Tema 3
Alice,
a Rainha Branca
e
os sindicatos “impossíveis”
José Catarino Soares
1. Introdução
Este artigo é uma sequela imprevista do anterior, As razões da fraqueza da classe dos
trabalhadores assalariados e os meios da sua superação (1), publicado
neste blogue em 7 de Fevereiro de 2021 (v. Arquivo do Blogue no fim da coluna
da direita).
O motivo para o escrever foram alguns comentários e algumas objecções que
ele suscitou a dois dos meus amigos (um do sexo feminino [f] e outro do
sexo masculino [m]). Vou numerar esses comentários com estas letras e algarismos
romanos para facilitar remissões ulteriores. Um desses comentários dizia em
substância o seguinte:
f-I) O teu artigo é uma glosa, mais uma, da velha palavra de
ordem “a união faz a força”. Mas como poderão
trabalhadores com qualificações e remunerações tão diferentes quanto, por
exemplo, os pilotos e os trabalhadores administrativos da TAP, coabitar no seio
de um mesmo e único sindicato ? E já agora: qual é a razão da pulverização
sindical ?
2. As razões da pulverização sindical
Respondi à minha amiga que ambas as perguntas tinham uma resposta fácil. A
pulverização sindical é o resultado inevitável da construção de
sindicatos profissionais e de ofício.
Segundo a taxonomia ESCO (European Skills,
Competences, Qualifications and Occupations) da Comissão Europeia, existem 2.942
profissões e ofícios (Ingl. “occupations”). Se os sindicatos forem construídos
tomando como unidade de base uma profissão ou um ofício, o resultado, mesmo
agregando várias profissões ou vários ofícios num mesmo sindicato [1], será a existência de centenas de sindicatos, alguns dos
quais muito pequenos.
Por exemplo, existem, como assinalei no artigo anterior, 14 sindicatos na TAP, uma empresa que tinha 8.510 trabalhadores em Setembro de 2020. Isso dá uma média de 607 trabalhadores por sindicato, se todos os trabalhadores forem sindicalizados!
Em Setembro de 2020, aquando do seu último (XIV) congresso, a CGTP declarou ter 556.363 associados, organizados em
125 sindicatos. Isso dá uma média de 4.459 associados por sindicato (!). Em Março
de 2017, aquando do seu último (XIII) congresso, a UGT
declarou ter 458.000 associados, organizados em 50 Sindicatos. Isso dá uma média
de 9.160 trabalhadores por sindicato (!). São, em ambos os casos, números
irrisórios.
A pulverização sindical não é uma pecha do movimento sindical
português. É uma pecha da maioria do movimento sindical à escala internacional. Alguns
exemplos: na Argentina existem 91 sindicatos, nos Estados Unidos 130
sindicatos, no Reino Unido 168, no Brasil 16.393 sindicatos (!!). De
resto, os números do Brasil são de 2017 e portanto estão já desactualizados, porque, a cada mês que passa, surge um novo sindicato. Só as igrejas
evangélicas, que nascem todos os dias como cogumelos, registam um crescimento
maior do que esse. Pode parecer uma piada ou um paradoxo, mas até existe “o sindicato dos trabalhadores de sindicatos” [2].
As grandes excepções são a Áustria, com 7 sindicatos, e a Alemanha, com 8 sindicatos. Não há mistério nenhum nisto: é o resultado
do facto da organização sindical nesses dois países tomar por unidade de base os ramos de
indústria/actividade económica, que não são exactamente os mesmos de um país
para outro [3].
No caso da Áustria, a Österreichischer Gewerkschaftsbund (ÖGB –Confederação dos Sindicatos Austríacos) agrupa os seguintes 7 sindicatos: o GPA-djp (trabalhadores de escritório do sector privado, da indústria gráfica, da indústria do papel e do jornalismo); o GÖD (trabalhadores da administração pública, dos serviços públicos e das empresas públicas); o PRO-GE (trabalhadores das indústrias de transformação); o Younion (trabalhadores das autarquias locais); o Vida (trabalhadores dos transportes e serviços); o GBH (trabalhadores da construção civil e da indústria da madeira); o GPF (trabalhadores dos correios e das telecomunicações).
No caso da Alemanha, a Deutscher Gewerkschaftsbund (DGB – Confederação dos Sindicatos Alemães) agrupa os seguintes 8 sindicatos: o IG-BAU (trabalhadores da construção civil, da agricultura e do ambiente), o IG-BCE (trabalhadores da indústria química, da energia e das minas), o GEW (trabalhadores da educação e da ciência), o IG-M (trabalhadores da metalurgia), o NGG (trabalhadores da indústria agro-alimentar e da hotelaria), o EVG (trabalhadores ferroviários), o Ver.di (trabalhadores dos serviços), e o GdP (os polícias).
Mas, poderá perguntar-se, por que razão, então, se constroem e mantêm sindicatos por profissão e ofício em tantos países se isso conduz à pulverização sindical ?
Não é certamente porque isso seja conducente a uma defesa mais vigorosa e
eficaz dos interesses dos trabalhadores assalariados enquanto classe
explorada (veremos, num próximo artigo, qual o significado desta expressão
muito mal compreendida) – e não enquanto mero conglomerado estatístico de
milhares de profissões diferentes –, visto que a pulverização sindical é
sinónimo de desunião, fraqueza combativa e frouxidão reivindicativa.
Acresce que os próprios trabalhadores, apesar de não saberem como
superá-la, parecem ver essa pulverização com muito maus olhos. Uma prova disso
é a taxa de sindicalização em Portugal, que caiu de 60% em 1976 para 15,3% em
2019. Foi uma das maiores quedas verificadas nos países membros da Organização do Comércio e Desenvolvimento Económico (OCDE). O relatório desta organização sobre a
negociação colectiva, divulgado em Novembro de 2019, mostra ainda que Portugal
tem uma das mais baixas taxas de sindicalização na Europa ocidental. Só a França
e a Espanha estão abaixo, de acordo com dados de 2016, os últimos disponíveis
para todos os 36 países membros desta organização [4].
Assim sendo, só há uma resposta possível: a construção/manutenção de
sindicatos de profissão e ofício e a concomitante pulverização sindical existem
porque são a melhor forma de apresentar como inevitável a entronização de um
grupo social, ao qual chamarei os gestores da massa
laboral (por analogia com os “gestores da massa falida”), que serve
de intermediário permanente entre o patronato – ou entre o governo-patrão que
esteja em funções (no caso dos trabalhadores da administração pública e das
empresas públicas) – e os trabalhadores assalariados. A sua função é a de
moderar e arbitrar os conflitos entre os trabalhadores e o patronato/governo-patrão.
Este facto não é uma novidade recente. Muito longe disso. É uma realidade que
persiste há mais de um século. Na Itália, o dirigente máximo dos sindicatos
profissionais e de ofício no início do século XX, Rinaldo Rigola (1868-1954),
exprimiu com toda a franqueza a função dos gestores da massa laboral nos
seguintes termos:
As categorias de ofícios dos mais diversos, disseminadas
nos meios mais diversos, não se organizaram e não puderam superar as crises
senão na medida em que encontraram homens de valor e de confiança dispostos a
trabalhar para elas. Pelo contrário, as categorias de ofícios que tiverem maus
chefes não conseguiram organizar-se ou só conseguiram dotar-se de uma
organização defeituosa [5].
Rinaldo Rigola considerava-se um típico e ilustre exemplar desses “chefes valorosos e de confiança” dos sindicatos de
profissões e ofícios e não podemos acusá-lo de gabarolice. Ele sabia do que
falava e falava do que sabia. Foi o primeiro secretário-geral da Confederazione Generale del Lavoro (CGdL) de 1906 a 1918 e o presidente fundador da Associazione Nazionale Studi–Problemi del Lavoro durante
a vigência do regime fascista de Benito Mussolini, com quem pactuou a partir de
1926.
Em resumo: a pulverização sindical enfraquece os trabalhadores, diminui a
sua capacidade combativa e a sua eficácia reivindicativa, mas é um seguro de
vida que garante uma existência confortável aos gestores da massa laboral, a
oligarquia dirigente dos sindicatos profissionais e de ofício.
Compreende-se, por isso, a hostilidade e o ódio figadal de que os wooblies (os trabalhadores associados no sindicato Industrial Workers of the World [IWW]) eram alvo, nos EUA, por parte do patronato americano (v. figura 1), mas também por parte dos chefes da AFL (American Federation of Labor, a central dos sindicatos de profissões e ofícios, criada em 1886), no primeiro quartel do século XX, nos EUA, com a sua ideia e a sua prática de sindicatos organizados por ramos de indústria/actividade económica (e não por profissões e ofícios), coordenados entre si numa única e grande confederação sindical, transprofissional e transnacional (“One Big Union”, como diziam os wooblies).
Apesar da sua prática ter enfrentado violentíssimos ataques do patronato e
dos governos da oligarquia dominante americana (uma poderosíssima plutocracia capitalista) que quase a obliteraram durante mais de
50 anos [6], a ideia que fundou os IWW
– e que era, então (1905), uma ideia nova e não apenas nos EUA – continua viva
e mais actual do que nunca, capaz de inspirar uma prática correspondente ao seu
desiderato, com a condição de que sejam muitos a resgatá-la das brumas do
esquecimento, como eu o estou a fazer aqui.
3. Como pode funcionar um sindicato por ramo de indústria/ actividade económica
Num sindicato de tipo IWW, não há
dirigentes que “representam” os trabalhadores. São os trabalhadores que se
representam a si próprios, não como membros de um ofício e de uma profissão
entre milhares de outras, mas como trabalhadores assalariados num
determinado ramo de indústria/actividade económica, adoptando formas de
organização democráticas, antioligárquicas, como as que serão exemplificadas
mais abaixo.
O lema igualitário, antioligárquico, de um sindicato industrial é muito
simples: Não
reconhecer direitos sem deveres, nem deveres sem direitos aos seus associados [7]. A
tradução prática deste lema é também muito simples:
a) Ninguém deve exercer
sozinho uma função sindical;
b) Ninguém deve ter responsabilidades
sindicais exclusivas;
c) Num sindicato não há
chefes e subordinados, dirigentes e dirigidos. Todos são iguais em direitos e
deveres.
Isto significa, por exemplo, que todos os cargos e todas as funções
sindicais (delegados sindicais, negociadores sindicais, tesoureiros sindicais,
piquetes de greve, etc.) devem ser exercidos colegialmente para evitar a síndrome
da “solidão do guarda-redes antes de uma grande penalidade”, para prevenir os
erros e as falhas evitáveis, para promover a solidariedade, a confiança mútua e
a entreajuda dos associados. Significa que todos os cargos e todas as funções
sindicais específicas devem ser exercidos por tiragem à sorte e rotativamente
por todos os associados (para não entronizar ninguém e promover a aprendizagem
de todos) e por períodos curtos (para não sobrecarregar ninguém com um fardo excessivo).
Significa que as decisões mais importantes – como, por exemplo, a de convocar
ou desconvocar uma greve – são tomadas por referendo de todos os associados.
É óbvio que um sindicato de ramo de indústria/actividade económica
organizado segundo estes princípios não precisa de eleições periódicas e de
campanhas eleitorais para eleger os seus chefes, porque não necessita de
chefes. Os chefes só são necessários nas organizações oligárquicas por predefinição,
como são as forças militares, as forças policiais e as firmas capitalistas,
onde a hierarquia de poderes e a cadeia de comando são imprescindíveis ao seu
funcionamento.
Com a obsolescência funcional das eleições e das campanhas eleitorais nos
sindicatos para a selecção dos gestores da massa laboral fica desde logo
eliminada pela raíz uma das fontes principais de corrupção, demagogia, nepotismo,
promiscuidade e colusão desses gestores com as oligarquias patronais e
partidárias [8].
Respondo agora à segunda objecção de f-I. Nada impede que as
especificidades de uma dada categoria profissional (por exemplo, a dos pilotos
da TAP) sejam defendidas, tal como as especificidades de qualquer outra
categoria profissional (por exemplo, os trabalhadores administrativos da TAP),
no seio de um sindicato onde coabitem uns e outros. Bastaria
que os trabalhadores da TAP estivessem associados num único sindicato da aviação
civil (em vez dos actuais 14 sindicatos de profissões e ofícios) organizado
segundo os princípios expostos mais acima.
E só haveria vantagens que assim sucedesse — por exemplo, na elaboração e
negociação de um contrato colectivo de trabalho feito a contento de todos. Num tal
contrato colectivo de trabalho, as cláusulas específicas relativas aos pilotos teriam
de ser redigidas, discutidas e aprovadas pelos próprios pilotos, sem
interferência obstrutiva dos trabalhadores administrativos (ou de qualquer
outra categoria profissional da mesma empresa). E o mesmo sucede relativamente
às cláusulas específicas relativas aos trabalhadores administrativos: só a eles
caberia redigi-las, discuti-las e aprová-las sem interferência obstrutiva dos
pilotos (ou de qualquer outra categoria profissional da mesma empresa). As cláusulas
gerais, comuns a todos os trabalhadores, seriam discutidas e aprovadas por
todos os trabalhadores, independentemente da sua categoria profissional ou do
seu ofício. Uma vez elaborado e aprovado, desta maneira, o contrato colectivo
de trabalho dos trabalhadores da TAP, a sua negociação com o conselho de
administração da TAP seria feita segundo os princípios da paridade (de
representação categorial), colegiabilidade e rotatividade dos trabalhadores incumbidos
da sua negociação.
Mas se um trabalhador, seja ele piloto, administrativo ou de outra qualquer categoria profissional fôsse atacado pela entidade patronal, todos se mobilizariam em sua defesa: “Um ataque a um, é um ataque a todos” («An injury to one, is an injury to all»), como diziam os wooblies já em 1905.
Figura 2. Emblema de lapela do IWW (Industrial Workers of the World) com o lema: “um ataque a um é um ataque a todos” |
Aqui chegados, eis, porém, que surgiram duas novas objecções:
f-II) Considero abissal a distância
salarial, e as respectivas condições de vida, entre um comandante da TAP e de um trabalhador
administrativo da mesma firma. É como um país, todos nós lhe pertencemos e não
o queremos perder: “É o nosso país”…Porém, quanta diferença
de condições de vida entre os cidadãos! ...
Dificilmente se podem pôr de acordo ricos e pobres, privilegiados e
sacrificados...
m-III) A
pulverização sindical chegou a tal ponto (o poder apostou forte neste domínio,
desde os tempos da “unicidade sindical” ) que voltar a unir as pontas é
trabalho de Hércules. Creio que não deve haver hoje, em Portugal, uma profissão
que não tenha dupla filiação, no mínimo. E a cada processo de luta, em vez de
assistirmos à reunificação, acaba por surgir um novo sindicato (o dos
Professores, que bem conhecemos, é um bom exemplo).
Por outras palavras (as minhas): f-II assevera que O Oriente é o Oriente e o Ocidente é o Ocidente e nunca os
dois se hão-de encontrar [9], ao passo que m-III
afirma que o esterco criado pela pulverização sindical orquestrada pelos
gestores da massa laboral pede meças ao que existia nos estábulos do rei
Áugias, pelo que só Hércules o poderia limpar. Moral da história: os
sindicatos por ramo de indústria/actividade económica são impossíveis ou só
serão possíveis no dia de São Nunca à Tarde.
Ao ler estas objecções e ao pensar nas respostas a dar-lhes apercebi-me que
umas e outras eram muito semelhantes às de um diálogo entre Alice e a Rainha
Branca no conto Alice do Outro Lado do Espelho de Lewis Carroll.
[Rainha Branca:] Vamos começar por considerar a
tua idade — quantos anos tens?
[Alice:] Tenho sete anos e meio exactamente.
Não precisas de dizer “exactualmente”, fez notar a Rainha. Eu
consigo acreditar em ti sem isso. Agora vou dar-te algo para acreditares. Só
tenho cento e um anos, cinco meses e um dia.
Não posso acreditar nisso !, disse Alice.
Não podes? disse a Rainha num tom de lástima. Tenta outra vez: inspira fundo e
fecha os olhos.
Não vale a pena tentar – disse Alice –, não se pode acreditar em
coisas impossíveis.
– Atrevo-me a dizer que não tens muita prática –
respondeu a Rainha – Quando tinha a tua idade fazia-o durante hora e meia.
Olha, às vezes conseguia acreditar em seis coisas impossíveis antes do
pequeno-almoço [10].
Valerá a pena lembrar as “coisas impossíveis”
que já aconteceram, mesmo que nos
fiquemos só por aquelas que ocorreram durante a nosso tempo de vida — a destes
meus amigos e a minha?
Lembro apenas seis, para não destoar
da Rainha Branca: o voo de Yuri Gagarin (1961) a bordo da nave espacial Vostok
I, o primeiro ser humano a ir ao espaço sideral e a fazer uma órbita completa ao
redor do planeta Terra; o voo da nave espacial Apolo 11 que transportou Michael
Collins, Neil Armstrong e Buzz Aldrin, os primeiros seres humanos a orbitar a
Lua e a pisar a sua superfície (1969); o derrube do regime fascista em Portugal
(1974) que vigorava em Portugal há 48 anos por um golpe de Estado organizado
por capitães; a derrota dos EUA, a maior potência militar de todos os tempos, na guerra do
Vietnam (1975); a queda do muro de Berlim e a reunificação da Alemanha
(1989-1990); a implosão da União
Soviética (1991).
Comparada com estes acontecimentos, a ideia de uma reconstrução antioligárquica
do movimento sindical com base em sindicatos por ramos de indústria/actividade
económica não se afigura tão “impossível”
quanto possa parecer à primeira vista. Alice não é necessariamente mais
realista do que a Rainha Branca. Uma viveu ainda demasiado pouco tempo para
acreditar em “coisas impossíveis”, a outra já
viveu o suficiente para saber que elas são mais frequentes do que comummente se
supõe.
5. Diferenças salariais e de condições de vida
Há um ponto que convém esclarecer: a diferença salarial e de condições de
vida entre um comandante da TAP e um trabalhador administrativo da mesma
companhia aérea será assim tão abissal que justifique a recusa do primeiro em coabitar
com o segundo num mesmo sindicato?
Antes de responder a esta pergunta, convém saber que há quatro escalões ou
categorias de pilotos na TAP: oficial piloto 1, oficial piloto 2, oficial
piloto 3 e comandante.
Um comandante com 20 anos de experiência que faça voos de longo curso
pilotando um Airbus A330 tem, actualmente, uma remuneração (bruta) fixa de
11.303,28 euros mensais. Este salário é composto por um vencimento de categoria
de 7.040,96 euros mensais, 1.826,70 euros de vencimento de senioridade e
2.435,60 euros de vencimento de exercício.
Figura 4. Airbus A330 |
Já um oficial de piloto com um ano de experiência que faça apenas voos de médio curso, pilotando um Airbus A320, recebe 3.830,28 euros mensais de vencimento de categoria, 57,45 euros de vencimento de senioridade e 76,61 euros mensais de vencimento de exercício. No total recebe por mês 3.964,34 euros em remuneração fixa [11].
Figura 5. Airbus A320, o avião comercial de passageiros mais vendido até à data. |
Assim sendo, a distância salarial existente entre um comandante sénior da
TAP e um oficial piloto 1 (7.739 euros) é muito maior do que a distância salarial
entre um oficial piloto 1 da TAP e um TPPC sénior (1.515 euros) ou que a
distância salarial existente entre um oficial piloto 1 e um TC sénior (1.720
euros).
Consideremos agora duas categorias de trabalhadores administrativos da TAP: a de técnico de planeamento, preparação e compras (TPPC) e a de técnico comercial (TC). Os TPPC seniores ganham 2.449 euros mensais e os TC seniores ganham 2.244 euros mensais [12]
No entanto, se seguíssemos a linha de raciocínio de f-II, teríamos
de concluir que a diferença de salários e de condições de vida entre comandantes
seniores e oficiais pilotos juniores das linhas aéreas da aviação comercial é tão
grande que dificilmente se poderiam pôr de acordo na defesa de interesses
comuns e justificaria que os comandantes constituíssem um sindicato profissional
(o sindicato dos comandantes da aviação civil), distinto do sindicato profissional
dos oficiais pilotos (o sindicato dos pilotos da aviação civil).
Não afirmo que isso não possa vir a acontecer, pois é precisamente essa a
lógica do sindicalismo profissional que conduz à pulverização sindical. Mas
espero que este exemplo sirva para mostrar que essa lógica tem tanto de absurdo
como de contraproducente para os trabalhadores assalariados que nela se deixam
enredar.
6. Dois aliados da pulverização sindical
Há um ponto, porém, em que estou pronto para concordar com as objecções f.-II e m.-III destes meus amigos. Mas para isso tenho de modificar as suas teses da seguinte forma: impossível não é, mas não será certamente tarefa fácil superar a actual pulverização sindical.
A razão para isso não reside na astúcia e na capacidade de persuasão e de
manobra dos gestores da massa laboral (que não devem ser subestimadas [8]),
mas em dois discretos mas poderosos aliados que os apoiam.
O aliado mais discreto da pulverização sindical é a ignorância da maioria
dos trabalhadores sobre o que fazer para superar esse estado de coisas, apesar
da grande insatisfação que ele suscita e apesar da solução do problema poder
ser encontrada escavando – e nem sequer é preciso escavar muito! – na própria história
internacional do movimento sindical dos trabalhadores, um filão inesgotável de
ensinamentos. Mas este é um aliado transitório que poderá desaparecer de cena muito
rapidamente, se houver vontade de o fazer desaparecer com uma campanha maciça
de esclarecimento e debate.
Um aliado igualmente discreto, mas muito mais poderoso e duradouro da pulverização
sindical, é o aristocratismo profissional — a ideia de que
há profissões que são intrinsecamente melhores, mais nobres, mais respeitáveis,
mais úteis de que todas as outras e que merecem ser mais bem pagas e mais
acarinhadas do que todas as outras, razão pela qual os trabalhadores com essas
profissões não podem coabitar (“nada de misturas!”) no mesmo sindicato com
trabalhadores do mesmo ramo de indústria/actividade económica mas de outras profissões.
O aristocratismo profissional é uma crença meritocrática muito enraizada nos
grupos profissionais (relativamente) mais bem pagos da classe trabalhadora,
tais como, por exemplo, os pilotos de linha aérea da aviação comercial, os
médicos, os professores e os enfermeiros [13].
6.1. O caso dos pilotos de linha área
Frequentemente, esses grupos profissionais são também os mais qualificados, mas isso nem sempre acontece. Os pilotos de linha aérea, de avião ou helicóptero, são um exemplo disso.
Para se ser piloto de linha aérea da aviação comercial não é necessário fazer um doutoramento, um mestrado ou sequer uma licenciatura. Basta ter completado 21 anos, possuir o 12.º ano de escolaridade, passar os testes médicos e psicotécnicos específicos, e frequentar com aproveitamento um curso profissional para pilotos numa escola certificada. Os programas destes cursos têm uma duração mínima de 18 meses e são necessários para se obter uma licença de piloto profissional. O seu currículo compõe-se, regra geral, de doze disciplinas, que vão da meteorologia às técnicas de navegação. Depois da obtida esta licença teórica de piloto de linha aérea, são necessárias, no caso dos aviões, 1.500 horas de voo (das quais 500 horas em tripulação múltipla) para se graduar como oficial piloto e 3.000 horas de voo para poder assumir funções de comandante, bem como formação específica para cada modelo de avião.
Comparado com o longo processo de formação de um médico – curso integrado (licenciatura + mestrado) de 6 anos, mais um ano de Internato Geral (também conhecido por Ano Comum) e, pelo menos, mais 4 anos de Especialidade –, de um investigador científico ou de um professor do ensino superior, a formação dos pilotos de linha aérea pode considerar-se curta e relativamente estreita do ponto de vista dos conhecimentos e aptidões a adquirir. Isso não impede que esta profissão seja um ambiente propício para a propagação do aristocratismo profissional.
A questão não pode ser aqui aprofundada. Limitemo-nos a constatar que são as profissões mais diferenciadas pela (i) grande complexidade e/ou pelo custo elevado da sua formação inicial e contínua (embora não sendo necessariamente as mais qualificadas) devido ao elevadíssimo valor mercantil da aquisição e manutenção dos equipamentos que manuseiam [p. exemplo, um avião Airbus A380 custava cerca de 445 milhões de dólares americanos em 2018; o simulador de voo do Embraer E190 custava em 2019 mais de 16 milhões de dólares americanos], (ii) pelos potenciais riscos de vida que correm os segmentos da população afectados pelo seu exercício (passageiros, doentes, etc.) e que dispõem amiúde de um mercado de emprego internacional (o que lhes permite ter uma maior mobilidade profissional e auferir melhores salários do que outras com qualificações comparáveis), que são mais propensas a alimentar a crença auto-referencial na superioridade dos seus predicados.
Figura 7. Airbus A380, o maior avião de passageiros até à data. Pode transportar 853 passageiros e voar 14.500 km sem escalas. |
Por isso, são elas que constituem a base social de apoio mais firme do
sindicalismo profissional. E é nelas também que encontramos os exemplos mais claros
da pulverização sindical. Refiro-me aos professores e aos enfermeiros.
6.2. O caso dos
enfermeiros e o caso dos professores
Existiam cerca de 76.000 enfermeiros em Portugal em 2019 (fonte: Pordata). Desconhece-se
o número de enfermeiros sindicalizados. Segundo Gorette Pimentel, presidente do
Sindicato Independente de Todos os Enfermeiros Unidos (SITEU)
– o mais recente sindicato de enfermeiros, fundado em 2020 –, haveria apenas
10.000 enfermeiros sindicalizados (Público, 26-02-2020). Como se isto
não bastasse, estes estão distribuídos por sete sindicatos, o que dá, uma média
de 1.428 sindicalizados por sindicato (!):
— Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP),
Sindicato dos Enfermeiros (SE), Sindicato
Independente dos Profissionais de Enfermagem (SIPEnf),
Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (SINDEPOR),
Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE),
Sindicato dos Enfermeiros da Região Autónoma da Madeira (SERAM), Sindicato Independente de Todos
os Enfermeiros Unidos (SITEU).
O caso dos professores ainda é mais caricato. Há 146.992 educadores de
infância, professores do ensino básico e professores do ensino secundário e
35.283 professores no ensino superior [14]. E há 29 sindicatos de professores
(!):
— Sindicato dos Professores da Zona Norte (SPZN), Sindicato dos Professores do Norte (SPN), Sindicato dos Professores da Zona Centro (SPZCENTRO), Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC), Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL), Sindicato Democráticos dos Professores da Grande Lisboa e Vale do Tejo (SDPGL), Sindicato dos Professores da Zona Sul (SPZS), Sindicato Democrático dos Professores do Sul (SDPSUL), Sindicato dos Professores da Madeira (SPM), Sindicato Democrático dos Professores da Madeira (SDPMADEIRA), Sindicato dos Professores da Região dos Açores (SPRA), Sindicato Democrático dos Professores dos Açores (SDPA), Sindicato dos Professores no Estrangeiro (SPE), Sindicato dos Professores nas Comunidades Lusíadas (SPCL), Sindicato Independente dos Professores e Educadores (SIPE), Sindicato dos Professores Licenciados pelos Politécnicos e Universidades (SPLIU), Sindicato Nacional e Democrático dos Professores (SINDEP), Sindicato dos Professores Licenciados pelas Escolas Superiores de Educação e Universidades (SEPLEU), Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (SNPL), Sindicato Nacional dos Profissionais da Educação (SINAPE), Associação Sindical de Professores Licenciados (ASPL), Sindicato dos Professores e Educadores do Ensino Básico (SIPPEB), Sindicato Nacional dos Professores do Ensino Secundário (SNPES), Associação dos Trabalhadores da Educação (ATE), Associação Nacional dos Professores Contratados (ANPC), Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Educação a Contrato (SINATEC), Associação Sindical dos Professores (PRÓ-ORDEM), Sindicato de Todos os Professores (STOP), Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESUP).
O número de associados destes sindicatos é também um segredo bem guardado. Mas houve quem se desse ao trabalho de estimar esse número por métodos indirectos [15]. O resultado, para 17 dos 29 sindicatos, é o que consta da tabela seguinte.
Número de Associados |
Sindicatos |
||
Mais de 5000 |
SPGL |
||
4500-4999 |
SPN |
SPZN |
|
4000-4499 |
SPLIU |
||
3500-3999 |
SEPLEU |
SPRC |
SINDEP |
3000-3499 |
SIPE |
SPZC |
|
2500-2999 |
SPZS |
SNPL |
|
2000-2499 |
Sinape |
||
1500-1999 |
SDPSul |
||
1000-1499 |
SDPGL |
ASPL |
|
500 a 999 |
Pró-ordem |
||
Menos de 500 |
SIPPEB |
ATE |
7. Conclusão
Obviamente, não há nada que justifique, muito pelo
contrário, o vaticínio de que é nos professores, nos enfermeiros, nos médicos,
nos pilotos de linha aérea e noutros grupos imbuídos de aristocratismo
profissional que se iniciará o processo de regeneração e reconstrução do
movimento sindical segundo os princípios formulados há mais de um século pelos
IWW.
Figura 9. Joseph (“Smiling Joe”) Ettor (1885-1948), dos IWW – o homem de fato escuro debruçado sobre a balaustrada – discursa para os barbeiros em greve, na Union Square, em Nova Iorque, 1913. Na 2ª faixa a partir da esquerda lê-se: «Os Industrial Workers of the World conduzem esta greve. Isso significa êxito». Na 4ª e 5ª faixas pode ler-se: «Queremos um dia de trabalho de 12 horas. Ao sábado queremos terminar o trabalho às 16 horas. Os nossos patrões pensam que não trabalhamos o suficiente». Estas reivindicações, que nos parecem hoje modestíssimas, eram de facto muito ousadas à época. A prova disso é que o patronato da época as descrevia como o “ettorismo”: a chegada do caos, da anarquia e da destruição industrial (ver figura 1). Esta foto dá-nos bem a noção do longo e atribulado caminho que percorremos nos últimos 100 anos e do muito que devemos aos Industrial Workers of the World para aqui chegarmos. |
Não sei, ninguém sabe, onde e quando começará esse
processo. Só sei que é muito provável que isso aconteça por razões de fundo que
se prendem com as leis sociológicas do capitalismo. Mas uma coisa é certa: o
capitalismo subsistirá, apesar das suas persistentes dificuldades internas [16], enquanto os trabalhadores assalariados
não estiverem social e politicamente unidos e preparados para o superar.
O fraccionamento dos trabalhadores é uma condição fundamental
da sobrevivência do capitalismo. A pulverização sindical dos trabalhadores –
entenda-se, o seu fraccionamento numa miríade de sindicatos de profissão e de
ofício – é uma das grandes contribuições de uma parte da “esquerda” para a solidez e a
perpetuação do capitalismo.
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Notas
e Referências
[1] Por exemplo, o Sindicato dos Capitães, Oficiais Pilotos, Comissários e Engenheiros da Marinha Mercante – OFICIAISMAR, filiado na CGTP.
[2] Juan Arias, “Uma Lava Jato para investigar os sindicatos”. El País Brasil, 4 de Abril de 2017. Na verdade, o que parece piada ou paradoxo não o é. É uma consequência lógica da oligarquização interna dos sindicatos e da sua pulverização profissional.
[3] O caso da Suécia é digno de nota, porque apresenta uma situação híbrida. Existem nesse país três centrais sindicais: a Landsorganisationen i Sverig (LO), a mais antiga e a maior, com cerca de 1.280.000 associados; a Tjänstemännens Centralorganisation (TCO), com cerca de 950.000 associados, principalmente trabalhadores de colarinho branco; a Sveriges Akademikers Centralorganisation (SACO), que organiza cerca de 460.000 funcionários públicos e outros profissionais com diplomas de ensino superior. Claramente, as linhas de separação entre estas três organizações têm a ver com o aristocratismo profissional (sobre este conceito, ver a secção 5 do texto principal) de que estão imbuídas a TCO e a SACO. Não é por acaso que estas duas organizações estão organizadas com base em sindicatos de profissões e ofícios e que só a LO esteja organizada com base em ramos de indústria/de actividade económica. A LO (a Confederação Sindical Sueca) agrupa os seguintes 13 sindicatos: Byggnads (trabalhadores da construção civil), SEF (trabalhadores da electricidade), Fastigeths (trabalhadores da manutenção dos edifícios), GS (trabalhadores dos meios de comunicação social, da floresta e das indústrias da madeira), Handels (trabalhadores do comércio), HRF (trabalhadores da hotelaria e da restauração), IF Metall (trabalhadores da metalurgia), Kommunal (trabalhadores das autarquias locais), Livs (trabalhadores da alimentação), Malarna (trabalhadores da pintura e da decoração), Pappers (trabalhadores das indústrias da polpa de papel e do papel), Seko (trabalhadores das comunicações e dos serviços), SMF (trabalhadores da música), Transport (trabalhadores dos transportes). Convém acrescentar que a existência de sindicatos organizados por ramos de indústria/actividade é uma condição necessária mas não suficiente para a defesa dos interesses dos trabalhadores. As tendências à burocratização/oligarquização dos sindicatos manifestam-se igualmente, e com muita força, nos sindicatos organizados por ramos de indústria/actividade, como os da Alemanha e da Áustria. Para as combater com êxito, são necessárias medidas de outro género, abordadas na secção 3 deste artigo.
[4] São os seguintes os Estados-Membros da OCDE: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá,
Chile, Coreia do Sul, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estados
Unidos, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel,
Itália, Japão, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, México, Noruega, Nova Zelândia,
Países Baixos, Polónia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Suécia, Suíça e
Turquia.
[5] Citado por Robert Michels. Les Partis politiques.Essai sur les tendances oligarchique des démocraties. Paris. Ernest Flammarion Éditeur, 1914, p.109. Para um estudo aprofundado, já neste século (XXI), sobre as tendências oligárquicas nos sindicatos –incluindo sindicatos por rama de actividade/indústria como os da DGB alemã – e o grau mais avançado da sua degenerescência (o uso das quotizações, dos fundos de greve e dos fundos de pensões dos trabalhadores como instrumento de acumulação patrimonial e financeira ao serviço da acumulação do capital) ler O Capitalismo Sindical, de João Bernardo e Luciano Pereira. São Paulo: Xamã VM Editora e Gráfica Ltda, 2008.
[6] Os IWW foram alvo dos
mais violentos e malévolos ataques de que há memória na história do movimento
sindical internacional, quer por parte do patronato, da presidência e do
Congresso dos EUA, quer por parte dos dirigentes da American
Federation of Labor (AFL) — a federação
dos sindicatos profissionais e de ofícios, criada em 1886 e que ainda hoje
existe sob a designação de AFL-CIO, depois de
se ter fundido com o Congress of Industrial
Organizations (CIO). Esses ataques não
podem ser aqui relatados, mesmo sumariamente. Exigiriam muitos artigos
sucessivos. Limitar-me-ei a salientar que todas as armas ao dispor das classes
dominantes estado-unidenses foram usadas contra os IWW,
com aquela ferocidade sem-cerimónias que os seus membros aprenderam a cultivar
durante a estabelecimento da escravatura nos Estados do Sul, da expansão territorial
para Oeste, da guerra para expulsar as populações índias nativas dos seus
territórios de caça e da restauração das leis racistas de segregação (ditas
leis Jim Crow) no chamado “período da reconstrução”,
depois da guerra civil e da abolição da escravatura. Falo de linchamentos, assassinatos,
infiltrações e agressões físicas por agentes provocadores da agência de detectives
particulares Pinkerton, rusgas policiais e apreensão de documentos e material sem
mandado, despedimentos sem justa causa, detenções arbitrárias, prisões em
massa, leis celeradas, difamações, tudo foi feito para esmagar os wooblies (v. Fred
Thompson. The I. W. W, Its First Fifty Years, 1905-1955: The History of an Effort to
Organize the Working Class. Industrial Workers of the World,
1955; Melvyn Dubofsky (1969). We Shall Be All:
a history of the Industrial Workers of the World. Champaign III:
University of Illinois Press.2nd edition, 2013; Eric Thomas Chester.
The
Wobblies in Their Heyday: The Rise and Destruction of the Industrial Workers
of the World during the World War I Era. Santa Barbara, California: Praeger, 2014).
[7].
Este lema faz parte dos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876),
a primeira organização do seu género na história humana. Os estatutos desta
associação foram redigidos por Karl Marx, um dos seus fundadores, por
incumbência dos demais.
[8] Dois exemplos, entre mil, da corrupção, demagogia, nepotismo,
promiscuidade e colusão de gestores da massa laboral com o patronato e as
chefias partidárias que dominam o poder político e o aparelho de Estado nos
regimes de oligarquia electiva. O primeiro exemplo é o do Otto Mata Rama,
presidente do Sindicato dos Comerciários [= empregados do comércio] do Rio de
Janeiro, no Brasil. O pai de Otto Mata Rama, Luizant Mata Rama, chegou a este
sindicato como interventor, em 1966, nomeado pela Ditadura Militar. Ficou no
Sindicato, como presidente, durante 40 anos. Só saíu dele quando morreu, em
2006, sucedendo-lhe o filho, Otto Mata Rama. Este senhor, a sua mulher, a sua
irmã, a sua mãe e outros 15 membros da sua família, prosseguiu na peugada do
pai, transformando o Sindicato a que presidia numa lucrativa empresa familiar.
Nunca lhe faltou dinheiro para uma vida de nababo. Utilizava uma luxuosa
fazenda com piscina olímpica comprada para servir, alegadamente, de colónia de
férias dos associados do Sindicato, como se fosse propriedade sua e da sua
família. Foi acusado, em 2015, de ter desviado do sindicato 100 milhões de
reais [15,3 milhões de euros ao câmbio de hoje, 21-02-2021], ao qual cobrava despesas
suspeitas com advogados, dívidas em impostos, juros, multas e outros gastos, inclusivamente
as suas viagens de recreio, como, por exemplo, uma viagem à Disneylândia. Na lista de bens em
seu nome, tem uma mansão num condomínio de luxo avaliada em mais de 2 milhões
de reais [306.487 euros, ao câmbio de hoje, 21-02-2021], apartamentos, casas de
campo, terrenos, carros importados, e uma lancha de recreio. Otto Mata Rama é
também sócio de duas empresas de táxi aéreo. Tem dois aviões e um helicóptero. O
seu descaramento chegou ao ponto de ter fechado uma subsede do sindicato em
Copacabana que atendia os sócios do Sindicato, transformando-a na sede das suas
duas empresas. Talvez, quiçá, como prémio desta exemplar carreira de gestor da
massa laboral, Otto Rama Mata foi nomeado pela então Presidente da República,
Dilma Roussef, para ser o representante do Brasil numa conferência mundial
sobre o trabalho realizada na Suíça em Junho de 2013 (“Dirigentes de sindicatos enriquecem
com desvio de dinheiro”, globo.com g1,
Edição do dia 14/06/2015).
O segundo exemplo envolve o Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em
Transporte Rodoviário Urbano de São Paulo, que associa cerca de 50 mil
trabalhadores e é o maior do Brasil nesta profissão. O secretário-geral é
Francisco Xavier da Silva Filho, conhecido também como Chiquinho, “Chico Rico”
ou “Chico Propina”. Num telemóvel foi encontrada uma “lista de propinas” (= “luvas”,
dinheiro para untar as mãos alguém em troca de favores) indicando pagamentos até
280 mil reais por mês [42.908 euros, ao câmbio de hoje, 21-02-2021] para 16
dirigentes do sindicato, além do “Chico Propina”. A lista dos pagamentos era
pormenorizada – com apelidos, cargos e
valores – em agenda. O total ultrapassa 1 milhão de reais [153.244 euros] por
mês. A investigação policial concluiu que parte desse dinheiro vinha de
empresas rodoviárias de transporte de passageiros. A outra parte das “luvas” vinha
de empresas contratadas pelo sindicato. “Chico Propina”, que é apontado pela Polícia Civil como
chefe da organização criminosa, acumula um património que impressionou os
detectives da polícia pelo seu volume “faraónico”. Uma das pessoas influentes envolvida
neste negócio seria o deputado federal José Valdevan de Jesus Santos, do Partido
Liberal (PL), conhecido como Valdevan 90. A suspeita é de que parte do dinheiro
desviado do sindicato serviu para financiar a sua campanha em 2018 (“Dirigente de
grande sindicato é investigado por desviar milhões de reais de trabalhadores”,
globo.com g1, edição de 27/12/2020).
[9] A tradução é minha. A frase original é de Rudyard
Kipling, nas suas Barrack-room Ballads, 1892: “Oh, East is East, and West is West, and never the twain
shall meet”. Aqui, Kipling
lamenta o abismo de compreensão existente entre os Britânicos e os habitantes do subcontinente indiano.
[10] A tradução é minha. A Rainha Branca (também conhecida
como Mirana Marmoreal) é uma personagem ficcional, baseada na peça de xadrez do
mesmo nome (também conhecida como Dama Branca), do conto Through the
Looking-Glass, and What Alice Found There de Lewis Carroll (publicado
em Portugal como Alice do Outro Lado do Espelho e no
Brasil como Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá e ainda
Alice
No País Dos Espelhos), um livro de 1871, a continuação do célebre Alice’s
Adventures in Wonderland (As Aventuras de Alice no País das Maravilhas), de 1865.
[11] Fonte: “Pilotos da TAP ganham mais do que os da
concorrência?” Juliana Nogueira Santos. (Polígrafo, 19 de Dezembro de
2020.)
[12] Fonte: “Tabela salarial em vigor desde 1 de Janeiro de 2020 na
TAP” (Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos [SITAVA]).
[13] Não estou a dizer que os trabalhadores portugueses destas profissões são
bem pagos. Por exemplo, mais de mil enfermeiros pediram à sua Ordem profissional a
declaração necessária para exercerem no estrangeiro em 2020, um ano marcado pela pandemia
e pela dificuldade em contratar estes profissionais em Portugal, dada a sua
escassez actual (Público 12 de Janeiro de 2021). Consideram-se mal pagos
em Portugal, mas bem pagos no Reino Unido, França, Espanha e Suíça,
entre outros países para onde emigram e
encontram trabalho facilmente. São já mais de 21 mil os que trabalham no
estrangeiro, segundo a Ordem dos Enfermeiros. Estou a dizer – coisa bem
diferente – que os trabalhadores assalariados portugueses destas profissões são
mais bem pagos, em Portugal ou no estrangeiro, do que a generalidade de outros
trabalhadores portugueses que possuem qualificações equivalentes ou superiores.
Os professores do ensino básico e secundário e sobretudo os pilotos das linhas
aéreas da aviação comercial são dois bons exemplos bem documentados.
Se, em quase todos os países da OCDE, os rendimentos salariais dos
professores ficam, em média, abaixo do rendimento salarial de outros
profissionais licenciados, em Portugal, (assim como na Letónia e na Costa Rica)
acontece a situação inversa, assinala o relatório Education at a Glance (OCDE,
2020). Nos países da OCDE, os professores recebem, em média, 80% a 94% do
rendimento médio dos trabalhadores licenciados. Em Portugal, os valores estão
cerca de 40% acima do que é pago a um profissional com habilitação superior. Esta vantagem
salarial registada em Portugal é particularmente visível, destaca o relatório
da OCDE, nos docentes entre os 25 anos e os 34 anos, que ganham em média mais
45% a 48% do que os demais trabalhadores com as mesmas qualificações e idade.
Essa vantagem vai-se esbatendo em faixas
etárias mais avançadas.
Sobre os pilotos da TAP, que são cerca de 1350, convém saber que, segundo o
Acordo de Empresa estabelecido entre a administração da TAP e o Sindicato dos
Pilotos da Aviação Civil (SPAC) em 2010, actualizado depois em 2018, existem 4 tipos de remunerações: as fixas, as variáveis, o
vencimento horário (aplicável quando os pilotos trabalham horas extraordinárias)
e uma ajuda complementar para oficiais piloto, também para situações
extraordinárias. A remuneração fixa é composta pelo vencimento de
categoria, vencimento de senioridade e vencimento de exercício. A remuneração
variável é composta por três vencimentos diferentes: o subsídio complementar de
refeições em serviço, ou subsídio de aterragem (valor que é pago a cada
aterragem do piloto); a ajuda de custo complementar; e a retribuição especial
(valor pago por cada dia de trabalho). Além do mais, o subsídio de aterragem
depende do tipo de avião pilotado e, consequentemente, do tipo de viagem: os
aviões corpo largo são utilizados
para viagens de longo curso e os corpo estreito para médio curso, o que
quer dizer que os pilotos dos primeiros recebem mais em subsídio de aterragem
do que os dos segundos. As categorias profissionais organizam-se em oficial piloto 1, oficial piloto 2, oficial piloto 3 e
comandante, sendo que o último tem um salário mais alto do que o primeiro. Em
suma, o salário é mais alto quanto mais
anos de experiência tem um piloto e quanto maior for o avião pilotado.
Este quadro foi elaborado com dados fornecidos pelo Ministério das
Infraestruturas e Habitação sobre a remuneração total bruta (fixa e variável)
dos pilotos da TAP, Ibéria e Air Europa. O quadro indica, por exemplo, que um
piloto da TAP com um ano de experiência recebe, no mínimo, 84 mil euros brutos
por ano, mais do dobro dos 40 mil que a Ibéria ou a Air Europa pagam. No caso
de um comandante com 15 anos de carreira, a remuneração anual bruta pode chegar
a 207 mil euros na TAP, o que compara com 155 mil na Air Europa ou 115 mil na
Ibéria. O ministério explica ainda que a comparação é feita com a Ibéria e a
Air Europa porque partilham com a TAP duas características: terem sede em
cidades com custo de vida similar e serem ambas companhias concorrentes da TAP
no mercado sul-americano. Os dados das remunerações da TAP considerados para
esta comparação são os base fixos definidos para 2019 e os variáveis de 2018, A
comparação é feita através da estimativa da remuneração total bruta com base
nos dados públicos sobre os Acordos de Empresa dessas três companhias,
posteriormente calibrada com base em entrevistas. O ministério não define,
contudo, os valores base utilizados para o cálculo das remunerações variáveis. (“Pilotos da TAP chegam a ganhar mais do dobro que os
da Ibéria e Air Europa”, Eco, 16 de
Dezembro de 2020).
O Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC) contestou estes números.
Num comunicado aos seus associados a que a Lusa teve acesso afirmou: «os valores divulgados pelo ministro das Infraestruturas e
Habitação […] estão errados e não correspondem aos vencimentos dos pilotos da
TAP». Precisa que «o custo com pilotos da TAP
nos anos de 2018 e 2019 foi significativamente agravado por recurso a trabalho
extraordinário a pedido da empresa». «Custos por
trabalho extra não são a mesma coisa que salários», sustenta o SPAC. Assim, o que o SPAC contesta parece ser o tratamento
dos dados pelo ministério, alegando que a bonificação dada pelo trabalho
extraordinário (decorrente do aumento da procura) já se aplicava em 2018 e não
apenas em 2019.O jornal Eco pediu ao SPAC dados que sustentem as
acusações de que os números fornecidos pelo Ministério das Infraestruturas e
Habitação estão errados, mas não obteve resposta. Já o jornal Polígrafo
teve mais sorte, pois recebeu do SPAC uma resposta pormenorizada a esta
questão, demasiado longa para ser aqui reproduzida. Limito-me a salientar que a
análise do Polígrafo dos dados fornecidos pelo SPAC detectou que as
únicas diferenças entre os dados do SPAC e os dados do Ministério eram
relativas às remunerações dos comandantes com 10 e 15 anos de experiência da
TAP (que ganham mais do que os da Ibéria e da Air Europa), o que não acontece
com os comandantes com 25 anos de experiência (que ganham menos do que os dessas duas companhias). Passo a transcrever a conclusão a que chegou a jornalista
do Polígrafo: .
«Em conclusão, se observarmos pelo ângulo do SPAC,
indicando que os valores da Iberia e da Air Europa dizem respeito aos
rendimentos base, em cinco dos sete casos hipotéticos verifica-se que os
pilotos da TAP ganham mais do que os da concorrência. Já se seguirmos os passos
do Governo e fizermos as contas aos rendimentos variáveis com as médias
apontadas pelas fontes, os pilotos da TAP ganham entre 10 mil e 40 mil euros
acima da concorrência anualmente. Ainda assim, as especificidades das tabelas
salariais dos pilotos, bem como de todas as condições definidas no acordo de
empresa entre a SPAC e a TAP tornam muito difícil esta comparação. Mais, não só
tivemos de utilizar valores de referência que podem não ser iguais aos do
Governo, como não nos foi possível confirmar os valores apontados pelo Governo
e pelo SPAC como referência para os concorrentes» (“Pilotos da TAP
ganham mais do que os da concorrência?” Polígrafo, 29 de Dezembro
de 2020).
Penso que tudo o que foi dito mais acima é esclarecedor. Porém, o que me
interessa aqui não é saber quem tem os números correctos ou mais correctos: se
é o ministério das infraestruturas ou se é o SPAC. O que me interessa aqui é
tão-somente mostrar que os pilotos da TAP são um grupo de trabalhadores
relativamente bem pago.
[14] Os números são de 2019. Fonte: PORDATA.
[15] Fonte: Luís Braga,“Quanto professores sindicalizados há em Portugal?” 25 setembro, 2018.https://www.comregras.com/quantos-professores-sindicalizados_/
[16] Freeman, Alan
(2019). “The sixty-year downward trend of economic growth in the industrialised
countries of the world.” GERG Data Group working paper Nº1, January 2019.
Manitoba: Geopolitical Economy Research Group.
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