Um insólito e grotesco (mas esclarecedor)
macrossurto de russofobia
José
Catarino Soares
***************************
9.º artigo da série
Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!
*********************
Este
homem, de cabelo branco e braço estendido, teve de esperar até aos 98 anos para
as suas proezas, como ex-combatente nazi, serem finalmente reconhecidas por um
país do chamado “Ocidente alargado” como grandes feitos heróicos. Chama-se
Yaroslav Hunka. Durante a Segunda Guerra Mundial combateu na 14.ª Divisão de
granadeiros das Waffen SS (o ramo militar da organização Schutzstaffel [cuja
abreviatura era SS] do Partido Nazi de Adolf Hitler), também conhecida como 1.ª
Divisão Ucraniana ou Divisão Galícia, pelo facto de ser composta de voluntários
ucranianos da Galícia (região actualmente repartida entre a parte ocidental da Ucrânia
e a Polónia).
1. A 14.ª Divisão das
Waffen SS
A
14.ª divisão das Waffen SS combateu na Ucrânia, Polónia, Eslováquia e na ex-Jugoslávia.
De acordo com o “Centro de Estudos do Holocausto dos Amigos de Simon Wiesenthal”,
a 1.ª Divisão Ucraniana das Waffen SS «foi responsável
pelo assassínio em massa de civis inocentes com um nível de brutalidade e
malevolência inimaginável» [1]
Na
Galícia, por exemplo, massacraram aldeias inteiras de residentes polacos,
incluindo mulheres e crianças, alegando que estavam associados aos guerrilheiros
soviéticos. Além disso, a Divisão Galícia
das Waffen SS esteve envolvida noutros casos de violência genocida. Por
exemplo, participou na repressão da revolta antinazi na Eslováquia e também na
repressão brutal e violenta do movimento de guerrilha antinazi na Jugoslávia.
Em
Março de 1945, passou a chamar-se Primeira Divisão Ucraniana do Exército
Nacional Ucraniano, antes de se render às forças britânicas dois meses mais
tarde, em Maio de 1945 [2].
2. O parlamento
canadiano ovaciona de pé um SS ucraniano
Yaroslav Hunka recebeu uma ovação de pé do parlamento canadiano «por ter combatido contra os russos durante a 2.ª Guerra Mundial» (sic). A foto foi tirada quando Hunka agradecia os aplausos numa galeria do parlamento canadiano. Isto aconteceu em 22 de Setembro de 2023, depois do discurso que Zelensky proferiu nesse parlamento nesse dia.Ver aqui:
No
dia seguinte, a SIC Notícias informava que:
O presidente da Câmara dos Comuns no Canadá [Anthony
Rota] pediu desculpa após ter convidado e
proporcionado uma ovação no parlamento a um antigo combatente ucraniano da II
Guerra Mundial que lutou ao lado de tropas nazis. Anthony Rota desconhecia a
pertença de Yaroslav Hunka na organização paramilitar nazi Waffen-SS.
Na passada sexta-feira, Volodymyr Zelensky foi discursar no parlamento
canadiano e, após isso, houve uma homenagem a Yaroslav Hunka de 98 anos, com
todos os membros da Câmara de pé a aplaudir. No entanto, após este
acontecimento viral, muitos grupos judaicos alertaram que Hunka pertenceu a uma
organização paramilitar nazi Waffen-SS entre 1943 e 1945. A organização seria [“seria”
não, era, J.C.S.] uma unidade estrangeira criada
pela SS em países sob ocupação nazi. Oriundo da Ucrânia, mas
residente no Canadá, Yaroslav foi apresentado como «um herói da luta pela
independência da Ucrânia contra a Rússia». Um erro crasso que levou ao pedido
de desculpas de Anthony Rota, presidente da Câmara dos Comuns.
3. Erro crasso, mas
inocente?
Como
podemos constatar, a SIC Notícias (à semelhança dos demais órgãos do sistema
mediático dominante de comunicação social) apresentou a homenagem do parlamento
canadiano ao SS ucraniano Yaroslav Hunka como tendo sido “um erro crasso”, mas
inocente. O presidente do parlamento canadiano, Anthony Rota, desconheceria o
verdadeiro passado de Hunka. Pensava que Hunka era um herói ucraniano e,
afinal, descobriu que ele era, de facto, um nefando SS.
É
uma desculpa esfarrapada. Quem pode acreditar que o presidente do parlamento
canadiano (ou, o que para o caso vem a ser o mesmo, o seu quadro de assessores)
e o primeiro-ministro do Canadá (ou, o que para o caso vem a ser o mesmo, os
serviços secretos de informações do governo federal do Canadá) desconheciam a
identidade de Hunka ‒ o seu convidado de honra (para além de Zelensky) ‒ e das
demais pessoas autorizadas a entrar no parlamento num dia tão especial como
aquele, em que Zelensky tinha sido convidado a discursar no parlamento pelo
primeiro-ministro Justin Trudeau e por Anthony Rota?
«Temos aqui na Câmara, hoje, um canadiano de origem
ucraniana, um veterano de guerra, da Segunda Guerra Mundial, que lutou contra
os russos pela independência da Ucrânia e continua a apoiar as tropas [da
Ucrânia], apesar de já ter 98 anos. O seu nome é
Yaroslav Hunka. /…/ É um herói
ucraniano e um herói canadiano e nós estamos-lhe gratos por todo o serviço que
prestou» — disse Rota, em guisa de apresentação. Ao ouvirem estas
palavras, os deputados canadianos levantaram-se todos ‒ assim como Trudeau,
Zelensky e a esposa de Zelensky ‒ e brindaram Yaroslav Hunka com uma prolongada
ovação.
É
óbvio que Rota sabia perfeitamente quem era Hunka, o seu convidado de honra.
Em
vez de lapsos de memória e falhas de segurança conducentes a um “erro crasso”
(mas inocente), parece-me, pois, mais plausível admitir que Rota ‒ ou Trudeau e
Rota de comum acordo, tanto mais que são do mesmo partido, o Partido Liberal ‒
tenha(m) decidido fazer um brilharete para agradar a Zelensky e ao influente
“lobby” ucraniano-canadiano que, no Canadá, tem apoiado os sucessivos governos
(Yatsenyuk, Poroshenko e Zelensky) saídos do golpe de Estado violento e
inconstitucional de 22 de Fevereiro de 2014.
A foto seguinte, publicada pela neta de Yaroslav Hunka, abona em favor desta conjectura. Nela, a senhora Theresa Hunka informa-nos que a foto foi tirada quando o seu avô aguardava na recepção que Trudeau e Zelensky o viessem cumprimentar. E sabemos pelo chefe do grupo parlamentar do Partido Conservador (o principal partido da oposição), Pierre Poilievre, que esse encontro teve lugar [3]. Deve, portanto, haver fotos desse encontro, embora não tenham vindo a público. Não é de excluir, aliás, que tenham, entretanto, sido destruídas num “buraco da memória”, atendendo ao embaraço que produziriam se fossem publicadas.
4. Um brilharete com
um devastador efeito de boomerang
Seja
como for, uma coisa é certa. Trudeau prometeu a Zelensky que o seu governo lhe
daria mais 650 milhões de dólares canadianos em ajuda militar nos próximos três
anos. Esta quantia vem somar-se aos 8.000 milhões de dólares canadianos já
entregues desde 24 de Fevereiro de 2022, dos quais 1.500 milhões em ajuda
militar.
Se
a homenagem a Hunka foi, como conjecturo, um brilharete que Rota e Trudeau
quiseram fazer para celebrarem da melhor maneira o apoio incondicional a
Zelensky e à continuação da guerra na Ucrânia até ao último soldado ucraniano,
então, temos de concluir que foi um brilharete que teve um devastador efeito de
boomerang.
Compreende-se
facilmente porquê. O Canadá contribuiu com mais de 1 milhão de homens (a
esmagadora maioria dos quais eram voluntários) para o combate contra a Alemanha
nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Convém recordar que o Canadá tinha, na
altura, apenas 11 milhões de habitantes (actualmente tem 38,2 milhões). Mais de
45 mil soldados canadianos morreram na Europa durante a Segunda Guerra Mundial,
sobretudo no desembarque nas praias da Normandia e na campanha da Normandia, e
cerca de 55.000 ficaram feridos.
Por isso, para os veteranos canadianos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, para os sobreviventes judeus, polacos, ucranianos russófonos e russos vítimas das matanças das Waffen SS, e para os cidadãos canadianos cujos pais, avós e bisavós combateram contra o nazismo (ou que foram vítimas das suas atrocidades), o espectáculo insólito dos deputados da Câmara dos Comuns do Canadá a erguerem-se em bloco, todos sem excepção, para homenagear uma relíquia viva do nazismo, deve ter sido, presumo, insuportável e não pode ter deixado de gerar uma grande comoção e revolta.
Zelensky exultante e de punho fechado saúda Yaroslav Hunka na galeria do parlamento canadiano, ladeado pela sua esposa e por Justin Trudeau que aplaudem de pé Yaroslav Hunka. Foto: Politico.com |
Como
foi isso possível?
Um
facto importante a ter em conta é este: antes do início da segunda guerra na Ucrânia
(24.02.2022), 4% dos canadianos eram de origem ucraniana. Muitos deles são
orgulhosos descendentes dos correligionários de Stepan Bandera e dos
combatentes da 14.ª Divisão das Waffen SS ‒ como Yaroslav Hunk e como o já
falecido Dmytro Dontsov (o mentor ideológico de Stepan Bandera) ‒ que fugiram
da Europa para o Canadá no fim da Segunda Guerra Mundial, para não serem
julgados pelos seus crimes de guerra [4].
Segundo
o historiador Irving Abella (presidente do Canadian Jewish Congress de 1992 a
1995 e presidente da Canadian Historical Association de 1999 a 2000) mais de
2.000 criminosos de guerra e colaboradores nazis da 2.ª Guerra Mundial foram
acolhidos no Canadá, apesar da oposição e da indignação do Congresso Judaico
Canadiano [5]. «Se há uma palavra para
descrever as atitudes do Canadá [perante os criminosos de guerra nazis] nos últimos 50 anos é “apatia”» — declarou Abella
em 1997 [6].
Uma
prova disso é o relatório final da “Comissão de Inquérito sobre criminosos de
guerra” (relacionados com as actividades da Alemanha nazi) de Dezembro de 1986,
presidida pelo juiz Jules Deschênes. Nesse seu relatório, a Comissão limita-se,
por exemplo, a compilar estimativas diversas do número de criminosos de guerra
que encontraram refúgio no Canadá e a opinar que muitas delas são exageradas.
Dois
exemplos mais. A Comissão Deschênes, embora tenha sido oficialmente constituída
para apurar toda a verdade sobre o tema que lhe deu origem, passou uma esponja
sobre o cadastro da 14.ª Divisão das Waffen SS, alegando ter falta de
legislação adequada e de provas para incriminar os seus membros. Acresce
que a segunda parte do relatório final da Comissão, que dizia respeito a
alegações contra indivíduos específicos, permanece confidencial e nunca foi
tornada pública.
O
“lobby” dos orgulhosos descendentes canadianos dos correligionários de Dontsov
e Bandera inclui a vice-primeira-ministra (e também ministra das finanças) do
Canadá, Christina Freeland. O seu avô materno, Mikhail Khomiak (mais tarde, no
Canadá para onde fugiu, mudou o nome para Michael Chomiak), que ela defende com
determinação, foi o editor-chefe do jornal anti-semita, anti-russo e
antipolaco, “Krakivski Visti”, financiado pelo regime nazi e publicado em
Cracóvia (Polónia) durante a ocupação nazi (1940-1945)
5. Russofobia
É
óbvio que os parlamentares canadianos tinham obrigação de saber que os
ucranianos que «combateram a Rússia na Segunda Guerra Mundial» pertenciam ou às
Waffen SS ou à Organização dos Nacionalistas Ucranianos [OUN, no acrónimo
ucraniano] chefiado pelo filonazi Stepan Bandera.
Mas
admitamos ‒ só para podermos raciocinar ‒ que não sabiam, que os 338 membros do
parlamento canadiano constituem um selecto grupo de ignorantes encartados que
nada sabem sobre a Segunda Guerra Mundial. Qual seria, então, a sua motivação
para se levantarem todos de supetão e dispensarem uma prolongada ovação a um
homem que lhes foi apresentado como “um veterano de guerra que combateu os
russos”? Pois, eu só vejo uma, que dá pelo nome de “russofobia” — uma variedade
de ódio étnico muito em voga na Ucrânia pós-1991 e que aumentou brutalmente de
intensidade e letalidade depois do golpe de Estado de Fevereiro de 2014 que
instalou o regime actualmente vigente na Ucrânia.
Quando a russofobia se alia com os interesses estratégicos da potência hegemónica dominante, os EUA, os resultados podem ser (e têm sido) muitos e diversos, mas sempre desastrosos. Um deles foi o insólito e grotesco macrossurto de russofobia que ocorreu no parlamento canadiano no dia em que Zelensky o visitou.
6. Controlar os danos,
se possível com um buraco da memória
Apesar
da notícia da SIC Notícias que transcrevi mais acima, não esperemos que os
deputados canadianos e o governo canadiano venham a reconhecer que a russofobia
e o alinhamento completo com os interesses estratégicos hegemónicos do seu
vizinho americano foram as reais motivações da sua entusiástica ovação de pé a
Yaroslav Hunka.
Pelo
contrário, para salvar a face e fazer esquecer o seu vergonhoso comportamento,
os deputados canadianos e o governo canadiano tentam agora sacudir a água do
capote e controlar os danos.
A
primeira coisa que fizeram foi arranjar um bode expiatório e um único. “A culpa
do que se passou é toda de Rota, o presidente do parlamento”, afirmou, em
substância, a ministra dos Assuntos Parlamentares, a senhora Karina Gould, com
voz doce. Perante isto, o homem não teve outro remédio senão demitir-se, como aliás
lhe competia e como lhe exigia não só a oposição, mas também (e publicamente) o
seu próprio partido. Esse acto era necessário para prevenir e deflectir o
pedido de demissão do primeiro-ministro Trudeau — que até agora ainda não
surgiu e que é duvidoso que venha surgir do principal partido da oposição.
A
segunda coisa que fizeram foi mais criativa, embora também possa ser
considerada, de um outro ponto de vista, como um exemplo perfeito do apotegma:
«a Vida imita a arte bem mais do que Arte imita a
vida» [7].
É
que se trata de uma iniciativa que parece ter sido congeminada no “Ministério
da Verdade” do romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de Georges
Orwell. Se não vejamos. A mesma senhora Karina Gould,
pediu, na segunda-feira, dia 25 de Setembro, a aprovação unânime no parlamento
canadiano de uma moção que propõe que «se apague da
acta dos debates da Câmara dos Comuns» e de «qualquer
registo multimédia da Câmara» tudo o que se passou relativamente à
homenagem a Yaroslav Hunka: as palavras de elogio do ex-presidente da Câmara
dos Comuns, a ovação unânime e de pé de todos os deputados, assim como de
Trudeau, Zelensky e sua esposa; os gestos de agradecimento de Hunka nas
galerias do parlamento, etc. [8]. Em resumo, doravante todos fariam de
conta que esses acontecimentos nunca ocorreram, para paz e sossego das suas
consciências.
A
espantosa moção de Karina Gould, se fosse aprovada [não foi, diga-se de
passagem] seria, de facto, um perfeito “buraco da memória” saído direitinho do
mundo ficcional de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro para o mundo
político actual [9].
Notas e referências
[1] Daniel Otis, “How was
veteran Yaroslav Hunka's military unit linked to the Nazis?.” CTVNews.ca,
September 26, 2023.
[2] Ivan Katchanovski, “The Politics of
World War II in Contemporary Ukraine.” Journal of Slavic Military Studies,
27:210–233, 2014.
[3] https://twitter.com/PierrePoilievre/status/1706047009747038709
[4] Na
nota 25 do meu livro “Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para
o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear
universal” (editora Primeiro Capítulo. Agosto de 2023), elucido
brevemente quem foram os filonazis ucranianos Dontsov e Bandera e dou alguns
exemplos da sua extraordinária influência na Ucrânia contemporânea.
[5] https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/irving-abella.
[6] Anthony Depalma, “Canada Called Haven
for Nazi Criminals.” New York Times, February 3, 1997.
[7] O apotegma é de Oscar Wilde, no seu ensaio de 1891: “A decadência da
mentira: uma reflexão” (editora Guerra e Paz. Maio de 2022).
[8] https://www.youtube.com/watch?v=_65-VMhNIis
[9] Um “buraco da memória” no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é um dispositivo de apagamento e silenciamento dos factos de um tipo ainda mais grave do que a censura, pois tem como objetivo reescrever a história de modo a torná-la completamente alinhada com as necessidades e os caprichos dos detentores do poder.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana