Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

03 julho, 2023

 Temas 2 e 3

 

O rebentamento da barragem

 de Nova Kakhovka

e outros alegados crimes de guerra

― Qui Bono? Qui Malo?

(Parte 1: O Ministério da Verdade da União Europeia)

 

José Catarino Soares

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7º. artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

 

1. O rebentamento da barragem de Nova Kakhovka

Não sei, obviamente, qual foi causa suficiente, ou quais foram as causas contribuintes [1], do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka em 6 de Junho de 2023.

Há, logicamente, várias possibilidades a considerar. Poderá ter rebentado como resultado (1) de um acto de sabotagem, ou (2) de uma cedência estrutural da barragem ao desgaste causado por múltiplos ataques militares que tem sofrido desde o início da segunda guerra na Ucrânia (24 de Fevereiro de 2022 até à data). No caso de ter sido um acto de sabotagem, poderá ter sido realizado (1.a) pelas tropas ucranianas (com a ajuda ou não dos seus aliados da OTAN), ou (1.b) pelas tropas russas. Só uma investigação independente (das partes beligerantes, embora com a sua participação), isenta e competente poderá apurar qual destas hipóteses é a verdadeira — tanto mais que a Ucrânia excluiu liminarmente a hipótese (2) e que a Ucrânia e a Rússia se acusam mutuamente de serem os autores do acto de sabotagem que constitui a hipótese (1).  

2. A Comissão Europeia e a sua ciência infusa 

Não obstante isso, é forçoso constatar que Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia; Joseph Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia; Janez Lenarčič, comissário europeu para a gestão de crises, e Dana Spinant, porta-voz da Comissão Europeia, não precisam de nenhuma investigação independente, isenta e competente para chegarem a uma conclusão firme sobre este assunto. Elas e eles já sabem, de antemão, qual é a resposta: “Foi a Rússia quem fez explodir a barragem. Caso encerrado”.

A Rússia terá de pagar pelos crimes de guerra cometidos na Ucrânia.  A destruição da barragem, um ataque ultrajante às infra-estruturas civis, põe em risco milhares de pessoas na região de Kherson (Ursula von der Leyen, Twitter, 6 de Junho de 2023).

Os ataques da Rússia contra infra-estruturas civis críticas ucranianas atingiram hoje um nível sem precedentes com a destruição da barragem da central hidroeléctrica de Kakhovka. A União Europeia condena este ataque com a maior veemência possível. Representa uma nova dimensão das atrocidades russas e pode constituir uma violação do direito internacional, nomeadamente do direito humanitário internacional (Joseph Borrell e Janez Lenarčič, 6 de Junho de 2023).

A Rússia está lá [na Ucrânia], a bombardear e a atirar salvas de artilharia, e a Ucrânia está a defender-se, pelo que a Rússia é a principal responsável pelo que se está a passar na Ucrânia... e esta é a primeira afirmação que temos de ter em mente quando analisamos este incidente e qualquer outra coisa (Dan Spinant, 9 de Junho de 2023).

Mas, perguntar-se-á, como sabem estes altos dignitários da Comissão Europeia o que só uma investigação independente, isenta e competente poderá vir a apurar sobre a causa ou causas do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka? Sabem-no graças à ciência infusa, da qual, manifestamente, crêem terem sido ungidos em virtude dos cargos que ocupam.

3. Censura prévia e “superioridade moral do Ocidente”

“Ciência infusa” é um outro nome para “ignorância indouta e atrevida”. Quando a ciência infusa conquista o poder político, a primeira coisa que faz é tentar manter o grande público num estado permanente (i) de ignorância parcial selectiva relativamente ao que realmente se passa e (ii) de credulidade relativamente ao que os dignitários do poder político dizem sobre o que realmente se passa.

A União Europeia tomou duas medidas principais para conseguir alcançar esses dois objectivos relativamente às guerras que se travam na Ucrânia. A primeira foi a de censurar todas as notícias, todas as opiniões e todos os testemunhos oriundos da Rússia, da República Popular de Luhansk (RPL) e da República Popular de Donetsk (RPD) — três dos quatro países beligerantes directamente envolvidos nas guerras que se travam na Ucrânia, o quarto sendo a própria Ucrânia.

As únicas notícias e opiniões e os únicos testemunhos autorizados no espaço da União Europeia são aqueles que são oriundos do governo ucraniano e das agências de comunicação social ao seu serviço, dos órgãos mediáticos de comunicação social da Ucrânia e dos países seus aliados no autoproclamado “Ocidente alargado”,  em particular os países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, também conhecida como NATO pelos falantes de língua inglesa e pelos seus imitadores portugueses) e da União Europeia (UE) — duas organizações que têm 21 países-membros em comum.  

Destarte, no dia 2 de Março de 2022, o Conselho Europeu (o órgão máximo da União Europeia, constituído pelos chefes de Estado ou de Governo dos 27 Estados‑Membros da UE, mais o presidente do Conselho Europeu, mais a presidente da Comissão Europeia) decidiu censurar drasticamente o que os cidadãos dos países da UE podem ouvir e ver nas estações de rádio e radiotelevisão sobre a Rússia. Para isso, baniu a estação de televisão russa Russia Today (RT) e as suas filiais ‒ RT English, RT United Kingdom, RT Germany, RT France, RT Spanish ‒ assim com a agência internacional de notícias e  emissora de rádio internacional Sputnik, proibindo-as de operarem em todo o espaço da União Europeia, «nomeadamente através da sua transmissão ou distribuição por quaisquer meios como cabo, satélite, IPTV [ou TVIP], fornecedores de serviços Internet, plataformas ou aplicações de partilha de vídeos na Internet, quer novos, quer pré-instalados».

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, justificou esta medida da seguinte maneira:

A Russia Today e a Sputnik, bem como as suas filiais, deixarão de poder divulgar as suas mentiras para justificar a guerra de Putin e semear a divisão na nossa União. Por isso, estamos a desenvolver ferramentas para proibir a sua desinformação tóxica e prejudicial na Europa (Statement by President von der Leyen on further measures to respond to the Russian invasion of Ukraine, 27 February 2022).


«Permitir que os cidadãos dos países da União Europeia possam aceder livremente aos orgãos mediáticos de comunicação social da Rússia sem a nossa autorização? Uuuu!…Que horror !!»

Na mesma ordem de ideias, o Conselho Europeu justificou as suas medidas censórias assim: 

As acções sistemáticas de manipulação de informações e de desinformação por parte do Kremlin são usadas como instrumento operacional na sua agressão à Ucrânia. Constituem igualmente uma ameaça significativa e directa à ordem e segurança públicas da União /…/ A Federação da Rússia desenvolveu uma campanha sistemática de desinformação, manipulação de informação e distorção dos factos a fim de reforçar a sua estratégia de desestabilização dos seus países vizinhos, bem como da UE e dos seus Estados-Membros  (Council of the EU. Press release. 2 March 2022) [N.E., os realces a negrito pertencem ao original] [N.E.= nota editorial]

No dia 9 de Junho de 2022, o Conselho Europeu acrescentou à sua lista mais três órgãos mediáticos russos de comunicação social: Rossiya RTR/RTR Planeta, Rossiya 24/Russia 24 e TV Centre International (TVCI).

A empresa EutelSat S.A. ‒ o terceiro maior operador privado de satélites de radiodifusão do mundo ‒ apressou-se a declarar que removeria a RTR Planeta e a Russia 24 dos seus satélites, tal como já o tinha feito relativamente à RT. Não foi a única empresa oligopolista a fazê-lo. Todas as empresas oligopolistas que controlam as principais plataformas electrónicas das redes mediáticas sociais se apressaram a obedecer às ordens do Conselho Europeu e da Comissão Europeia, desde a primeira hora: Alphabet Google’s Inc (através do YouTube, do News Search e do Google Play Store), Meta Plataforms Inc (através do Facebook e do Instagram), Microsoft Corporation (através da Microsoft Star, MSN.com, Microsoft Store e do motor de busca Bing), Apple (através do Apple Store), Twitter, TikTok, Reditt. Belo exemplo da autoproclamada e tão gabada independência da “iniciativa privada” e dos “mercados” em relação ao poder de Estado!

Mas não é o único exemplo. Logo no dia seguinte à proibição da RT e da Sputnik pela UE, essa decisão foi saudada e apoiada pelo ERGA [European Regulators Group of Audiovisual Media Services], o Grupo de Reguladores Europeus dos Serviços de Comunicação Social Audiovisual, ou seja, a associação europeia das firmas que vendem publicidade nos canais de televisão e rádio — uma associação da qual faz parte um grupo empresarial português dono de uma estação de televisão: a SIC-Impresa. O ERGA decidiu suspender imediatamente todos os membros russos da associação, entre eles os seguintes: EMG (Europa Media Group), Everest Sales, Gazprom-Media, Media-1, NRA (National Advertising Alliance) e Russian Media Group. No seu comunicado de imprensa de 2 de Março de 2022, em que comentava a proibição da RT e da Sputnik pela UE, o ERGA deixou claro que estava «unido» e «empenhado em contribuir para a aplicação rápida e eficaz das medidas por todas as partes interessadas». 

Como forte sinal da nossa chefia [leadership, no original] e contributo para o esforço internacional em isolar a Rússia da comunidade internacional, suspendemos todos os serviços de todos os membros russos.

O FaceBook e o Instagram foram mesmo até ao ponto de proclamar que autorizariam a publicação de bilhetes públicos (ingl. “posts”) com “tiradas de ódio” (ingl. “hate speech”), desde que os seus autores fôssem ucranianos a viver na Ucrânia (!!!). Belo exemplo da autoproclamada e tão gabada “superioridade moral” do “Ocidente alargado”! 

Finalmente, no dia 22 de Dezembro de 2022, o Conselho Europeu completou a sua lista de órgãos mediáticos russos de comunicação social proscritos do espaço público da União Europeia acrescentando-lhe mais quatro estações de televisão russas: NTV, Pervyi Kanal, Rossiya 1, Ren TV. Esta medida censória foi justificada da seguinte maneira:

Acrescentámos a NTV, a Pervyi Kanal, a Rossiya 1 e a Ren TV [à lista] porque todas elas são propriedade do Estado russo ou estão sob a influência do Kremlin e divulgam desinformação e propaganda russas.

Estas decisões são, presumo, verdadeiramente espantosas para quem viva na ilusão de que a União Europeia é um espaço onde reina o mais escrupuloso respeito pelos direitos e liberdades civis — em particular os que constam do artigo 11.º da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” [DDHC], aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte de França em 26 de Agosto de 1789, do artigo 19.º da “Declaração Universal dos Direitos Humanos” [DUDH], aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de  1948, e do artigo 11.º da “Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia [CDFUE], proclamada pelo Parlamento Europeu, o Conselho Europeu e a Comissão Europeia em 12 de  Outubro de 2012.   

―Artigo 11.º [DDHC] - A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei. [N.E. Salvo menção em contrário, nesta como nas demais citações deste artigo, o realce, por meio de negrito, foi acrescentado ao original]

― Artigo 19.º [DUDH] -Todo o ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

― Artigo 11.º [CDFUE]- (Liberdade de expressão e de informação)

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.

2. São respeitados a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social.


   «Respeitar o artigo 11.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789); o artigo 19.º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos
 (1948) ou mesmo o artigo 11.º da Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia (2012)? Uuuuu!….Que horror!»

O Conselho Europeu violou e continua a violar estes três artigos. O Conselho Europeu arroga-se o direito de decidir o que é informação, o que é propaganda e o que é desinformação; o que é um órgão de informação e o que é um órgão de propaganda [2]. Além disso e pior do que isso, arroga-se o direito de decidir a que tipo de informação e desinformação e a que tipo de propaganda é que os cidadãos dos países que integram a UE podem ter acesso, visto que ninguém minimamente advertido acredita que a propaganda, a desinformação, as notícias fraudulentas e a distorção dos factos sejam apanágio exclusivo dos órgãos mediáticos de comunicação social e dos governantes de um único país ‒ a Rússia ‒, de que estariam isentos os órgãos mediáticos da comunicação social e os governantes da Ucrânia, dos países membros da UE, dos países membros da OTAN e dos demais países do “Ocidente alargado”.

Por último, mas não menos importante, o Conselho Europeu arrogou-se poderes liberticidas para os quais não tem, sequer, qualquer respaldo legal. Como salientou Ricardo Gutiérrez, secretário-geral da Federação Europeia de Jornalistas (EFJ, na sigla em Inglês),

A regulação dos meios de comunicação não entra na competência da UE. /…/ Acreditamos que a UE não tem qualquer direito de dar ou tirar licenças de emissão. Essa é uma competência exclusiva dos Estados-membros [3].

Gutiérrez tem razão no que diz. Dois reputados juristas ‒ a professora Natali Helberger, da Faculdade de Direito da Universidade de Amesterdão (Holanda) e o professor Wolfgang Schulz, da Faculdade de Direito da Universidade de Hamburgo (Alemanha) ‒ explicaram a gravidade e o carácter inédito da decisão do Conselho Europeu.

Há apenas alguns meses, uma frase como esta [de proibir órgãos mediáticos de comunicação social, N.E.de um decreto regulamentar do Conselho da UE teria sido impensável. Um princípio sacrossanto da ordem mediática europeia é a proibição da censura estatal. Será que esta proibição vai contra os próprios valores e liberdades que a União Europeia tenta defender? E, em caso afirmativo, quais são as implicações?

Ao proibir certos meios de comunicação social de estarem disponíveis na União Europeia, o Conselho está a intervir numa área (a regulação dos meios de comunicação social) que é normalmente deixada ao critério dos Estados-Membros. É indiscutível ‒ e foi confirmado muitas vezes pelo Tribunal de Justiça Europeu ‒ que é da exclusiva responsabilidade dos Estados-Membros moldar o panorama dos meios de comunicação social; isto faz parte da sua competência cultural. Mesmo assim, a maioria dos Estados-Membros permaneceu calada perante a erosão da sua autoridade. O espírito geral é que precisamos de nos unir para sermos duros com a Rússia [4].

Mesmo que isso implique espezinhar a Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia!

No seu comunicado, Gutiérrez chamou também a atenção para efeitos não pretendidos, mas bem reais, da medida do Conselho Europeu:

Este acto de censura pode ter um efeito totalmente contraproducente nos cidadãos que seguem os meios agora banidos

Natali Helberger e Wolfgang Schulz indicam e contextualizam historicamente dois desses efeitos colaterais:

O que nos leva a um problema potencial e fundamental da proibição, nomeadamente o facto de os cidadãos europeus, os decisores políticos e os jornalistas poderem ter um interesse muito legítimo em procurar uma impressão autêntica das narrativas da propaganda russa. Uma das raízes históricas da liberdade de informação na Europa reside na experiência de proibir a escuta de “emissoras inimigas” por regimes opressivos. Um efeito colateral problemático dessa proibição é o facto de forçar os conteúdos da RT e da Sputnik a ficarem na sombra, impedindo os cidadãos da UE e os meios de comunicação social de reconhecerem e formularem uma resposta resiliente à propaganda errada, e afectando o seu direito a receber informação (ibidem).

Um outro efeito colateral ‒ acrescento eu ‒ é o de levar os cidadãos dos países membros da UE e da OTAN a concluir que a UE tem receio que os meios de comunicação social russos que ela decidiu banir possam trazer ao conhecimento do público factos, testemunhos e notícias que ela gostaria de esconder...

Ao contrário da decisão tomada pelos governantes europeus, o secretário-geral da EFJ defende que teria sido uma melhor medida contra-atacar «a desinformação de meios propagandistas – ou alegadamente propagandistas – ao expor os seus erros factuais ou mau jornalismo» [5].

Gutiérrez parece confundir propaganda e desinformação (cf. nota [2]). Mas, tirando isso, é óbvio que a sua prescrição seria a indicada se incumbisse ao Conselho Europeu ou à Comissão Europeia (a instância da UE que sugere, prepara e executa as medidas do Conselho Europeu) a função ou a tarefa de combater a desinformação e o mau jornalismo, venha ela de onde vier e seja onde for que ele seja praticado. Contudo, é também óbvio que essa não é, de modo nenhum ‒ e ainda bem que assim é ‒ uma função nem uma tarefa do Conselho Europeu e da Comissão Europeia.

O que deve ser salientado relativamente à proibição de 15 órgãos mediáticos russos de comunicação social decretada pelo Conselho Europeu é o facto de ser uma decisão não só ilegítima, mas também duplamente celerada, porque não tem suporte legal nem nos tratados da União Europeia (como veremos mais adiante) nem nas constituições da maioria dos países pertencentes à UE. Não o tem, seguramente, no caso de Portugal.

O artigo 37.º (Liberdade de expressão e informação) da Constituição da República Portuguesa, diz o seguinte:

1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

No seu afã proibicionista e inquisitorial, alegadamente antiPutin, o Conselho Europeu “esqueceu-se” que as suas medidas contra a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e o direito à informação são medidas próprias dos regimes políticos que tanto diz execrar e que qualifica de “autocráticos” — como alega ser o caso do regime…de Putin! [6]

Apesar do silêncio cúmplice dos governos e de muitos partidos com assento parlamentar por essa Europa fora (Portugal inclusive), houve quem, nas organizações profissionais e sindicais da chamada sociedade civil, se alarmasse ao compreender imediatamente que a UE se comprazia a dar um tiro no pé sem sequer pestanejar, sinal de que tem pés de barro, não de carne e osso.

É o caso do jornalista Joaquim Vieira, fundador e presidente do “Observatório da Imprensa”, em Portugal, que declarou: 

Não é o bom caminho, e acho difícil conseguir-se defender esta decisão. Para todos os efeitos é censura. Eu não estou de acordo. O que nos distingue das ditaduras é a possibilidade de livre expressão. Às tantas vão dizer que somos iguais ao regime de Putin [7].

Tal como Gutiérrez, mas mais incisivamente, Joaquim Vieira alertou também para os danos reputacionais inerentes a esta decisão da UE.

Seria melhor que [ela] não tivesse existido, porque isso mostrava a superioridade moral que nós, no Ocidente, temos sobre um regime como o de Putin.

O silenciamento dos meios de comunicação russos no espaço da UE ‒ concluiu Joaquim Vieira ‒ vai «contra o código genético de uma sociedade aberta».

Na verdade, os danos reputacionais que a UE causou a si própria ao tomar estas suas medidas contra o direito de informar, de se informar de ser informado sem impedimentos nem discriminações e independentemente de fronteiras, são ainda maiores do que os indicados por Joaquim Vieira.

O regime de Putin não proibiu a população russa de aceder aos órgãos mediáticos de comunicação social dos países da UE e da OTAN a pretexto de se defender contra uma campanha sistemática e internacional de desinformação, manipulação mediática de informações e distorção dos factos contra a sua denominada “Operação Militar Especial” na Ucrânia. E seria lógico que o tivesse feito se compartilhasse a concepção que o Conselho Europeu e a Comissão Europeia têm da liberdade de expressão e informação – “Liberdade de expressão e informação sim, mas só a dos órgãos mediáticos de comunicação social autorizados por nós” ‒, mais do que não seja a título de represálias. Mas a verdade é que o não fez [8]. 

Por conseguinte, se o regime de Putin for comparado, neste particular, com os regimes em vigor na UE, não pode deixar de aparecer como o paladino «da possibilidade de livre expressão» e da «sociedade aberta». Destarte ‒ ironia das ironias ‒ é ele que pode reivindicar uma «superioridade moral» (!) relativamente ao «Ocidente» sem receio de um desmentido…   

4. A União Europeia veste a pele do Big Brother

No romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, um país chamado Oceania é governado por um partido todo-poderoso, tutelado por um personagem misterioso e omnipresente, afectuosamente apelidado de “Irmão Mais Velho” (ingl. “Big Brother”), que vela dia e noite pelo bem-estar e a saúde mental dos cidadãos de Oceania [9]. O lema do partido é: “GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO.  IGNORÂNCIA É FORÇA”.

Para isso, o partido do Irmão Mais Velho construiu vários instrumentos de poder deveras originais, entre ao quais o Duplipensar (a arte de sustentar duas ideias contraditórias ao mesmo tempo e de aceitar ambas), a Novilíngua (a língua oficial da Oceania, baseada no Inglês-padrão, mas expurgada de todas as palavras que descrevem ideias políticas “não ortodoxas” e com um vocabulário muitíssimo reduzido para limitar o leque de ideias que podem ser expressas e garantir um discurso “politicamente correcto” em todas as circunstâncias) e os quatro Ministérios omnipotentes: da Paz, da Verdade, do Amor e da Abundância.

Sucintamente, o Ministério da Paz ocupa-se da organização da guerra; o Ministério da Verdade ocupa-se com o fabrico de mentiras; o Ministério do Amor ocupa-se com a organização da tortura e o Ministério da Abundância ocupa-se com a organização da fome. Estes nomes oximorónicos não são «nem acidentais, nem resultam da hipocrisia vulgar: são exercícios deliberados de Duplipensar» (George Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro).

O Ministério da Verdade (MINIVER na Novilíngua de Oceania) rege-se pela palavra de ordem “Ignorância é Força”. A sua missão é controlar a informação que chega aos cidadãos, censurando todas as notícias e opiniões que possam embaciar, questionar, criticar ou contestar as políticas do partido governante e as directivas do Irmão Mais Velho. Para o conseguir, o Ministério da Verdade difunde um fluxo contínuo de informações falsas, mentiras e notícias fraudulentas, enquanto reescreve continuamente a história de Oceania e do mundo em função das necessidades e conveniências políticas do partido governante em cada momento.

      Representação artística do edifício do Ministério da Verdade (MINIVER) no romance 
  Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell. Na frontaria principal do edifício
pode ler-se
Ignorance is Strenght (Ignorância é Força); Freedom is Slavery
(Liberdade é Escravidão); War is Peace (Guerra é Paz).
Autor da gravura: Seth Sua.

Num raro comentário sobre esse seu romance, publicado em 6 de Junho de 1949, George Orwell declarou:

Não creio que o tipo de sociedade que descrevi [no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro] irá necessariamente ocorrer, mas estou convencido (lembrando, claro, o facto de que o livro é uma sátira) de que algo parecido poderia ocorrer [10] [itálicos no original]

Acabámos de ver um exemplo disso no modo como a Comissão Europeia e o Conselho Europeu resolveram recriar em Bruxelas uma versão do Ministério da Verdade (MINIVER) de Oceania a pretexto da segunda guerra na Ucrânia.

Mas convém acrescentar, em abono da verdade completa, que não foram apenas a Comissão Europeia e o Conselho Europeu que actuaram nesse sentido. Foi também o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), cuja missão consiste em «fiscalizar a legalidade dos actos das instituições da União Europeia, assegurar o respeito, pelos Estados-Membros, das obrigações decorrentes dos Tratados, e interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais» (https://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/pt/).

Em 27 de Julho de 2022, o Tribunal Geral da União Europeia (um dos dois ramos do Tribunal de Justiça da União Europeia), pronunciou o seu veredicto relativamente ao processo judicial movido pela RT France contra o Conselho Europeu. O Tribunal Geral considerou que a proibição da RT France na UE não violava o direito à liberdade de expressão (!!!).

Ronan Ó Fathaigh, professor no Instituto para as Leis da Informação da Universidade de Amsterdão, e Dirk Voorhoof, professor no Centro de Direitos Humanos da Universidade de Ghent e co-fundador da Legal Human Academy, escreveram um artigo intitulado Freedom of Expression and the EU’s Ban on Russia Today: A Dangerous Rubicon Crossed [“A liberdade de Expressão e a Proibição da Russia Today pela União Europeia: um perigoso Rubicão que foi atravessado”] [11]. Estes dois juristas arrasam completamente nesse seu artigo (e noutros artigos [12]) todos os argumentos do acórdão do Tribunal Geral da União Europeia e mostram o redondo vazio que se encontra por debaixo dos conceitos que usa — como por exemplo, o de “propaganda” (que não se encontra definido em parte nenhuma na legislação da UE), ou o de [publicações de] “origem estrangeira”, que um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos [Association Ekin v. France], considerou não poder ser invocado para fundamentar medidas censórias contra a liberdade de imprensa.

Não vou aqui reproduzir tudo o que estes juristas dizem sobre a completa falta de respaldo legal do acórdão do Tribunal Geral da União Europeia sobre o processo que a RT France moveu contra o Conselho Europeu. Limitar-me-ei a respigar algumas das suas conclusões sobre alguns dos aspectos mais cínicos desse acórdão.

Em sexto lugar, o Tribunal Geral dá eco ao argumento do Conselho Europeu e da Comissão Europeia segundo o qual a essência do direito à liberdade de expressão não é restringida pela proibição, uma vez que outras possibilidades permanecem em aberto, como a investigação e as entrevistas efectuadas pelos jornalistas da RT France, a produção de programas e a distribuição dos seus programas fora da UE. Com este tipo de argumentos, qualquer interferência na liberdade de expressão pode ser justificada, uma vez que existem sempre outras alternativas. É quase cínico sugerir que a essência dos direitos dos jornalistas não fica substancialmente restringida ou ameaçada enquanto os jornalistas puderem efetuar entrevistas e investigação, sem terem a possibilidade de fazer chegar ao público essas entrevistas e os resultados da sua investigação. Sem a possibilidade de tornar a informação pública e disponível para outros, o direito à liberdade de expressão é restringido na sua própria essência.

A mesma observação pode ser feita em relação à consideração do Tribunal Geral de que a proibição da RT France não afecta a possibilidade de os seus programas serem distribuídos fora da UE /…/ 

Em suma,

Não é exagero dizer que o acórdão sobre a RT France abre um precedente extremamente perigoso para a liberdade de expressão na Europa, e há uma série de críticas fundamentais a fazer ao acórdão.

5. O guião mais usitado do Ministério da Verdade da União Europeia

A segunda medida principal que o Ministério da Verdade da União Europeia tomou para conseguir alcançar os seus dois objectivos relativamente às guerras que se travam na Ucrânia ‒ manter o grande público num estado permanente (i) de ignorância parcial selectiva relativamente ao que realmente se passa e (ii) de credulidade relativamente ao que os dignitários do poder político dizem sobre o que realmente se passa ‒ foi a de adoptar alguns guiões muito simples para todas a suas declarações. Um desiderato complementar desses guiões seria o de poderem servir também de linhas orientadoras ao sistema mediático dominante de comunicação social no seu tratamento noticioso e opinativo da actualidade.

Julgo que Jean Neige [13] e Tucker Carlson [14] independentemente um do outro, conseguiram ambos descortinar o teor de um desses guiões ‒ o mais usitado de todos ‒ através de uma análise fina dos seus tropos recorrentes no fluxo noticioso e opinativo fornecido pelo sistema mediático dominante de comunicação social [15]. Por comodidade de expressão, vou denominá-lo o “guião da [crença postiça na] maldade absoluta de Putin” ou, se preferirem, o “guião da [crença postiça na] superlativa maldade putinesca”. Ei-lo, então, nas palavras de Jean Neige: 

No cenário da demonização [de Putin e dos Russos, N.E.], o adversário não é humano nem racional; ele representa o Mal absoluto, e o Mal não tem outro objetivo senão cometer o Mal. É impressionante constatar quantas centenas de milhões de pessoas  podem ser convencidas por este pensamento simplista e pronto-a-pensar, que parece destinar-se a crianças de 7 anos (Jean Neige, Retour sur les allégations de crimes de guerre russes en Ukraine: Boutcha (3/6). France Soir. 7 septembre 2022).

E nas palavras de Tucker Carlson:

“Putin é a maldade em figura de gente [uma variante deste tropo é que Putin é um imprevisível psicopata, sem rival em imprevisibilidade no pequeno e selecto mundo dos estadistas; outra variante é a de que é um perigosíssimo facínora, sem rival em perigosidade no pequeno e selecto mundo dos estadistas, N.E.]. E as pessoas más fazem coisas más pelo puro e obscuro prazer de serem más. Neste caso particular [o do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka, N.E.], Putin atacou-se a si próprio, o que é a coisa mais maldosa que alguém pode fazer, e que está, por conseguinte, perfeitamente de acordo com a natureza de um homem tão mau”. É esta a explicação deles (Tucker in Twitter. Episode 1. June 2023).

Desafortunadamente, não sei quem é o autor deste excelente cartoon

“Deles” quem? De governantes como Ursula von der Leyen, Joseph Borrell, Charles Michel, Joe Biden/Antony Blinken/Victoria Nuland, Lindsey Graham, Andrzej Duda, Boris Johnson/Liz Truss/Rishi Sunak, Emmanuel Macron, Olaf Scholz, Annalena Baerbock, Sanna Marin, Eva Magdalena Andersson, Giorgia Meloni, Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, entre outros, e de comentadores, como, por exemplo, em Portugal, José Milhazes, Germano de Almeida, Nuno Rogeiro, Ricardo Costa, todos, por sinal, da SIC Notícias. Mas podíamos citar muitos outros comentadores noutras estações e canais de televisão.

No caso recente do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka, todos os comentadores que ouvi na RTP e nas televisões comerciais estabelecidas em território português, com uma única excepção [16], produziram os seus comentários em estrita conformidade com o guião da maldade absoluta de Putin.

Não tenho dúvidas de que se trata de uma operação russa (José Milhazes, SIC Notícias, 6-6-2023).

Onde vai Milhazes buscar as suas certezas inabaláveis? Obviamente que não é a factos que provem o que afirma, porque Milhazes não tem nenhum. Conjecturo, pois, que Milhazes tem como único fundamento da sua atoarda a crença postiça na maldade absoluta de Putin.

O primeiro objetivo dos russos com a destruição da barragem era impedir que os ucranianos progredissem rapidamente até à Crimeia” (Nuno Rogeiro, “Leste-Oeste”, Expresso, 11-06-2023).

Como sabe Nuno Rogeiro que os russos destruíram a barragem? A pergunta não pode ser respondida porque Rogeiro não sabe o que diz saber. Não é possível saber o que quer que seja por ciência infusa. Rogeiro acredita, isso sim, tal como o seu parceiro Milhazes, que foi isso que aconteceu. Conjecturo, pois, que compartilha também com Milhazes a crença postiça na maldade absoluta de Putin. É essa crença postiça que confere uma vaga aparência de verosimilhança às acusações que fazem, visto que podemos esperar toda a espécie de maldades de alguém superlativamente maldoso.

Os russos minaram há vários meses a barragem de Kakhovka e a central hidroelétrica. Zelensky tinha alertado em Outubro que a catástrofe ocorrida há dias poderia acontecer a qualquer momento. A explosão da barragem é um crime impensável. Mas era, na verdade, uma tragédia quase anunciada — que atrasa dramaticamente os planos da contraofensiva ucraniana a Sul (Germano Almeida, “Compreender o conflito: tragédia impensável”, SIC Notícias, 08-6.2023).

Como sabe Germano de Almeida que os russos minaram há meses a barragem de Nova Kakhovka e a central hidroeléctrica? A pergunta não pode ser respondida porque Germano de Almeida não sabe o que diz saber. Não é possível saber nada por ciência infusa. Germano de Almeida diz que se trata de um “crime impensável”, cujo autor, por conseguinte, só pode ser alguém superlativamente maldoso. Quem? Putin, naturalmente, para quem acredita na sua maldade absoluta de Putin, ou se comporta como se acreditasse nela.Voltaremos, na 2.ª parte deste artigo, a esta ideia do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka como “crime impensável”, que tem que se lhe diga, como veremos.

6. Um precioso conselho com mais de 2100 anos

A Turquia propôs a constituição de uma comissão de inquérito independente (de ambos os beligerantes), isenta e competente para investigar a causa ou as causas do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka. O governo de Zelensky rejeitou imediatamente essa proposta. Zelensky e os seus colaboradores são grandes amigos da verdade e da transparência, como se constata.

Não estamos, porém, condenados a assistir de dentes cerrados, mas impotentes, ao desfile das notícias fraudulentas do Ministério da Verdade da União Europeia e dos seus retransmissores no sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado”. Apesar de não sabermos quem (ou o que) fez rebentar a barragem de Nova Kakhovka e apesar da falta de uma comissão de inquérito independente sobre esse acontecimento, podemos fazer muitos progressos no sentido da descoberta da verdade acerca desta questão se seguirmos um conselho com mais de 2.100 anos.

Cícero imortalizou-o em Pro Sexto Roscio Amerino [“Em prol de Sextus Roscius de Ameria”], um discurso que proferiu na barra do tribunal em defesa de Sextus Roscius, um cidadão romano acusado de ter assassinado o seu pai (80 a.C.). Convém saber que o crime de parricídio era o mais grave de todos para os Romanos.

L. Cassius ille, quem populus Romanus verissimum et sapientissimum iudicem putabat, identidem in causis quaerere solebat, qui bono fuisset?   (Cícero, Pro Roscio Amerino, §§ 84, 86)

ou seja, traduzindo: 

Lúcio Cássio [Lucius Cassius Longinus Ravilla, eleito tribuno da plebe em 137 a.C., eleito cônsul em 127 a.C. e eleito recenseador em 125 a.C., N.E.], que o povo romano considerava um juiz extremamente justo e sábio, perguntava sempre nos julgamentos a que presidia: “quem ganha/beneficia com isto?” [Minha tradução, com a ajuda da tradução inglesa de Cícero, Defence Speechs (translated with Introductions and Notes by D. H. Berry. Oxford World Classics. Oxford University Press. 2000, pp.34-35] 

Em suma, disse-nos Lúcio Cássio, decorre da natureza humana que ninguém comete um crime premeditado sem a esperança de um benefício ou de um ganho. Daí a pergunta: Qui bono fuisset? [“quem ganha/beneficia com isto?”] ou, para abreviar, Qui bono?

7.  O teste de Cássio

Sigamos, então, o conselho de Lúcio Cássio ‒ como o fez o próprio Cícero, com muito êxito [17] ‒ se quisermos deslindar, ainda que incompleta e preliminarmente, os alegados crimes de guerra cometidos no decurso da segunda guerra na Ucrânia.

Quando nos parecer que ambos os contendores em liça ‒ Rússia e Ucrânia ‒ podem ambos beneficiar com tal ou tal (alegado) crime de guerra, nada nos impede de aperfeiçoarmos a pergunta de Lúcio Cássio ‒ Qui bono? ‒ completando-a com o seu dual ‒ Qui malo? [“Quem perde/sofre (ou quem fica prejudicado) com isso?] ‒ e acrescentando a ambas o advérbio “mais”. Assim:

A)   Quem beneficia/ganha (mais) com este crime?

B)    Quem perde/sofre (mais) ‒ ou quem fica (mais) prejudicado ‒ com este crime?

Para efeitos mnemónicos, proponho que denominemos estas duas perguntas o teste de Cássio.

Os méritos do teste de Cássio, como princípio de investigação criminal, não precisam de ser realçados. Foram sobejamente demonstrados ao longo de dois milénios. Para além de nos ensinar a pensar com conta, peso e medida ‒ tal como a Navalha de Ockam, um seu congénere mais novo ‒ o teste de Cássio também um outro condão: permite-nos romper imediatamente o casulo de estupidez auto-infligida em que os funcionários do MINIVER da UE nos querem encerrar, quando alegam as suas atoardas como se fôssem verdades indubitáveis. 

Na segunda parte deste artigo, a publicar oportunamente, aplicaremos o teste de Cássio a alguns alegados crimes de guerra dos últimos 16 meses aos quais o sistema mediático dominante do “Ocidente alargado” deu grande destaque. Refiro-me, nomeadamente, à chacina de Bucha (no oblast de Kiev), aos bombardeamentos da central nuclear de Zaporíjia e ao rebentamento da barragem de Nova Kakhovka (no oblast de Kherson). 

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Notas e Referências


[1] Os acontecimentos e processos não-aleatórios têm causas que podem ser de dois tipos: suficiente (se uma só causa for bastante para explicar a sua ocorrência) ou contribuinte (se forem várias causas a contribuir para a sua ocorrência).

[2]Propaganda” e “desinformação” são dois conceitos bem distintos. Fazer propaganda de algo (X) consiste em difundir aquilo que (na opinião do difusor) merece ser propagado acerca de X (e que pode ser verdadeiro ou falso). Desinformar consiste em difundir cientemente informações falsas. As “notícias fraudulentas” (ingl. “fake news”) são a modalidade mais frequente de desinformação nos dias que correm.

[3] Ver “União Europeia silencia meios de informação russos na Europa, e há quem fale em censura”. Sol, 4 de Março de 2022.

[4] Natali Helberger & Wolfgang Schulz, “Understandable, but still wrong. How freedom of communication suffers in the zeal for sanctions”. Media@LSE blog, June 10th, 2022.

[5] Ver nota 4.

[6] Só por indouta e atrevida ignorância se pode afirma que o regime de Putin é uma autocracia. Na tipologia dos regimes políticos que perfilho, o regime de Putin qualifica-se como sendo uma oligarquia electiva iliberal. A mesma qualificação se aplica ao regime de Zelensky na Ucrânia até ao início da segunda guerra na Ucrânia (24 de Fevereiro de 2022). Entretanto, no decorrer desta guerra, o regime de Zelensky evoluiu rapidamente para uma oligarquia liberticida.

[7] Ver nota 4.

[8] Não confundir “redes sociais mediáticas” e “órgãos mediáticos de comunicação social”. As primeiras são fontes de informação avulsa e muitas vezes apócrifa, cujos agentes não estão subordinados a nenhum código deontológico comum, auto-elaborado e auto-instituído. As segundas são fontes de informação jornalística, cujos agentes são profissionais que se regem, ou deveriam reger, por um código deontológico comum, auto-elaborado e auto-instituído: a “Declaração dos Deveres e Direitos dos Jornalistas”, conhecida por Declaração de Munique. Salvo melhor informação, as únicas represálias que o governo russo fez relativamente às decisões do Conselho Europeu contra os órgãos mediáticos russos de comunicação social, tiveram como alvo duas redes sociais mediáticas americanas (Facebook e Instagram), cujo acesso foi bloqueado na Rússia, e não órgãos mediáticos de comunicação social sediados na Europa ou noutras paragens do “Ocidente alargado”. No texto principal deste artigo (secção 3), evoquei o comportamento do Facebook e do Instagram que motivou essas represálias por parte do governo russo.

[9] Big Brother é habitualmente traduzido, literalmente, por Grande Irmão. É uma má tradução, que atesta um conhecimento muito escasso ou nulo da língua inglesa no seu registo idiomático.

[10] Excerto de uma carta, entretanto perdida, escrita em 16 de Junho de 1949 por Orwell a Francis A. Henson, dirigente sindical do United Automobile Workers dos EUA, respondendo a perguntas sobre o romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (Letter to F. A. Henson. “The Complete Essays, Journalism and Letters of George Orwell [CEJL] [volume] IV: In Front of Your Nose 1945-1950. Ed. Sonia Orwell and Ian Angus. New York: Harcourt, 1968: 502). Excertos desta carta foram também publicados na revista Life, em 25 de Julho de 1949, e no New York Times Book Review, em 31 de Julho de 1949. A carta é reproduzida na íntegra em Jeffrey Meyers, George Orwell:The Critical Heritage 24 (que cita o CEJL) e novamente em Anonymous, George Orwell’s statement on Nineteen Eighty-Four, e parcialmente citada em Newsinger, Orwell’s Politics 122, em Howe, 1984: History as Nightmare, p. 324 note, e em Howe “1984: Enigmas of Power”, p. 107).

[11] Ronan Ó Fathaigh and Dirk Voorhoof, “Freedom of Expression and the EU’s ban on Russian Today. A Dangerous Rubicon Crossed”, Communications Law — The Journal of Computer, Media and Telecommunications Law, 2022/4 (ISSN 17467616), 186-192 (https://www.bloomsburyprofessional.com/uk/journals-looseleafs/journals/communications-law/).

[12] Dick Voorhoof, “EU silences Russian state media: a step in the wrong direction”, Inforrm’s Blog, The International Forum for Responsible Media Blog, 8 May 2022, e Columbia University Global Freedom of Expression/Publications, 9 May 2022;  Dick Voorhoof & Ronan Ó Fathaigh, “Case Law, EU: RT France v. Council: General Court finds ban on Russia Today not a violation of right to freedom of expression”, Inforrm’s Blog, The International Forum for Responsible Media Blog, 19 August 2022 (https://inforrm.org/2022/08/19/case-law-eu-rt-france-v-council-general-court-finds-ban-on-russia-today-not-a-violation-of-right-to-freedom-of-expression-ronan-o-fathaigh-and-dirk-voorhoof/).

[13] Jean Neige é um jornalista francês que foi funcionário do Ministério da Defesa francês e observador internacional (OSCE, UE, ONU) na ex-Jugoslávia, na Ásia central e na Ucrânia, especialmente na região da Donbass. 

[14] Tucker Carlson é um jornalista americano muito arguto e traquejado conhecido do grande público pelo seu desassombro e acutilância. Um pormenor importante a salientar é que Tucker Carlson é, politicamente falando, um conservador — ou seja, um homem de uma corrente política que, no cânone ocidental (estabelecido pela revolução francesa de 1789), se situa à direita do espectro político parlamentar. Mas Tucker Carlson é também um estrénuo defensor da liberdade de expressão e de imprensa (garantida no primeiro aditamento da Declaração dos Direitos [1791] aditada à Constituição americana) e um estrénuo adversário do envolvimento militar, das intervenções militares e das guerras dos EUA no estrangeiro. De um ponto de vista europeu pouco informado, parece haver aqui uma contradição, porque essas são posições que são (ou foram, outrora) tradicionalmente associadas à esquerda política, tanto na Europa como nos EUA. Mas já não é assim, há muitas décadas, nos EUA, onde os “liberals” (um termo que os americanos usam como quase-sinónimo de “pessoa de esquerda” e “progressista”) e muitos “lefties” (um termo que os americanos usam para denominar pessoas que se situam à esquerda dos “liberals” no campo económico) são estrénuos defensores do “discurso politicamente correcto” (que prevalece, para eles, sobre a liberdade de expressão e de imprensa) e do envolvimento militar, das intervenções militares e das guerras dos EUA no estrangeiro (que se justificam, para eles, em nome da defesa dos “valores ocidentais”). Uma evolução da esquerda parlamentar, em parte semelhante, teve lugar na Europa, onde os partidos da chamada Internacional Socialista e os partidos oriundos do chamado eurocomunismo são todos pró-OTAN, pró-armamento nuclear e, por conseguinte, belicistas q.b. Mas há uma diferença importante entre a direita política americana e a direita política europeia. Um homem com posições semelhantes às de Tucker Carlson não existe, por exemplo, no panorama jornalístico português. Se existisse, seria muito possivelmente tratado como um execrável “radical” de esquerda por toda a direita parlamentar portuguesa e como um execrável “populista” de direita por quase toda a esquerda parlamentar.

[15] Denomino “sistema mediático dominante de comunicação social” o conjunto formado pelos jornais e revistas mundanas de grande circulação (incluindo os jornais e revistas ditas de referência), os canais de televisão e as emissoras de rádio de grande audiência, assim como a agências noticiosas globais mais importantes: Associated Press (AP), Reuters, Agence France Press (AFP), Agencia EFE (EFE), Deutsche Presse-Agentur (DPA), 

[16] A excepção foi a do major-general Carlos Branco, que produz os seus comentários na CNN Portugal.

[17] Cícero conseguiu a absolvição de Sextus Rocius, o seu cliente, graças a uma utilização inteligente da pergunta de Cássio. E conseguiu também, seguindo a mesma linha de investigação, a absolvição de outros clientes seus.

 

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