Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

07 fevereiro, 2021

 Tema 3

As razões da fraqueza da classe dos trabalhadores assalariados e os meios da sua superação (1)

José Catarino Soares


Por que é que a classe dos trabalhadores assalariados, que produz quase todos os bens e serviços necessários à moderna civilização urbana e industrial, é sistematicamente ludibriada, vencida e mantida em posição subalterna há mais de 100 anos pela classe capitalista e pelos gestores ao seu serviço, especialmente nos países industrialmente mais desenvolvidos onde vigoram regimes de oligarquia liberal [1]

1. Pulverização e oligarquização organizacional dos sindicatos

Se nos concentrarmos nas razões que dependem exclusivamente da capacidade de discernimento, da lucidez e da acção dos trabalhadores assalariados só há duas razões. Uma delas — a outra ficará para um próximo artigo — é a pulverização  sindical e a sua concomitante oligarquização organizacional [2]

Um exemplo actual é o da TAP (Transportes Aéreos Portugueses). Na TAP há 14 sindicatos (!!) que, durante décadas, se habituaram a negociar com o conselho de administração da TAP quase sempre em separado — Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC), Sindicato Nacional do Pessoal de Vôo da Aviação Civil (SNPVAC), Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroporto (SITAVA), Sindicato dos Técnicos de Manutenção de Aeronaves (SITEMA), Sindicato das Indústrias Metalúrgicas e Afins (SIMA), Sindicato dos Quadros da Aviação Comercial (SQAC), Sindicato dos Economistas (SE), Sindicato dos Engenheiros (SERS), Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Aviação Civil (SINTAC), Sindicato dos Técnicos de Handling de Aeroportos (STHA), Sindicato dos Contabilistas (SICONT), Sindicato dos Trabalhadores da Área Metropolitana do Porto (STTAMP), Sindicato dos Trabalhadores dos Transportes, Manutenção e Aviação (STAMA), Sindicato Nacional dos Engenheiros e Engenheiros Técnicos (SNEET).

Hoje, dia 7 de Fevereiro de 2021, esses sindicatos chegaram a um «acordo de emergência temporária» com o conselho de administração da TAP sobre o número de sapos vivos – cortes salariais drásticos, reformas antecipadas, pré-reformas, rescisões amigáveis, trabalho a tempo parcial, licenças sem vencimento – que os seus filiados vão ter de engolir já, ou todos os dias até 2025, para não serem despedidos, sendo que muitos nem assim conseguirão evitar essa última desgraça.

Trabalhadores da Oficina de Manutenção de Motores da TAP. 2018.


2. Os Industrial Workers of the World   

Não tem de ser assim. Nunca teve de ser assim. Em 1905, nascia nos EUA, em Chicago, um sindicato chamado Industrial Workers of the World (IWW) — Port. Trabalhadores Industriais do Mundo (TIM) — cujo lema era (e ainda é) : organizar um único e grande sindicato para todos os trabalhadores no mundo inteiro (Ingl. Organizing the One Big Union of all workers the world over”).

Para os IWW, também conhecidos por wooblies, só deveria (deverá) haver um sindicato por ramo de indústria ou de actividade, do qual todos os trabalhadores da mesma fariam parte sem distinção de profissão, ofício, sexo, idade, língua, nacionalidade, etnia, cor da pele, religião ou partido político.


Um trabalhador sindicalizado no IWW trepa um muro de fábricas poluentes com o braço erguido para colher um cacho de uvas (?) simbolizando “as coisas boas da vida” (the good things of life). Autocolante dos IWW. 1920. 


Assim, por exemplo, na TAP, todos os trabalhadores pertenceriam a um único sindicato: o
Sindicato dos Trabalhadores da Aeronáutica (ou outro nome semelhante), independentemente de serem pilotos, tripulantes de cabine, técnicos de manutenção e reparação de motores, engenheiros de produção de máquinas e tratamento, trabalhadores das operações em terra (carga, descarga, rampa, bagagem…), administrativos, etc.

Mais ainda: para os Trabalhadores Industriais do Mundo (TIM) não era preciso – não é preciso – ter um emprego por conta de outrem ou fazer parte da população activa para se sindicalizar. Um trabalhador desempregado, um estudante, um trabalhador por conta própria ou um trabalhador reformado pode igualmente filiar-se no sindicato do seu (actual, passado ou futuro) ramo de actividade.

Não é preciso ter grandes dotes de imaginação para conceber a força que teria a classe trabalhadora assalariada se, em vez da actual pulverização sindical, tivesse um único e grande sindicato seu, organizado por ramos de actividade. Convém acrescentar: não só um único e grande sindicato organizado por ramos de actividade/indústria, mas também um sindicato em que todas as funções sindicais fôssem desempenhadas colegial e rotativamente, durante períodos curtos (p.ex., um trimestre, um semestre, um ano) e por tiragem à sorte entre todos os associados — único antídoto contra a oligarquização organizacional.

Além de outras vantagens, a burocracia sindical reduzir-se-ia ao mínimo essencial, desapareceriam os dirigentes que se eternizam no cocuruto dos sindicatos, das federações e das centrais sindicais durante anos a fio, por vezes durante décadas ou até mesmo durante uma vida inteira, e o dinheiro das quotizações dos associados seria quase inteiramente canalizado para a defesa dos interesses materiais e morais dos associados (fundos de  greve e solidariedade, assistência jurídica, acções de esclarecimento, educação, organização e luta). 

Escusado será dizer que nenhum partido político, com ou sem assento parlamentar,  nenhuma central sindical e nenhum sindicato defende esta forma de organização sindical em Portugal. Salvo melhor informação, a situação não é muito diferente nos outros países europeus  salvo no Reino Unido, embora de modo muito minoritário —,  dentro e fora da União Europeia. Bem entendido, o que é hoje minoritário poderá ser, amanhã, maioritário. 

        Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança;

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades [3]


3. Formar uma parte da estrutura da nova sociedade dentro da concha da velha sociedade

Por tudo isso e por mérito próprio, o Preâmbulo dos estatutos dos IWW [4], redigido e aprovado em 1905 e aumentado em 1908 com mais um parágrafo (o último), continua sendo mais actual do que nunca, volvidos 116 anos, e é necessário que seja amplamente conhecido e discutido pelos trabalhadores:

Fotogravura do Preâmbulo Original aos Estatutos dos IWW. 1905

A classe trabalhadora e a classe patronal não têm nada em comum. Não pode haver paz enquanto milhões de trabalhadores passarem fome e tiverem carências e enquanto uns poucos, que constituem a classe patronal, tiverem todas as coisas boas da vida.

Entre estas duas classes, tem de continuar uma luta até que os trabalhadores do mundo se organizem como classe, tomem posse dos meios de produção, abulam o sistema salarial e vivam em harmonia com a Terra [a frase destacada a traço grosso foi acrescentada em 1991, depois de ter sido aprovada em referendo dos associados do IWW] 

Constatamos que a concentração da gestão das indústrias num número cada vez menor de mãos torna os sindicatos por profissão e ofício incapazes de lidar com o crescente poder da classe patronal. Os sindicatos por profissão e ofício fomentam uma situação que permite que um conjunto de trabalhadores seja lançado contra outro conjunto de trabalhadores da mesma indústria, ajudando assim a derrotarem-se uns aos outros nas guerras salariais. Além disso, tais sindicatos ajudam a classe patronal a levar os trabalhadores a acreditar que a classe trabalhadora tem interesses em comum com os seus patrões.

Estas condições só podem ser alteradas e o interesse da classe trabalhadora só pode ser defendido por meio de uma organização construída de modo a que todos os seus membros de uma indústria, seja ela qual for – ou em todas as indústrias, se necessário – cessem o trabalho sempre que um ataque ou um despedimento ocorra em qualquer departamento da mesma, fazendo, por conseguinte, com que um ataque a um trabalhador seja considerado como um ataque a todos.

Em vez do lema conservador: Um salário justo para um dia de trabalho justo”, temos  de inscrever  na nossa bandeira a palavra de ordem revolucionária: Abolição do sistema  salarial”.

A missão histórica da classe trabalhadora é acabar com o capitalismo. O exército da produção deve ser organizado, não para a luta quotidiana com os capitalistas, mas também para levar por diante a produção quando o capitalismo tiver sido derrubado. Ao organizarmo-nos por ramo de indústria estamos a formar a estrutura da nova sociedade dentro da concha da velha sociedade (minha tradução, ver o texto original em [4])

Autocolante dos Industrial Workers of the World (IWW). 1919.
Nele pode ler-se: «
um único e grande sindicato»; «Nós queremos a Terra». «IWW é universal»

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Notas

[1] Sobre o conceito de oligarquia liberal, ver o artigo anterior deste blogue As eleições presidenciais de 2021 em Portugal, Arquivo do Blogue, Janeiro de 2021.

[2] Por oligarquização organizacional deve entender-se os processos mediante os quais certos grupos se apoderam do poder de decisão numa organização (em particular, numa associação voluntária), entrincheirando-se e tornando-se imunes e avessos a controlos pela maioria dos associados. 

[3] Luís de Camões. 

[4] Preamble to the IWW Constitution 

The working class and the employing class have nothing in common. There can be no peace so long as hunger and want are found among millions of the working people and the few, who make up the employing class, have all the good things of life.

Between these two classes a struggle must go on until the workers of the world organise as a class, take possession of the means of production, abolish the wage system, and live in harmony with the Earth.

We find that the centering of the management of industries into fewer and fewer hands makes the trade unions unable to cope with the ever growing power of the employing class. The trade unions foster a state of affairs which allows one set of workers to be pitted against another set of workers in the same industry, thereby helping defeat one another in wage wars. Moreover, the trade unions aid the employing class to mislead the workers into the belief that the working class have interests in common with their employers.

These conditions can be changed and the interest of the working class upheld only by an organisation formed in such a way that all its members in any one industry, or in all industries if necessary, cease work whenever a strike or lockout is on in any department thereof, thus making an injury to one an injury to all.

Instead of the conservative motto, “A fair day’s wage for a fair day’s work,” we must inscribe on our banner the revolutionary watchword, “Abolition of the wage system.”

It is the historic mission of the working class to do away with capitalism. The army of production must be organised, not only for everyday struggle with capitalists, but also to carry on production when capitalism shall have been overthrown. By organising industrially we are forming the structure of the new society within the shell of the old.

 https://iww.org.uk/preamble/

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