Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

13 julho, 2022

 Temas 2 e 3

A Guerra na Ucrânia

(4.ª parte)

A luta contra a guerra 

José Catarino Soares

 

1. Introdução

1.1. Lembrete

Na primeira, segunda e terceira partes deste ensaio, descrevi (i) o mecanismo causal subjacente à invasão da Ucrânia pelas tropas russas e à guerra mortífera e devastadora que aí travam contra as tropas ucranianas — que já vai, no momento em que escrevo estas linhas (5 de Maio de 2022), no seu 71.º dia, sem fim à vista.

Mostrei que a invasão da Ucrânia não tem uma causa suficiente, mas tem várias causas contribuintes [1]. Distribuí essas causas contribuintes em duas séries principais, temporalmente correlacionadas, embora com um certo desfasamento de uma (B) em relação à outra (A):

(A) a expansão da OTAN no leste da Europa em cinco ondas sucessivas (1999, 2004, 2009, 2017, 2020) em direcção às fronteiras europeias da Rússia — um processo que descrevi sumária e parcialmente na 1.ª parte e, pormenorizadamente, na 2.ª parte do ensaio “A Guerra na Ucrânia”;

(B) as sucessivas e concomitantes (entenda-se, subsequentes a cada uma das  ondas expansionistas descritas na alínea anterior) reorganizações e modernizações das Forças Armadas russas com vista a retaliar contra qualquer eventual ataque da OTAN à Rússia ou a anular preemptivamente um suposto ataque iminente da OTAN — um processo que descrevi, sumária e parcialmente na 1.ª parte e, pormenorizadamente, na 3.ª parte do ensaio.

Também caracterizei (ii) as motivações geopolíticas de Putin (não confundir com justificações legais e justificações axiológicas [políticas e/ou éticas] /.../) para desencadear esta guerra na Ucrânia e para (iii) a sua escolha da data (24 de Fevereiro de 2022) para a desencadear (e não bem mais cedo ou bem mais tarde). 

Sobre a questão (ii) a motivação geopolítica da conduta belicista de Putin mostrei que consiste na convicção que Putin foi consolidando ao longo dos anos, a partir de 2007, de que a OTAN (com os EUA como cabecilha) pretende aproximar-se o mais possível das fronteiras europeias da Rússia para, em seguida e num momento considerado oportuno, atacá-la e desmembrá-la em vários Estados independentes uns dos outros, destruindo-a como Federação plurinacional, pluriétnica, plurilingue e pluriconfessional. Nesta ordem de ideias, resumi, para fins mnemónicos, a missão messiânica de que Putin se sente incumbido na fórmula latina: “Rossia delenda non est !” (“A Rússia não será destruída!”). 

Sobre a questão (iii) identifiquei 4 factos recentes que terão levado Putin a pensar que a transformação da Ucrânia em potência nuclear com a ajuda da OTAN estava iminente e que teria de atacar a Ucrânia no princípio deste ano, sob pena de o não poder fazer mais tarde, quando a Ucrânia passasse a fazer parte oficialmente da OTAN como membro de pleno direito e, desse modo,  passasse a beneficiar automaticamente do escudo protector do artigo 5.º dos seus estatutos. 

Nessa ordem de ideias, elucidei o significado desta guerra do ponto de vista estratégico e no âmbito da doutrina realística do seu mentor e mandante, Putin, mostrando que se trata de una guerra com luneta de chave dupla(iv) uma guerra preemptiva de destruição do aparelho de Estado ucraniano — em particular, das suas Forças Armadas (209.00 militares: 145.000 do Exército + 45.000 da Força Aérea + 11.000 da Marinha + 8.000 paraquedistas), das suas forças paramilitares, a chamada Guarda  Nacional (102.000 guardas), e da infraestrutura militar de ambas [2] e (v) uma guerra de defesa colectiva das Repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk contra as tropas ucranianas [defesa colectiva porque as tropas russas não combatem sózinhas, mas coadjuvadas pela milícias de autodefesa daquelas duas repúblicas].  


Dois elementos da Guarda Nacional da Ucrânia, em 6 de Abril de 2022Fonte: https://www.facebook.com/photo/?fbid=348388787325879&set=a.293534862811272. Autor: Guarda Nacional da Ucrânia

Por último, mostrei que (vi) a invasão da Ucrânia pela tropas de Putin ⎼ que poderíamos qualificar, em bom rigor, de segunda guerra na Ucrânia  é uma guerra parcialmente ilegal, porquanto carece, na sua vertente de guerra preemptiva, de justificação à luz do direito internacional público, e mostrei também que, tanto a guerra da Ucrânia contra as repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk (que poderíamos qualificar, em bom rigor,  como sendo a primeira guerra na Ucrânia), como a guerra da Rússia contra a Ucrânia, são, como qualquer outra guerra inter-étnica e como qualquer outra guerra inter-Estados,  (vi) uma guerra contra a unidade internacional dos trabalhadores assalariados em particular, entre os trabalhadores russos e os trabalhadores ucranianos e, por conseguinte, contra a sua auto-emancipação económica e política, que fica muito anuviada e prejudicada pela ideologia tóxica do ultranacionalismo.

1.2. Objectivo deste artigo

Nesta quarta e última parte do presente ensaio procurarei responder à pergunta: que podemos nós, trabalhadores assalariados (especialmente na Europa e nos EUA), fazer para pôr um fim à guerra na Ucrânia, derrotar os seus fautores e estabelecer uma paz duradoura na Ucrânia, na Rússia e em toda a Europa?

Estou bem ciente que esta é uma pergunta muito difícil de responder, tendo em conta a sua vastidão e, mais ainda, o seu pressuposto básico: a resposta dos trabalhadores não pode, sob pena de auto-anulação, confundir-se com nem estar subordinada à resposta da União Europeia (UE), da OTAN (/NATO), dos governos dos países membros destas organizações internacionais e do governo da Ucrânia. Veremos mais adiante (secções 2-12) a razão de ser e a importância prática desta condição, que decorre do lema, sempre actual, da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876):

A emancipação das classes trabalhadoras tem de ser obra das próprias classes trabalhadoras e a luta das classes trabalhadoras pela sua auto-emancipação significa não uma luta por privilégios e monopólios de classe, mas pela igualdade de direitos e deveres, e pela abolição de toda e qualquer dominação de classe [2].

Considero quase todas as respostas à pergunta acima formulada de que tive conhecimento até à data insuficientes ou muito insuficientes e, em alguns casos, completamente erróneas e francamente detestáveis. Esta apreciação diz respeito, exclusivamente, a pessoas, grupos, movimentos, organizações e partidos que se dizem de “esquerda”, na medida em que são esses que, tradicionalmente, se reclamam ou reclamavam da defesa dos interesses materiais e morais dos trabalhadores assalariados como sua razão de existência [3].

Tenho, todavia, muitas dúvidas se conseguirei fazer melhor [4]. Mas é  preciso tentar, mesmo estando ciente que «num tempo em que as respostas prontas para a velha pergunta “​o que fazer?” naufragam em meio ao nevoeiro, é preciso desconfiar dos mapas já traçados e explorar o entorno com atenção.» [5].

Os leitores estão convidados a colaborar neste empreendimento que é necessariamente colectivo, reparando e superando as insuficiências (e corrigindo eventuais erros) do que aqui será dito. Ao fazê-lo com uma atitude de entreajuda, sem sectarismos e sem sobranceria, aqui nas páginas do Passa Palavra [e, acrescento agora, da Tertúlia Orwelliana] e noutros lugares, estaremos a dar seguimento adequado à exortação sempre actual de um nosso ilustre antepassado:

As classes trabalhadoras [têm] o dever de dominarem elas próprias os mistérios da política internacional; de vigiarem os actos diplomáticos dos governos dos seus respectivos países; de os contrariarem, se necessário for, por todos os meios ao seu alcance; de combinarem denúncias simultâneas, quando forem incapazes de os prevenir, e de fazerem valer que as leis simples ou a moral e a justiça, que devem reger as relações dos indivíduos privados, devem ser também as regras primordiais do relacionamento das nações. A luta por uma tal política externa faz parte da luta geral pela emancipação das classes trabalhadoras [6].

2. Uma resposta inédita do “Ocidente”

A invasão da Ucrânia pelas tropas russas e a guerra que se lhe seguiu não foram apenas reprovadas e repudiadas pela população trabalhadora e pela juventude da maioria dos países europeus. Foram também condenadas (o que é um facto inédito) por uma parte considerável do que se costuma denominar “comunidade internacional”(o conjunto de Estados representados na ONU) em particular pela totalidade do autoproclamado “Ocidente isto é, o conjunto formado pelos Estados Unidos da América, Canadá e Europa (com exclusão da Rússia e da Turquia), ainda que quase toda a Europa “ocidental” esteja situada a Oriente [i.e., a leste do meridiano de Greenwich] ou do chamado Ocidente alargado ou Ocidente colectivo ou “Ocidente político”(os Estados anteriormente mencionados do hemisfério norte, acrescidos do Japão, Coreia do Sul, Taiwan [Formosa], Austrália e Nova Zelândia, embora todos eles se situem no Oriente e os dois últimos fiquem no hemisfério sul). 

Os mesmos Estados do “Ocidente” ou do “Ocidente alargado” (com os EUA à cabeça) que aprovaram e aplaudiram a invasão do Iraque e do Afeganistão, assim como os bombardeamentos na ex-Jugoslávia e na Líbia, com completo desprezo pelo direito internacional público e pela carta das Nações Unidas, espalhando a morte e a destruição entre as populações civis desses países, apareceram agora a condenar a Rússia por praticar o mesmo tipo de actos de guerra ilegal e ilegítima e cometer o mesmo tipo de crimes de guerra que eles próprios promoveram no passado recente.

As principais potências económicas e as duas organizações internacionais mais importantes do “Ocidente alargado OTAN (que abrange também a Turquia) e União Europeia (UE) não se ficaram, porém, pela condenação política e moral da invasão da Ucrânia e da guerra preemptiva ilegal desencadeadas pelo governo de Putin no território da Ucrânia. 

Fizeram mais, muito mais: responderam a essa invasão com o envio continuado e cada vez maior de armamento e informações militares para as tropas da Ucrânia, com ajuda humanitária de vário tipo, com catadupas de dinheiro para o governo ucraniano e com a imposição à Rússia de represálias (sanções económicas e diplomáticas e medidas restritivas) cada vez mais severas que atingem vários sectores, da banca à indústria metalúrgica, dos transportes rodoviários, aéreos e marítimos a certas tecnologias, dos meios de comunicação social aos artigos de luxo e, até, aos combustíveis fósseis — carvão mineral, petróleo e gás natural. 

3. Rabo escondido com o gato de fora

«Isso é uma prova de que já não são os mesmos Estados, que já não são governados pelo mesmo tipo de elites dirigentes, ou então que estas se arrependeram dos seus crimes, que mudaram para melhor, que se regeneraram» — dirão algumas pessoas dotadas de infinita capacidade para desculpar e perdoar todas as ofensas, todos os desmandos e todos os crimes, mesmo que tenham sido praticados com premeditação e cuidadosa preparação por gente muito poderosa.

Mas não, não é prova disso. Bastam alguns exemplos para o comprovar.

# Exemplo 1

Os Estados Unidos da América (EUA) e o Reino Unido (RU), logo seguidos pela União Europeia (UE), que aparecem agora

― como os mais generosos apoiantes do governo da Ucrânia em (i) armas de todo o género e respectivas munições; (ii) informações militares sigilosas recolhidas por satélites, aviões-espiões e drones-espiões (aéreos e marítimos), para serem utilizados contra as tropas invasoras russas; e (iii) muito dinheiro (veremos a seu tempo as quantias envolvidas), para (a) manter a operacionalidade do governo e do aparelho de Estado ucraniano (p.ex. para pagar os vencimentos dos elementos das Forças Armadas ucranianas e da Guarda Nacional ucraniana e para manter e renovar a sua logística), assim como para (b) pagar salários e pensões dos trabalhadores da administração pública e (c) garantir alguma ajuda humanitária à população desalojada e deslocada;

 

Vista do lado esquerdo do Boeing RC-135W Rivet Joint (RJ, para abreviar), o mais avançado avião de espionagem electrónica da USAF [Força Aérea dos EUA] (que tem 17 RJs) e da Royal Air Force [Força Aérea do Reino Unido] (que tem 3 RJs). Os RJs voam em círculos lentos no espaço aéreo internacional fora das fronteiras dos maiores rivais dos Estados Unidos e da OTAN, captando sinais electromagnéticos para ajudar os planeadores do Pentágono e da OTAN a descobrir onde estão as forças militares dos seus potenciais inimigos e o seu estado de prontidão para a guerra.

― como os mais implacáveis promotores de represálias (sanções económicas e medidas restritivas de vários tipos) contra a Rússia;

― como os mais severos denunciadores dos crimes de guerra cometidos  pelas tropas invasoras russas em território ucraniano;

 

Esta aeronave da Força Aérea dos EUA chama-se RQ-4 Global Hawk. É o maior Veículo Aéreo Não Tripulado (VANT) actualmente existente. Este VANT (ou ‘drone’ como os anglófonos chamam metaforicamente qualquer VANT) tem um tamanho total de 15,5 metros de comprimento e 4,7 metros de altura, com uma envergadura de 40 metros. Com uma autonomia de vôo de mais de 32 horas e diversos recursos tecnológicos para a espionagem, vigilância e reconhecimento, este VANT do tipo HALE (High Altitude, Long Endurance = Altitude Elevada, Grande Autonomia de vôo) é capaz de passar a pente fino toda uma região e mostrar todo o movimento que nela ocorre. Foto: Divulgação Força Aérea dos EUA.

são os mesmos EUA que pediram ao Reino Unido (RU) primeiro em 2019, com Trump, e depois em 2021, com Biden a extradição de Julian Assange para os EUA para aí o poderem prender e julgar; e é o mesmo RU cuja polícia, em 21 de Abril de 2019, cumprindo ordens do governo conservador, raptou (com a cumplicidade do então recém eleito presidente Lenín Moreno do Equador) Julian Assange da Embaixada do Equador em Londres onde estava refugiado há 7 anos; que o encarcerou na prisão de alta segurança de Belmarsh (Londres) para terroristas, assassinos e outros criminosos de alto gabarito, onde o manteve até hoje; e que aprovou, em 14 de Março de 2022, a  extradição de Assange para os EUA [7].

iX Blue, um Veículo Autónomo de Superfície (VAS), a navegar nas ilhas Tonga. Os VAS, conhecidos coloquialmente como “drones marítimos”, são embarcações não tripuladas que operam na superfície da água de modo completamente autónomo. Este modelo tem 7,7 metros de comprimento e pode operar durante 7 dias de modo completamente autónomo, semiautónomo ou por controlo remoto. Os VAS têm muitas aplicações civis, mas têm também aplicações militares, incluindo espionagem, vigilância e reconhecimento. Foto: uniquegroup.com

Por que razão querem os EUA que Assange seja extraditado ? E por que razão autorizaram os tribunais britânicos a sua extradição para os EUA (incluindo o Supremo Tribunal do RU, que recusou, em Fevereiro de 2022, a possibilidade da defesa de Assange recorrer da sentença de um tribunal inferior a favor da extradição)?

Porque Assange divulgou no WikiLeaks, a partir de 2010, mais de 700.000 documentos confidenciais (incluindo vídeos) sobre actividades diplomáticas e militares estado-unidenses, que revelaram atrocidades e crimes de guerra cometidos pelos EUA nas guerras do Iraque e Afeganistão. Se for declarado culpado por um tribunal dos EUA, Assange pode ser condenado a um total de 170 anos de prisão.

«Libertem Assange. O jornalismo não é um crime», pode ler-se na T-shirt deste homem. Nos ovos que tem na mão esquerda lê-se: «Libertem Julian Assange».

# Exemplo 2

Joe Biden, o actual presidente dos EUA, que apelidou Vladimir Putin de «assassino» (17 de Março de 2021), «homicida» e «bandido» (17 de Março de 2022),

― é o mesmo Biden que, durante a guerra do Kosovo, apoiou a campanha de bombardeamentos da OTAN contra a Sérvia e o Montenegro e copatrocinou, com seu amigo John McCain, a Resolução McCain-Biden sobre o Kosovo, que pedia ao presidente Bill Clinton o uso de toda a força armada necessária, incluindo tropas terrestres, para apoiar o Exército de Libertação do Kosovo (sobre este Exército, consultar a 2.ª parte deste ensaio, secção 5);

 

John McCain (à esquerda), senador do partido republicano, recebe a medalha da Liberdade das mãos do então vice-presidente dos EUA, Joe Biden (à direita), do partido democrata, numa cerimónia realizada em 16 de Outubro de 2017, em Filadélfia. Foto de Matt Rourke. AP.  


― é o mesmo Biden que se gabou de viva-voz, no senado americano, de ter sido ele quem propôs o bombardeamento de Belgrado (Sérvia) pela Força Aérea da OTAN; a destruição, por esta força, de todas as pontes do rio Drina (o rio que faz fronteira entre a Sérvia e a Bósnia-e-Herzegovina) e o apoderamento de todos os depósitos de petróleo da Sérvia.  Essas gabarolices de Biden — que traçam dele um retrato onde cabem todas as palavras que ele empregou para caracterizar Putin foram feitas durante uma audição parlamentar sobre o Kosovo no Senado americano que teve lugar em 5 de Janeiro de 1998. Podem ser vistas e ouvidas AQUI

 https://www.youtube.com/watch?v=vei_18YcC6E

 # Exemplo 3

Joe Biden, o actual presidente dos EUA que, no seu discurso perante o Congresso dos EUA sobre o «estado da União» (3 de Março de 2022), afirmou que irá perseguir os «oligarcas russos que roubaram milhares de milhões de dólares através do regime violento [vigente na Rússia]» é o mesmo Biden que foi o autor e protagonista principal da seguinte história da vida real.

― Em 2016, o Procurador-Geral da Ucrânia, Viktor Shokin no decurso da sua investigação sobre corrupção que envolvia a Burisma Holdings, uma empresa de gás natural identificou um dos seus directores, Hunter Biden, o filho de Joe Biden, como o destinatário de mais de 3 milhões de dólares de “luvas” (como se diz em Portugal) ou de “propina” (como se diz no Brasil). Temendo que essa corrupção fosse exposta, Joe Biden, então vice-presidente de Barak Obama, entrou em acção.

 

O então vice-presidente dos EUA (à esquerda), Joe Biden, com o então presidente da Ucrânia (à direita), Petro Poroshenko, depois de uma reunião de trabalho conjunta que ocorreu em Abril de 2014, em Kiev, minutos antes de ambos darem uma conferência de imprensa. Foto: Serguei Supinsky. AFP.

Numa das suas muitas viagens a Kiev, Joe Biden utilizou a promessa da concessão de um empréstimo de 1000 milhões de dólares que o governo dos EUA tinha feito ao governo ucraniano do presidente Petro Poroshenko para fazer uma exigência. O empréstimo só seria concedido se o governo de Poroshenko demitisse Shokin em menos de 6 horas, antes da hora marcada do vôo de regresso de Biden aos EUA. E conseguiu! Shokin foi mesmo demitido no prazo dado e substituído por um homem da confiança de Biden.

― E como sabemos tudo isso? Porque, em 22/12/2019, Joe Biden se gabou publicamente desta sua proeza com o descaramento próprio de quem acredita que ficará sempre impune. Pode vê-lo a fazer isso AQUI

https://www.youtube.com/watch?v=PO9L6_ykyao

# Exemplo 4 

Mike Pompeo, deputado da Câmara dos Representantes pelo Kansas (2011-2017), director da CIA (2017-2018) e, em seguida (2018-2021), Secretary of State [ministro dos Negócios Estrangeiros, como se diz em Portugal, ou ministro das Relações Exteriores, como se diz no Brasil] dos EUA durante a presidência de Donald Trump, é também um cristão evangélico, membro da Igreja Presbiteriana Evangélica.      

 


― Em Junho de 2015, Pompeo fez uma palestra na sua igreja local, Wichita’s Summit Church, em que afirmou que os cristãos precisavam de «saber que Jesus Cristo como nosso salvador é verdadeiramente a única solução para o nosso mundo» e que  «a política é uma luta sem fim [contra o mal que está a nossa volta] até ao Arrebatamento» [8].

  Este devoto Pompeo, que prometeu tudo fazer para liquidar a Wikileaks e Julian Assange (duas encarnações do mal que está à nossa volta), é o mesmo homem que confessou candidamente os seus pecadilhos durante uma palestra que fez aos estudantes da Universidade A&M do Texas, em 15 de Abril de 2019:

Quando eu era cadete em West Point [nome coloquial da Academia Militar dos EUA, N.E.], qual era o lema do cadete? Não mentirás, não enganarás, não roubarás e não tolerarás que outros o façam. Eu fui director da CIA. [E que fiz eu e os outros membros dessa organização? N.E.] Mentimos, enganámos, roubámos.Tivemos cursos completos de formação [para aprender a fazê-lo]. Isto faz-nos lembrar a glória da experiência americana. [N.E.= nota editorial]

Pode vê-lo a fazer estas gloriosas declarações AQUI:

https://www.youtube.com/watch?v=DPt-zXn05ac

Esta duplicidade de critérios praticada pelos governos dos EUA, dos demais países membros da OTAN e da UE e a hipocrisia e perfídia de alguns dos seus membros mais proeminentes demonstram bem que não podemos acreditar um segundo que seja na sua sinceridade sobre a guerra na Ucrânia.

A reprovação e o repúdio da população destes países em relação à invasão da Ucrânia e à guerra defensiva/preemptiva do governo russo na Ucrânia têm por base, exclusiva ou principalmente, a solidariedade humana com quem é vítima de uma guerra considerada por muitos como não provocada (o que não é verdade) e como carecendo completamente de justificação legal (o que é em parte, mas não totalmente, verdade) e a empatia com quem sofre as suas agruras e atrocidades. A condenação da Rússia pela elite dirigente dos Estados da OTAN e da UE é puramente oportunista, ditada por razões exclusivamente geopolíticas tudo o que pode enfraquecer a Rússia é bom” (cf. 1.ª, 2.ª e 3.ª partes deste ensaio) e não por razões axiológicas [políticas, jurídicas e/ou éticas] de princípio. 

4. Represálias contra a Rússia

Mas é um facto que estes estadistas tomaram muitas medidas de represália contra a Rússia que são apresentadas como sendo destinadas a ajudar o povo ucraniano a resistir e a derrotar as tropas invasoras de Putin.

4.1. Represálias da UE e 6 outros Estados

Eis um apanhado das represálias (sanções económicas e diplomáticas e medidas restritivas) contra a Rússia tomadas pela UE, pelo Reino Unido, pelos EUA, por outros países alinhados com os EUA (Japão, Austrália) e até pasme-se! pela neutral Suíça.

 


Fonte: Castellum.AI, em 9 de Maio de 2022.

― Na primeira linha horizontal estão indicados os Estados que decretaram sanções contra a Rússia, por ordem alfabética, mas que não é a mesma na língua portuguesa: Austrália, Canadá, União Europeia, Japão, Suíça, Reino Unido, Estados Unidos da América.

― O sinal verde indica que a sanção está a ser aplicada ou que, pelo menos, foi anunciada. O sinal vermelho indica que a sanção em causa não foi anunciada nesse país ou na União Europeia, consoante o caso.

― Na primeira coluna, estão listadas a sanções sectoriais mais importantes, que são de cinco tipos: restrições à importação (RI, para abreviar); restrições à exportação (RE);  restrições  financeiras (RF); restrições à radiodifusão [= propagação de sinais de rádio, televisão, telex, etc., por ondas radioelétricas] (RRD) no espaço aéreo desse país ou da União Europeia, consoante o caso; revogação de um direito adquirido (RDA).

―Assim sendo, e usando estas abreviaturas (RI, RE, RF, RRD, RDA), o que se lê na primeira coluna, de cima para baixo, é o seguinte:

1) RI ao petróleo russo, 2) RI ao gás russo, 3) RI ao carvão russo, 4) RI a metais russos, 5) RE de metais para a Rússia, 6) RE de produtos de luxo para a Rússia, 7) RI de produtos de luxo russos, 8) RE de tecnologia para a Rússia, 9) RRD a estações públicas de televisão russas, 10) RE de serviços profissionais (consultadoria, contabilidade, etc.) para a Rússia, 11) RF de acesso da Rússia aos fundos do FMI e do Banco Mundial (incluindo os que lhe pertencem), 12) RDA da cláusula de nação mais favorecida, 13) RF da Rússia na dívida soberana, 14) RF aos bancos russos no acesso às suas contas em bancos estrangeiros, 15) RF dos bancos russos ao sistema de transações bancárias SWIFT [= Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication]. 

A Rússia foi alvo de 7.611 sanções desde o dia 22 de Fevereiro de 2022, as quais atingiram 6.254 indivíduos, 1.002 entidades, 82 navios e 3 aeronaves. Que Estados sancionaram mais a Rússia ? 1.º- Reino Unido (1.124 sanções), 2.º- Suíça (1.106), 3.º- EUA (1.032), 4.º- UE (951), 5.º- Canadá (948), 6.º- França (931), 6.º-Austrália (900), 7.º- Japão (620) [9].

4.2. Represálias da UE em pormenor

Vejamos agora, em pormenor, as represálias decretadas pela UE, que constituem também uma boa amostra das que foram decretadas pelos seis países supramencionados.

 A proibição de viajar para a UE e o congelamento das contas bancárias em bancos da UE de uma lista de 80 entidades e 1.091 pessoas da elite dirigente russa ou seus familiares próximos — incluindo Vladimir Putin, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, multibilionários russos do “Jet Set” ocidental ligados ao Kremlin, como Roman Abramovich [que agora também tem nacionalidade portuguesa], 351 deputados da Duma do Estado russo (a Câmara Baixa do Parlamento) que votaram a favor do reconhecimento de Donetsk e Lugansk como repúblicas independentes, em 15 de Fevereiro de 2022. membros do Conselho Nacional de Segurança, altos funcionários e pessoal militar, empresários proeminentes (ou seja, pessoas com actividade na indústria siderúrgica russa e outras pessoas que prestam serviços financeiros, fornecem produtos militares e tecnologia ao Estado russo);

A interdição do acesso aos aeroportos da UE a todos os tipos de transportadoras aéreas russas, assim como aeronaves privadas, e a proibição de sobrevoarem o espaço aéreo da UE;

A proibição de entrada na UE de operadores de transportes rodoviários russos e bielorrussos;

A proibição de entrada nos portos da UE de navios russos;

A proibição da exportação para a Rússia de combustível para aviação a jacto e de bens e tecnologias para utilização nos sectores da aviação e do espaço;

A proibição da prestação de serviços de seguros, de manutenção e de assistência técnica relacionados com esses produtos e tecnologias;

A proibição da importação de ferro, aço, madeira, cimento, produtos do mar e bebidas alcoólicas provenientes da Rússia; 

A proibição da importação de carvão da Rússia;

 A proibição a (7) bancos russos e (3) bancos bielorrussos de pagarem ou receberem pagamentos internacionais utilizando o sistema SWIFT;

A proibição de todas as transações com o Banco Central Nacional da Rússia relacionadas com a gestão das reservas e activos do Banco Central russo. Em resultado do congelamento de activos do banco central, este deixa de poder aceder aos activos que armazenou em bancos centrais e instituições privadas na UE;

A proibição de venda,  fornecimento, transferência e exportação para a Rússia de notas denominadas em euros;

A proibição de radiodifusão da agência noticiosa Sputnik e da rede de televisão Russia Today (RT) incluindo as suas filiais, como o RT-English, o RT-Reino Unido, o RT-Alemanha, o RT-França e o RT-Español abrangendo todos os meios de transmissão e difusão nos países-membros da UE ou destinados aos mesmos, nomeadamente por cabo, satélite, TV via Protocolo Internet, plataformas, sítios Web e aplicações móveis;

A proposta (feita em 4 de Maio de 2022) da Comissão Europeia ao Conselho Europeu de embargo das importações de petróleo bruto russo e de produtos refinados do petróleo russo por via marítima ou por gasoduto;

A proposta (feita em 4 de Maio de 2022) da Comissão Europeia ao Conselho Europeu de proibição de operar o Sistema SWIFT de mais 3 bancos russos, sendo um deles o Sberbank, o maior banco russo, mas não tendo sido revelado o nome  dos outros dois;

A proposta (feita em 4 de Maio de 2022) da Comissão Europeia ao Conselho Europeu de proibição de radiodifusão de mais 3 canais russos, cujos nomes, no entanto, não foram revelados [10].

Examinemos, então, estas medidas e perguntemo-nos merecem ser apoiadas pelo movimento de auto-emancipação dos trabalhadores assalariados. Começaremos pelas medidas de censura a órgãos mediáticos de comunicação social.

5. Censura prévia e “superioridade moral do Ocidente”

A pretexto de combater a propaganda e a desinformação da Rússia, o Conselho Europeu (o órgão máximo da União Europeia, constituído pelos chefes de Estado ou de Governo dos 27 Estados‑Membros da UE, mais o presidente do Conselho Europeu, mais a presidente da Comissão Europeia) decidiu racionar o que os cidadãos dos países da UE podem ouvir e ver nas estações de rádio e radiotelevisão sobre a Rússia.

Como? Proibindo os operadores de telecomunicações europeus de difundirem ou permitirem, facilitarem ou de outro modo contribuirem para a radiodifusão de quaisquer conteúdos da rede de televisão Russia Today (RT) e da agência de notícias e estação de rádio Sputnik, «nomeadamente através da sua transmissão ou distribuição por quaisquer meios como cabo, satélite, IP-TV, fornecedores de serviços Internet, plataformas ou aplicações de partilha de vídeos na Internet, quer novos, quer pré-instalados». Também os canais do YouTube destes meios foram  bloqueados.

 

  Russian Today (RT). Fonte: Conselho Europeu

E não foi só o Conselho Europeu a fazê-lo. Empresas de radiodifusão de mensagens instantâneas e conteúdos multimédia como a Facebook, Instagram, TikTok e YouTube apressaram-se a bloquear todo e qualquer conteúdo oriundo da Sputnik e da RT para os seus utentes (como se diz em Portugal) ou usuários (como se diz no Brasil) que residem no espaço da UE, enquanto o Reddit bloqueou as hiperligações aos sítios WWW da  Sputnik e da RT em toda a UE. Por sua vez, a Microsoft e a Apple  apoiaram o Conselho Europeu de uma outra maneira: removendo as aplicações Sputnik e RT da Microsoft Store e da App Store, respectivamente. Em 11 de Março, o YouTube bloqueou a Sputnik e a RT em todo o mundo.

Mas não é tudo. O conselho de administração da EGTA a associação europeia das firmas que vendem publicidade nos canais de televisão e rádio (uma associação  da qual faz parte um grupo empresarial português dono de uma estação de televisão: a SIC-Impresa) decidiu suspender imediatamente todos os membros russos da associação, entre eles os seguintes: EMG (Europa Media Group), Everest Sales, Gazprom-Media, Media-1, NRA (National Advertising Alliance) e Russian Media Group.

Como forte sinal da nossa chefia [leadership, no original] e contributo para o esforço internacional em isolar a Rússia da comunidade internacional, suspendemos todos os serviços de todos os membros russos. A suspensão permanecerá em vigor até nova decisão da próxima Assembleia Geral da associação [comunicado da EGTA] [11].

Estas são decisões verdadeiramente espantosas. A UE arroga-se o direito de decidir o que é informação e o que é desinformação; o que é um órgão de informação e o que é um órgão de propaganda. Além disso e pior do que isso, arroga-se o direito de decidir a que tipo de informação e desinformação  e que tipo de propaganda é que os cidadãos dos países que integram a UE podem ter acesso. E as firmas proprietárias do Facebook, Instagram, TikTok, YouTube, Reddit, a Microsoft, a Apple Inc, assim como a EGTA, seguem-lhes o exemplo. Desse modo, admitem tacitamente que os serviços de difusão instantânea de mensagens e conteúdos  multimédia e a publicidade paga nas estações de rádio e radiotelevisão, propagandeadas umas e outra como domínios por excelência de “criatividade”, “livre iniciativa”, “mercado livre” e “liberalismo”, são, afinal, departamentos anexos do poder de Estado.

No seu afã inquisitorial alegadamente anti-Putin, o Conselho Europeu “esqueceu-se” que as suas medidas de censura prévia são medidas próprias de regimes políticos como…o de Putin! [12] Houve quem se alarmasse ao compreender imediatamente que a UE se comprazia a dar um tiro no pé sem sequer pestanejar, sinal de que tem pés de barro, não de carne e osso.

É o caso do jornalista Joaquim Vieira, fundador e presidente do “Observatório da Imprensa”, em Portugal.  «Não é o bom caminho, e acho difícil conseguir-se defender esta decisão. Para todos os efeitos é censura. Eu não estou de acordo. O que nos distingue das ditaduras é a possibilidade de livre expressão. Às tantas vão dizer que somos iguais ao regime de Putin», lamentou Vieira. Joaquim Vieira alertou também para os danos reputacionais inerentes a esta decisão da UE, achando que «seria melhor que não tivesse existido, porque isso mostrava a superioridade moral que nós, no Ocidente, temos sobre um regime como o de Putin» [13]. O silenciamento dos meios de comunicação russos, concluiu, vai «contra o código genético de uma sociedade aberta» [14].

Houve, no entanto, quem criticasse a decisão de um modo mais assertivo, como foi o caso da Federação Europeia de Jornalistas (EFJ, na sigla em Inglês), que se opôs a esta forma descarada de censura prévia.

Ricardo Gutiérrez, secretário-geral da EFJ, recordou que «a regulação dos meios de comunicação não entra na competência da UE». «Acreditamos que a UE não tem qualquer direito de dar ou tirar licenças de emissão. Essa é uma competência exclusiva dos Estados-membros», continuou, em comunicado, acusando possíveis efeitos secundários desta medida: «Este acto de censura pode ter um efeito totalmente contraproducente nos cidadãos que seguem os meios agora banidos Poderá, por exemplo, acrescento eu, levá-los a concluir que a UE tem medo que os meios de comunicação social que ela decidiu banir possam trazer ao conhecimento do público notícias que ela gostaria de esconder...Ao contrário da decisão tomada pelos governantes europeus, o secretário-geral da EFJ defende que teria sido uma melhor medida contra-atacar «a desinformação de meios propagandistas – ou alegadamente propagandistas – ao expor os seus erros factuais ou mau jornalismo» [15].

Isso é óbvio, e era o que deveria acontecer, se a intenção do Conselho Europeu e da Comissão Europeia (a instância da UE que sugere, prepara e executa as medidas do Conselho Europeu) fôsse a de combater a desinformação, venha ela de onde vier. Mas é evidente que essa é a última das suas preocupações. Acresce que essa medida de censura prévia não tem qualquer suporte legal na constituição da maioria dos países pertencentes à UE. Não o tem, seguramente, no caso de Portugal.

6. Veredicto I

A UE não tem qualquer direito de dar ou tirar licenças de emissão. Essa é uma competência exclusiva dos países membros da UE. A proibição da RT e da Sputnik é uma medida não só ilegal, mas completamente reaccionária, digna de fascistas.

― Revogação imediata das medidas de censura prévia do Conselho Europeu!

― Restabelecimento imediato da liberdade de informação e de radiodifusão para a Russia Today e a Sputnik!

7. O que são sanções? Para que servem? A quem servem?

Convém começar por relembrar, uma vez mais, que vivemos num mundo em que os Estados mais poderosos EUA, Rússia, RU, França, China, etc. não têm qualquer problema em fazer prevalecer os seus interesses estratégicos (os seus interesses de longo prazo) por todos os meios ao seu alcance, incluindo a ameaça do uso e o uso efectivo da força armada, o expoente máximo da violência letal e destrutiva.

Não vale a pena dar exemplos, eles são legião. A guerra na Ucrânia é apenas o último da lista. É também por isso, por exemplo, que os assessores dos presidentes americanos, e eles próprios, por vezes, gostam muito de empregar a frase consagrada: «o Presidente mantém todas as opções em aberto», «Todas as opções estão em cima da mesa (incluindo a opção militar)», «Não podemos descartar nenhuma opção (incluindo a opção nuclear)» e as suas numerosas variações. 

Mas convém também relembrar algo que raramente é referido, mas que não é menos verdadeiro. No patamar imediatamente anterior ao uso da força armada em grande escala estão as chamadas sanções económicas.

Foi o presidente americano Woodrow Wilson dos EUA, durante as negociações do Tratado de Versalhes em 1919, quem primeiro anunciou, com a sua proverbial santimónia, que este tipo de acção poderia ser um substituto para a guerra.

Quem escolher esta medida económica, pacífica, calma e fatal, não terá de recorrer à força. Não é uma medida tão terrível. Não sacrifica uma única vida fora do país exposto ao boicote, mas impõe a esse país uma pressão a que, na minha opinião, nenhuma nação moderna pode resistir.

Na verdade, as sanções económicas agridem, ferem, matam e destroem, tal como as balas, as granadas, os foguetes, as bombas e os mísseis dos exércitos em guerra. Só que não o fazem num ápice, com grande estardalhaço, com muito derramamento de sangue, com milhares de edifícios destruídos, no meio de grandes gritos de aflição e terror como faz a sua prima, a guerra. São uma forma de combate silencioso, limpo, sem pressas, mas muito eficaz em alcançar os seus objectivos — que não são os que são oficialmente  declarados.

As sanções económicas afectam actualmente mais de 30 países [16]. O mais sancionado de todos, actualmente, é a Rússia, com 7.611 novas sanções, como vimos, a partir do dia 22 de Fevereiro, que se vieram juntar às 2.754 de que era já alvo antes dessa data. Seguem-se o Irão (3.616 sanções), a Síria (2.608), a Coreia do Norte (2.077), a Venezuela (651), Myanmar [Birmânia] (510), Cuba (208) [17].

As sanções (especialmente as sanções económicas) são quase sempre apresentadas como uma nobre iniciativa de defesa dos direitos humanos de populações e povos espezinhados e oprimidos e, amiúde também, como um instrumento eficaz para forçar uma mudança de regime favorável ao florescimento dos direitos humanos [18]. Mas nada poderia andar mais longe da verdade em ambos os aspectos [19].

Consideremos o caso de Cuba, que basta para o demonstrar. Cuba sofre sanções dos EUA há 60 anos! É o mais longo regime de sanções de que há registo desde o fim da 2.ª guerra mundial. Já em 19 de Outubro de 1960, ainda não eram volvidos dois anos depois da revolução cubana ter conduzido à deposição do regime de Fulgêncio Baptista, os EUA fizeram um embargo às exportações para Cuba, excepto no que diz respeito a alimentos e medicamentos. E porquê? Para deixarem bem claro que se tratava de uma retaliação pelo governo de Cuba ter nacionalizado sem compensação monetária as refinarias de petróleo estadunidenses que operavam em Cuba. Em 7 de Fevereiro de 1962, o embargo foi alargado para incluir quase todas as exportações. A Assembleia Geral das Nações Unidas tem votado todos os anos, desde 1992, uma resolução exigindo o fim do embargo económico dos EUA a Cuba, sendo os EUA e Israel os únicos Estados a votar reiteradamente contra estas resoluções.

O povo cubano viu a sua vida melhorar alguma coisa por efeito das sanções económicas dos EUA? Não, nada. Podemos é dizer que piorou muito por via da escassez e penúria de um larguíssimo leque de bens e serviços que lhes  foram artificialmente impostas por via dessas sanções económicas. O regime cubano  mudou por efeito dessas sanções ? Não, é exactamente o mesmo que era há 62 anos. Pelo contrário, é o regime cubano que culpa reiteradamente, e com êxito assinalável, as sanções económicas impostas pelos EUA como a causa principal ou única de todas as dificuldades que o povo cubano enfrenta há décadas.

Mas não é tudo. Convém saber que são os EUA quem mais sanções decreta, logo seguidos pela UE, não é a ONU. A lista de pessoas e entidades visadas pelas sanções dos EUA contém actualmente 1.623 páginas e quase 37.000 entradas ![20].

Ora, é bem sabido que as sanções económicas impostas pelos EUA não são impostas para castigar Estados e governos malfeitores que atentam contra os direitos humanos, porque, se assim fôsse, os EUA seriam o país mais sancionado do planeta por todas as malfeitorias e atrocidades  que têm praticado, desde as bombas atómicas lançadas sobre a população civil das cidades de Hiroshima e Nagasaqui (1945), prosseguindo pela série de guerras, “intervenções militares especiais” e golpes de Estado (eufemisticamente denominados “operações de mudança de regime”) que fizeram ulteriormente, até aos nossos dias.

Eis uma lista, que está muito longe de ser exaustiva: guerra da Coreia (1950-1953), golpe de Estado contra o governo de Mohammad Mosaddegh no Irão (1953), golpe de Estado contra o governo do presidente Jacobo Árbenz na Guatemala (1954), operação Mongoose para derrubar o governo de Fidel Castro em Cuba (década de 1960), golpe de Estado contra o governo do presidente Rafael Trujillo na República Dominicana (1961), intervenção militar no Laos (1962-1975), operação “Brother Sam” no Brasil (1964), guerra do Vietnam (1964-1975), invasão da República Dominicana (1965), intervenção militar no Camboja (1970), golpe de Estado contra o governo do presidente Salvador Allende no Chile (1973), invasão de Granada (1983), operação militar no Panamá (1989-90), operação militar “Força Deliberada” na Bósnia-e-Herzegovina (1996), operação militar “Força Aliada” na Jugoslávia (1999), guerra do Afeganistão (2001-2021), guerra do Iraque (2003-2011), golpe de Estado contra o governo do presidente Viktor Yanukovych na Ucrânia (2014).  

Mas não são só os EUA que nunca são alvo de sanções económicas façam as malfeitorias e atrocidades que fizerem, pela boa e simples razão de que nenhum outro Estado se atreve a pagar-lhes na mesma moeda. Outros Estados, também poderosos (embora muito menos) têm também esse privilégio por serem aliados dos EUA. É o caso, por exemplo, de Israel que ocupa partes do território da Palestina (incluindo Jerusálem leste), da Síria e do Líbano há mais de 60 anos e da Turquia, que ocupa partes do território de três dos seus vizinhos: Iraque, Síria e Chipre. Neste último país, a Turquia ocupa nada menos do que 40% do seu território. Chipre (um Estado membro da UE, mas não da OTAN) é mesmo, graças a esta ocupação da Turquia (um Estado membro da OTAN, mas não da UE) o único país da UE cuja capital ainda está dividida por um muro.

Há que reconhecer que a ideia de confiar a um órgão especial da ONU o Conselho de Segurança, onde têm direito de veto os Estados mais poderosos do planeta  o poder de adoptar sanções como um meio eficaz de pôr termo a perturbações da paz e da segurança colectiva sem recorrer à ameaça do uso ou o uso efectivo da força das armas é uma solução extremamente frágil e insatisfatória. Isto, porque só as relações de forças entre eles dita, a cada momento, o resultado das votações.

Acresce que o artigo 41.º da Carta das Nações Unidas estabelece uma lista não exaustiva de possíveis restrições com o carácter punitivo de sanções: «interrupção total ou parcial das relações económicas e das relações ferroviárias, marítimas, aéreas, postais, telegráficas, radioeléctricas e outros meios de comunicação, bem como a ruptura das relações diplomáticas». O leque de sanções alargou-se ao longo do tempo: sanções económicas (comerciais ou financeiras), militares (embargo de armas), diplomáticas, culturais e desportivas. Esse alargamento representa a tentativa, frustrada, da maioria dos países com assento na ONU de mitigarem uma prática que é, efectivamente, uma prerrogativa quase exclusiva das grandes potências, com os EUA à cabeça.

Um exemplo recente é o das sanções económicas decretadas pelo governo de Donald Trump contra a Venezuela, em 2017 e 2019. Num estudo feito sobre o resultado dessas sanções pode ler-se:

As sanções reduziram a ingestão calórica das pessoas, aumentaram as doenças e a mortalidade (tanto para adultos quanto para crianças) e deslocaram milhões de venezuelanos, que fugiram do país como resultado do agravamento da depressão econômica e da hiperinflação. As sanções exacerbaram a crise econômica na Venezuela e tornaram quase impossível estabilizar a economia, contribuindo ainda mais para as mortes adicionais. Todos esses impactos prejudicaram desproporcionalmente os venezuelanos mais pobres e vulneráveis.

Ainda mais severas e destrutivas do que as amplas sanções econômicas de agosto de 2017 foram as sanções impostas por ordem executiva em 28 de janeiro de 2019 e pelas subseqüentes ordens executivas neste ano, e o reconhecimento de um governo paralelo, que, como será mostrado abaixo, criou um novo conjunto de sanções financeiras e comerciais que são ainda mais restritivas do que as próprias ordens executivas.

Concluímos que as sanções infligiram, e infligem cada vez mais, danos muito sérios à vida e à saúde humanas, incluindo uma estimativa de mais de 40.000 mortes entre 2017 e 2018; e que essas sanções se encaixariam na definição de punição colectiva da população civil, conforme está descrita nas convenções internacionais de Genebra e Haia, das quais os EUA são signatários. Elas também são ilegais à luz das leis e tratados internacionais assinados pelos EUA, e parecem violar a legislação dos EUA [21].  

O panorama não é muito melhor no caso da ONU. É impossível meter de novo o génio dentro da garrafa, porque a garrafa foi feita pelo génio. Dado o papel desempenhado pelo Conselho de Segurança na sua arquitectura em especial pelos seus cinco membros permanentes [EUA, Rússia, Reino Unido, França, China] que dispõem de direito de veto a chancela da ONU não é de modo nenhum uma razão suficiente para conferir às sanções económicas um carácter aceitável.

Muitas sanções perfeitamente “legais”, porquanto  impostas pelo Conselho de Segurança da ONU por exemplo, contra o Iraque entre 1991 e 2003 podem causar a morte, inclusivamente a morte em massa de civis inocentes, como foi documentado pela UNICEF e outras organizações internacionais [22]. Estima-se que 500.000 crianças, pelo menos, morreram de malnutrição e doença devido às sanções económicas (criadoras de penúrias alimentares e de medicamentos) decretadas pela ONU contra o Iraque nos anos 1991-2003 [23].

8. Economia política das sanções da UE

Os debates em curso na União Europeia sobre as sanções económicas e outras represálias a aplicar à Rússia, deram origem a alguns exercícios de refinada hipocrisia discursiva. A hipocrisia é obrigatória, visto que se destina a camuflar a contradição entre a necessidade de fazer a vontade aos EUA (que querem enfraquecer a Rússia por todos os meios ao seu alcance, incluindo a Ucrânia e a UE) e os interesses geopolíticos e geoeconómicos de um grande número de Estados membros da UE .

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, é exímia nessa arte de considerar hoje como sendo maléfico para a UE, o que ainda ontem  afirmava ser um bem inestimável ou vice-versa, e de fazer ambas coisas com a maior das naturalidades. Esta senhora publicou no Twitter, em 19 de Janeiro de 2020, a foto que aqui se reproduz, acompanhada da seguinte  legenda:

Foi bom encontrar-me com o presidente russo Vladimir Putin, à margem da # Conferência de Berlim. Conversámos sobre o acordo trilateral Ucrânia-UE-Rússia sobre o gás que será transportado através da Ucrânia.


Em 4 de Fevereiro de 2022, Leyden afirmou não descartar a possibilidade de fechar o gasoduto Nord Stream 2, que liga a Rússia à Alemanha através do mar Báltico, como uma das sanções económicas a aplicar contra a Rússia, caso esta invadisse a Ucrânia. Informou, na mesma ocasião, estar a trabalhar com os Estados-membros da UE na construção de reservas europeias comuns de gás. E acrescentou:

Queremos construir o mundo de amanhã, como democracias,  com parceiros que pensam da mesma maneira, parceiros com os mesmos interesses.

Entre os parceiros energéticos que poderiam substituir a Rússia e que pensam da mesma maneira que a UE, parceiros com os mesmos interesses, a presidente da Comissão Europeia citou uma monarquia autocrática (Qatar), uma oligarquia electiva liberticida (Azerbaijão) e uma oligarquia militar iberticida (Egipto)...[24]. Estamos esclarecidos.

A motivação puramente geopolítica das sanções económicas ou restrições económicas (dois nomes diferentes para a mesma coisa) decretadas pelo Conselho Europeu contra a Rússia está igualmente patente no modo como este órgão máximo decisório da UE evitou cuidadosamente, até ao momento, beliscar as importações de gás natural, e só o fez relativamente ao carvão e ao petróleo da Rússia com muitas cautelas e rapapés para americano ver. É que estes são os três combustíveis fósseis em relação aos quais os países da UE (com especial destaque para a Alemanha, a Áustria, a Itália, a Eslováquia e a Hungria) são energeticamente muito dependentes da Rússia.

É assim que o Conselho Europeu decretou, como vimos, em 7 de Abril de 2022, o embargo das importações de carvão da Rússia, da qual a UE é muito dependente —  importa 45% do seu carvão da Rússia, por um valor de 4 mil milhões de euros por ano. Mas o embargo só irá entrar em vigor…no início de Agosto de 2022, 120 dias após a publicação do novo pacote de sanções no diário oficial da UE e será aplicado faseadamente até ao fim do ano de 2022.

Da mesma forma, o embargo total das importações de petróleo bruto russo, da qual a UE é muito dependente (importa 25% do petróleo da Rússia) será feito faseadamente até ao fim do ano e o embargo total de produtos refinados de petróleo russo será feito faseadamente nos próximos seis meses. Isto, se o Conselho Europeu, que reunirá em princípio em 30-31 de Maio, vier a aprovar estas medidas que lhe foram propostas pela Comissão Europeia em 4 de Maio, porque a Hungria, a Eslováquia, a Áustria, a Chéquia e a Bulgária opõem-se a esse embargo que os prejudica gravemente. Por exemplo, 100% do abastecimento petrolífero da Hungria é garantido pela Rússia através do oleoduto de Druzhba. Acresce que, sem litoral, este país não tem condições para negociar com fornecedores alternativos, que não teriam como fazer chegar o petróleo às refinarias húngaras (as quais, para complicar o problema, só têm tecnologia para processar a produção russa).

Note-se ainda o seguinte: mesmo que o embargo sobre o petróleo russo venha a ser decretado com a anuência negociada da Hungria e dos demais países recalcitrantes, daqui a seis meses, o prazo dado para a aplicação faseada do embargo, é bem possível que a guerra na Ucrânia já tenha terminado com um acordo negociado entre a Rússia e a Ucrânia (com o beneplácito dos EUA) e já seja possível revogar estas sanções…

Quanto ao embargo à importação de gás natural russo, ainda nada foi decidido na UE. O que se compreende. Aqui, as jeremíades sobre Putin e a guerra de agressão russa, já muito abaladas pela necessidade do petróleo russo, cedem completamente o lugar a outro tipo de considerações e de interesses a que Conselho Europeu e a Comissão Europeia não podem deixar de atender. É bem conhecida a grande dependência energética da UE face à Rússia, que foi responsável por 43,9% em 2020 e 46,8% no 1.º semestre de 2021 das importações de gás europeias.


azul estão as percentagens que cada país europeu importa de gás russo. A preto estão as percentagens de gás de outros países que cada país europeu importa. Os números são de 2020.

A Comissão Europeia adoptou um plano para tornar a Europa independente dos combustíveis fósseis russos «muito antes de 2030». O gás natural assume particular relevância nesse plano por ser uma fonte de energia fundamental no chamado processo de “transição energética” em curso. O objetivo é «reduzir a procura de gás russo na UE em ⅔ antes do final do ano».

Alguns especialistas estão cépticos. Consideram que esse plano será de difícil e demorada execução. Por exemplo, a construção de um novo gasoduto transPirinéus o Midcat vai demorar pelo menos três anos [25]. De acordo com o economista Hans-Werner Sinn, só a longo prazo, digamos, entre 3 e 5 anos, os terminais alemães de GNL [a construir] poderão substituir as entregas russas por gás proveniente de outras partes do mundo. Só o GNL (gás natural liquefeito) de outras proveniências conseguirá garantir uma rápida substituição do gás russo e assegurar um aprovisionamento adequado de gás para o próximo inverno. Ora, isso vai ter um custo alto, sobretudo em 2022.

A Alemanha, a primeira potência económica europeia, ilustra melhor do que qualquer outro país da UE a agudez do problema. A substituição do gás russo, e não tanto do seu petróleo e do seu carvão russos, é claramente o maior desafio que a Alemanha enfrenta.

Antes da guerra na Ucrânia, a Rússia representava 55 por cento de todas as importações de gás alemão, de acordo com os números do governo alemão. Mais de um terço desse gás é consumido pelo sector transformador. Na indústria química, o gás é necessário não só para gerar electricidade e calor, mas também para fabricar produtos químicos derivados de hidrocarbonetos [26].

No entanto, é mais fácil e rápido encontrar fontes alternativas de petróleo do que de gás natural, do qual a Alemanha está muito dependente. O Bundesbank [banco central da Alemanha] afirmou que um embargo às importações do gás russo custaria à Alemanha 165 mil milhões de euros [= 165 bilhões no Brasil] em produção perdida e reduziria o produto interno bruto em 5% em 2022, provocando um aumento nos preços da energia e uma das recessões mais profundas das últimas décadas [27]. E mesmo um economista tão institucional e tão pouco alarmista como Hans-Werner Sinn não hesitou em advertir:

Se a Alemanha parasse subitamente as importações de gás russo, os sistemas de aquecimento residencial a gás dos quais depende metade da população alemã, aproximadamente 40 milhões de pessoas e os processos industriais que dependem fortemente das importações de gás avariar-se-iam antes de a energia de substituição estar disponível. Seria pouco provável que o governo sobrevivesse ao caos económico resultante, ao tumulto público e à revolta se o gás não estivesse disponível ou se os custos de aquecimento aumentassem drasticamente. Na verdade, a escala provável de perturbações internas poria em causa a coesão da resposta ocidental à guerra da Ucrânia.

Só a longo prazo, digamos entre 3 e 5 anos, os terminais alemães de GNL [gás natural liquefeito] poderão substituir os fornecimentos russos por gás de outras partes do mundo. Mas até lá, a Rússia estará a construir novos gasodutos para a China, Índia, e outros países asiáticos que avidamente comprarão e queimarão o gás que a Alemanha deixou de comprar.

Tanto a curto como a longo prazo, portanto, o Ocidente será incapaz de tornar as coisas difíceis para a Rússia, fechando os gasodutos sem tornar as coisas igualmente difíceis para si próprio [28].

Parece-me, pois, que podemos concluir do que foi exposto que as principais sanções económicas decretadas ou anunciadas pela UE contra a Rússia (o embargo das importações de carvão, petróleo e gás natural) são excelentes notícias para os oligopólios da indústria petrolífera e do gás natural liquefeito dos EUA, assim como para os oligopólios da indústria do carvão dos EUA [29].

Mas são também, pelas mesmas razões, muito más notícias não só para os trabalhadores das indústrias de transformação e para os consumidores de gás residencial na Alemanha e em muitos outros países da UE, mas também para os próprios capitalistas desses sectores que terão de ceder uma parte da mais-valia que extorquiram aos seus concorrentes estadunidenses.

Ironia do destino: graças a Putin, Ursula von der Leyen, Charles Michel e todos os seus colegas do Conselho Europeu, metamorfosearam-se, num abrir e fechar de olhos e sem mesmo se darem conta do que lhes acontecia, em esforçados obreiros do programa de Trump: «Make America Great Again» [Façamos com que a América torne a ser grande outra vez].

9. Sanções económicas vs. direito internacional público

É importante afirmar as razões pelas quais as sanções económicas (tal como as sanções comunicacionais, culturais e desportivas) são medidas coercivas unilaterais incompatíveis com os princípios básicos do direito internacional público, plasmados, muito parcimoniosamente, nalguns (poucos) trechos da Carta das Nações Unidas. É o caso do artigo 2(4), que estabelece: 

Os membros [da ONU] deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas.

Como sugeriu Alfred de Zayas [30], é possível apresentar um forte argumento mostrando que a linguagem do artigo 2(4) da Carta das Nações Unidas que proíbe “recorrer à ameaça ou ao uso da força engloba, logicamente, todas as formas de coerção de um país sobre outro(s) ou de uns países sobre outros.

Além disso, tendo em conta que as sanções económicas e os bloqueios financeiros matam centenas de milhares de pessoas inocentes em todo o mundo, o Tribunal Internacional de Justiça deveria emitir um parecer enunciando os motivos pelos quais tais sanções são contrárias ao direito internacional e definindo as consequências legais para os Estados malfeitores que as impõem. Finalmente, o Tribunal Penal Internacional deve declarar que tais sanções constituem crimes contra a humanidade para efeitos do artigo 7 do Estatuto de Roma [31].

Desafortunadamente, não podemos esperar que as propostas de Alfred de Zayas sejam acolhidas por esses dois tribunais. Nada no seu historial indica que tenham a independência necessária para o fazerem.

Pelas mesmas razões, nada podemos esperar neste particular (e muito menos na busca de uma solução negociada entre a Rússia, os EUA e a Ucrânia que ponha um fim imediato à guerra na Ucrânia) do secretário-geral da ONU, António Guterres [32].   

10. Veredicto II

Regressemos agora, e mais uma vez, à questão que deixámos em aberto no final da secção 4:

― as sanções económicas decretadas pela UE (e quem diz UE diz também EUA, RU, Suíça, Canadá, Austrália, Japão, etc.) merecem ser apoiadas pelo movimento de auto-emancipação dos trabalhadores assalariados?

A (minha) resposta é NÃO, por todas as razões indicadas.

As restrições financeiras congelamento de contas bancárias, interdição de viajar para países membros da UE, etc. que o Conselho Europeu (e os governos dos países supramencionados) decretaram contra Putin, seus colaboradores e familiares mais próximos, outros elementos da elite dirigente russa, multibilionários russos, etc. são-me indiferentes, como presumo que o serão para qualquer outro trabalhador assalariado. São picardias entre oligarcas de diferentes nacionalidades. Não são assunto que nos deva preocupar minimamente.

Mas todas as outras sanções económicas não merecem ser apoiadas por nenhum trabalhador que se preze e devem, pelo contrário, ser liminarmente repudiadas. Embora sejam qualificadas de “económicas” são, de facto, medidas de restrição não só extra-económicas, mas também anti-económicas, concebidas com o propósito de enfraquecer certos grupos de capitalistas  e certos Estados em favor de outros.

Mais ainda e mais importante: tal como as granadas e bombas  explosivas com uma vasta área de impacto, estas sanções produzem também extensos “danos colaterais” nas condições de trabalho e de vida da classe trabalhadora, além de procurarem dividi-la em facções nacionais hostis umas contra as outras — ucranianos contra russos, ucranianos ucranófonos contra ucranianos russófonos, alemães contra russos, suecos e finlandeses contra russos, e assim por diante.

11.  Zelensky

Quem lute pelo fim imediato da guerra na Ucrânia e por uma solução negociada desse conflito armado que traga uma paz duradoura a esse país tem, obviamente, de solidarizar-se com a suas vítimas civis. Mas deverá, para tanto, apoiar Zelensky e o seu regime?

A (minha) resposta é NÃO, porque isso equivaleria a passar uma esponja misericordiosa sobre as suas responsabilidades, quer passadas quer actuais, neste terrível conflito, as quais, sendo bem menores do que as de Putin, dos EUA e da OTAN, são, não obstante, bem reais. Vejamos porquê.

Em 12 de Fevereiro de 2015 a Rússia, a Ucrânia, a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) e representantes das Repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk firmaram um acordo,  mediado pela França (com François Hollande, presidente francês) e pela Alemanha (com Angela Merkel, chanceler alemã). Em 13 pontos, esse acordo conhecido por Acordo de Minsk 2 previa uma nova Constituição ucraniana, com a descentralização das regiões russófonas de Donetsk e Luhansk, o direito à “autodeterminação linguística” (isto é, o livre uso do russo como língua oficial), a nomeação de procuradores e juízes próprios, a intervenção de autoridades locais e a cooperação entre regiões. Estavam ainda previstas eleições locais para os órgãos de autogoverno regional. Em contrapartida, a Ucrânia retomaria o controlo da fronteira leste com a Rússia.

Este acordo nunca foi cumprido pela Ucrânia durante a vigência do governo de Petro Poroshenko. Pelo contrário, foi sistematicamente violado.

Em Maio de 2019, Zelensky foi eleito com um programa apostado, entre outras coisas, em acabar com as hostilidades armadas permanentes contra a população russófona dos “oblasti” de Luhansk e Donetsk na Donbass e a fazer cumprir o acordo de Minsk 2, em particular as eleições para os órgãos de autogoverno dessas duas regiões através da fórmula Steinmeier, concebida pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, hoje presidente da República da Alemanha, Walter Steinmeier. Esta foi, aliás, uma das razões do seu êxito eleitoral. Zelensky manteve-se fiel a esse compromisso durante mais ou menos um ano.

Em Outubro de 2019, quando a guerra na Donbass se arrastava sem fim à vista, Zelensky viajou até Zolote, uma cidade situada na “zona cinzenta” de Donbass, onde mais de 14.000 pessoas foram mortas, na sua maioria do lado pró-russo. Aí, Zelensky encontrou os veteranos endurecidos das unidades paramilitares da extrema-direita neonazi, que mantinham a luta armada contra os autonomistas russófonos, situados a apenas alguns quilómetros de distância. Ficou famoso o confronto que teve com esses homens a quem intimou (em vão) que depusessem as armas e obedecessem às ordens do presidente da República, ele próprio, ali à frente deles, em carne e osso.

Em Novembro de 2019 a esperança de que Zelensky cumprisse o seu programa de pacificação ainda estava bem vivaz, como se verifica por este relato de um centro especializado na análise da extrema-direita:

A assinatura dos Acordos de Minsk por P. Poroshenko em 2015, é considerada pelos nacionalistas como uma “manobra táctica” bem sucedida e nada mais. O famoso oligarca ucraniano e antigo parceiro de negócios de Zelensky, I. Kolomoisky disse: «a assinatura destes acordos foi um truque táctico — o exército ucraniano sofreu severas derrotas perante as milícias [das Repúblicas Populares de Lugansk e Donetsk], e Poroshenko teve de evitar uma derrota final».

Por outro lado, a conciliação com a extrema-direita também não é admissível para V. Zelensky. Isso prejudicará a sua credibilidade como dirigente capaz de influenciar a situação política no país e de ter pleno controlo sobre o parlamento. A reputação de “político fraco” poderia arruinar este artista do entretenimento da era pós-soviética, que ascendeu a um Olimpo político, tendo hoje uma taxa de aprovação de 71%. [33]

Um ano depois, tudo tinha já mudado. A mudança ficou bem marcada pela adopção da nova Estratégia de Segurança Nacional da Ucrânia (promulgada por Zelensky em Setembro de 2020), cujas orientações foram plasmadas na nova Estratégia Militar da Ucrânia (promulgada por Zelensky em Março de 2021). Como já tive ocasião de explicar (cf. segunda parte deste ensaio, secção 4; e terceira parte, secção 5), essas leis marcaram, na prática, (i) a renúncia de Zelensky ao cumprimento do Acordo de Minsk 2 e do seu programa eleitoral relativamente aos territórios autonomistas da Donbass, as chamadas Repúblicas Populares de Luhansk e Donetsk, (ii) a designação da Rússia como sendo o inimigo estratégico principal da Ucrânia e (iii) a preparação acelerada para uma guerra generalizada com a Rússia, com a ajuda da OTAN. 

Quando a guerra eclodiu com a Rússia em Fevereiro deste ano, Zelensky pareceu ter mudado de ideias durante algum tempo. No próprio dia 25 de Fevereiro, apenas algumas horas depois da invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin, Zelensky declarou-se pronto a negociar com Putin todas as suas exigências, incluindo a neutralidade nuclear [34].

Em 29 de Março, mais de um mês depois, Zelensky reiterou com muita veemência essa mesma disponibilidade para negociar com a Rússia. Fê-lo numa entrevista que deu em russo a jornalistas russos independentes e que a BBC noticiou assim:

O Presidente ucraniano anuncia a disponibilidade do seu governo para discutir a adopção de um estatuto neutral como parte de um acordo de paz com a Rússia.

Numa entrevista concedida a jornalistas russos independentes, Volodymyr Zelensky disse que qualquer acordo desse tipo teria de ser sujeito a um referendo na Ucrânia. Ele já tinha feito comentários semelhantes antes, mas raramente com tanta força. A notícia chega quando as negociações entre os dois países deverão ser retomadas esta semana na Turquia. /…/

“Garantias de segurança e neutralidade, estatuto não-nuclear do nosso Estado. Estamos prontos para avançar nesta direcção. Este é o ponto mais importante”, disse Zelensky na entrevista videofilmada de 90 minutos. Mais tarde, num vídeo dirigido à sua nação naquela noite, Zelensky disse que a Ucrânia estava à procura da paz “sem demoras” [35].

Porém, em meados de Abril, tudo muda outra vez. A partir desta data, Zelensky parece ter-se convencido (ou ter sido convencido) de que a Ucrânia pode derrotar militarmente a Rússia e que, por conseguinte, não precisa de negociar com ela seja o que for, a não ser, talvez, trocas de prisioneiros.

Em 18 de Abril, numa entrevista à CNN, perguntado se achava que a Ucrânia poderia ser vitoriosa contra a Rússia respondeu: «sim, evidentemente, e será vitoriosa». É também a partir desta data que Zelensky começa a afirmar que a Ucrânia não abdicará de qualquer parcela do seu território, o que parece indicar que nunca reconhecerá a independência das Repúblicas de Luhansk e Donetsk nem da Crimeia, mesmo que a sua população tenha decidido (ou venha a reiterar outra vez), por via de referendo, separar-se da Ucrânia.

É também a partir desta data que Zelensky inicia uma campanha sistemática sob a palavra de ordem: “dêem-nos armas, mais armas, melhores armas”. Esse passou a ser o seu mantra em todas as suas intervenções públicas e, em particular, em todos os discursos que foi convidado a fazer nos parlamentos de muitos países. A inspiração e a razão de ser desta  novel convicção bélica de Zelensky relativamente à Rússia parece ser esta afirmação de Lloyd Austin, o chefe do Pentágono estadunidense, em 25 de Abril de 2022:

Acreditamos que podemos vencer, que eles podem vencer se tiverem o equipamento certo, o apoio certo [36].

«Nós» refere-se às Forças Armadas dos EUA, «eles» refere-se às Forças Armadas da Ucrânia. O apoio dos EUA (e da UE e do RU) a Zelensky em armas, equipamento, treino, informações militares e dinheiro não tem faltado e atingiu mesmo dimensões grandiosas. Antes da guerra os EUA davam à Ucrânia 300 milhões de euros por ano; depois do começo da guerra passaram a dar 100 milhões de dólares por dia [37]. Destarte, os EUA parecem decididos a combater a Rússia até ao último ucraniano, com o objectivo de  a enfraquecer [38]. Não estão minimamente interessados no fim da guerra.

Tudo parece assim encaminhar-se para o autocumprimento completo da espantosa “profecia” de Olekseï Arestovich, membro do gabinete de Zelensky, onde desempenha as funções de conselheiro militar. Em Março de 2019, Arestovich disse em substância: «O preço que a Ucrânia precisa de pagar para aderir à OTAN é uma grande guerra com a Rússia, e depois da Ucrânia derrotar a Rússia, aderir à OTAN seria o melhor dos prémios». 

Pode vê-lo e ouvi-lo expor de viva-voz esta linha de pensamento AQUI https://www. youtube.com/watch?v=DwcwGSFPqIo

Mas não é tudo. Antes mesmo de ter sido possuído por este novel frenesim guerreiro, Volodymyr Zelensky emitiu uma série de decretos formalizando uma campanha presidencial contra o “inimigo interno”: a oposição política e o discurso dissidente. Numa ordem executiva de 19 de Março, Zelensky invocou a lei marcial para banir de uma assentada 11 partidos da oposição, acusados de serem pró-russos, apesar da maioria desses partidos se terem oposto publicamente à invasão de Putin. Os partidos proscritos abrangem todo o espectro da oposição, da direita à esquerda, incluindo a esquerda socialista ou anti-OTAN na Ucrânia.

Esta medida é muito semelhante, nos seus efeitos, à que o comediante Zelensky, encarnando a personagem de presidente da Ucrânia na telenovela O Servidor do Povo, toma a páginas tantas: metralhar todos os deputados do parlamento ucraniano. Essa cena edificante pode ser vista aqui:

 [https://www.youtube.com/watch?v=JceiIUTMvD0&t=112s]

A lista dos partidos proscritos é a seguinte: Plataforma para a Vida (um partido de direita que dispõe de 39 dos 451 deputados do parlamento ucraniano), Oposição de Esquerda, Partido Socialista Progressivo da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, União das Forças de Esquerda, Socialistas, Partido de Sharity, Nashi (= “Nosso”), Estado, Bloco da Oposição, Bloco Volodymyr Saldo. Os partidos abertamente fascistas, como o Corpo Nacional de Azov e o Sector Direita, foram deixados intocados pelo decreto presidencial. Intocado ficou também o partido do presidente Zelensky, que dá pelo nome de “O Servidor do Povo”.


1 de Dezembro de 2021. Numa cerimónia no parlamento ucraniano, Zelensky galardoa Dmytro Kotsyubaylo, com a condecoração de «Herói da Ucrânia», a mais alta condecoração da Ucrânia. Kotsyubaylo é o comandante da 1.ª secção de assalto do “Sector Direita” («Pravy Sektor»), partido ultranacionalista e paramilitar que se reclama da herança política de Stepan Bandera, o fundador da Organização dos Nacionalistas Ucranianos, fascista, antissemita, que defendia a pureza da “raça ucraniana”, colaborador dos ocupantes nazis durante a 2.ª guerra mundial. Foto:Focus.ua

Zelensky anunciou também, na mesma ocasião, o encerramento de todos os outros canais de televisão do país e a sua fusão com a televisão nacional, criando assim à força um monopólio governamental de televisão. Afirmou que a medida ajudará a implementar uma “política de informação unificada” ao abrigo da lei marcial. O seu governo já tinha proibido a emissão de canais de televisão russos (tal como fez a UE).

Convém lembrar que muito antes do início da guerra, em 24 de Fevereiro, Zelensky tinha proibido durante cinco anos as actividades de pelo menos três canais de televisão com alegadas ligações a partidos da oposição. Os canais ZIK, NewsOne e 112 Ucrânia, que foram forçados a encerrar, eram propriedade de Taras Kozak, um deputado multimilionário do partido de oposição Plataforma para a Vida.

Convém também lembrar que o regime ucraniano também proibiu o Partido Comunista (entenda-se: o partido que apoiava a União Soviética quando esta existia) em 2015, alegando que este apoiou o separatismo e o conflito étnico depois de ter tomado posição a favor da incorporação da Crimeia na Rússia e dos movimentos de autonomia e independência em Donetsk e Lugansk. Para fundamentar esta proibição as autoridades utilizaram a chamada “lei de descomunização”, aprovada em Maio de 2015, que exigia que o partido mudasse o seu nome e logotipo. Esta lei celerada também permite ao governo apagar marcas e vestígios do passado do país na era soviética. É uma verdadeira lei de instituição de “buracos da memória orwellianos” que não tem paralelo (salvo melhor informação) em mais nenhum país do mundo.  Zelensky nunca a revogou, nem fez qualquer diligência para que fôsse revogada.

12. Veredicto III

Em suma, Zelensky é o expoente máximo do regime de oligarquia electiva iliberal (cada vez menos electiva e cada vez mais iliberal) que vigora na Ucrânia, tal como o seu homólogo Putin na Rússia. A única diferença (para além de poder explícito muito desigual que cada um deles detém) é que Zelensky, ao contrário de Putin, é um camaleão político. São ambos inimigos declarados do combate pela democracia (não confundir com oligarquia electiva liberal), que o mesmo é dizer do movimento de auto-emancipação dos trabalhadores, e é nessa conformidade que devem ser tratados por quem se situe nesse campo.

13. Epílogo provisório

A invasão da Ucrânia pelas tropas russas e a guerra com luneta de chave dupla que a Rússia desencadeou contra a Ucrânia ⎼ (i) uma guerra de defesa colectiva da República Popular de Luhansk e da República Popular de Donetsk pelo direito de autodeterminação destas últimas e (ii) uma guerra preemptiva da ameaça nuclear da Ucrânia/ OTAN  constituem um acontecimento e um processo da maior gravidade. Um e outro abriram uma caixa de Pandora cujo conteúdo ninguém conhece, mas onde se inclui a possibilidade-de-acontecer uma guerra mundial nuclear. Uma tal possibilidade, a concretizar-se, assinalaria o fim da civilização industrial tal como a conhecemos hoje (é uma certeza teórica) e, com ela, a própria extinção da humanidade como biospécie (é uma quase certeza teórica).

Não se trata de assustar ninguém. Trata-se de enunciar os perigos reais que a guerra em curso na Ucrânia faz pesar sobre a humanidade. Nas páginas do Wall Street Journal do dia 27 de Abril último, Seth Cropsey, que está longe de ser um ilustre desconhecido, preconizou que “os EUA devem mostrar  que podem ganhar uma guerra nuclear” [“The U.S. Should Show It Can Win a Nuclear War”]. Não é um caso único. Há outros candidatos nos EUA a desempenhar no mundo real o papel do General Jack D. Ripper no filme “Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb” (1964)” [“Dr. Estranhamor ou: como eu deixei de me preocupar com a bomba e passei a amá-la”], que também já se fizeram ouvir no mesmo sentido. É o caso, por exemplo, dos congressistas republicanos Michael McCaul e Adam Kinzinger ou do senador republicano Roger Wicker (este último já se pronunciava nesse sentido antes mesmo da invasão da Ucrânia pelas tropas russas).

 

Sterling Hayden no papel do brigadeiro-general Jack D. Ripper, no filme “Dr. Strangelove” de Stanley Kubrik, 1964. Foto: Corbis, via Getty Images. 

O simples bom senso é suficiente para nos levar a admitir que já se tenham manifestado vozes simétricas do lado russo: “A Rússia deve mostrar que pode ganhar uma guerra nuclear”. Mas estamos impedidos de as ouvir, porque o Conselho Europeu e a Comissão Europeia instauraram a censura prévia das informações oriundas da Rússia, para ficarmos completamente às cegas sobre o que lá se passa. 

Não podemos confiar em Putin, Zelensky, Biden, Blinken, Lloyd Austin, Charles Michel, Ursula von der Leyden, Macron, etc., para evitarem uma escalada nuclear da guerra na Ucrânia. As suas noções de “realismo” e de “acção racional” pouco ou nada tem a ver com as do comum dos mortais, como já tivemos ocasião de constatar (cf. Introdução à 3.ª parte deste ensaio).

Acresce que a doutrina nuclear dos EUA e da Rússia são idênticas. Nenhuma destas potências nucleares (as duas mais poderosas do planeta) abdica da prerrogativa de desencadear “o primeiro ataque”/“ataque preemptivo” (Ingl. “first strike” ou “preemptive strike”) nuclear se entender estar perante uma ameaça existencial” por parte da outra [39].

Washington, D.C., 21 de Janeiro de 2022. Um adido militar do Presidente Biden transporta a pasta que contém os códigos do arsenal nuclear dos EUA.  Foto de Yuri Gripas. Abaca, Bloomberg via Getty Images.

É imperioso reconhecermos que só podemos confiar nas nossas forças e que não temos, por enquanto, nada mais do que algumas palavras de ordem e directrizes para ampliarmos as nossas forças até ao ponto em que se tornem avassaladoras — e estamos bem longe desse ponto. Para além das palavras de ordem e directrizes que já foram sugeridas nas secções 7, 10 e 12, acrescento estas:

― Cessar-fogo imediato na Ucrânia!

/.../

/.../

Resolução das disputas relativas às regiões de Luhansk e Donetsk e à Crimeia [ver P.S.-1] através do livre exercício pelas populações em causa do seu direito democrático à autodeterminação (incluindo o direito à secessão), através de referendo supervisionado por organizações internacionais independentes;

― Não à entrada da Ucrânia, da Geórgia, da Suécia e da Finlândia na OTAN;

―Desmantelamento simultâneo e mutuamente controlado do arsenal nuclear dos EUA, da OTAN, da Rússia e das demais potências nucleares (China, França, Reino Unido, Paquistão, Índia, Israel, Coreia do Norte);

― Dissolução da OTAN.

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N.B. [21-04-2023] Este artigo, a quarta e última parte do ensaio A Guerra na Ucrânia, foi originalmente publicado, dividido em três artigos, na revista/magazine Passa Palavra (passapalavra.info/2022/05/144000; passapalavra.info/2022/05/144116; passapalavra.info/2022/06/ 144291). Porém, o artigo aqui publicado não é totalmente idêntico ao publicado nessa revista, porque a minha posição sobre este assunto evoluiu, entretanto, em vários e importantes aspectos como resultado  do estudo mais aprofundado que fiz  das suas causas contribuintes e da consideração de certos factos que eram desconhecidos à data da redacção original do ensaio. Por exemplo, se fôsse hoje, tê-lo-ia intitulado As Guerras na Ucrânia. Do singular ao plural, vai um mundo de diferenças. Os trechos do artigo original que foram reescritos foram assinalados com uma letra de cor diferente: verde.  Os trechos suprimidos foram assinalados  com este sinal /.../ em cor vermelha. 

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Notas e Referências

 

[1] Como já tive ocasião de explicar (cf. meu comentário de 2-05-2022 no Passa Palavra, na parte 1 deste ensaio), uma “causa suficiente” de um acontecimento (ou de um processo) é a condição que é necessária e bastante por si só para levá-lo a ocorrer. Relativamente à sua “causa suficiente” (e, portanto, única), a ocorrência do acontecimento (ou do processo) em apreço é o seu “efeito”. Exemplo: o movimento de rotação da Terra em torno de seu próprio eixo é a causa (suficiente) da alternância dos dias e das noites (efeito). Uma “causa contribuinte” de um acontecimento (ou de um processo) é uma condição sem o qual ele não ocorreria, mas que não é suficiente por si só para levá-lo a ocorrer. Relativamente às suas “causas contribuintes” (e, portanto, necessárias, mas nenhuma delas suficiente por si só), a ocorrência de um acontecimento (ou de um processo) é o seu “efeito”. Exemplo: a infecção pelo novo coronavírus SARS-CoV-2 é uma causa contribuinte da doença chamada Covid-19 (efeito).

[2] Estes números referem-se ao ano de 2020 e a sua fonte é o The International Institute for Strategic Studies (Londres) via Reuters, “Ukraine/Russia. On the Edge of the War” [https://graphics.reuters.com/ RUSSIA-UKRAINE/dwpkrkwkgvm/]

[3] Karl Marx.General Rules of the International Working Men’s Association”, 1864. (marxists.org) 2000 [minha tradução].

[4] As respostas dos indivíduos, grupos, movimentos, organizações e partidos  que se dizem de  “direita” ou de “centro” não se distinguem, em nada de essencial, das que preconizam as organizações internacionais (UE e OTAN), os governos dos países membros destas organizações e o governo da Ucrânia, por um lado, ou o governo russo, por outro, pelo que a crítica a estes é também a crítica àqueles.

[5] O caso não é para menos. A questão da luta para prevenir a guerra entre Estados, incluindo a guerra entre Estados imperialistas, ou (no caso de ter sido impossível preveni-la) para lhe pôr um fim, foi sempre uma questão muito mal resolvida no seio do movimento de auto-emancipação dos trabalhadores assalariados. Essa lacuna estratégica ficou tragicamente patente tanto na 1.ª como na 2.ª guerra mundial, que foram ambas conflitos interimperialistas que combinaram guerras de devastação mútua, invasão e conquista territorial. E revela-se hoje outra vez, e ainda com mais acuidade, na impotência do movimento trabalhista relativamente à guerra na Ucrânia.

[6] “Sobre”. Um grupo de militantes na neblina. Março de 2022. neblinaxyz@riseup.net

[7] Karl Marx,  “Inaugural Address of the International Working Men’s Association”, October 21-27, 1864 [minha tradução].

[8] A decisão do Tribunal de Magistrados de Westminster será agora enviada para a ministra britânica do Interior, Priti Patel, que tem a última palavra em casos de extradição. A defesa de Assange pode apresentar os argumentos de defesa até 18 de Maio. De acordo com a lei britânica, a ministra só pode exercer a prerrogativa de proibir a extradição em casos específicos abrangidos pela Lei de Extradição de 2003 e sempre de acordo com os acordos com o país requerente, neste caso os EUA. Perante estes factos, e dado o total alinhamento do governo britânico de Boris Johnson com o governo estado-unidense de Joe Biden, a decisão da ministra do Interior será, em princípio, a de manter a pena de extradição de Assange. Digo «em princípio» e não «de certeza» porque a guerra na Ucrânia veio introduzir um elemento de incerteza neste caso. Não é de descartar a priori a possibilidade de que Boris Johnson e Joe Biden cheguem a acordo para não levar por diante a extradição de Assange. Isto para não serem acusados de duplicidade e rematada hipocrisia em matéria de liberdade de expressão, de liberdade de imprensa, de denúncia dos crimes de guerra  de guerra, e de luta contra a tortura e os maus-tratos, valores do “Ocidente” relativamente aos quais se apresentam como impolutos paladinos. A Amnistia Internacional afirmou que, se a ministra do Interior do Reino Unido confirmar o pedido dos EUA para extraditar Julian Assange, «violará a proibição contra a tortura e abrirá um precedente alarmante para editores e jornalistas de todo o mundo», pois considera, como qualquer pessoa amante da liberdade, que a divulgação de documentos feita pelo portal Wikileaks foi de interesse público. Esta organização de defesa dos direitos humanos argumenta que o confinamento solitário prolongado é uma prática habitual nas prisões de segurança máxima estado-unidenses e que tal equivale a tortura ou maus-tratos, proibidos pelo direito internacional. «O Reino Unido tem a obrigação de não enviar qualquer pessoa para um local onde a vida ou segurança esteja em risco e o Governo não deve abdicar dessa responsabilidade», afirmou Agnes Callamard, secretária-Geral da Amnistia Internacional, alegando que Julian Assange corre um «grande risco de condições prisionais que podem resultar em danos irreversíveis ao seu bem-estar físico e psicológico». É triste ver a Amnistia Internacional recorrer a uma argumentação tão minimalista. Seja como for, uma coisa é certa: se a ministra Patel decidir proibir a extradição de Assange, isso ficar-se-ia a dever não a um elementar sentido de justiça, mas à conveniência dos poderes estabelecidos não vandalizarem a sua própria imagem junto do grande público num momento em que fazem questão em aparecer e actuar numa frente unida no que respeita à guerra na Ucrânia. Amarga ironia. [Ver o P.S.-2 a esta nota no fim das Notas e Referências]

[9] Michelle Goldberg, “This Evil Is All Around Us”. Slate, Jan. 12, 2017.

[10] Fonte: Castellum.AI, em 9 de Maio de 2022.

[11] Fonte: Conselho Europeu/ Conselho da União Europeia. https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/sanctions/ restrictive-measures-against-russia-over-ukraine/sanctions-against-russia-explained/

[12] “EGTA suspends relationship with Russian members due to the ongoing conflict in Ukraine”.EGTA, 3 March 2022 (http://www.egta.com/?page=press-release-individual&idRelease=832).

[13] Na tipologia dos regimes políticos que perfilho, o regime de Putin qualifica-se como sendo uma  oligarquia electiva iliberal. Para a elucidação deste conceito ver a nota 6, na segunda parte deste ensaio.

[14] Há um grão de verdade na alegação de Joaquim Vieira, cuja origem e dinâmica lhe escapam, porém,  completamente. Prende-se com o seguinte. A luta dos trabalhadores assalariados pela sua auto-emancipação económica e política não conseguiu ainda, em parte nenhuma do mundo, obter um êxito completo e duradouro. No entanto, como subproduto e sedimento dessa sua luta, que prossegue quotidianamente sob formas mais abertas ou mais veladas, mais duras ou mais suaves, os trabalhadores conseguiram arrancar às oligarquias dominantes, (i) num certo número de países capitalistas industrialmente mais desenvolvidos da Europa, das Américas, da Ásia e da Oceânia, um conjunto de direitos, liberdades, garantias jurisdicionais e instituições sociais autónomas que tornam menos árdua e sofrida a sua luta por melhores condições de vida, e que tornam também a sua vida quotidiana mais amena e muito menos opressiva do que naqueles países onde essas conquistas (ii) existem de um modo incipiente ou periclitante, ou onde (iii) ainda não foram sequer obtidas, ou onde existiram mas foram destruídas. É essa a diferença principal entre os regimes de oligarquia electiva liberal a que Joaquim Vieira se refere como “Ocidente”, como os que vigoram em países do grupo (i) (como, por exemplo, Suíça, Reino Unido, Suécia, Noruega, Dinamarca, Portugal, Espanha, França, Alemanha, Canadá, EUA, mas também, fora do “Ocidente”, no Uruguai, Chile, Costa Rica, Argentina, Brasil, Nova Zelândia, Austrália, Japão, Coreia do Sul, Taiwan) e os regimes de oligarquia electiva iliberal (como os que vigoram, por exemplo, na Turquia, Ucrânia, Rússia), que se enquadram grosso modo, com mais ou menos qualificações, no grupo (ii). Quanto aos regimes de oligarquia liberticida, citemos, como exemplo, os regimes que vigoram na Coreia do Norte, Arábia Saudita, Egipto, República Centro-Africana, Afeganistão. Myanmar, que se enquadram no grupo (iii). Há ainda uma grande variedade de regimes híbridos, intermédios entre os grupos (i) e (ii). É o caso, por exemplo, dos regimes que vigoram na Bósnia-e-Herzegovina, Geórgia, Hungria, Polónia, Croácia, Roménia, México. E existe também uma grande variedade de regimes híbridos, intermédios entre os grupos (ii) e (iii). É o caso, por exemplo, dos regimes que vigoram em países como China, Vietnam, Irão, Argélia, Cuba, Azerbaijão.

[15] “União Europeia silencia meios de informação russos na Europa, e há quem fale em censura”. Sol, 4 de Março de 2022.

[16] Este número diz respeito, exclusivamente, à União Europeia (cf. EU Sanctions Map). O número de países sancionados pelos EUA seria actualmente de 20 (cf. United States Sanctions. Wikipedia. https://en.wikipedia.org/wiki/United_States_ sanctions). O número de países actualmente sancionados pela ONU é de 14 (cf. Fact Sheets 2022. United Nations Security  Council. https://www.un.org/securitycouncil/sites/www.un.org.securitycouncil/files/subsidiary_organs_ factsheets.pdf).

[17] Castellum A.I. 2 May 2022

[18] Os objectivos oficialmente proclamados das sanções podem ser distribuídos por 5 tipos: 1) a defesa dos direitos humanos e a promoção de mudanças de regime político que sejam favoráveis ao florescimento dos direitos humanos e à liberalização económica; 2) a gestão de conflitos militares; 3) a não-proliferação de armas de destruição maciça; 4) a dissuasão, 5) a luta contra o terrorismo. (V. Ramona Bloj, “Les sanctions, instrument privilégié de la politique étrangère européenne”. Questions d’Europe, n.º 548, 31  mai  2021).

[19] Robert A. Pape, “ Why Economic Sanctions Do Not Work”. International Security, Volume 22, Issue 2 (Autumn, 1997); Andrew Rettman, “Macron: EU sanctions on Russia do not work”, EUObserver, 26 mai 2021.

[20] Hélène Richard & Anne-Cécile Robert, “O conflito ucraniano entre sanções e guerra”. Le Monde Diplomatique. Edição portuguesa. Março de 2022.

[21] Mark Weisbrot e Jeffrey Sachs, Sanções Econômicas como Punição Coletiva: O Caso da Venezuela. Center for Economic and Policy Research. Washington. Maio de 2019. www.cepr.net

[22] Hans C. vo. Sponeck, A Different Kind of War: The UN Sanctions Regime in Iraq. Berghahn Books, New York & Oxford, September 2006. First published in Germany in 2005 (Hamburger Edition) as Ein anderer Krieg: Das Sanktionsregime der UNO im Irak; “Razing the Truth About Sanctions Against Iraq”. Geneva International Centre for Justice, 7 September 2017. https://www.gicj.org/positions-opinons/gicj-positions-and-opinions/1188-razing-the-truth-about-sanctions-against-iraq

[23] Perante este facto, o Subsecretário-geral da ONU e Coordenador de Operações Humanitárias no Iraque, Denis Halliday, demitiu-se em 1998, para denunciar «a destruição de toda uma sociedade». Quanto a Madeleine Albright, então embaixadora dos EUA na ONU, declarou em 1996, avaliando o mesmo facto, que «o preço valeu a  pena».

[24] Ursula von der Leyen : «L’Europe a un très fort levier économique face à la Russie». LesEchos. 4 févr. 2022.

[25] Jorge Costa Oliveira, “A relevância do GNL na diminuição da dependência de gás russo”. Diário de Notícias, 13 Abril 2022.

[26] Olaf Storbeck,“Bundesbank warns Russian gas embargo would cost Germany 5 per cent in lost outpu”. Financial Times, April 22, 2022.

[27] Olaf Storbeck, ibidem.

[28] Hans-Werner Sinn, “Germany’s Energy Fiasco”. Project Syndicate, March 28, 2022.

[29] Os EUA têm as maiores reservas de carvão do mundo: 237 bilhões [em Portugal dizemos 237 mil milhões] de toneladas em reservas. A seguir vêm a Rússia (157 bilhões de toneladas) e a China (149 bilhões de toneladas). A produção norte-americana de carvão cresceu 15% em 2021, o maior volume desde 1990, segundo as contas do Departamento de Energia. A razão é a alta na procura (demanda) de electricidade nos EUA, mesmo com a meta do governo de Joe Biden de neutralizar a emissão de dióxido de carbono até 2030.

[30] Alfred de Zayas é um jurista de reputação internacional, com uma vasta obra publicada. De Maio de 2012 a Abril de 2018 desempenhou, na ONU, a função de perito independente na promoção de uma Ordem Internacional Democrática e Equitativa e produziu, nessa qualidade, 14 relatórios para o Conselho de Direitos Humanos e a Assembleia Geral da ONU. É actualmente professor de direito internacional na Geneva School of Diplomacy (Suíça).

[31] Alfred de Zayas,  “Economic Sanctions Kill”. Counterpunch,  March 18, 2022. CounterPunch.org

[32] 54 dias depois do início da guerra de Ucrânia, em 14 de Abril, António Guterres lançou finalmente uma iniciativa diplomática. Pediu então para se encontrar com o presidente da Rússia e com o presidente da Ucrânia e deslocou-se a Moscovo e Kiev, depois de se ter deslocado a Ancara, para conversar com o presidente da Turquia, considerado como um dos mediadores do conflito. Dessa diligência resultaram corredores humanitários para extrair os civis que se encontravam nos subterrâneos da fábrica Azovstal em Mariupol. É possível que esse facto venha a acelerar a rendição dos militares ucranianos (muitos dos quais pertencentes ao regimento Azoff) que lá se encontram. São resultados tangíveis que Guterres obteve no plano humanitário. Mas o que propôs ele para solucionar o conflito armado?

[33] Valery Engel, “Zelensky Struggles To Contain Ukraine’s Neo-Nazi Problem”. Centre for Analysis of the Radical Right. November 30, 2019.

[34]  Olga Rudenko, “Kiev ready to negotiate with Russia”. The Kyiv Independent, 25 February 2022.

[35] Guerre Russie-Ukraine : Zelensky déclare que l’Ukraine est prête à discuter de la “neutralité” dans les pourparlers de paix”. BBC, 29 Mars 2022. https://www.bbc.com/afrique/monde-60913919

[36] Joshua Melvin & Silvie Lanteaume, “US defense chief says Ukraine can beat Russia with «right equipment»”. The Times of Israel, 25 April 2022,

[37] Kelsey Snell, “How the U.S. aid to Ukraine is taking shape”. NPR, May 11 2022. A ajuda que os EUA concederam ou programaram conceder à Ucrânia até Setembro ascende a 53,4 mil milhões de dólares (53,4 bilhões no Brasil). Esta quantia, a dispender em 4 meses, é equivalente a 81% da despesa total da Rússia com as suas Forças Armadas durante um ano (65,9 bilhões de dólares em 2021). Cerca de metade desta ajuda é em despesas com armamento e tropas. A União Europeia (UE) reservou 20 mil milhões de euros para ajuda aos refugiados da Ucrânia; concedeu à Ucrânia 230 milhões de euros em ajuda humanitária e um empréstimo de 1,2 mil milhões de euros (Solidarité avec l’Ukraine [https://www.consilium.europa.eu/ fr/policies/eu-response-ukraine-invasion/eu-solidarity-ukraine/). E prepara-se para emitir dívida pública para lhe poder conceder um empréstimo de 15 mil milhões de euros (15 bilhões) que a ajude a manter-se à tona de água nos próximos 3 meses (Paola Tamma, “EU to loan Ukraine €5 billion PER MONTH to keep country from collapsing”. Politico.eu, 9 May 2022). O Reino Unido concedeu 1,3 mil milhões dólares em ajuda militar à Ucrânia e 1,5 mil milhões de dólares em ajuda humanitária (“How much has the UK spent on Ukraine?” The Week. 17 May 2022)

[38] Missy Ryan & Annabelle Timsit, “U.S. wants Russian military ‘weakened’ from Ukraine invasion, Austin says”. The Washington Post, April 25, 2022.

[39] «Em 29 de Março, a Casa Branca publicou um breve resumo da estratégia de Biden sobre as forças nucleares, indicando a sua decisão: “Os Estados Unidos só considerarão a utilização de armas nucleares em circunstâncias extremas, para defender os interesses vitais dos Estados Unidos ou dos seus aliados e parceiros”. Isto torna efectivamente a posição dos EUA sobre o emprego nuclear indistinguível da posição da Rússia. De acordo com a sua doutrina militar, a Rússia pode utilizar uma arma nuclear se enfrentar uma ameaça “existencial” — um facto que Putin tem recordado aos observadores em todo o mundo nas últimas semanas, ao agredir a Ucrânia. A decisão de Biden de manter a política dos EUA tão semelhante à da Rússia equivale a uma oportunidade perdida de construir uma coligação internacional contra o conflito nuclear, dizem os defensores do desarmamento. O Senador Ed Markey, “democrata” eleito pelo Massachusetts, co-presidente do Grupo de Trabalho sobre Armas Nucleares e Controlo de Armas do Senado, tomou a palavra no plenário do Senado, em 31 de Março, para denunciar esta orientação política: “Infelizmente, a nossa democracia americana e a autocracia russa têm uma coisa importante em comum: ambos os nossos sistemas dão aos presidentes dos Estados Unidos e da Rússia o poder divino de agirem como a única autoridade capaz de acabar com a vida no planeta tal como a conhecemos, ordenando um primeiro ataque nuclear”». (Sara Sirota, “Biden’s nuclear strike policy is the same as Russia’s”. The Intercept, April 11, 2022). Vale a pena notar, a este propósito, o seguinte. O que os EUA e a Rússia têm em comum e que confere aos seus respectivos presidentes esse poder divino é o facto de serem ambos países onde vigoram oligarquias electivas — uma liberal (EUA) e outra iliberal (Rússia). A classificação do senador Markey (“democracia” vs “autocracia”) não tem fundamente factual.  

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P.S-1. Se tivesse de reescrever hoje (Agosto de 2022) este artigo, não incluiria a Crimeia nesta palavra de ordem. Essa inclusão é errada e abusiva. Tem por única explicação a minha ignorância, à época, dos factos pertinentes —  ignorância, entretanto, corrigida por um estudo aprofundado que fiz do assunto para resolver algumas dúvidas que me assediavam. A Crimeia foi anexada pela Ucrânia durante 22 anos (1992-2014). A população da Crimeia pronunciou-se duas vezes, de maneira inequivocamente maioritária, por via de referendo (1991 e 2014) pela independência da Crimeia, primeiro em relação à Ucrânia soviética (1991) e, mais tarde, em relação à Ucrânia pós-soviética (2014) e pela sua integração, como República autónoma, numa União Soviètica renovada (referendo de 1991) e, após a implosão da União Soviética, pela sua integração na Federação Russa (referendo de 2014), a entidade politica sucesssora e herdeira do território e do património remanescentes da ex-União Soviética. Expliquei minuciosamente -- com base nos factos pertinentes e tantas vezes omitidos pelo sistema mediático dominante de comunicação social e pelas fontes académicas corruptas que o alimentam -- o que acabo de declarar num artigo publicado neste blogue em 22 de Agosto de 2022. Ver Quem anexou a Crimeia: a Rússia ou a Ucrânia? Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue. Agosto de 2022.

P.S-2. Na nota 8 desta quarta e última parte do ensaio “A Guerra na Ucrânia”, escrevi o seguinte: «Não é de descartar a priori a possibilidade de que Boris Johnson e Joe Biden cheguem a acordo para não levar por diante a extradição de Assange. Isto, para não serem acusados de duplicidade e rematada hipocrisia em matéria de liberdade de expressão, de liberdade de imprensa, de denúncia dos crimes de guerra e de luta contra a tortura e os maus-tratos, valores do “Ocidente” relativamente aos quais se apresentam como impolutos paladinos.» Assim sendo, «se a ministra Patel decidir proibir a extradição de Assange, isso ficar-se-ia a dever não a um elementar sentido de justiça, mas à conveniência dos poderes estabelecidos não vandalizarem a sua própria imagem junto do grande público num momento em que fazem questão em aparecer e actuar numa frente unida no que respeita à guerra na Ucrânia».

Em 20 de Junho de 2022 acrescentei o seguinte. Essa possibilidade foi liminarmente descartada pela ministra da Administração Interna de Boris Johnson, Priti Patel, que autorizou, em 18 de Junho último, a extradição de Julian Assange para os EUA. Mike Pompeo, então director da CIA de Donald Trump, deve ter exultado com a notícia, ele que tinha jurado, em 13 de Abril de 2017, que faria tudo para destruir a Wikileaks e que, como se veio a saber, planeou assassinar Assange (um processo apelidado de “extrajudicial murder”), sendo o envenenamento um dos métodos considerado pela CIA, ou então raptá-lo da embaixada do Equador, onde esteve refugiado durante 7 anos, e levá-lo prisoneiro para os EUA clandestinamente através de um terceiro país — um processo apelidado de “extraordinary rendition” (Zach Dorfman, Sean D. Naylor & Michael Isikoff. “Kidnapping, assassination and a London shoot-out. Inside the CIA’s secret war plans against WikiLeaks.” Yahoo! News, September 26, 2021). Boris Johnson deve ter telefonado a Joe Biden para lhe comunicar a boa nova em primeira mão. São ambos impostores profissionais que não temem ser julgados pela opinião pública pela sua duplicidade e hipocrisia sobre as liberdades que dizem defender num caso-teste tão importante como o de Julian Assange, que mantêm prisioneiro há três anos numa prisão de alta segurança em Londres e que querem agora condenar à prisão perpétua por ter tido a ousadia de publicar documentos que provam os crimes de guerra e as torturas cometidos pelos EUA no Iraque, no Afeganistão e em Guantanamo. Estão muito seguros da sua impunidade. Gostaria de dizer que se enganam redondamente, mas, desafortunadamente, não vislumbro nenhum facto que possa fundamentar esse vaticínio.

A luta para libertar Assange continua (pelo menos por enquanto) confinada ao plano escorregadio das leis em vigor em países como o Reino Unido (RU) e os EUA. Não tenho conhecimento, em parte nenhuma do mundo, de manifestações em massa em frente às embaixadas do RU e dos EUA exigindo a libertação incondicional de Assange. Nesta hiperligação [https://www.youtube.com/watch?v=_0jThc4Lszoos], os leitores poderão encontrar uma curta comunicação de Stella Moris, esposa e advogada de Julian Assange, sobre o modo como encara os próximos passos da luta para a defesa jurídica de Assange. Segue-se uma entrevista do seu irmão, Gabriel Shipton, sobre o mesmo assunto, mas com uma alusão interessante à posição do actual primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, sobre o caso Julian Assange [https://www.theguardian.com/media/2022/jun/20/julian-assange-what-is-australias-position-on-his-extradition-and-what-options-does-it-have].

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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana