentais estão a ser atacados e minados. Portanto, este relatório foi uma oportunidade para ganharmos algum recuo, olharmos para o que está a acontecer e perguntarmo-nos porquê. Estou muito contente por termos conseguido manter uma forte secção de direitos económicos e sociais no início porque, embora os direitos fundamentais sejam absolutos em teoria, se não tivermos um tecto estável sobre a cabeça ou acesso à educação ou acesso a cuidados de saúde, então só podemos sonhar em ter os nossos direitos protegidos.

Fico feliz pelo relatório reconhecer o impacto na desigualdade de cortes nas despesas públicas, mas lamento não podermos chamá-los pelo seu nome certo: austeridade. Fico contente com os pontos sobre os direitos sexuais e reprodutivos, sobre os retrocessos e a criminalização da acção humanitária. Mas, embora reconheça isso, lamento profundamente a fraqueza deste relatório devido à nossa incapacidade de nos unirmos e de chamarmos a atenção para abusos e nomear os países que os cometem — uma timidez que não é replicada quando falamos de países fora da UE. Temos agora a situação absurda de existir um relatório de direitos fundamentais em que não podemos mencionar um país, nem mesmo no corpo do texto, nem mesmo numa nota de rodapé se vier do Conselho da Europa e tiver o nome de um país no seu título. Colegas, isto é uma loucura total.

George Orwell disse: «Se a liberdade significa alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir». É óbvio que há pessoas aqui que não querem ouvir falar da Catalunha, o que não me surpreende porque se trata de uma acusação ao Estado espanhol e à UE. Mas é um bom exemplo do problema deste relatório, porque, em vez de o fazermos abertamente, como o Conselho da Europa o fez, temos um relatório de direitos fundamentais que trata da liberdade de expressão, em que a exposição de motivos foi expurgada por ter tido a audácia de mencionar o facto de haver deputados na prisão com penas superiores a 10 anos por organizarem um plebiscito democrático. Lamento, mas se isso não é igual ao que o relatório condena como o uso de um sistema judicial para fins políticos com o propósito de silenciar uma oposição, então não sei o que seja.

Mas os grandes grupos [multinacionais de eurodeputados] não queriam isso. Não conseguiram lidar com a verdade, por isso, após a votação da comissão, nove meses após a publicação da exposição de motivos, essa declaração, que nunca foi votada, teve de ser proibida. E fiquem a saber que me sinto um pouco como o autor de A Alegria do Sexo, um livro que foi banido na Irlanda e do qual nunca ninguém tinha ouvido falar até ser banido, e depois todos o queriam ler. Destarte, uma exposição de motivos de que normalmente ninguém quer saber já foi publicada, sob a forma de brochura, em inglês e espanhol, e está actualmente a ser traduzida para catalão. Muito obrigado por isso.

Portanto, os direitos fundamentais devem transcender o interesse próprio e o jogo político. Eles deviam ser o grande igualizador, que se aplica sem olhar a quem és tu ou de que país és. Se ignorarmos isso, isso só nos leva ao beco sem saída de um relatório sobre direitos fundamentais que trata de alertadores [Ingl. “whistleblowers”] e de liberdade de imprensa, mas que omite mencionar Julian Assange e o perigoso precedente que se abriria para o jornalismo na UE se a Administração Trump conseguisse extraditá-lo para os EUA e encarcerá-lo 175 anos numa prisão de alta segurança. Este é o maior caso de agressão à liberdade de imprensa da nossa geração e continuamos em silêncio.

Votei a favor do relatório ir a plenário na esperança de que o bom senso prevalecesse e que fosse melhorado aqui e que questões como estas viessem de novo a lume. Mas se não forem, não hesitarei em votar contra este relatório porque é melhor que não tenhamos um relatório do que termos um relatório fraco ou hipócrita. Talvez então enfrentemos a verdade de que, apesar de toda a nossa conversa fiada sobre direitos fundamentais, temos tido pessoas a encher as ruas da Bulgária há meses contra um partido corrupto no poder, engordado com dinheiro da UE.Temos migrantes deixados a apodrecer e a infectar-se em campos de detenção, enquanto barcos com mulheres grávidas e crianças são repelidos para o mar pelas forças estatais na Grécia. Temos migrantes violados com ramos de árvores pelas forças estatais na Croácia. Temos muçulmanos perseguidos na França. E, sim, temos parlamentares na prisão em Espanha. Portanto, esta é a vossa Europa, e a escolha é clara. Ou papagueamos generalidades sobre os direitos fundamentais ou pomos a Carta [dos Direitos Fundamentais da União Europeia] em prática. Ando nisto há dez anos, sou muito clara na escolha do lado onde me situo. (Terça-Feira, 24 de Novembro de 2020) [2]

5. Significado do caso Julian Assange

Descobri recentemente (para grande e desagradável surpresa minha) que tenho amigos que não sabiam bem quem é Julian Assange e que desconheciam os motivos pelos quais está preso numa prisão de alta segurança no Reino Unido há mais de um ano e meio. Se assim é, presumo que serão muitas as pessoas que se encontram no mesmo estado de ignorância acerca desta importantíssima questão.

Permitam-me, por isso, lembrar que Julian Assange é um destemido jornalista australiano, o fundador da WikiLeaks, ao qual devemos a divulgação de toda a espécie de factos de interesse geral e de crimes de alto coturno, incluindo crimes contra a humanidade que, por vontade dos deuses, deveriam ser segredos bem guardados fora do alcance do comum dos mortais.

A WikiLeaks é uma gigantesca biblioteca virtual dos documentos mais perseguidos do mundo — mais de 10 milhões. «Damos asilo a esses documentos, analisamo-los, publicitamo-los e arranjamos mais» (J.Assange, entrevista, Spiegel On Line, 20-07-2015). Pela sua meritória actividade, Julian Assange e a WikiLeaks já ganharam mais de 15 dos mais prestigiados prémios de jornalismo.

Em 12 de Abril de 2019, Assange foi raptado da Embaixada do Equador em Londres – país que lhe tinha dado asilo político e onde vivia sitiado há 7 anos por temer ser extraditado directa ou indirectamente (via Suécia ou Austrália) para os EUA – por homens não identificados, muito provavelmente agentes à paisana das polícias secretas do Reino Unido (já que se movimentaram sempre com todo o à-vontade sob o olhar complacente de agentes fardados da Polícia Metropolitana), sequestrado em parte incerta e posteriormente encarcerado em Belmarsh, uma prisão de alta-segurança destinada a autores de crimes violentos — tráfico de drogas, posse e venda de explosivos, agressão sexual, violação, assalto à mão armada, rapto, homicídio involuntário, tentativa de homicídio, homicídio, crimes de terrorismo.

A prisão de alta-segurança Belmarsh, na zona ocidental Londres, foi comparada várias vezes com a prisão militar da base naval de Guantanamo Bay dos EUA, num enclave de Cuba

O governo de Sua Majestade britânica efectuou este rapto e este sequestro numa prisão oficial – ambos actos sem precedentes nos anais do Reino Unido, um país que se gaba de ter inventado o habeas corpus – para satisfazer um pedido de extradição de Assange feito pelo governo de Donald Trump. Sobre Assange impende a ameaça de ser condenado a uma pena que poderá ir até 170 anos de prisão, se for extraditado para os EUA e aí julgado ao abrigo do Computer Fraud and Abuse Act (1984) – «uma lei de definição mínima [do crime que postula] que pode ter consequências maximamente destrutivas», segundo a caracterização do advogado Tor Ekeland (Wired, 5-07-2019) – e do Espionage Act (1917).

De que é acusado Assange para merecer tão dura e mirabolante pena? De crimes hediondos? Não, precisamente do contrário. Assange é acusado de ter cometido o delito (pelo visto de lesa-majestade) de ter denunciado publicamente, com provas irrefutáveis – centenas de milhares de documentos secretos, incluindo videofilmes, que lhe foram transmitidas pelo então soldado e analista dos serviços secretos militares americanos em comissão de serviço no Iraque, Bradley Manning –, hediondos crimes de guerra cometidos por elementos das Forças Armadas dos EUA no Iraque. O rapto, sequestro em prisão e pedido de extradição de Assange configuram o maior atentado à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa cometido nos países ditos democráticos desde a 2ª guerra mundial. Se tiver êxito, nunca mais nenhum jornalista (e com maioria de razão nenhum simples cidadão) poderá relatar factos incómodos e publicar verdades inconvenientes para os poderes estabelecidos sem correr o risco de ser caçado e sequestrado como um animal feroz onde quer que esteja, encarcerado em Belmarsh, Guantanamo ou outra qualquer prisão de alta-segurança e sentenciado à prisão perpétua ou pior.

Foi este atentado sem precedentes contra os direitos fundamentais [3] que os eurodeputados do PS, do PSD e do CDS quiseram silenciar com o seu voto contra o supracitado aditamento 44 a um relatório anual (2018-2019) sobre… os direitos fundamentais (!!!) na União Europeia. Para mim, isto diz tudo sobre a natureza política e moral destes deputados.

6. Passado e futuro do caso Julian Assange

Não me vou alargar mais sobre o passado do caso Assange. Remeto os leitores interessados para dois textos que escrevi sobre o assunto no ano passado neste mesmo blogue:

Hackers, Crackers e Whistleblowers, publicado em 12-09-2019. Hiperligação:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2019/09/tema-3-hackers-crackerse-whistleblowers.html

Julian Assange Corre Perigo, publicado em 14-04-2019. Hiperligação:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2019/04/tema-2-sinto-mo-muito-honrado.html

Este último serve de introdução a um notável texto sobre Assange do seu compatriota John Pilger, uma lenda viva do jornalismo independente.

Publiquei também, em 17-04-2019, neste blogue, um Post-Scriptum sobre a campanha, então em curso, para impedir a extradição de Assange para os EUA — e que foi bem sucedida, porque passou, entretanto, mais de um ano e meio e ele ainda não foi extraditado. Esse P.S. vem a seguir ao texto de Pilger.

Julian Assange, em 2014, quando habitava na embaixada de Londres da República do  Equador que lhe concedera asilo político. Foto: Creative Commons

Com a eleição de Joe Biden para a presidência dos EUA, as probabilidades de conseguirmos libertar Assange e de anular o pedido de extradição que impende sobre ele aumentaram consideravelmente, como julgo que será evidente para todos. Isso sucede não por Biden ser “boa pessoa” ou “melhor pessoa” do que Trump, mas porque a supremacia dos EUA como potência hegemónica (vulgo, a sua posição como manda-chuva mundial) está muito mais enfraquecida hoje em dia do que há 4 anos, quando Trump foi eleito, dadas as profundas divisões internas que existem na classe dominante americana e que se avolumaram durante o consulado de Trump.

Mas uma conjuntura mais favorável à acção não passa disso mesmo. Se formos amigos e defensores das liberdades e direitos fundamentais, não podemos baixar os braços. Assange só será libertado se a campanha para o libertar prosseguir e se ampliar. Voltarei por isso a este assunto.

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                                                          Notas

[1] A tradução é da minha responsabilidade.

[2] A tradução é da minha responsabilidade. 

[3] Se instado a justificar a conduta celerada que tem tido no caso Julian Assange (o que ninguém no Parlamento ou na imprensa britânica se deu ao trabalho de fazer), o governo Tory de Sua Majestade Britânica invocaria muito provavelmente a “prerrogativa real”. Este é um vetusto dispositivo feudal qualificado de “constitucional” (em novilíngua orwelliana, bem entendido, porque o Reino Unido não tem Constituição escrita, muito menos uma Constituição aprovada por sufrágio universal), em virtude do qual o governo pode apropriar-se discricionariamente, e sem a autorização do parlamento britânico, dos poderes absolutos outrora atríbuídos ao monarca real – designado, na gíria jurídica, por a “Coroa” – para agir fora da lei (v.Thomas Poole, “United Kingdom: The royal prerogative”. I*CON, International Journal of Constitutional Law, (2010), Vol. 8 Nº. 1 146 – 155; Sebastian Payne, “The Royal Prerogative”, in The Nature of the Crown: A legal and political analysis. Maurice Sunkin & Sebastian Payne, eds., Oxford University Press 1999).

Apesar dos juristas britânicos não se entenderem sobre a definição da “prerrogativa real” ou mesmo sobre o alcance dos poderes que estão sob a sua alçada, todos estão de acordo num ponto: é impossível falar na prerrogativa real sem evitar ouvir o tilintar das grilhetas medievais dos fantasmas do passado — uma frase que se tornou favorita entre os juízes em casos que envolvem a prerrogativa («it is practically impossible in this corner of British public law to avoid, in a phrase that has become a favorite among judges in cases involving the prerogative, “the clanking of mediaeval chains of the ghosts of the past”», Poole, op.cit., p.147).

Não é a primeira vez que os governos de Sua Majestade Britânica se servem da prerrogativa real para satisfazer subservientemente os desejos dos governos dos EUA. Convém recordar que foi também ao abrigo da “prerrogativa real” que foi tomada a decisão de expulsar a população nativa do Arquipélago de Chagos, no fim da década de 1960 e princípio da década de 1970, para que os EUA pudessem instalar aí uma base militar.

Mas nenhum destes despudorados e brutais atentados contra os direitos e liberdades fundamentais impede que a grande maioria dos políticos profissionais, dos politólogos, dos comentadores e dos jornalistas dos meios de comunicação social aproveite todas as ocasiões para nos apresentar o Reino Unido como o modelo acabado do “Estado de direito [!!] democrático [!!!!]”.


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